Resumo
A política de saúde indígena necessita de coordenação intergovernamental entre Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e serviços municipais e estaduais de saúde para sua eficácia. Tal coordenação deve ser feita tanto em nível de formulação como na sua implementação - que deve ocorrer entre burocratas de médio escalão e de nível de rua. Baseado na literatura que discute o federalismo e mecanismos de coordenação intergovernamental, este artigo investiga os mecanismos e as dificuldades de cooperação na ponta dos serviços de saúde aos povos indígenas. Foram feitas entrevistas semiestruturadas com seis profissionais atuantes na Sesai do DSEI Mato Grosso do Sul. Identificou-se que as dificuldades dizem respeito principalmente ao racismo institucional, à estrutura sobrecarregada do SUS, à desresponsabilização por parte dos municípios e à má comunicação entre Sesai e hospitais. Já os mecanismos de cooperação identificados foram relações pessoais, agência situada de profissionais da Sesai e a existência de incentivo financeiro. Conclui-se que são necessários mais mecanismos de colaboração intergovernamental que considerem todas essas dificuldades de integração na implementação do serviço.
Palavras-chave:
Serviços de Saúde Indígena; Racismo Institucional; Burocracia de Nível de Rua; Federalismo
Introdução
Povos indígenas têm um órgão específico pelo seu atendimento no Brasil, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), entretanto, encontram diversas dificuldades de acesso à saúde. A literatura da área indica como a falta de recursos e de qualificação profissional representam um problema histórico do atendimento de saúde de qualidade da população indígena no Brasil (CIMI, 2013CIMI - CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. A Política de Atenção à Saúde Indígena no Brasil: breve recuperação histórica sobre a política de assistência à saúde nas comunidades indígenas. Brasília, DF: CIMI, 2013.; Garnelo, 2004GARNELO, L. Política de Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: análise situacional do período de 1990 a 2004 - Documento de Trabalho no 9. Porto Velho: Fundação Oswaldo Cruz, 2004.). A Sesai, vinculada ao Ministério da Saúde, é responsável pela atenção básica, enquanto atendimentos em serviços de média e alta complexidade demandam uma integração com as secretarias municipais e estaduais, que oferecem esses serviços. Apesar disso, há indícios de falta de coordenação, o que pode acentuar as barreiras de acessos dessas populações e potencializar os processos de racismo institucional dentro das políticas voltadas a elas.
A Política Nacional de Saúde Indígena (Brasil, 2002BRASIL. Portaria no 254, de 31 de janeiro de 2002. Aprova a política nacional de atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 1 fev. 2002.) define a necessidade de articulação intergovernamental e intersetorial para sua boa execução. Este artigo busca investigar aspectos da coordenação na ponta entre instituições com atribuições referentes à saúde indígena e como a falta de coordenação pode exacerbar o racismo institucional. Com este objetivo, realiza-se, aqui, uma série de entrevistas com profissionais da saúde indígena do Mato Grosso do Sul, de modo a aprofundar o conhecimento de como se dá a cooperação na implementação do serviço.
Na primeira seção, é apresentada a estrutura da Sesai e discutida a relevância de mecanismos de coordenação no contexto brasileiro, em que a universalização da saúde se deu concomitantemente à municipalização desse serviço. Em seguida, indica-se a metodologia do estudo e realiza-se a análise dos resultados, examinando os desafios e mecanismos de cooperação relatados pelos entrevistados. Por fim, durante as considerações finais, são abordados alguns caminhos possíveis para aumentar a cooperação entre as instituições responsáveis pela saúde indígena no Brasil.
A Sesai e a importância da cooperação intergovernamental
Durante anos a saúde indígena foi concebida e executada de maneira tutelar (Cardoso; Santos; Coimbra Júnior, 2007CARDOSO, A. M.; SANTOS, R. V.; COIMBRA JÚNIOR., C. E. A. Políticas públicas em saúde para os povos indígenas. In: BARROS, D.; SILVA, D.; GUGELMIN, S. Â. Vigilância alimentar e nutricional para a Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. p. 75-91.). Apenas após a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.), estruturou-se o conceito de saúde indígena como construção coletiva, na qual o protagonismo das decisões é destes povos (CIMI, 2013CIMI - CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. A Política de Atenção à Saúde Indígena no Brasil: breve recuperação histórica sobre a política de assistência à saúde nas comunidades indígenas. Brasília, DF: CIMI, 2013.). Em 1990, a Lei no 8080 (Brasil, 1990BRASIL. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1990.) - também chamada de Lei Orgânica da Saúde - estabeleceu a estrutura do SUS e indicou sua descentralização político-administrativa, com uma rede de serviços regionalizada e hierarquizada com ênfase na descentralização dos serviços para os municípios. Essa descentralização andou em conjunto com a universalização do acesso à saúde para a população brasileira, porém trouxe paradoxos para as políticas de saúde indígena dado tal caráter nacional.
Em 1999, foi aprovada a Lei no 9.836/99 (Brasil, 1999BRASIL. Lei no 9.836, de 23 de setembro de 1999. Acrescenta dispositivos à Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 24 set. 1999.) - também chamada de Lei Arouca, que estabeleceu a criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS), o qual teria como base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). Os DSEI foram criados com a Portaria no 852/1999, de acordo com a jurisdição territorial, as etnias, casas do índio e demais características territoriais e populacionais. Cada DSEI tem a responsabilidade de organizar os serviços de saúde sobre determinado território indígena em uma lógica hierarquizada. Essa lei e a portaria inauguraram uma nova fase para a saúde indígena, superando a disputa entre instituições e estabelecendo atribuições a cada nível de governo. A atenção básica aos povos indígenas foi atribuída ao SASI-SUS, que deveria ser articulado com os demais serviços de média e alta complexidade do SUS de forma hierarquizada e integrada. A Sesai foi criada pelo Decreto no 7.336 (Brasil, 2010BRASIL. Decreto no 7.336, de 19 de outubro de 2010. aprova a estrutura regimental e o quadro demonstrativo dos cargos em comissão e das funções gratificadas do Ministério da Saúde, e dá outras providências. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 20 out. 2010.), e a ela foram atribuídas a coordenação da implementação da política de saúde indígena a partir de uma gestão democrática e participativa, além da promoção da articulação entre os setores governamentais com atribuições perante a política de saúde indígena.
Atualmente, a política de saúde indígena segue sendo coordenada pela Sesai e estruturada dentro do SUS, demandando um alto nível de articulação entre diferentes órgãos para sua eficácia. A atenção básica é responsabilidade da Sesai, que possui equipamentos como os polos-base nas aldeias e as Casas de Saúde do Índio (Casai) nas cidades, nos quais atuam equipes multidisciplinares. Também contam com agentes indígenas de saúde (AIS), que têm contato mais direto com os pacientes e realizam visitas domiciliares. Já os atendimentos de nível secundário e terciário são atribuições das redes locais, municipais e estaduais do SUS, seguindo a lógica territorializada e hierarquizada desse sistema conforme a complexidade do caso de cada situação.
Chama atenção a falta de pesquisas que observem a coordenação intragovernamental no âmbito da saúde indígena. O levantamento bibliográfico de Maia et al. (2019MAIA, J. A.; SANTANA, A. M.; ASSIS, B. G.; CORREA. R. R. Acesso dos usuários indígenas aos serviços de saúde de média e alta complexidade. DêCiência em Foco, Rio Branco, v. 3, n. 2, p. 144-154, 2019. DOI: 10.1590/0102-311X00132215
https://doi.org/10.1590/0102-311X0013221... ) sobre o acesso das populações indígenas a serviços de média e alta complexidade encontrou apenas 19 publicações relevantes, entre as quais estão manuais e artigos. Entre as 11 publicações indicadas pelos autores como as mais relevantes, sete são do Ministério da Saúde e apenas quatro são de pesquisadores independentes. Diante dessa lacuna, urge realizar investigações e reflexões acadêmicas sobre quais mecanismos de cooperação intergovernamental estão presentes na articulação destes serviços e, principalmente, quais faltam.
A coordenação intergovernamental e os mecanismos de incentivo à cooperação são centrais para um país federalista como o Brasil, em que os três entes federativos - União, estados e municípios - têm competências complementares ou concorrentes na implementação das políticas públicas. Para compreender a necessidade de mecanismos de cooperação intergovernamental para a atenção à saúde indígena, é preciso refletir sobre o federalismo brasileiro e suas implicações para as políticas públicas deste país.
Um país federalista parte de um duplo objetivo, conforme definido por Burgess (1993BURGESS, M. Federalism and Federation: a reappraisal. In: BURGESS, M.; GAGNON, A. (Org.). Comparative Federalism and Federation. Londres: Harvester; Wheatsheaf, 1993.): a unidade e a diversidade. A unidade refere-se ao reconhecimento da interdependência entre diferentes unidades federativas e dos benefícios de uma união; já a diversidade é atrelada à mútua independência e autonomia dos entes. O desafio de um sistema como o nosso é garantir a interdependência entre as partes, mantendo a autonomia delas, sem cair em uma centralização das políticas públicas. Para balancear estes dois fatores, é importante ter mecanismos de coordenação das ações dos diferentes entes, o que permite uma nacionalização das políticas sem que seja retirada a autonomia das partes.
No caso das políticas de saúde indígena, isso significa ter diretrizes e uma coordenação central, mas também ter elementos no planejamento e na implementação que atendam as especificidades locais. É o que se busca com as diretrizes nacionais, a coordenação nacional da Sesai e implementação local gerida pelos DSEI. Porém, a articulação com outros serviços a nível local encontra dificuldades (Garnelo, 2004GARNELO, L. Política de Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: análise situacional do período de 1990 a 2004 - Documento de Trabalho no 9. Porto Velho: Fundação Oswaldo Cruz, 2004.), possivelmente por conta da ausência de atribuições claras e incentivos aos serviços municipais e estaduais para o atendimento qualificado da população indígena. Em um sistema federalista, uma política pública que não tem mecanismos de coordenação eficazes tem riscos para a sua boa execução. A ausência de mecanismos que definem a estrutura de cooperação pode implicar em um jogo competitivo entre os entes, levando a problemas como o que Peterson (1995PETERSON, P. The price of federalism. Washington, DC: The Brookings Institution, 1995.) denomina race to the Bottom, que é um problema de ação coletiva quando a tendência é de que todos os estados (ou municípios) ofertem menos políticas sociais.
O risco acentua-se nas áreas em que entes diferentes possuem competências compartilhadas. Esse compartilhamento gera uma dificuldade aos processos de responsabilização dos governos pela execução da política, pois não é evidente aos cidadãos de qual parte do governo eles precisam cobrar pela execução eficaz de tal política, sendo de extrema importância para a compatibilização dos traços de autonomia e de interdependência de cada governo. De acordo com Abrucio (2005ABRUCIO, F. L. A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do Governo Lula. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 24, p. 41-67, 2005. DOI: 10.1590/S0104-44782005000100005
https://doi.org/10.1590/S0104-4478200500... ), a coordenação entre estados subnacionais e o governo federal consiste nas formas pelas quais diferentes entes se integram, compartilham e decidem coletivamente.
Uma das principais estratégias de coordenação utilizadas no Brasil é a elaboração dos sistemas de políticas públicas, como o Sistema Único de Saúde (SUS). Esse foi o primeiro sistema de políticas sociais brasileiro, sendo fundado com a Constituição Federal, de 1988. A universalização do acesso aos serviços de saúde teve base na cooperação das esferas municipal, estadual e central, propondo que serviços de atenção básica deveriam ser ofertados por todos os municípios, enquanto os de média ou alta complexidade ofertados de maneira regionalizada, em que os entes estaduais teriam uma maior competência. Porém, muitos municípios não tinham - e ainda não têm - recursos financeiros ou capacidade técnica capaz de dar conta da formulação e execução das políticas sociais (Menicucci; Marques, 2016MENICUCCI, T.; MARQUES, A. M. F. Cooperação e coordenação na implementação de políticas públicas: o caso da saúde. Dados, Rio de Janeiro, v. 59, n. 3, p. 23-65, 2016. DOI: 10.1590/00115258201693
https://doi.org/10.1590/00115258201693... ). Franzese e Abrucio (2013FRANZESE, C.; ABRUCIO, F. L. Efeitos recíprocos entre federalismo e politicas publicas no Brasil: os casos dos sistemas de saúde, de assistência social e de educação. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e Politicas Públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da Fio Cruz, 2013. p. 361-386.) afirmam que diversas políticas sociais, no pós-Constituição de 1988, tiveram seu sucesso condicionado à elaboração de mecanismos de incentivos e coordenação a nível nacional. Recursos ou outros suportes vinculados à implementação de políticas pré-determinadas representam incentivos à cooperação.
Esses mecanismos e a melhor definição de quais ações são competência de quais esferas propiciaram um maior grau de cooperação e homogeneização das políticas do SUS pelo país (Franzese; Abrucio, 2013FRANZESE, C.; ABRUCIO, F. L. Efeitos recíprocos entre federalismo e politicas publicas no Brasil: os casos dos sistemas de saúde, de assistência social e de educação. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e Politicas Públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da Fio Cruz, 2013. p. 361-386.). O SUS articula as ações e serviços ofertados pelos órgãos públicos federais, estaduais e municipais a partir de uma estrutura hierarquizada e regionalizada e de diretrizes de universalidade do acesso, equidade e integralidade da assistência (Cardoso; Santos; Coimbra Júnior, 2007CARDOSO, A. M.; SANTOS, R. V.; COIMBRA JÚNIOR., C. E. A. Políticas públicas em saúde para os povos indígenas. In: BARROS, D.; SILVA, D.; GUGELMIN, S. Â. Vigilância alimentar e nutricional para a Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. p. 75-91.).
À luz da estrutura regionalizada e hierarquizada do SUS, seus mecanismos de cooperação e incentivo intergovernamental, faz-se necessário olhar para as especificidades da política de saúde indígena. O SUS é altamente marcado pela descentralização e municipalização da oferta dos serviços, porém, as práticas indigenistas sempre foram marcadas pelo protagonismo do governo federal na condução e execução das políticas públicas. Em 2004, portanto, já após a implementação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) mas ainda antes da criação da Sesai, Garnelo (2004GARNELO, L. Política de Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: análise situacional do período de 1990 a 2004 - Documento de Trabalho no 9. Porto Velho: Fundação Oswaldo Cruz, 2004.) analisou esta contradição do modus operandi do SUS e da política de saúde indígena. A autora indicou que um desafio dessas políticas é a execução a nível local por um órgão nacional, cenário complexificado pelo fato de que a política de saúde para o resto da população é marcada pela municipalização. Os gestores de saúde indígena tiveram que elaborar dois tipos de estratégias (Garnelo, 2004GARNELO, L. Política de Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: análise situacional do período de 1990 a 2004 - Documento de Trabalho no 9. Porto Velho: Fundação Oswaldo Cruz, 2004.): a primeira foi executar a política a nível local pela terceirização; a segunda foi a cooperação com serviços municipais e estaduais de saúde, porém, essa integração não foi bem regulamentada.
A Política Nacional de Saúde Indígena indica a necessidade de “uma ampla articulação em nível intra e intersetorial, cabendo ao órgão executor desta política a responsabilidade pela promoção e facilitação deste processo” (Brasil, 2002BRASIL. Portaria no 254, de 31 de janeiro de 2002. Aprova a política nacional de atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 1 fev. 2002.). A articulação intra-setorial deve envolver gestores do SUS a nível nacional, estadual e municipal em “um planejamento pactuado nos Distritos Sanitários Indígenas que resguarde o princípio da responsabilidade final da esfera federal e um efetivo Controle Social exercido pelas comunidades indígenas” (Brasil, 2002BRASIL. Portaria no 254, de 31 de janeiro de 2002. Aprova a política nacional de atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 1 fev. 2002.). A articulação entre os diferentes níveis de governo é essencial para a boa execução da política de saúde indígena. O órgão executor da política, na época a Funasa,11A Funasa era a responsável pela execução das ações de prevenção e promoção da saúde dos povos indígenas até 2010 (CIMI, 2013). hoje a Sesai, é responsável por conduzir e facilitar este processo de articulação, porém, como indica Garnelo (2004GARNELO, L. Política de Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: análise situacional do período de 1990 a 2004 - Documento de Trabalho no 9. Porto Velho: Fundação Oswaldo Cruz, 2004.), não foram claramente estabelecidas quais são as inter-relações entre os órgãos municipais e estaduais do SUS e o subsistema de saúde indígena. Por exemplo, não foi bem determinado para onde encaminhar pacientes ou problemas sanitários que o DSEI não tivesse capacidade institucional ou técnica para atender e resolver. O acesso a serviços de saúde de média e alta complexidade está entre as principais barreiras de acesso à saúde para povos indígenas. Eles têm dificuldade não apenas de ingressar no sistema, mas, uma vez lá dentro, suas especificidades culturais são geralmente desconsideradas e é rara a presença de intérpretes culturais, conforme identificado por Maia et al. (2019MAIA, J. A.; SANTANA, A. M.; ASSIS, B. G.; CORREA. R. R. Acesso dos usuários indígenas aos serviços de saúde de média e alta complexidade. DêCiência em Foco, Rio Branco, v. 3, n. 2, p. 144-154, 2019. DOI: 10.1590/0102-311X00132215
https://doi.org/10.1590/0102-311X0013221... ).
A ausência de mecanismos de cooperação é um sintoma do racismo institucional cujos povos indígenas são submetidos no acesso aos serviços públicos ofertados. Kalckmann et al. (2007KALCKMANN, S.; SANTOS, C. G.; BATISTA, L. E.; CRUZ, V. M. Racismo institucional: um desafio para a equidade no SUS? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 146-155, 2007. DOI: 10.1590/S0104-12902007000200014
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200700... ) refletem sobre o racismo institucional nos serviços de saúde, focando no racismo a que a população negra está submetida. Conforme os autores, o racismo institucional acontece quando pessoas que partilham uma cultura, uma cor ou origem étnica não recebe o serviço institucional adequado. O racismo institucional é mais amplo do que o racismo interpessoal e explícito. Ele se manifesta em políticas, práticas e normas institucionais que geram tratamentos desiguais. Ao comentar o racismo institucional contra a população negra nos serviços de saúde, Kalckmann et al. (2007)KALCKMANN, S.; SANTOS, C. G.; BATISTA, L. E.; CRUZ, V. M. Racismo institucional: um desafio para a equidade no SUS? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 146-155, 2007. DOI: 10.1590/S0104-12902007000200014
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200700... afirmam que ele é marcado pela dificuldade de acesso, pela baixa qualidade de atenção à saúde, pela ausência da questão racial na formação dos profissionais etc. Na pesquisa desses autores, é marcante a minimização das queixas dos pacientes negros e a negação de atendimentos. A conclusão dos pesquisadores aponta para a necessidade de considerar a presença ou ausência de racismo institucional como indicador de qualidade nos serviços de saúde prestados à população.
A população indígena também está submetida a processos de racismo institucional em diversas políticas públicas, o que é fortemente marcado no sistema de saúde. Benites et al. (2023BENITES, E. et al. Teko Joja: o caminho dos povos Kaiowá e Guarani como re-existência frente ao racismo e genocídio cotidianos. Tellus, Campo Grande, v. 23 n. 50, p. 221-253, 2023. DOI: 10.20435/tellus.v23i50.914
https://doi.org/10.20435/tellus.v23i50.9... ) apontam algumas manifestações desse racismo no atendimento a indígenas no Mato Grosso do Sul, como a negligência médica, escassez de médicos em postos de saúde, falta de inclusão das especificidades culturais, de práticas tradicionais e de atendimento na língua guarani. Da mesma forma, a não coordenação pode ser mais uma manifestação do racismo institucional contra estes povos. A não adequação da estrutura do SUS para atender os povos indígenas e a falta de incentivos para efetivar essa adequação gera um tratamento pior a essa parcela da população brasileira.
A crise sanitária gerada pela pandemia do covid-19 evidenciou o racismo institucional e as barreiras de acesso dos povos indígenas aos serviços de saúde. O plano de enfrentamento da covid-19 no Brasil, elaborado pela Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB, 2020APIB - ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. Emergência indígena: plano de enfrentamento da covid-19 no Brasil. Brasília, DF: APIB, 2020.), indicou o racismo presente nas subnotificações desses casos quando são atendidos pelo SUS, além de apontar para a necessidade de uma articulação entre os sistemas da Sesai, outras instâncias do Ministério da Saúde e as secretarias municipais e estaduais de saúde. A coordenação entre os diferentes serviços de saúde às populações indígenas é imprescindível.
Metodologia
Diante da importância da coordenação para a política de saúde indígena, foi realizada uma série de entrevistas com profissionais da Sesai do DSEI do Mato Grosso do Sul. As entrevistas tiveram como objetivo elucidar aspectos da coordenação e articulação entre Sesai e demais serviços do SUS, evidenciando dificuldades e possibilidades desse processo. Para diagnosticar a realidade das relações intergovernamentais e da cooperação no nível dos gestores locais e profissionais da saúde indígena, foram realizadas entrevistas com esses atores.22As entrevistas foram realizadas pelo Zoom, por ligações telefônicas ou por áudios de whatsapp. O meio de comunicação foi escolhido de acordo com a possibilidade do entrevistado. Os atores entrevistados trabalham em diferentes polos-base da Sesai, mas são todos do DSEI do Mato Grosso do Sul. Esse estado é marcado por ter uma grande população indígena, principalmente das etnias Guarani, Kaiowá e Terena. As reservas indígenas deste estado têm uma alta densidade populacional, pois esses povos foram expulsos de seus territórios tradicionais ao longo do século XX e confinados em pequenas reservas indígenas demarcadas pelo SPI. O conflito fundiário entre grandes proprietários rurais e a luta Guarani e Kaiowá pela demarcação de seus territórios é intenso (Morais, 2017MORAIS, B. M. Do corpo ao pó: crônicas da territorialidade kaiowá e guarani nas adjacências da morte. São Paulo: Elefante, 2017.).
O cenário do Mato Grosso do Sul certamente interfere na implementação de todas as políticas públicas voltadas às populações indígenas locais. A literatura de burocracia de médio escalão e de nível de rua aponta a importância destes para o sucesso das políticas, e também como a ação destes profissionais é pautada pelos seus valores e posições sociais (Cavalcante; Lotta, 2015CAVALCANTE, P. L. C.; LOTTA, G. S. (Org.) Burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação. Brasília, DF: Enap, 2015.; Lipsky 2019LIPSKY, M. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços públicos. Brasília, DF: Enap, 2019.; Pires e Lotta, 2019PIRES, R. R. C.; LOTTA, G. Burocracia de nível de rua e (re)produção de desigualdades sociais: comparando perspectivas de análise. In: PIRES, R. R. C. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Rio de Janeiro: Ipea, 2019. p. 127-152.). No caso da saúde indígena, a cooperação intragovernamental depende da atuação dos burocratas de médio escalão e de nível de rua, aqueles que estão nas secretarias de saúde, nos hospitais, nos equipamentos da Sesai e nos serviços de transporte, como Samu e Corpo de Bombeiros. A investigação foi realizada, portanto, em um contexto adverso para a cooperação na ponta.
Foram realizadas, durante o mês de julho de 2020, entrevistas com seis profissionais da Sesai que podem ser considerados burocratas de médio escalão ou de nível de rua: um médico, duas enfermeiras, um agente de saúde indígena, uma técnica de enfermagem e um coordenador de polo-base, que estão distribuídos por quatro polos-base. As entrevistas foram semiestruturadas, e as questões concentravam-se nos momentos em que são necessárias articulação com outros serviços do SUS fora do âmbito da Sesai e nas dificuldades desta. Os entrevistados também foram questionados sobre a heterogeneidade do nível de cooperação com os diferentes municípios que agregam, pois essa heterogeneidade pode dar indícios de como se constroem atualmente as relações cooperativas neste serviço. As entrevistas foram gravadas e os áudios transcritos.
Cabe destacar que as entrevistas foram realizadas no auge da pandemia de covid-19, que demandou um alto nível de articulação dos serviços de saúde. Por vezes, o entrevistado respondeu com referência às relações intergovernamentais que foram executadas para enfrentamento da pandemia, ainda que fossem sempre questionados sobre como eram as relações antes dessa crise. Partimos da perspectiva da grounded theory (Charmaz, 2006CHARMAZ, K. Constructing grounded theory: a practical guide through Qualitative Analysis. London: Sage Publications, 2006.) e da epistemologia abdutiva (Simpson, 2018SIMPSON, B. Pragmatism: a Philosophy of Practice. In: CASSELL, C.; CUNLIFFE, A. L.; GRANDY, G. (Ed.) The Sage Handbook of Qualitative Business and Management Research Methods. London: Sage Publications , 2018. p. 54-68.). Estudos qualitativos realizados sob a perspectiva da grounded theory constroem as proposições teóricas a partir dos dados de campo (Charmaz, 2006CHARMAZ, K. Constructing grounded theory: a practical guide through Qualitative Analysis. London: Sage Publications, 2006.).
A epistemologia abdutiva é caracterizada pelo processo contínuo de formulação de possíveis explicações para os eventos observados (Simpson, 2018SIMPSON, B. Pragmatism: a Philosophy of Practice. In: CASSELL, C.; CUNLIFFE, A. L.; GRANDY, G. (Ed.) The Sage Handbook of Qualitative Business and Management Research Methods. London: Sage Publications , 2018. p. 54-68.), hipóteses são construídas a partir dos dados e depois testadas por uma lógica dedutiva. Na prática, os procedimentos realizados foram a transcrição de todas as entrevistas, uma análise transversal sobre elas e a criação de categorias analíticas presentes nos relatos dos entrevistados, que iremos debater na próxima seção.
Resultados e discussão: como se dá a cooperação na ponta?
Os relatos dos profissionais revelaram a presença de diversas barreiras para a execução da integração na política de saúde indígena. Além das barreiras, também apontaram como se dá a cooperação quando ela acontece e quais mecanismos são eficazes no aumento da cooperação. Elaboramos dois domínios de análise: dificuldades de integração e mecanismos de cooperação. Na Tabela 1, indicamos as categorias analíticas dentro de cada domínio.
As dificuldades de integração da Sesai com outras instituições do SUS foram abordadas por todos os entrevistados e aparecem em diversas situações cotidianas, como na ausência de atendimento na aldeia, na demora para conseguir consultas e exames e no processo de conseguir vagas nos hospitais.
O racismo e a discriminação foram apontados pela fala de todos os entrevistados, e se revela como uma das dificuldades na cooperação. As falas foram identificadas como revelando a presença de racismo institucional sempre que apontavam para entraves para um atendimento de qualidade marcado por barreiras a toda a comunidade. O primeiro aspecto desse racismo é a própria desconsideração dos indígenas como munícipes com direito aos serviços de saúde da rede. Eles também apontam a diferença de atendimento aos indígenas e aos moradores da cidade e que muitos indígenas relatam ter um mau atendimento e sofrer discriminação. Uma das profissionais relatou que há casos nos quais indígenas são atendidos só no fim do dia em um pronto-atendimento, enquanto os não indígenas que chegam são chamados antes para ser atendidos:
[tem um] paciente que foi para uma consulta e voltou sem atendimento porque não tinha ninguém para orientar o mesmo dentro do ambiente onde estava. Tudo isso por causa da dificuldade de não saber falar e também ninguém se quer perguntou para o indígena o que estava fazendo ali ou ofereceu ajuda. Aqui [no pronto-atendimento do hospital local] teve pacientes que disseram chegaram bem cedo, mas foi atendido por último porque atenderam os não indígenas primeiro! [Entrevistado F]
Um dos profissionais relatou a resistência dos pacientes indígenas a irem aos outros serviços do SUS que são fora da Sesai. Outro profissional contou que pacientes indígenas, por vezes, sentem vergonha de serem atendidos nesses serviços. Esses casos também estão associados ao racismo institucional, que é potencializado pela falta de elementos interculturais nestes hospitais. A falta de profissionais indígenas ou falantes de guarani nos hospitais e outros equipamentos de saúde funciona como uma barreira aos pacientes indígenas, que não compreendem muitos dos procedimentos a que são submetidos. A ausência desses elementos interculturais em hospitais de cidades com grandes contingentes indígenas também é gerada por uma falta de coordenação da saúde indígena.
Outro caso de racismo institucional relatado é a falta de atendimento na aldeia quando há uma emergência e o paciente, sua família ou os próprios profissionais do polo-base requerem os serviços municipais de transporte (como Samu e Corpo de Bombeiros). Nas palavras de um dos entrevistados: “[nesta aldeia] quando a gente chama, eles não vêm. A Sesai fala que tem que ser o Samu e o corpo de bombeiros, mas eles complicam entre eles” [Entrevistado D].
Outro profissional também sugeriu a pesquisadora ler uma reportagem de um jornal local, que cita uma ação do Ministério Público Federal (MPF) que foi aceita pela justiça federal de Dourados, tornando réus três ex-coordenadores do Samu, um integrante do Corpo de Bombeiros e uma técnica de regulação médica do Samu por omissão de socorro em uma aldeia de Dourados, em 2019, e decorrente morte da paciente indígena33https://www.progresso.com.br/cidades/servidores-do-samu-e-bombeiros-viram-reus-acusados-de-racismo-na/374543/.. Nesse caso, ambos os órgãos foram acionados para socorrer a paciente na aldeia, mas alegaram não ter competência de adentrar na reserva indígena. A investigação do MPF descobriu um protocolo de não atendimento nas aldeias no âmbito do Samu local, o que não seria legalmente procedente. Esse é um evidente problema de coordenação entre as instituições que, atrelada à situação conflituosa local, gera um grave problema no atendimento dos indígenas da região. É, portanto, uma manifestação do racismo institucional presente no serviço de saúde.
A não responsabilização do município pela saúde indígena também é apontada como uma das grandes dificuldades de cooperação por um dos entrevistados, enquanto outros dois citam esse problema, mas relatam que a situação melhorou bastante nos últimos dez anos. Ao comentar esse tópico, os entrevistados sempre afirmam que o indígena é munícipe, o dinheiro que vai para o município também considera a população indígena e, portanto, esse deve ser corresponsável pelos serviços de saúde indígena. Outra evidência da falta de coordenação é a dificuldade apontada por um dos entrevistados na comunicação das equipes da Sesai e dos hospitais. Nesse caso, o problema é que o paciente vai para o hospital sem um acompanhante da Sesai e, quando volta para o serviço da Sesai, não são encaminhados os exames ou algum contato de referência do hospital. Tanto a não responsabilização do município quanto a dificuldade de comunicação das equipes da Sesai e dos hospitais são manifestações do racismo institucional, já que geram um tratamento desigual em desvantagem aos indígenas.
Outros três profissionais relataram que a dificuldade é no acesso ao atendimento secundário e terciário, principalmente pela estrutura sobrecarregada das redes municipais e estaduais do SUS. Quando são necessários exames e consultas com especialistas, o responsável do polo-base insere o paciente indígena na lista do Sistema de Regulação (SisReg), que é uma lista de demandas pelos serviços do SUS, e, então, depende do tempo de atendimento da rede. Essa dificuldade é mais atrelada a um problema geral do SUS do que da coordenação na saúde indígena, ainda que tenha efeitos maiores para estes povos, por conta de suas especificidades e condições de vulnerabilidade.
Também identificamos alguns mecanismos de cooperação relatados nas entrevistas. Ainda que todos relatem problemas no momento atual, três profissionais com muitos anos de atuação na Sesai indicaram uma melhora da coordenação dos serviços na última década, com o município passando a dar suporte à Sesai para diversos serviços, como transporte e medicamentos, que eram negados antigamente. Outro aspecto que uma profissional indicou foi a incorporação de especificidades culturais indígenas no serviço. Quando relatam a melhora dos últimos anos, três aspectos são evidentes na fala dos entrevistados: um primeiro, presente na fala de uma das profissionais, é a integração motivada por relações pessoais; o segundo fator é que, na maioria das vezes, a iniciativa do aumento de cooperação parte da Sesai, categoria que nomeamos agência situada; por fim, os profissionais apontam a importância dos incentivos financeiros e da inclusão dos indígenas na verba do SUS para uma melhora de cooperação.
A integração por meio de relações pessoais foi citada por uma das entrevistadas. Ao longo da entrevista, diversas vezes a entrevistada apontou a importância de relações pessoais antigas ou de conversar com jeitinho para conseguir a cooperação. Nas palavras da profissional:
Temos um acesso muito maior no hospital de [município A], porque as pessoas que estão lá dentro são ligadas a gente, são amigos de faculdade, já trabalharam aqui. A integração é mais entre pessoal mesmo, vira uma conversa da equipe daqui com a equipe de lá, vai muito mais pelo coleguismo e por entender o outro do que por processos administrativos. [Entrevistado A]
A questão apontada pelo Entrevistado A pode ser interpretada à luz da análise dos burocratas de médio escalão em uma perspectiva relacional. Essa perspectiva olha para estes atores por meio de suas múltiplas relações e, nesse caso, a relação observada é intragovernamental, e a sua boa consolidação faz toda a diferença para a efetivação da política. De acordo com Lotta e Cavalcante (2015LOTTA, G. S.; CAVALCANTE, P. L. C. Conclusão: perfis, trajetórias e relações: em busca de uma análise abrangente dos burocratas de médio escalão do Governo Federal. In: CAVALCANTE, P. L. C.; LOTTA, G. S. (Org.). Burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação . Brasília, DF: Enap, 2015. p. 293-308.), essa burocracia desenvolve diferentes métodos de articulação e negociação para consolidar relações com diversas agências importantes para a política, porém, a capacidade de estabelecer essas articulações depende não apenas de uma capacidade pessoal, mas também da prioridade que suas políticas têm em uma visão integral do governo e do empoderamento que eles têm perante as outras agências. No caso da política de saúde indígena, vemos uma heterogeneidade no seu grau de priorização em cada governo municipal. Governos que não têm diretrizes de promover esta articulação dificultam a colaboração na ponta. No caso do Entrevistado A, a profissional baseia suas relações em seu capital social, por meio de relações pessoais construídas ao longo de sua carreira e vida pessoal.
Outro aspecto revelado pelas entrevistas é que quase sempre o ator que promove a articulação é o profissional da Sesai, enquanto os demais profissionais têm atuação passiva e, por vezes, resistente. É o que se observa nas falas a seguir:
Mas foi uma busca nossa da Sesai, não foram eles que vieram atrás da gente. [Entrevistado B]
[...] a gente precisa ligar, precisa brigar, precisa falar que o indígena é munícipe e precisa ser atendido. [Entrevistado E]
Nesses relatos, observa-se que a articulação se dá por ação do profissional da Sesai, ação que pode ser entendida analiticamente pelo conceito de agência situada. A noção de agência situada olha os profissionais como agentes que atuam refletindo valores e crenças pessoais, ao mesmo tempo em que sua agência é condicionada pelo contexto histórico e institucional (Souza; Gomes, 2015SOUZA, L. G.; GOMES, L. P. Dilemas da burocracia de médio escalão no contexto de uma política frouxamente articulada: o caso da secretaria nacional de segurança pública. In: CAVALCANTE, P. L. C.; LOTTA, G. S. (Org.). Burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação . Brasília, DF: Enap, 2015. p. 253-292.). Mesmo diante dos limites de contextos organizacionais e políticos adversos, esses burocratas se afirmam como negociadores e promovem a articulação com outros órgãos para a efetivação da política em questão.
À luz dessa noção de agência situada, observamos pelas entrevistas que a atuação dos profissionais da Sesai de articulação com os serviços do SUS municipais ou estaduais é fundamental para obter um mínimo de cooperação e de resultados positivos para a saúde indígena nos serviços de média e alta complexidade. A ausência de um ator superior forte que cobre por uma maior colaboração dificulta o processo de articulação, e os profissionais de instituições de saúde exteriores da Sesai aparentemente não têm muitos incentivos para promover a colaboração. No geral, observou-se que a procura pelo estreitamento das relações parte dos profissionais da Sesai. Apenas uma entrevistada apontou que após a consolidação de uma relação com o hospital local os profissionais dele começaram a também ser proativos na cooperação com a Sesai. Nesse caso, o resultado positivo advindo de uma relação cooperativa gera uma reciprocidade dentro da relação.
Outro aspecto que estimula a cooperação na política de saúde indígena são incentivos financeiros. Isso é observado tanto quando os entrevistados indicavam que o dinheiro que vai para o município inclui os indígenas, como quando eles citaram a importância do Incentivo para Atenção Especializada aos Povos Indígenas (IAE-PI) para a melhoria do atendimento de média e alta complexidade nos hospitais locais.
Melhorou bastante porque as verbas também são para os indígenas. O que é investido aqui também tem que ser investido na aldeia. [Entrevistado B]
O indígena é munícipe, então dentro do SUS a quantia de capital vem para todos os munícipes, e [nosso município] recebe pelos indígenas também, hoje somos 18.500 [indígenas] pelo Siasi.44Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena. [Entrevistado E]
Ao refletirem sobre a importância de evidenciar que o município recebe dinheiro também pela população indígena, observamos uma lógica de pensamento que é: os recursos que vêm para o município também incluem na conta a população indígena, portanto, o dinheiro deve ser gasto com eles. Ainda que essa afirmação possa ter um aspecto de justiça, não há mecanismos legais que assegurem que o dinheiro que vem em decorrência da população indígena seja gasto com ela. A ausência de tais mecanismos pode ser interpretada como mais uma expressão de racismo institucional.
Há, no Brasil, políticas públicas com mecanismos de financiamento por adesão, o que vincula o recurso à execução de determinada política. O mecanismo desse tipo, o IAE-PI foi citado por uma das entrevistadas como de grande relevância para a melhora das relações nos últimos anos. Após citá-lo, nas entrevistas que se seguiram, os profissionais também foram questionados sobre esse mecanismo. Todos que abordaram este incentivo têm uma visão positiva sobre ele, que teria facilitado a adequação dos hospitais aos indígenas (contratação de profissionais falantes da língua indígena, criação de espaços específicos etc.).
O IAE-PI foi formulado com o objetivo de qualificar os serviços de saúde de média e alta complexidade do SUS voltados à população indígena.55https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/setembro/gestores-podem-solicitar-incentivo-para-atencao-especializada-a-saude-dos-povos-indigenas Podem obtê-lo os estabelecimentos de saúde em nível ambulatorial e hospitalar que atendem pacientes indígenas e que preencham alguns pré-requisitos. Entre os pré-requisitos, está a elaboração de um Plano de Metas e Ações (PMA), que deve ser apresentado e aprovado pela coordenação do DSEI e contemplar no mínimo dois objetivos entre os listados pela lei. Os objetivos listados incluem aspectos de coordenação com profissionais do DSEI, promoção de aspectos interculturais no atendimento dos pacientes, viabilizar o direito ao intérprete, entre outros.
Conforme demonstrado por Franzese e Abrucio (2013FRANZESE, C.; ABRUCIO, F. L. Efeitos recíprocos entre federalismo e politicas publicas no Brasil: os casos dos sistemas de saúde, de assistência social e de educação. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e Politicas Públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da Fio Cruz, 2013. p. 361-386.), a realização eficaz de algumas políticas, como a operacionalização do próprio SUS em nível municipal, foi condicionada por processos de indução governamental, cooperação intergovernamental e redistribuição de recursos. Foram criados incentivos para adesão a determinadas políticas, vinculados recursos à execução de determinadas ações, como o Índice de Gestão Descentralizada (IGD) no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (Grin; Abrucio, 2018GRIN, E, J.; ABRUCIO, F. L. Las capacidades estatales de los municipios brasileños en un contexto de descentralización de políticas. Revista del CLAD Reforma y Democracia, Caracas, n. 70, p. 93-126, 2018.). Pelas afirmações dos entrevistados, é possível observar que o IAE-PI é um potente mecanismo para melhoria dos serviços de saúde indígena em hospitais e clínicas da região, promovendo uma articulação com a Sesai desde o planejamento da política, já que é necessário realizar o PMA. Como apontado pelo Entrevistado E, a obrigação de reverter o dinheiro para a população indígena, ou seja, a vinculação do recurso, induz a uma qualificação do atendimento a esta população.
Outros mecanismos de incentivos à saúde indígena para os serviços municipais e estaduais que também atendem estas populações poderiam ser formulados, uma vez que o IAE-PI só considera as instituições de saúde como hospitais e ambulatórios. Serviços como de transporte hospitalar, que muitos profissionais apontam como uma das barreiras de entrave, poderiam ser um ponto de atenção de políticas federativas de articulação da Sesai com secretarias de saúde municipais e estaduais. Indicadores de qualidade do atendimento à população indígena nestes serviços também poderiam ser formulados e considerados no repasse de recursos, tal qual o IGD promove em relação às políticas de assistência social.
Considerações finais
Este artigo analisou a colaboração de diferentes instituições governamentais na execução da política de saúde indígena. A estrutura atual dessa política requer a articulação entre a Sesai e secretarias municipais e estaduais, já que a atenção primária é atribuição da Sesai e o atendimento de média e alta complexidade é dos serviços municipais e estaduais, de maneira regionalizada e hierarquizada. Apesar disso, a literatura aponta que a indefinição de mecanismos de cooperação pode levar a um jogo de empurra, em que os governos empurram uns aos outros a responsabilidade pela execução das políticas. Com o objetivo de compreender o nível de cooperação na política de saúde indígena, foram feitas entrevistas com burocratas de médio e baixo escalão da Sesai do Mato Grosso do Sul.
A análise das entrevistas identificou a presença de diversas dificuldades na articulação da Sesai com os demais serviços locais de saúde, que giram em torno da negação de atendimento dentro das aldeias, a falta de senso de corresponsabilidade dos gestores locais, a má comunicação entre os profissionais e instituições e a própria sobrecarga dos serviços do SUS. Tais elementos são manifestações do racismo institucional, gerando um tratamento pior aos povos indígenas do que ao resto da população local. As dificuldades de integração da Sesai com outros serviços de saúde ampliam a precariedade do atendimento de saúde a povos indígenas, precariedade já reconhecida por conta de problemas estruturais, como falta de recursos e de profissionais no âmbito da saúde indígena. Como sugerem Kalckmann et al. (2007KALCKMANN, S.; SANTOS, C. G.; BATISTA, L. E.; CRUZ, V. M. Racismo institucional: um desafio para a equidade no SUS? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 146-155, 2007. DOI: 10.1590/S0104-12902007000200014
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200700... ), construir indicadores de qualidade que integrem a presença ou ausência de racismo institucional em sua configuração pode ser uma alternativa para melhoria desses serviços.
Ainda que o quadro de atenção à saúde indígena permaneça bastante frágil, alguns dos profissionais relataram que as relações da Sesai com instituições locais melhoraram nos últimos 10 anos. Três aspectos marcam essa melhoria: a importância da mobilização de relações pessoais para a articulação; a predominância dos profissionais da Sesai como atores que promovem a articulação; a importância de incentivos financeiros, principalmente quando vinculados à qualificação do atendimento de saúde à população indígena, como é o caso do IAE-PI. Esse incentivo foi apontado pelos entrevistados como positivo na articulação entre hospitais e outros equipamentos de saúde locais com profissionais da Sesai. Foi relatado que equipamentos que recebem o IAE-PI apresentam uma qualificação do atendimento aos indígenas, integrando aspectos culturais no serviço.
Esses apontamentos são congruentes com a literatura da área, que, de um lado, aponta a importância de burocratas da linha de frente na articulação para implementação de uma política e; de outro, a necessidade de estabelecer as atribuições de cada ente e promover incentivos para a boa execução de governos municipais para a implementação de políticas públicas. A formulação de políticas públicas indigenistas precisa considerar os desafios de implementação locais, principalmente em contextos propícios ao racismo institucional. Uma boa coordenação intergovernamental é pré-requisito para que o direito à saúde seja assegurado aos povos indígenas.
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- 1A Funasa era a responsável pela execução das ações de prevenção e promoção da saúde dos povos indígenas até 2010 (CIMI, 2013CIMI - CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. A Política de Atenção à Saúde Indígena no Brasil: breve recuperação histórica sobre a política de assistência à saúde nas comunidades indígenas. Brasília, DF: CIMI, 2013.).
- 2As entrevistas foram realizadas pelo Zoom, por ligações telefônicas ou por áudios de whatsapp. O meio de comunicação foi escolhido de acordo com a possibilidade do entrevistado.
- 3
- 4Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena.
- 5
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
24 Jun 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
29 Jun 2023 - Aceito
21 Mar 2024