Saúde mental indígena em território de conflitos: o caso da comunidade Tupinambá da Serra do Padeiro no sul da Bahia

Indigenous mental health in conflict territory: the case of the Tupinambá community of Serra do Padeiro in southern Bahia

Leonardo José de Alencar Mendes István van Deursen Varga Sobre os autores

Resumo

Este artigo apresenta uma perspectiva da saúde mental a partir do estudo dos efeitos dos conflitos pela terra e da organização comunitária na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, no sul da Bahia. A luta pela terra com a retomada do território destaca-se enquanto força produtora de saúde, com potência de suplantar as agruras vividas em um contexto de ameaças, violências e traumas. Para isso, diferentes saberes, práticas e atores, indígenas e não indígenas, são continuamente articulados. Os modos de organização da comunidade se inserem como elemento-chave para prevenção e recuperação da saúde mental, evitando agravos nos conflitos territoriais e promovendo condições para reabilitação e inserção social. A espiritualidade, o trabalho, a cultura, a coletividade e o diálogo interétnico são aspectos centrais de proteção e promoção da saúde mental.

Palavras-chave:
Saúde Mental em Grupos Étnicos; Saúde de Populações Indígenas; Violência Étnica; Trauma Histórico; Coesão Social

Abstract

This study offers a mental health perspective based on the study of the effects of conflicts over land and community organization at Aldeia Tupinambá in Serra do Padeiro in southern Bahia. The struggle for land with the repossession of the territory stands out as a force that produces health with the power to overcome the hardships experienced in a context of threats, violence, and trauma. For this, Indigenous and non-Indigenous knowledges, practices, and actors are continuously articulated. The community’s ways of organizing itself are inserted as a key-element to prevent and recover mental health, avoid injuries in territorial conflicts, and promote conditions for rehabilitation and social insertion. Spirituality, work, culture, community and interethnic dialogue are central aspects of protecting and promoting mental health.

Key-words:
Mental Health in Ethnic Groups; Health of Indigenous Populations; Ethnic Violence; Historical trauma; Social Cohesion

Introdução

Localizada na Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, com aproximadamente 47 mil hectares, estendidos do litoral às serras, e com mais de 20 localidades indígenas, a comunidade Tupinambá da Serra do Padeiro está situada entre os municípios de Buerarema, Ilhéus, São José da Vitória e Una, no estado da Bahia. Dados da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) para 2019 assinalavam 5.038 habitantes na TI. Um censo realizado na Serra do Padeiro em 2016 levantou o quantitativo de 483 indígenas na comunidade (Alarcon; Silva, 2022ALARCON, D.; SILVA, G. J. Das profecias à cura do mundo: território, autonomia e a mobilização dos Tupinambá da Serra do Padeiro, Sul da Bahia, em face da Covid-19. In: ALARCON, D.; PONTES, A. L. M.; CRUS, F. S. M.; SANTOS, R. V. (orgs.) “A gente precisa lutar de todas as formas”: povos indígenas e o enfrentamento da Covid-19 no Brasil. 1. ed. São Paulo: Hucitec, 2022. p. 131-166., p. 136). Trata-se de uma etnia, assim como as demais do Nordeste brasileiro, cuja convivência com a invasão colonial perdura há mais de cinco séculos, mostrando uma faceta distinta das demais regiões do país quanto à realidade dos povos indígenas. Reiteradas contestações da identidade étnica repercutem em preconceitos e acirramentos de conflitos, visto que a legitimidade do direito à terra é questionada por grupos não indígenas em disputa pelos territórios ancestralmente ameríndios.

Mesmo com as fontes documentais atestando a presença histórica dos indígenas na região, apenas em maio de 2002 o governo brasileiro os reconheceu oficialmente. Em 2004, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai)11Atualmente renomeada de Fundação Nacional dos Povos Indígenas. deu início aos procedimentos de identificação e delimitação da TI. O andamento insatisfatório do processo para os Tupinambá requereu que iniciassem no mesmo ano o processo de retomada de terras, “processos de recuperação, pelos indígenas, de áreas por eles tradicionalmente ocupadas e que se encontravam em posse de não-índios” (Alarcon, 2019ALARCON, D. O retorno da terra: as retomadas na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia. São Paulo: Elefante, 2019., p. 100). As reações às retomadas ocorrem de diversos modos: rastreamento e monitoramento do território e das locomoções de lideranças; planejamento e realização de emboscadas; ameaças e difamações nas mídias; prisões; torturas; assassinato; racismo à autoafirmação étnica do grupo.

Os obstáculos impostos pelo Estado brasileiro à demarcação do território Tupinambá favorecem à continuidade do persistente histórico de conflitos entre os Tupinambá, parte da sociedade envolvente, representações públicas e iniciativas privadas. Diante de tal cenário, a ação direta dos Tupinambá tem garantido a posse de boa parte do território. Assegurar a posse e a ocupação da terra demanda da comunidade construir e aprimorar suas estratégias de luta e sobrevivência, incumbindo-a na busca por meios próprios de organização para prover sua existência, lidar com as sequelas dos conflitos e viver bem. O histórico de violências, esbulho e extermínios da sociedade envolvente e do Estado, junto à não demarcação territorial, constroem um cenário de guerra permanente, mesmo quando os conflitos parecem abrandar. Diante disso, os efeitos e os modos de se cuidar, proteger e resistir em meio a tensões, da dimensão socioeconômica à biopsicossocial e espiritual, configuram um problema relevante para a saúde. O caráter território-comunitário dessa experiência indígena abre reflexões para o campo da saúde.

Saúde mental e contextos indígenas

Em contextos indígenas, o conceito de saúde mental é questionado por setores da atenção psicossocial, que atentam para a complexidade de que cada sociedade o compreende de modo diferente, para muitas não fazendo sentido o seu uso (Vélez et al., 2020VÉLEZ, E. M. M. et al. Aproximación a la concepción de la salud mental para los pueblos indígenas de Colombia. Ciência & Saúde Coletiva , São Paulo, v. 25, n. 3, p. 1157-1166, 2020.; Teixeira, 2016TEIXEIRA, D. Z.. Manifestações e Concepções de Doença Mental entre Indígenas. Revista Cubana de Enfermería, [s. l.], v. 32, n. 4, 2016.). Mais do que simplesmente a ausência de sofrimento ou doença, saúde mental refere-se ao bem-estar ou viver bem individual, familiar, social e comunitário. Requer acrescentar a dimensão territorial, na qual estão inclusas a ecologia e a espiritualidade. O processo de saúde-doença em povos indígenas considera a inseparabilidade entre biológico, psíquico, social e espiritual. Baniwa diz da “indissociabilidade da relação território-cultura-saúde-bem viver e a força da espiritualidade, dos sentimentos, das emoções e do amor e respeito à vida, ao outro, à natureza, à Mãe-Terra” (2022, p. 11). Entre os determinantes socioeconômicos e culturais, o direito à terra e sua preservação, associa-se à autodeterminação política e sanitária desses povos (Brasil, 2019BRASIL. Atenção psicossocial aos povos indígenas: tecendo redes para promoção do bem viver. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2019.). A centralidade no conceito de territorialidade refere que a íntima relação entre o mundo terreno e o mundo cósmico produz a saúde (Teixeira, 2016TEIXEIRA, D. Z.. Manifestações e Concepções de Doença Mental entre Indígenas. Revista Cubana de Enfermería, [s. l.], v. 32, n. 4, 2016.). A preservação dos sistemas de conhecimentos e práticas da medicina indígena e a relação com seres não humanos são componentes de suas cosmologias, fundantes e organizadoras dos seus modos de vida (Babau Tupinambá, 2012CACIQUE BABAU TUPINAMBÁ. O lugar sagrado tem que ser preservado. In: Dez faces da luta pelos direitos humanos no Brasil. Brasília, DF: ONU, 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/pessoas-ameacadas-de-morte/acoes-e-programas/programa-de-protecao-aos-defensores-de-direitos-humanos-comunicadores-e-ambientalistas-ppddh/Dezfacesdalutapelosdireitoshumanosnobrasil_layoutnovo.pdf . Acesso em: 4 jun. 2024.
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, 2021CACIQUE BABAU TUPINAMBÁ. Nós somos uma ave que anda, uma ave que se desloca e que faz contato com outras aves. n-1 edições, São Paulo, 25 ago. 2021. Disponível em: Disponível em: https://medium.com/n-1-edi%C3%A7%C3%B5es/cacique-babau-n%C3%B3s-somos-uma-ave-que-anda-uma-ave-que-se-desloca-e-que-faz-contato-com-outras-46b4ee80d073 . Acesso em: 19 maio 2022.
https://medium.com/n-1-edi%C3%A7%C3%B5es...
; Baniwa, 2022BANIWA, G. Prefácio. In: Vozes indígenas na produção do conhecimento: para um diálogo com a saúde coletiva. Coletivo Vozes Indígenas na Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec , 2022.; Silva, 2021SILVA, G. J. Arenga Tata Nhee Assojoba Tupinamabá. Tellus, [S. v. 21, n. 46, p. 323-339, 2021.).

Embora a Política Nacional de Atenção à Saúde das Populações Indígenas (PNASPI) preveja um modelo de atenção diferenciada, o modelo biomédico de assistência a não indígenas, de forma hierarquizada e fragmentada, persiste como dominante, com resquícios coloniais e etnocêntricos, com dificuldades persistentes para promover o diálogo intercultural (Mendes et al., 2018MENDES, A. P M. et al. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, D.C., v. 42, p. 1-6, 2018. DOI: https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.184
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; Pedrana et al., 2018PEDRANA, L. et. al. Análise crítica da interculturalidade na Política Nacional de Atenção às Populações Indígenas no Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública , 2018.). Krenak (2020KRENAK, A. Reflexão sobre a saúde indígena e os desafios atuais em diálogo com a tese “Tem que ser do nosso jeito”: participação e protagonismo do movimento indígena na construção da política de saúde no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 3, , e200711, 2020.) afirma o caráter neocolonizador das políticas públicas, que muitas vezes atuam sobrepondo-se aos próprios costumes e práticas locais da população assistida. Aponta que a política da saúde indígena fez emergir uma nova categoria de trabalhador da saúde: o profissional de saúde indígena, ou “os especialistas em saúde do índio”, e pergunta “será que os índios iriam morrer se não existissem especialistas em saúde dos índios?” (2020, p. 3). De fato, cada contato entre os agentes do Estado das políticas públicas e os povos indígenas constitui uma zona de encontro colonial.

Abdala-Costa (2022)ABDALA-COSTA, M. P. Descolonizando a saúde mental: problematizações sobre a saúde mental em contexto indígena. In: DIAS, M. K. (Org.). Políticas de saúde mental: desafios no Brasil pós-pandemia. Curitiba: CRV, 2022. assinala que embora a Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas considere como central os modos tradicionais de cuidado, os modelos explicativos do processo de saúde doença reproduzem marcadores e referenciais ocidentais na proposição de diagnósticos, situações e indicadores relacionados aos problemas de saúde mental (uso prejudicial de bebidas alcoólicas e outras drogas, violências e outros agravos). Assim, ainda que discurse sobre as diversidades culturais, implementa modos de ver universalizantes para as problemáticas indígenas na saúde, reproduzindo formas de colonização ao dificultar a presença ativa dos modos de compreensão autóctones na orientação do cuidado.

Os estudos sobre saúde mental em contexto indígena no Brasil têm passado por uma mudança da escassez de pesquisas à crescente de trabalhos, ligados em sua maioria à política de saúde mental em indígenas (Mendes, 2023MENDES, L. J. A. Do trauma ao cuidado com abundância: sofrimento psicossocial e modos de cuidado na comunidade Tupinambá da Serra do Padeiro/Bahia, 2023. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Santo Antônio de Jesus, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, 2023.). As temáticas abordadas contemplam os problemas de saúde mental apresentados anteriormente (Abdala-Costa, 2022ABDALA-COSTA, M. P. Descolonizando a saúde mental: problematizações sobre a saúde mental em contexto indígena. In: DIAS, M. K. (Org.). Políticas de saúde mental: desafios no Brasil pós-pandemia. Curitiba: CRV, 2022.; Barbosa et al., 2019BARBOSA, V. F. B.; CABRAL, L. B.; ALEXANDRE, A. C. S. Medicalização e Saúde Indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 8, p. 2993-3000, 2019.; Barreto et al., 2022BARRETO, I. F.; DIMENSTEIN, M.; LEITE, J. F. Percepções sobre o uso de álcool em uma comunidade indígena potiguar. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 38, p. e38419, 2022.; Souza, 2018SOUSA, F. R. Povos indígenas e saúde mental: a luta pelo habitar sereno e confiado. 2018. Dissertação (Mestrado em Psicologia Experimental) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. DOI: 10.11606/D.47.2018.tde-19072018-102952
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). Tais estudos colaboram na compreensão de que esses problemas não podem ser vistos isoladamente, necessitando de uma maior apreensão do contexto sociocultural e político específico de cada povo. Uma vez que podem ter significados e interpretações diferentes nos grupos étnicos, assinalam que os conceitos autóctones, as práticas de autocuidado e as estratégias comunitárias precisam ser compreendidos. Enfatizam a necessidade da realização de esforços conjuntos entre etnias, entidades governamentais, não governamentais e sociedade envolvente, na elaboração de ações e programas de enfrentamento dos problemas de saúde mental. Acrescentam o desafio no incremento de habilidades subjetivas dos profissionais para o favorecimento de iniciativas protagonizadas pelas comunidades.

Poucos estudos tratam das etnias do Nordeste brasileiro, não se encontrando registros de estudos com Tupinambás, lacuna essa que se busca amainar. Os conflitos pelo território e a resistência comunitária serão o fio condutor da análise empreendida, não enfocando os problemas de saúde citados, mas a compreensão dos modos de organização e autorreparação.

Método

Utilizou-se o método da cartografia, método de pesquisa-intervenção de cunho qualitativo, para construção de conhecimentos de processos e relações ligadas a determinados territórios (Passos et al., 2009PASSOS, E., KASTRUP, V. & ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009.). Busca-se acompanhar processos, delinear a rede de forças conectadas ao objeto ou fenômeno em questão, investigando modulações e movimentos presentes. Trata-se de captar dinâmicas, movimentos e acontecimentos em um território de produção de saúde.

A inserção no campo ocorreu após contatos com lideranças da comunidade para planejamento do melhor período para realização da pesquisa, previamente autorizada pelo cacique desde o primeiro contato. Não houve barreiras para tal, tendo em vista que o primeiro autor deste artigo mantém desde 2017 relações com a comunidade.

Utilizou-se das seguintes técnicas para produção de dados: observação participante, entrevistas semiestruturadas, diário de campo e análise bibliográfica. O período de campo durou três semanas, seguido de acompanhamento à distância de processos da comunidade a partir de contatos e notícias. Foi iniciado com observações em espaços cotidianos comunitários, festejos ocorridos à época, trabalhos coletivos e reunião mensal da associação comunitária. Foi solicitada, nesse encontro, uma pauta para apresentação, avaliação e permissão da pesquisa pela comunidade.

A indicação das pessoas a serem entrevistadas ocorreu de modo misto. A partir da comunidade (em especial da pessoa designada pelo cacique para apoiar a pesquisa), pelo primeiro autor e por sugestão de pessoas entrevistadas. Foram feitas 15 entrevistas, registradas em gravações de áudio. A maioria do público participante se reconhece como Tupinambá, apenas uma pessoa pertence à etnia Pataxó Hã-Hã-Hãe. Nove mulheres e seis homens perfazem a composição de gênero. Quatro mulheres são idosas, as demais adultas acima de 30 anos. Dos homens, um idoso, os demais com faixa etária que varia de 30 a 55 anos. Três atuam na equipe de saúde indígena local, duas com funções de técnico de enfermagem (um homem e uma mulher) e outro de Agente Indígena de Saúde. Uma técnica realiza coordenação do setor da saúde na comunidade. As entrevistas ocorreram em visitas domiciliares, em espaços comunitários reservados e no posto de saúde local.

As entrevistas foram escutadas repetidamente, com o mapeamento dos temas abordados, eventos citados, expressões utilizadas e a transcrição integral de trechos mais relevantes. A análise dos dados ocorreu com a composição dos eixos temáticos e sua coleção de trechos, de modo a avaliar a convergência (e divergências) entre os temas. Quando aplicável, as palavras-chave autóctones significativas no rol de expressões dos eixos guiaram o estabelecimento das categorias analíticas. O diário de campo e a revisão bibliográfica dialogaram com o material das entrevistas de modo complementar, construindo os resultados da pesquisa.

O uso de pseudônimos deve-se a aspectos simbólicos fornecidos pela comunidade: a parentalidade com plantas, ou seja, a nomeação de espécies vegetais com nomes de parentes; segundo, a identidade com os pássaros (Babau Tupinambá, 2021CACIQUE BABAU TUPINAMBÁ. Nós somos uma ave que anda, uma ave que se desloca e que faz contato com outras aves. n-1 edições, São Paulo, 25 ago. 2021. Disponível em: Disponível em: https://medium.com/n-1-edi%C3%A7%C3%B5es/cacique-babau-n%C3%B3s-somos-uma-ave-que-anda-uma-ave-que-se-desloca-e-que-faz-contato-com-outras-46b4ee80d073 . Acesso em: 19 maio 2022.
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). Trazem a identificação do território enquanto, além de lugar de pertencimento e de enunciação, um organismo vivo.

Este trabalho foi aprovado na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e no Comitê de Ética e Pesquisa, respondendo às solicitações de ambos.

Resultados

Marcas da luta e estratégias de resistência

“Sempre ficar em alerta”. Nessas palavras está uma parte significativa da experiência dos Tupinambá da Serra do Padeiro. Por precaução ao perigo, necessidade de defesa, reatividade subjetiva, ou qualquer que seja o motivo, o alerta pode ser reforçado ou aliviado a partir de orientações que podem vir de encantados, do cacique, do pajé e de qualquer parente bem-informado e prudente. Tais avisos podem trazer consigo incômodos que deixam “a mente lá em cima”, no dizer de Braúna. O sentimento de insegurança não favorece o descanso, mas instabilidade, “não tem um apoio certo”, afirma Malagueta, que das pessoas entrevistadas foi a única na qual se identifica os efeitos dos conflitos no seu estado de saúde de modo mais evidente. É de se conjecturar que a atenção permanente e o estado agudo de vigilância se estruturam para além de uma estratégia de luta, mas como condição subjetiva de incidência coletiva. Ou como diz Cuarana, “a gente dorme com o ouvido cá em cima”, e prossegue, “tem muitos que não aguenta o arrocho”, sugerindo ser este também um motivo que muitas vezes desencadeia no que ela chama de depressão.

Lavandeira reconhece a força da “arma de pressão psicológica” utilizada pelos antagonistas à luta Tupinambá, presente nas ameaças, difamações e calúnias, enquanto propulsora do amedrontamento para promover a retirada do território, além de gerar adoecimentos. Funcionam como armas. Temor presente como uma reação talvez traumática quando da aparição de helicópteros sobrevoando a comunidade, principalmente em crianças, mas também em jovens e adultos. Como objetos veiculadores de medos, os helicópteros foram citados algumas vezes como os mais amedrontadores. O celular foi citado por poder de emissário de notícias preocupantes. O medo do retorno de cenas temidas devido ao histórico de violências diversas incide no sofrimento mental, cuja hipótese da presença de casos de traumas psíquicos, ou mesmo traumas coletivos, se faz presente na população da comunidade.

O medo se estampa melhor quando chegam notícias ligadas a problemáticas de outros povos indígenas. Seja com os Tupinambá ou não, situações de ofensiva de proprietários de terra, reintegrações de posse, assassinatos, violências, movimentações estranhas de desconhecidos dentro do próprio território parecem ativar o sinal de alerta e susto, especialmente nas pessoas adultas e idosas. “E quem não tem medo?”, pergunta Cuarana, acostumada e ao mesmo tempo cansada de correr e se esconder na mata ao ouvir sinais de fogos ou tiros. Como marca mais verificável, reação para proteção, temor e alerta ativam também um mecanismo de construção e manutenção coletiva: busca, observação e monitoramento da circulação de pessoas, informações e eventos no território. Se antes se serviam de fogos de artifício disparados ao céu para enviar avisos em caso de ataques, invasões, apuros, atualmente a tecnologia tem prestado favores a partir do uso de celular e da internet para comunicação. “Todo mundo tinha medo de foguete. Era uma tristeza. E o pior de tudo é reintegração de posse […] A gente vive feito cavalo, é uma orelha na frente, a outra atrás. Qualquer coisa a gente já fica de orelha acesa, em pé”, diz Biriba, falando de um passado recente, mas ainda presente.

O sentimento de tristeza pela não demarcação do território algumas vezes acarreta, segundo Pintassilgo, obstáculos para retomar a vida cotidiana. Pode ocorrer que frente a esse estado a pessoa “mentalmente não consegue desenvolver”, “a vida perde o sentido”. É no dia a dia que o abatimento, muitas vezes conjugado com medo, ligado às experiências da convivência comunitária e das conquistas alcançadas coletivamente, efetuam na vivência da tristeza outros atributos não somente ligados à melancolia. Outrossim, a consternação muitas vezes não se combina com abatimento, desespero, desamparo, ausência de perspectivas. Parece mais um lamento por tantos esforços para se proteger e garantir condições de existência para a comunidade, quando seria possível estar em outros níveis de qualidade de vida, não fossem os reiterados prejuízos sofridos.

“Até hoje a gente anda meio apreensivo”, diz Juru, “o território tá na mão. Só falta o governo”, declara. Assim como outras pessoas que pensam que a terra já está demarcada, reafirma, por um lado, o sucesso da empreitada das retomadas, e por outro a frustração e o fracasso da ação do poder público e do Estado no cumprimento do seu dever constitucional. Inconclusão fomentadora de dúvidas quanto ao retorno dos ataques ocorridos. “Antes do tempo das retomadas, sempre teve perseguição […] Essas terras foram tomadas no grito”, adverte Pintassilgo, mostrando a dimensão histórica que não cessa de produzir abalos e continua na ordem do dia, mesmo que em menor incidência. Não à toa, a não demarcação é sentida e expressada principalmente por meio de sentimentos de tristeza e de medo. “A demarcação é outra coisa, é outro futuro, outro ponto de vista bem mais seguro. É o ponto de partida de tudo, o ponto certo para não haver mais conflito”, acredita Malagueta, pois qual outro destino poderia ter essa comunidade que não fosse habitar e cuidar da terra? “O que a gente sabe é viver na roça […] Só se acabar com todo mundo. Desistir não tem como”, diz Pintassilgo, que complementa: “se a gente não tivesse feito retomada, isso aqui seria um agreste”. Testemunha ocular ao que foi feito por antigos proprietários por meio do desmatamento para extração de madeira, da criação de gado, do assoreamento dos rios e outras violações ambientais (Babau Tupinambá, 2012CACIQUE BABAU TUPINAMBÁ. O lugar sagrado tem que ser preservado. In: Dez faces da luta pelos direitos humanos no Brasil. Brasília, DF: ONU, 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/pessoas-ameacadas-de-morte/acoes-e-programas/programa-de-protecao-aos-defensores-de-direitos-humanos-comunicadores-e-ambientalistas-ppddh/Dezfacesdalutapelosdireitoshumanosnobrasil_layoutnovo.pdf . Acesso em: 4 jun. 2024.
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), além da permissibilidade ao tráfico de drogas e diferentes tipos de violência no território. Tudo isso movido por ambição, pois “eles viviam não da terra, mas para tirar da terra”.

A gente tem um histórico de violência gigantesco, não é de agora. Hoje tem a mídia, CIMI [Conselho Indigenista Missionário], a gente pode divulgar em nível internacional. E antes, que não tinha? Como eram essas pessoas? Essas pessoas, eu acho muito guerreiras! Conseguiram manter um pedacinho de chão que têm hoje, então tiveram uma saúde mental muito além da força de vontade de viver aqui dentro do território. Porque foram muito perseguidos, muito ameaçados, e de outra forma, afetando a sua própria dignidade. (Lavandeira)

As marcas remontam ao que foi vivido e a memória não dá trégua nessas horas em que surgem, exigindo proteção e cuidados. As fugas nas matas são muitas vezes evocadas, artifício importante para lidar com ofensivas bélicas e planejar ações de resposta. Verifica-se em muitos casos que às agruras passadas não se perde o humor ao se recontar as histórias vividas. Há sempre uma lembrança engraçada que pode ser contada ou reinventada na fusão do passado com o presente. Ao mesmo tempo em que se busca lidar com as histórias dolorosas de forma bem-humorada, a presença de pessoas estrangeiras e representantes do Estado ativam facilmente o alerta e a desconfiança. Para lidar com essa contínua necessidade de proteção, a articulação política tem ganhado preponderância para a defesa de lideranças e do povo, tendo a educação um papel primordial na instrumentalização para lidar com o mundo “do branco” (Pavelic, 2021PAVELIC, N. L. Uma gestão escolar compartilhada entre humanos e encantados no colégio estadual indígena tupinambá serra do padeiro (CEITSP). Maloca: Revista de Estudos Indígenas, Campinas, SP, v. 4, n. 00, p. e02, 2021. ).

O encargo residual para passar com os ocorridos traz para o campo individual e coletivo a tarefa de buscar os meios para lidar com as marcas do esbulho e das violências. Aroeira diz acerca de como esse trabalho não se restringe aos receios e aos medos particulares, mas ao que pode acontecer ao outro, mostrando a inseparabilidade na malha comunitária do individual/coletivo e, ao mesmo tempo, atribuindo a si as tarefas para lidar com os medos inerentes à insegura condição da comunidade em relação aos seus entornos.

Eu tento trabalhar na minha mente que volta e meia vai acontecer isso. Hoje vai ser comigo, mas amanhã pode ser com o outro. Hoje foi com o outro, mas amanhã pode ser comigo. Então eu tenho que estar me preparando psicologicamente o tempo todo pra isso. Eu tento trabalhar na mente isso, é por isso que eu não surtei ainda (Aroeira).

Relatos sobre as diferentes reações dos antagonistas à luta Tupinambá perpassam por situações de medo, corre-corre, assombrações, situações de horror, esconder-se na mata, abrigar-se na casa de parentes e desamparo. São algumas experiências diante de eventos como reintegrações de posse, emboscadas, prisões, destruições materiais, racismos e difamações, entre outras. Frente ao clima instaurado, a principal orientação propagada e continuamente reforçada é a de se “evitar andar sozinho, porque é assim que eles pegam”, afirma o cacique na reunião comunitária mensal. Repetição necessária para chamar atenção das pessoas insistentes em transitar pelas rotas consideradas perigosas. Roubo de motos, casos de ameaças e tentativas de emboscadas ocorrem principalmente nos trajetos em torno do município de Buerarema, principal território inimigo da comunidade. Na rota oposta, o município de São José da Vitória, principal rota dos Tupinambá da Serra do Padeiro, relata-se que fazendeiros locais agradecem aos indígenas diante da redução dos roubos ocorrida a partir da gestão territorial promovida pela comunidade.

Evitar lugares e confirmar informações que circulam no território sobre eventos perigosos ou ameaçadores é uma das medidas tomadas por Jenipapo para amenizar a preocupação e a insegurança mobilizadas pelo contexto. “Devido ao que eu já passei eu não me preocupo, tomo meus cuidados”. Ao recurso de evitar lembrar, ou no dizer de Jenipapo, tornar tais episódios “um filme que fugiu da minha mente”, o esquecimento ainda não impede que esse filme e seu enredo permaneçam em desdobramento. Ofensivas e invasões no território persistem, mesmo quando aparentam arrefecer. Esquecer, em seu pensamento, passa pela busca de alguma normalidade no cotidiano. Talvez seja mais “tentar esquecer”, de ver aquilo como “uma fase ruim”, “tento não pensar nisso para ver se não acontece mais essas coisas”.

Relembrando o período das retomadas, da presença da Força Nacional e das reações antagonistas ao movimento, Pintassilgo, criado brincando e trabalhando no meio das matas e das roças, diz que para ele era “normal, eu estava acostumado a tá dentro da mata mesmo!” Sua atuação espelha a maioria, cuja participação ativa, fazia com que, como também aponta Biriba, não sentisse medo quando a polícia vinha. Tempos de fugas e corridas para o mato, de carregar comida e provimentos para sustentar a todos, a luta, momentos amplamente referidos nas entrevistas. Tempos de guerra para aprender a lidar com o medo.

Atributo importante para “[a]guentar a barra, se livrar”, ter coragem é citado por Cuarana, como uma maneira de cuidado, ao lado da fé em Deus. Evoca dizeres de parentes antigos ao constatar que, diante da reduzida possibilidade de escolha frente ao conflito, “tem que enfrentar”. Seu testemunho é porta-voz de uma atitude coletiva fruto de escolhas restritas, restando à luta a prece para a libertação. Enfrentar e ter coragem se faz um imperativo, mas respeita-se quem não a tenha. “Quando as pessoas não tinham coragem de ir para a retomada, grande parte tinha coragem de ir”. Também expresso por Lavandeira como “ou resiste ou resiste!”, a condição guerreira, ao mesmo tempo em que é necessária, não se coloca enquanto obrigação, considerando as individualidades presentes ao longo da luta. A condição guerreira se apresenta, mais que um modo de existência, uma saúde.

Em contrapartida, a reação ofensiva e violenta dos antagonistas oferece algo do interesse da luta Tupinambá. Segundo Vinhático, a “declaração de guerra” por parte dos não indígenas contrários às retomadas e à demarcação das terras possui a importância de fornecer provas concretas do que há tempos é praticado na região. “O preconceito existe, a perseguição existe, tudo existe contra a gente, mas às vezes existe de maneira velada”, afirma. Eventos de ataques que antes eram de difícil comprovação, investigação e denúncia começam a ganhar concretude e viabilidade com provas das reações forjadas. Servem para mostrar para “os de fora” as ameaças que existem de longas datas, pois quem “está dentro” já as conhece.

Além da busca por recursos internos, subjetivos, para lidar com as perturbações das memórias, sejam nas lembranças e nas histórias que podem ser ouvidas nas conversas e demais interações com outras pessoas, sejam nas marcas corporais decorrentes, há o desafio da convivência com o inimigo. Vizinhança que persiste e trama, requerendo constante vigilância, precauções e ações protetivas. Às vezes, o sentimento de vingança, aflorado a partir da perca ou maus tratos de algum parente, pode solevar-se, buscando alguma resolução imediata e satisfatória de um caso inconcluso, em lugar dos desígnios de uma justiça muitas vezes omissa e favorável aos criminosos. A sede vingança pode se alastrar diante dos apelos de uma ferida aberta, como o caso de uma família migrante para a comunidade após o homicídio de um dos seus componentes, liderança de uma comunidade vizinha. Em casos como esse, e outros em que os problemas aparecem, a atuação das lideranças e da rede comunitária se faz imprescindível. Seja para realizar a chamada regulagem, onde alguma conduta não aceita coletivamente demanda a colocação de limites com firmeza, ou para a elaboração do ódio e do trato com o inimigo, como no caso citado. “Só tem um jeito de se vingar das pessoas, é viver bem”, afirma Guará. O cuidado subjetivo diante da necessidade de aprender a lidar com inimigos revela outra singularidade do pensamento e da subjetivação Tupinambá. “Poderoso não é quem mata, é quem socorre os inimigos. Tupinambá é assim. Só é poderoso aquele que tem força para transportar os inimigos, de os inimigos ficarem gratos por serem atendidos. Aí sim! Se você olhar é o que fazemos aqui na Serra”, complementa Guará.

Espiritualidade e saúde comunitário-territorial

A gente entrou na luta em 2003 para 2004 e nunca tinha vivenciado essa parte de uma repressão tão grande de xingamentos, tudo na mídia, polícia, gente ferida. Foi um sentimento de ‘meu Deus, isso vai passar, por que tudo isso?’ Foram dias de organização, tanto para colocar as coisas no lugar como na nossa cabeça também, de como vamos voltar a seguir, o que vai acontecer. O medo de sair daqui para ali sem ter alguém nos olhando, de ir a Itabuna e passar no meio de Buerarema, de no meio do caminho haver uma emboscada. Tudo a gente pensava nisso, mas a gente tinha muito o contato dos encantados de dizer que tudo ia dar certo, que a gente não precisava se preocupar, que tudo ia se resolver, que pudesse deixar acontecer que ninguém ia morrer, ninguém ia perder nada, que a terra era nossa e pronto. Então, com o passar dos tempos e dos anos a gente foi se acostumando e vendo que realmente ainda continuam as ameaças, os vários conflitos, mas que nunca passou disso, eles nunca fizeram algo mesmo, porque se realmente fizer tem volta. A gente passou a conviver com isso e viu que nada era o que o medo fazia a gente ter (Taboca).

Compreender a espiritualidade como aspecto integrante e inseparável das concepções e das práticas de cuidado em saúde mental, na maioria dos casos, requer analisar a atuação dos “Encantados” nos mais diversos espaços da existência no território da Serra do Padeiro. Aparecendo principalmente em sonhos, em incorporações durante rituais chamados de Toré, em eventos da comunidade e, cotidianamente, diante necessidades e motivações distintas. Seja em momentos programados pelos Tupinambás, seja por solicitação e demanda advinda diretamente dos encantados, acarretando aparições “surpresas”, as ações de cuidado perpassam tais momentos com assiduidade, tendo nesses personagens a guia de orientação e execução.

Além da luta por garantir e construir o território, os Encantados atuam como personagens substanciais na construção da educação e dos vínculos para dentro e fora do território (Pavelic, 2021PAVELIC, N. L. Uma gestão escolar compartilhada entre humanos e encantados no colégio estadual indígena tupinambá serra do padeiro (CEITSP). Maloca: Revista de Estudos Indígenas, Campinas, SP, v. 4, n. 00, p. e02, 2021. ; Alarcon, 2019ALARCON, D. O retorno da terra: as retomadas na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia. São Paulo: Elefante, 2019.), além de representar um reforço importante para o sentimento de segurança e proteção comunitária. Mais especificamente na saúde, orientam, realizam e acompanham situações ligadas a sofrimentos e adoecimentos diversos. Perceber que aquilo outrora escutado pelos Encantados ganha gradualmente ares de realidade, engendra-se enquanto elemento de atualização dos efeitos da luta pela terra. É a cada dia que se pode constatar a realização das previsões e avisos recebidos, colaborando para manter atenção ou mesmo não se preocupar demais. Além de ofertar as orientações necessárias, a convivência protetora com esses seres não humanos ameniza, dissolve ou até cura as marcas e sequelas dos conflitos. Fomenta-se, dessa forma, a reconstrução da vida no território, em suas diferentes facetas: da terra aos recursos naturais, das subjetividades à coletividade humana, dos resgates ancestrais a coletividade não humana.

Todavia, isso não ocorre sem demandar de cada Tupinambá a vigilância e continuidade do autocuidado espiritual, o que inclui principalmente a prática de rezas, acendimento de velas, banhos naturais de folhas, outros pré-preparados que são comercializados na cidade, banhos de rio e cachoeira, participação nos eventos e rituais locais. A manutenção de rituais de toré ao longo do território, com o acendimento de fogueiras, cantos, danças e interações com encantados também compõem as atividades espirituais de proteção territorial, que também são atividades de promoção da saúde de modo mais integrado.

A descentralização e a responsabilidade compartilhada nos cuidados tradicionais está presente na organização e no cuidado da medicina indígena na comunidade. Não somente o pajé realiza os cuidados espirituais ao longo do território, outros agentes também o fazem, em sua maioria intimamente ligados à sede da Serra do Padeiro. Algumas pessoas possuem articulações com outros espaços, dentro ou fora da aldeia, geralmente vinculadas a casas de religiões afrodescendentes e cultos protestantes. Os encaminhamentos para consultas com o pajé, quando necessário, podem vir da equipe de saúde, que, por sua vez, pode receber encaminhamentos do mesmo e de demais agentes cuidadores. Em muitos casos, a terapêutica pode utilizar o uso das duas medicinas, cabendo à equipe de saúde a realização do tratamento medicamentoso.

A organização comunitária está entre um dos principais marcos do destaque obtido pela Serra do Padeiro no cenário do movimento indígena e da luta pela terra. É no êxito dessa experiência que encontramos o motivo para investigar as relações entre a qualidade da vida comunitária e a saúde mental. A potência das redes de apoio aparece a partir da construção e manutenção de espaços de convivência, que possibilitam situações concretas de ativação dos vínculos. Eventos comunitários como festejos e rituais, a formação de grupos permanentes como o grupo jovem, de eventos anuais como a farinhada das mulheres, a associação e cooperativa comunitária, além da atuação da escola, são fatores significativos nesses encontros que fomentam a renovação dos vínculos e dos costumes culturais, importantes para a promoção da saúde e sustentação de projetos coletivos.

Biriba não esboça dúvidas da contribuição da vida na comunidade, expondo imediatamente uma variedade do repertório de cuidados locais. “Ajuda, que quando adoece, todo mundo corre atrás do vizinho. Um vai lá com um chá, outro dá orientação, outro dá nessa parte. Cada qual faz sua oração do seu jeito[…] Cada qual acredita e faz o que pensa”. A atuação dos cuidadores tradicionais, quando do adoecimento de algum parente, é importante para ativação da rede de suporte social, por necessitar geralmente envolver o grupo familiar e suas extensões.

Outro manejo feitor de redes e ações de cuidado no campo da ativação do coletivo tem a ver com o deambular pelo território para fazer visitas, ou mesmo para encontros casuais, muito frequentes nesses momentos. Ato de contínua manutenção e fortalecimento dos vínculos. Expert no assunto, Pintassilgo é figura frequentemente vista pela Serra do Padeiro, subindo e descendo, de carro ou de moto, indo e voltando de suas atividades. De um lugar para outro, além do seu trabalho de coordenador de área, cuidando da produção das roças nas áreas de sua responsabilidade, nesse ínterim aproveita para frequentemente visitar parentes, especialmente idosos e idosas, que, acostumados, quando da sua ausência começam a sentir falta e comentar, perguntando sobre seu paradeiro. As visitas de Pintassilgo apresentam um aspecto de destaque, pois mesmo que não pensadas e realizadas com o objetivo de prestar cuidado, ele acontece e se manifesta de modo recíproco, indo e vindo, onde a troca de produtos e agrados, tal qual de afetos, mantém vivo elos de longa data, fontes de histórias e risadas, a roça dos vínculos.

As reuniões da associação também podem ser avaliadas na sua importância de se constituir enquanto um espaço de regulação coletiva. Lugar de falar da precisão, de falar diante de todos, apresentar seus problemas, projetos, pedir suas ajudas, torcidas, orações, trabalhos. Lugar também dos conflitos internos virem à tona e serem encarados, sem muitos floreios. Um momento para o mutirão das cargas, e descargas, subjetivas. Espaço estratégico para orientação da luta e da organização coletiva, onde território é reiteradamente tratado enquanto tema prioritário. Assim, os demais problemas são redimensionados, direcionando as forças e as tensões envolvidas para a luta, evitando cair em discursos externos que fragilizam a luta indígena, como os problemas ligados ao consumo de álcool, por exemplo.

Situação inacabada, tendo em vista o que ainda se desenha da parte das articulações dos setores desfavoráveis à demarcação. Ainda perduram as mobilizações de antagonistas para realizar ações de ataques contra a comunidade no intuito de recuperar as terras retomadas por Tupinambás, seja por reintegração de posse ou invasão sem mandado judicial. Situações que requerem às lideranças acionarem aliados políticos no intuito de desarticular, neutralizar e controlar. Ameaças em outros territórios indígenas são vistas como ameaça direta ao território, à comunidade. Além de gerar a mobilização do cacique e lideranças, assumem espaço privilegiado nas reuniões comunitárias. A ameaça de um povo afeta a comunidade, convocando e ligando o alerta. Instiga também a revolta contra a tirania, evocando atributos guerreiros Tupinambá, de solidariedade com outros povos, do papel reconciliador, da afinidade com a guerra e da insubmissão frente às injustiças.

Vinhático nos oferece um olhar muito aproximado ao que é possível dizer a partir do encontrado em campo. Segundo ele, não há preocupação com fome. A produção já é rotina, algo normal, parte do dia a dia. Algo superado, o que não é certo em outros lugares. A geração de renda é algo natural, não mais uma luta, um sacrifício. “A luta aqui é para o pleno, no segundo estágio, de realização material. Necessidade de pensamento pleno”. Já o terceiro estágio, segundo ele, é a “utopia, sonhar com o território demarcado. […] Não é mais uma luta, mas um outro modelo de sociedade indígena”.

Discussão

A conexão entre os processos de sofrimento e adoecimento à realidade social concreta vivida por indivíduos e coletividades humanas diante das influências dos poderes políticos, institucionais e econômicos, se faz elementar para compreensão dos processos de saúde-doença-cuidado envolvidos. O risco de apropriações inadequadas via medicalização, instrumentalização ou modelização, reduzem e deslegitimam o sofrimento, mesmo nas intenções de explicá-lo cientificamente. Kleiman (1995)KLEINMAN, A. Writing at the margin: discourse between anthropology and medicine. Berkeley: University of California Press, 1995. analisa como a violência e o capital cultural gerado a partir dela podem ser capturados pela visão da saúde. A noção de trauma enquanto categoria diagnóstica da saúde, emergente em países em situação de guerra e de repressões governamentais (e podemos considerar as diversas realidades indígenas), remove a dimensão política diretamente envolvida nos diferentes casos de sofrimento. A leitura da violência enquanto evento ligado à saúde opera reduções perigosas, pois o modelo de doença tende a remover a agência. A noção de trauma político, em que contexto e evento, processo e pessoa são inseparáveis, entrelaça dinâmicas que trazem memória social no corpo e que projeta a individualidade de pessoas no espaço de experiência social.

As sequelas psicológicas da tortura e da violência persistente são crônicas e têm duração transgeracional, afetando diretamente envolvidos e aqueles ligados ao seu entorno (Iosa et al., 2013IOSA, E. et al. Transmisión transgeneracional del trauma psicosocial en comunidades indígenas de Argentina: percepción del daño en el pasado y presente y acciones autoreparatorias. Cadernos Saúde Coletiva, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 85-91, jan. 2013.; Martin, 2005). Em contexto interétnico, como “recuperar” subjetividades - individuais e coletivas - afetadas secularmente por violências, com as motivações para sua emergência ainda em aberto? É tarefa básica para profissionais de saúde evitar a reprodução colonial por meio da medicalização excessiva de tais sofrimentos e atentar para os mecanismos de autorreparação possíveis em cada contexto. Diante da continuidade dos conflitos, fonte persistente de cenas temidas, é na experiência comunitária que se faz possível amenizar marcas e traumas. E comunidade se faz, antes de tudo, no cotidiano e em espaços concretos de encontros, com trabalho contínuo sob a roça dos vínculos. Por não se tratar de uma célula pronta, é feita de diferentes arranjos organizativos que se refazem a partir das necessidades decorrentes de eventos que tecem a teia da organização coletiva (Góis, 2008GÓIS, C. W. L. Saúde comunitária: pensar e fazer. São Paulo: Ed Hucitec, 2008.). Trata-se de um componente favorável capaz de atuar nos assuntos sanitários, além de prover cuidados e proteções para as atribulações vividas (Desviat, 2018DESVIAT, M. Coabitar a Diferença: Da Reforma Psiquiátrica à Saúde Mental Coletiva. São Paulo: Zagodoni, 2018.). Essas podem variar dos problemas domésticos e familiares, dificuldades materiais, preocupações e aflições com parentes, aos casos mais delicados, como adoecimentos, situações de violências, sequelas dos conflitos, quando não do retorno dos mesmos. O apoio social carrega consigo importante função nas ações de autorreparação para atenuar tais agravos no funcionamento psíquico, no combate à interiorização do terror e nos processos de silenciamento e negação (Iosa ., 2013IOSA, E. et al. Transmisión transgeneracional del trauma psicosocial en comunidades indígenas de Argentina: percepción del daño en el pasado y presente y acciones autoreparatorias. Cadernos Saúde Coletiva, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 85-91, jan. 2013.; Martin, 2005). A capacidade de simbolização (buscar e encontrar sentidos para sensações, sentimentos, pensamentos e memórias) é um dos aspectos que a coletividade favorece. Surge daí uma pista de onde pouco se encontra casos com reações de cunho traumático no contexto apresentado.

No lugar dado à espiritualidade reside um pilar organizativo diferencial para a força da atuação da Serra do Padeiro, influente nas ações de autorreparação. A atuação dos encantados em agentes humanos descentraliza os saberes e práticas dos cuidados indígenas, sem negar e excluir as contribuições dos não indígenas. Além de favorecer tratamentos e processos de reabilitação psicossociais (Vélez et al., 2021), a espiritualidade promovida está diretamente conectada com a luta territorial, determinante social elementar de muitos processos de sofrimento locais. Amplia a esfera biopsicossocial para o domínio ecológico e cósmico, apresentando uma concepção e uma atuação integral de saúde diferenciada.

A noção de roça da fé apresenta a dimensão da espiritualidade enquanto trabalho contínuo, e do trabalho como cultivo da espiritualidade e do cuidado, que acontece coletivamente (o toré é exemplar nesse caso). Mesmo assim, influências externas de religiões que se contrapõem às crenças praticadas pela maioria da comunidade têm crescido. Não se trata de impedimentos para o exercício religioso, mas da disputa e da competição religiosa, em outros termos, o conflito de terras nas roças da fé. A invasão promovida por instituições religiosas é uma realidade comum em muitas nações indígenas, compondo mais um campo de disputas empreendido por agrupamentos diversificados dentro do território (Barreto et al., 2022BARRETO, I. F.; DIMENSTEIN, M.; LEITE, J. F. Percepções sobre o uso de álcool em uma comunidade indígena potiguar. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 38, p. e38419, 2022.). Trata-se de mais uma influência na produção subjetiva local. Tais disputas apresentam-se como um desafio para a sustentação da luta e do processo de construção étnica e comunitária.

Em um panorama institucional em que as equipes multidisciplinares de saúde indígena geralmente concentram os saberes e as ações, o cuidado tantas vezes favorece a predominância de processos de medicalização da saúde nas populações indígenas, fazendo com que problemas não médicos sejam definidos e tratados como médicos (Barbosa et al., 2019BARBOSA, V. F. B.; CABRAL, L. B.; ALEXANDRE, A. C. S. Medicalização e Saúde Indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 8, p. 2993-3000, 2019.). A ausência de profissionais de saúde mental para apoio à equipe local, o difícil acesso à rede especializada nos municípios, dificuldades logísticas e técnicas na estrutura do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) também são elementos encontrados em diferentes estudos (Mendes et al., 2018MENDES, A. P M. et al. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, D.C., v. 42, p. 1-6, 2018. DOI: https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.184
https://doi.org/https://doi.org/10.26633...
; Pedrana et al., 2018PEDRANA, L. et. al. Análise crítica da interculturalidade na Política Nacional de Atenção às Populações Indígenas no Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública , 2018.). Na Serra do Padeiro, as limitações na atuação da equipe de saúde não geram maiores prejuízos diante dos recursos locais. A atenção diferenciada é construída a partir do protagonismo comunitário. Uma experiência em que prepondera a autodeterminação no enfrentamento dos problemas de saúde decorrentes dos conflitos territoriais, priorizando o cuidado a partir do coletivo e dos saberes tradicionais, sobressaindo à atuação da equipe de saúde. A capacidade de diálogo entre cuidadores e cuidadoras indígenas, lideranças e comunidade com a equipe de saúde, junto à atuação do controle social, aponta pistas de uma atuação interétnica complementar.

Uma democracia em que seja possível ao cidadão se apropriar e gerir sua vida e, portanto, sua saúde, é a base de uma saúde mental coletiva que transcenda a organização de serviços e de equipes ou modelos terapêuticos, incorporando o sujeito individual e coletivo nas tarefas sanitárias (Desviat, 2018DESVIAT, M. Coabitar a Diferença: Da Reforma Psiquiátrica à Saúde Mental Coletiva. São Paulo: Zagodoni, 2018., p. 141).

De “caboclo-tabaréu”22Caboclo e tabaréu foram expressões de tratamento dada aos Tupinambás durante muito tempo para imprimir nestes as marcas da não indianidade (assim não conferindo seus direitos) e da desvalorização subjetiva (inferioridade cognitiva, comportamental e de classe) (Alarcon, 2019). Ao mesmo tempo, na Serra do Padeiro, os Caboclos são denominações de encantados com posições e papéis de grande importância nos rituais e na vida da comunidade e em muitas religiões afro-brasileiras; a eles geralmente são atribuídos grandes poderes de cura, inversamente proporcionais à “civilidade” do Caboclo. Talvez assim se expresse os sentimentos de identidade na rebeldia, de solidariedade e mesmo de gratidão por parte da população negra pelo precioso abrigo que pôde encontrar entre grupos indígenas em vários momentos das histórias de suas fugas e rebeliões (Varga, 2019), que também se expressa na Serra do Padeiro como mais uma experiência de solidariedade entre povos. a Tupinambá, a população da Serra do Padeiro desenvolve uma obra singular do devir33Vemos que devir, mais do que ser, expressa melhor a questão por não se tratar de uma busca essencial, mas um movimento de tornar-se. indígena no Brasil. Seu levante ressoa estridente no cenário das lutas indígenas e populares do campo, insurgindo contra a própria sociedade envolvente contrária à restituição de terras como a reforma agrária. Das penúrias da expropriação, grilagem e esbulho de seu local ancestral, às potências de conviver e construir um projeto coletivo, potencialmente reparador, mesmo quando as cenas dos crimes (é preciso dizer no plural) ainda não foram desfeitas. A saída de lugares de subalternidade anteriores - muitas vezes forçados diante do esbulho -, para caminhos mais autônomos frente à retomada produtiva, a partir do trabalho e da geração de renda, é uma empreitada articulada com a reconstrução dos vínculos comunitários. Seja no manejo da ocupação das terras, da organização produtiva, dos problemas de convivência (inclusive com o inimigo) e das ameaças externas, tal processo conjuga a manutenção e o fortalecimento étnico-identitário, intrincando diretamente espiritualidade, território e vínculos de ancestralidade.

O processo colonialista reproduzido nas diferentes manifestações de violências apresentadas incide diretamente na saúde mental. “Estar enredado em sofrimento mental é estar com problemas relacionados a internalidades e às coisas dos brancos” (Rodrigues, 2014RODRIGUES, R. A. Sofrimento Mental de Indígenas na Amazônia. Manaus: Edua, 2014., p. 157). A luta contra esses processos não se trata de uma escolha, mas, sim, de um modo para criar condições favoráveis para a promoção da saúde a partir da existência de um projeto de governo próprio. A garantia do acesso e da permanência no território - não garantido com a demarcação -, traz o debate acerca dos modos de ocupação e existência dentro do mesmo: do que se vive a partir do território. A territorialidade é um princípio a partir do qual indígenas realizam e lutam para manter, aprimorar e reinventar suas práticas de manejo e proteção ambiental, de produção e consumo, de convivência e agências internas e externas, de suas ritualísticas e artes. São práticas de promoção da saúde que colaboram também para repensar a saúde mental não indígena, com contribuições para a dimensão comunitária da saúde.

Considerações finais

As experiências de organização política de muitos povos indígenas na luta pelo direito aos seus territórios originários exemplificam a multiplicidade de modos de organização para atuação em busca de direitos. Sobretudo, apresentam proposições epistêmicas aos modos de vida, organização e conhecimento, por exemplo. Atuam diretamente na produção de agências em prol das lutas pela garantia dos territórios ancestrais, que repercutem na melhor preservação ambiental. No caso da saúde, a atuação do movimento indígena mostra a diferença do controle social na sustentação da política de saúde indígena. Os conflitos de terras mostram que as nações indígenas são especialistas em lidar com invasores externos. As resistências e invenções indígenas coexistem nos seus territórios e muitas vezes conseguem sobrepor-se às investidas coloniais do Estado e do mercado, com frequência articulados e dissolvidos em políticas públicas.

Um ingrediente desse mosaico encontrado na busca de uma perspectiva de entender o que seria a saúde mental em um contexto de conflitos partir da experiência Tupinambá na Serra do Padeiro, vemos que resgatar, aprender e articular saberes para viver bem e lutar melhor - especialmente quando a luta não cessa -, é um aspecto definidor de parte considerável dessa coletividade. A soberania e autonomia adquirida e experimentada de modo variado entre as pessoas e agrupamentos não pode ser vista enquanto consolidada conquista, pois permanece na pauta do dia e ainda demanda muito trabalho de diferentes ordens. Eis uma guerra de séculos que não cessa, pois corre no sangue Tupinambá sua também histórica recusa da servidão.

Os variados eventos geradores de sofrimentos são cuidados e evitados no movimento de zelo coletivo, fortemente agregado à ação dos Encantados e do próprio território. O engajamento com a luta reforçado pelos resultados obtidos (a retomada da terra, das relações comunitárias, do acesso a direitos sociais, as condições de subsistência, de vida cultural e religiosa presentes, por exemplo), promovem experiências de abundância material, social, afetiva, cultural, ambiental e espiritual.

Uma perspectiva guerreira da saúde mental incorpora uma positividade que não se inscreve no realçar das qualidades sobrepondo-se às adversidades. Aborda a saúde mental sem a fragmentação do sofrimento, capturado na reprodução de categorias ocidentais cujas denominações se reduzem em diagnósticos, muitas vezes, produtores de estigmas e iatrogenias. Trata-se, com efeito, de abordar os efeitos na saúde nos termos do enfrentamento dos problemas cotidianos situados territorialmente, da organização dos modos de vida, que se articulam e se produzem mesmo em cenários adversos. Não se trata da guerra que pauta a sociedade e interfere em todo seu funcionamento, mas da guerra para construir seu próprio mundo e guerrear para sustentá-lo. Uma maneira de ver e de produzir saúde, não como recuperação de um estado de coisas anterior, que foi alterado e prejudicado; mas como organismo que, para lidar com as adversidades, conjuga-se com outros, reorganizando-se, produzindo-se, e cuidando de si, atualizando suas autonomias e rejeitando quaisquer tentativas de submissão. Mesmo que conturbado em alguns períodos e inseguro continuamente, é possível verificar a positividade saudável fomentada no cotidiano comunitário. Mostra que, mesmo com a guerra, festeja-se, planeja-se e trabalha. Mesmo que impacte, o conflito não é motivo para paralisação. O alerta, o medo, a tristeza e a raiva podem, em vez de paralisar frente ao sofrimento, ser direcionados para o cuidado, a precaução e a ação. A presença e a atuação das lideranças produzem orientação e segurança, ancorada em um modo de espiritualidade que guia e se alimenta no trabalho cotidiano.

A ascensão da marca subjetiva Tupinambá, guerreira e zeladora, artesã da coletividade, da solidariedade e da reconciliação, especialista em alto grau em saúde mental, apresenta um modelo próprio de atenção que ainda não tem nome, mas que funciona categoricamente.

Referências

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  • 1
    Atualmente renomeada de Fundação Nacional dos Povos Indígenas.
  • 2
    Caboclo e tabaréu foram expressões de tratamento dada aos Tupinambás durante muito tempo para imprimir nestes as marcas da não indianidade (assim não conferindo seus direitos) e da desvalorização subjetiva (inferioridade cognitiva, comportamental e de classe) (Alarcon, 2019ALARCON, D. O retorno da terra: as retomadas na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia. São Paulo: Elefante, 2019.). Ao mesmo tempo, na Serra do Padeiro, os Caboclos são denominações de encantados com posições e papéis de grande importância nos rituais e na vida da comunidade e em muitas religiões afro-brasileiras; a eles geralmente são atribuídos grandes poderes de cura, inversamente proporcionais à “civilidade” do Caboclo. Talvez assim se expresse os sentimentos de identidade na rebeldia, de solidariedade e mesmo de gratidão por parte da população negra pelo precioso abrigo que pôde encontrar entre grupos indígenas em vários momentos das histórias de suas fugas e rebeliões (Varga, 2019VARGA, I.V.D. A Cabeça Branca da Hidra e seus pântanos: subsídios para novas pesquisas sobre comunidades indígenas, quilombolas e camponesas na Amazônia maranhense. Revista de História, São Paulo, v. 1, p. 1-34, 2019.), que também se expressa na Serra do Padeiro como mais uma experiência de solidariedade entre povos.
  • 3
    Vemos que devir, mais do que ser, expressa melhor a questão por não se tratar de uma busca essencial, mas um movimento de tornar-se.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2023
  • Revisado
    31 Jan 2024
  • Aceito
    09 Abr 2024
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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