Resumo
Por se tratar de um tumor sólido, a cirurgia do câncer de mama sempre será necessária. Em algumas ocasiões, diante do avanço local da doença, a mastectomia, ou seja, a retirada completa da mama, pode ser necessária. Para atenuar as alterações corporais causadas pela mastectomia, a reconstrução mamária é uma possibilidade de reparação local e uma alterativa de reaproximação do que socialmente se considera um corpo reestabelecido. Este artigo, em forma de ensaio, parte de uma breve pesquisa em bases de dados científicos, interligando reconstrução mamária e representações sociais. Encontramos uma possível lacuna de problematização do que seria um corpo normal e reparado e quais seriam as forças que interferem na decisão de uma mulher recorrer às cirurgias ditas reparadoras. Ao questionarmos as diferentes visões do que é ou não um corpo saudável, abordamos teóricos como Foucault, Butler e Le Breton, para uma compreensão ampliada dos conceitos de corporeidade.
Palavras-chave:
Câncer de Mama; Reconstrução Mamária; Corporeidade; Representações Sociais
Considerações iniciais
O câncer de mama é a doença maligna mais comum em mulheres do Brasil e do mundo, excluindo-se os tumores não melanomas (Inca, 2022INCA - Instituto Nacional do Câncer (INCA). Dados e números sobre câncer de mama: Relatório anual. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde (MS), 2022.). Embora seja muito comum que pessoas leigas achem que o surgimento do câncer ocorra apenas quando há casos da doença na família, essa regra não se aplica à glândula mamária feminina. Aproximadamente nove entre dez dos casos de câncer de mama são considerados acidentais, ou seja, não trazem mutações genéticas herdadas da família que justificarão a doença. Isso significa que o surgimento do câncer de mama em uma mulher está predominantemente relacionado aos fatores adquiridos ao longo da vida. Quando observamos o câncer de mama em recorte de gênero, 99% da sua incidência será feminina, evidenciando o “ser mulher” como um dos principais fatores de risco. A principal justificativa para o câncer ser tão recorrente entre as mulheres é, além do desenvolvimento da glândula por meio do estímulo hormonal, a exposição das mamas às variações hormonais dos ciclos menstruais ao longo da vida reprodutiva.
Dado o panorama geral da doença, é compreensível que concentremos esforços em adequar o tratamento e a reabilitação do câncer de mama para mulheres, já que elas serão mais impactadas pelas modificações físicas trazidas tanto pela doença como pelas etapas do processo terapêutico.
Um ponto importante, a respeito do qual não cabe omissão, é a diferença entre mama reconstruída e corpo reparado. A mama reconstruída, pela própria definição do termo, abarcará as diversas técnicas cirúrgicas, mais ou menos complexas, envolvendo próteses de silicone, retalhos miocutâneos dorsais ou abdominais, com o objetivo de devolver o volume da mama que foi removida pela doença. Independente da técnica cirúrgica, mais ou menos invasiva, o resultado será uma “neomama”. Um corpo reparado, por sua vez, amplia a compreensão das necessidades subjetivas de cada sujeito. Uma mulher com cicatrizes de mastectomia pode ter um corpo reparado mesmo sem reconstrução, se assim se sentir confortável. Esclarecer esses termos que podem gerar semelhança semântica nos fortalece no debate mais isento de julgamentos acerca do que é ou não normal na vida de alguém.
Entre as fases que uma mulher com câncer de mama terá que passar, a cirurgia ainda é um momento que traz angústia para uma parcela expressiva das pacientes no que diz respeito à identidade e aos possíveis estigmas. Perder a mama é uma ameaça física que dialoga com questões sociais, pois, além dos aspectos relacionados à feminilidade e à atividade sexual, a ausência da glândula pode proporcionar sentimentos de desvalia, vergonha e solidão.
Pereira, Gomes e Oliveira (2017PEREIRA, G. B.; GOMES, A. M. S. M.; OLIVEIRA, R. R. Impacto do tratamento do câncer de mama na autoimagem e nos relacionamentos afetivos de mulheres mastectomizadas. Life Style, [s. l.], v. 4, n. 1, p. 99-119, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/327950263_IMPACTO_DO_TRATAMENTO_DO_CANCER_DE_MAMA_NA_AUTOIMAGEM_E_NOS_RELACIONAMENTOS_AFETIVOS_DE_MULHERES_MASTECTOMIZADAS . Acesso em: 5 fev. 2023.
https://www.researchgate.net/publication... ) nos mostram que a ausência da mama, ou seio, pode romper com a unidade do corpo da mulher, podendo originar a insatisfação com a autoimagem, pois, nesses casos, é comum a percepção de incompletude do corpo. A perda da mama afeta a identidade da mulher, pois a imagem está ligada à construção do ego diante de um corpo unificado (Lacan, apudSantos; Siviero; Pietrafesa, 2020SANTOS, C. B. O.; SIVIERO, I. M. P. S.; PIETRAFESA, G. A. B. A sexualidade da mulher acometida com o câncer de mama. Revista Interdisciplinar em Ciências da Saúde e Biológicas, Santo Ângelo, v. 4, n. 2, p. 15-25, 2020. DOI: 10.31512/ricsb.v4i2.97
https://doi.org/10.31512/ricsb.v4i2.97... ). Como a mama está intimamente relacionada à feminilidade, Gonçalves, Arrais e Fernandes (2007GONÇALVES, S. R. O. S.; ARRAIS, F. M. A.; FERNANDES, A. F. C. As implicações da mastectomia no cotidiano de um grupo de mulheres. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste, [s. l.], v. 8, n. 2, p. 9-17, 2007. ) observam que uma mulher submetida à mastectomia pode ter conformidade com a ausência da mama, mas a insatisfação pode permanecer, por conta das exigências sociais de perfeição do corpo feminino.
A medicina, por meio da cirurgia plástica reconstrutora das mamas, apresenta soluções para mitigar a ausência dessa parte do corpo. É possível reconstruir uma mama com próteses de silicone abaixo da musculatura peitoral, com retalhos de músculo e pele das costas (músculo grande dorsal) e da parte inferior do abdome (músculo reto abdominal). Todas essas técnicas, algumas mais ou menos mórbidas, pretendem devolver a observação do volume, antes mamário, ao tórax.
Apesar de a mama reconstruída não substituir a mama natural, a reconstrução na mulher que perdeu esse órgão é uma possibilidade que causa impacto na qualidade de vida (Archangelo et al., 2017ARCHANGELO, S. C. V.; SABINO NETO, M.; VEIGA, D. F. et al. Sexuality, depression, and body image after breast reconstruction. Clinics, São Paulo, v. 74, e883, 2017. DOI: https://doi.org/10.6061/clinics/2019/e883
https://doi.org/10.6061/clinics/2019/e88... ). A reconstrução mamária pode ter impactos positivos na feminilidade e no fortalecimento da autoestima por meio da reconstituição da imagem corporal. Diante disso, a qualidade de vida pode ser restabelecida, diante de uma melhor aceitação do próprio corpo. Por fim, é possível observar a redução da ansiedade e da depressão pós-mastectomia (Matthews et al., 2017MATTHEWS, H.; CARROLL, N.; RENSHAW, D. et al. Predictors of satisfaction and quality of life following post - mastectomy breast reconstruction. Psychooncology, Chichester, v. 26, n. 11, p. 1860-1865, 2017. DOI: 10.1002/pon.4397
https://doi.org/10.1002/pon.4397... ). A satisfação quanto à aparência estética pode diminuir os traumas psíquicos provenientes da mastectomia. (Pittermann; Radtke, 2019PITTERMANN A.; RADTKE C. Psychological aspects of breast reconstruction after breast cancer. Breast Care, Basel, v. 14, n. 5, p. 298-301. DOI:10.1159/000503024, 2019.
https://doi.org/10.1159/000503024... ).
Nenhuma das técnicas reparadoras é capaz de recriar um órgão que foi removido: não há função lactacional e não há sensação erógena na papila mamária (mamilo). Uma “neomama” é uma área visualmente semelhante à mama feminina, porém sem sensibilidade tátil e sem função fisiológica.
Edmonds (2010EDMONDS, A. Pretty Modern: beauty, sex, and plastic surgery in Brazil. Durham: Duke University Press, 2010.) explora o tema da cirurgia plástica em aspectos mais distantes da visão biomédica sobre os procedimentos. Em uma etnografia por clínicas de cirurgia e sites, o autor produziu uma análise de como as mulheres mostram suas histórias de vida pautadas nas modificações corporais. Além disso, Edmonds debate os modelos de beleza predominantes no Brasil. O autor mostra as relações entre cultura e beleza e como se forma a extensão das forças do mercado na experiência humana. A cultura da beleza mostra modificações na sexualidade, as quais são norteadas por quem consome cultura, pela psicologia e medicina. Nos pressupostos da relação entre cultura e corpo feminino, é possível perceber como uma mulher consumidora da cultura brasileira pode se sentir em desvalia em caso de uma eventual mastectomia.
Sob a perspectiva de Le Breton (2003LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.), a reconstrução mamária pode ser vista como uma incorporação da tecnociência em que se repara ou se rearranja o corpo a serviço de ideologias que tanto podem restaurar como aprisionar a padrões corporais. Nesse sentido, junto à ideia de que a reconstrução pode reparar a autoestima de mulheres que perderam seus seios, não se pode desconsiderar que, em determinados universos culturais, essa reconstrução atende a imposições de determinadas estéticas que denominam o corpo feminino.
Interessados na dimensão simbólica da reconstrução mamária, realizamos um rápido levantamento na base de publicações da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Nesse levantamento, observamos que a maior parte das publicações envolvendo reconstrução mamária estão no campo biomédico: técnicas cirúrgicas, resultados estéticos e outras possibilidades de enxerto. Na busca pelo descritor “reconstrução mamária”, tivemos 21.574 artigos. Ao cruzarmos esse dado com descritores que dialogam com as subjetividades do que seja o ato de reconstruir, nos deparamos com uma possível lacuna teórica: “reconstrução mamária” e “simbolismo” - 2 artigos; “reconstrução mamária” e “abordagem cultural” ou “aspectos culturais” ou “representações culturais” ou “representações sociais” - nenhum artigo. Ao abrirmos a pesquisa para “reconstrução mamária” e “estigma”, encontramos doze artigos e, ao cruzarmos com “etnografia”, 6 artigos. A pesquisa não delimitou ano de publicação e selecionou artigos, teses e dissertações em português, inglês ou espanhol. Excluímos os artigos em duplicata e os que não abordavam as subjetividades da reconstrução mamária como tema central e obtivemos 6 artigos de maior interesse entre os vinte encontrados. Nesse pequeno grupo de publicações, destacamos duas para o início de nossa discussão. A primeira é referente à análise desenvolvida por Ucok (2007UCOK, O. The fashioned survivor: Institutionalized representations of women with breast cancer. Communication & Medicine, Berlim, v. 4, n. 1, p. 67-78, 2007. DOI: 10.1515/CAM.2007.008
https://doi.org/10.1515/CAM.2007.008... ), que parte de um estudo etnográfico mais amplo sobre as transformações do self entre mulheres, transformações que resultam em mudança na aparência corporal após tratamento e/ou cirurgia oncológica. Nesse estudo, destaca-se um sério desafio para a identidade de uma pessoa e o sofrimento devido à perda de controle da aparência corporal e da autoapresentação, que pode ser debilitante para algumas mulheres. Ucok observa que, para uma mulher, a reconstrução mamária pode significar a reconstrução de si mesma, em vez de seus seios.
O segundo estudo se refere à pesquisa realizada por Webb, Jacox e Temple-Oberle (2018WEBB, C.; JACOX, N.; TEMPLE-OBERLE, C. The Making of breasts: navigating the symbolism of breasts in women facing cancer. Plastic Surgery, Oakville, v. 27, n. 1, p. 1-5, 2018. DOI: 10.1177/2292550318800500
https://doi.org/10.1177/2292550318800500... ), que analisam tensões e ambivalências que envolvem a reconstrução mamária, indicando a necessidade de cirurgiões que trabalham na área de reconstrução mamária estarem cientes da história cultural que molda a compreensão das mamas. Assim, para esses autores, caso uma mulher opte por fazer a reconstrução mamária ou não, a decisão não é meramente pessoal, mas está profundamente enraizada na sua cultura.
Com base nesses estudos, pretendemos problematizar a reconstrução mamária, que pode envolver uma complexidade das decisões relacionadas a esse procedimento. Mulheres submetidas às diferentes fases do tratamento podem ter tempo para elaborar perdas corporais, como a da mama, e desistirem de se submeter a mais consultas e internações com a equipe de cirurgia plástica. Farnsworth (2019FARNSWORTH L. Rejecting Stigma - embracing ‘living flat’: motivations for resisting breast reconstruction and prosthetic breasts after mastectomy. Tese (Mestrado em Ciências Sociais) - Departamento de Sociologia e Antropologia, Concordia University, Montreal,, 2019.) aborda o termo “going flat”, da livre tradução “ficar plano” ou “viver plano” após mastectomia. Essa opção se tornou emergente na cultura no século XXI. “Going flat” é o termo informal utilizado quando uma mulher não quer se submeter à reconstrução mamária ou ter sua reconstrução revertida por diversas razões. Se tornou uma tendência nas redes sociais no mundo ocidental. Isso motiva ações e comportamentos das mulheres que fazem parte dessa cultura crescente de práticas mamárias convencionais. Ao resistirem às cirurgias e ao uso de próteses, rejeitam a noção de Goffman (1981GOFFMAN E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. São Paulo: LTC, 1981.) de estigma de identidade modificada, o que poderia descolonizar a indústria médica. O corpo feminino que não é colonizado, normalizando, assim, a “moradia plana” como uma opção respeitada pós-mastectomia. Por outro lado, no caminho oposto, algumas mulheres podem estar ansiosas para iniciar esse processo para que possam se reconhecer como sujeitos completos e plenamente reparados de algo.
Em nossa pesquisa, encontramos um trecho de Détrez que proporcionou sentido às perguntas que este estudo pretende debater:
O corpo, apesar de parecer o lócus do íntimo e da pessoa, constitui o nó onde se articulam o indivíduo e o grupo, a natureza e a cultura, a coerção e a liberdade. Se as sociedades tradicionais marcam a lei sobre a pele como sobre um pergaminho, em nossas sociedades contemporâneas, as partilhas sociais tomam corpo modelando as morfologias e as maneiras de se comportar, de acordo com suas representações culturais. Mas os estereótipos modeladores são hierarquicamente ordenados: o corpo das mulheres torna-se assim mais frágil, passivo, hormonal etc. em relação ao do homem. Os argumentos biológicos e científicos intervêm para justificar a dominação sofrida pelas mulheres, desde o início de sua educação. Os saberes sobre os corpos são assim poderes, políticos e simbólicos. (Détrez, 2003DÉTREZ, C. Santas ou feiticeiras: a construção social do corpo feminino. Tradução Tania Navarro Swain. Labrys: Estudos Feministas. Brasília, DF: EdUnB, n. 4, 2003.)
No intuito de preencher lacunas e/ou aprofundar o debate relacionado ao assunto em questão, nossa discussão objetiva problematizar a dimensão simbólica que envolve a reconstrução mamária. Ancorados em literatura específica, seguiremos o caminho de um ensaio, que pode ser compreendido como um exercício exploratório acerca de um tema ou objeto de discussão, buscando uma nova forma de olhar o assunto (Tobar; Yalour, 2002TOBAR, F.; YALOUR, M. R. Como fazer teses em saúde pública: conselhos e ideias para formular projetos e redigir teses e informes de pesquisas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002.). Nesse caminho, adotamos a estratégia de formular as seguintes questões: (1) Como se apresenta a reconstrução mamária? (2) A quem interessa reconstruir os seios após a intervenção do câncer de mama? e (3) Quais bases teóricas nos ajudam a compreender as corporeidades no contexto das perdas corporais, e suas possíveis reparações, no câncer de mama?
A apresentação da reconstrução mamária
Embora socialmente haja vantagens na decisão de se reconstruir uma mama que foi retirada no ensejo do câncer de mama, algumas mulheres podem não ter a compreensão do que se trata esse processo em um primeiro momento. Também é importante delimitar que, do lado mais vanguardista, de classe média alta, é possível a valorização da aparência “natural”. No caso, cicatrizes de mastectomia podem ser “sexy” e a calvície, algo para se comemorar (Ehrenreich, 2001EHRENREICH, B. Welcome to cancerland. Harper’s Magazine, Nova York, nov. 2001. Disponível em: Disponível em: https://harpers.org/archive/2001/11/welcome-to-cancerland/ . Acesso em: 22 jul. 2024.
https://harpers.org/archive/2001/11/welc... ). Comparando-se com um prédio que, para ser demolido, bastam alguns segundos de uma explosão com dinamites bem posicionadas, qualquer pessoa é capaz de compreender que construir um edifício é bem mais complexo do que implodir. Respeitadas as devidas comparações extremadas, o processo de reconstrução mamária envolve, em média, duas a três cirurgias, dependendo da técnica e do que é possível poupar do tórax da paciente. Na ausência da glândula mamária, imediatamente se imagina que uma prótese de silicone possa ocupar o seu lugar, em um mecanismo semelhante aos da cirurgia plástica estética para aumento das mamas. Porém, uma pele sem glândula mamária não é capaz de suportar uma prótese, exigindo, assim, o deslocamento da musculatura do peitoral ou do dorso - músculo grande dorsal - para exercer essa função. Outra técnica utilizada nos processos de reconstrução é a parte inferior do abdome, na qual pele e tecido gorduroso subcutâneo são deslocados para o tórax, simulando uma mama sem silicone, mas com enorme morbidade cirúrgica, já que também causa fragilidade da parede abdominal e necessidade da utilização de telas sintéticas para evitar hérnias na região inguinal.
Embora não seja o objetivo deste artigo descrever as inúmeras formas de se reconstruir uma mama retirada em virtude de câncer, resumir o quanto esse processo não é simples nos ajudará na condução do debate pelo qual, eventualmente, mulheres que não estão preparadas ou simplesmente não desejam tais intervenções, se lançam em uma jornada de cirurgias, consultas, exames e gastos físicos e financeiros para reparação corporal. A atenuação da mastectomia com a reconstrução mamária pode ser um resgate da autoestima por meio das técnicas cirúrgicas, porém também devemos observar o nível de desconforto que a cultura da beleza pode impor a uma mulher com a ausência da mama e, assim, buscar a reconstrução como uma reparação das suas percepções subjetivas.
Na literatura encontramos textos que debatem técnicas, vantagens e formas de se reparar fisicamente uma mulher que se sente mutilada pela mastectomia. Oferecer reconstrução mamária é entendido, pela comunidade médica, como uma conduta padrão de excelência no tratamento do câncer de mama, sendo respaldada, inclusive, pela Lei n 9.656, de 3 de junho de 1998, e pela Lei n. 9.797/1999, que dispõe que as mulheres que sofrerem mutilação total ou parcial de mama, decorrente de utilização de técnica de tratamento de câncer, têm direito à cirurgia plástica reconstrutiva, seja ela imediata, quando possível ou tardia, dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.
A cirurgia estética, ao reconstruir os seios, pode ser a resposta ao desejo de um novo nascimento, conforme observa Le Breton (2003LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.), que surge da possibilidade de dispensar um corpo mal-amado por alguém que se sente incompleto. Nesse sentido, essa cirurgia pode servir aos anseios de pessoas que não estão doentes, mas querem mudar sua aparência. Por outro lado, a cirurgia estética pode cumprir um papel social de construção do corpo (submetido ao design permanente da medicina), sob medida de torná-lo mais bem aparente (Le Breton, 2003LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.).
Uma mulher submetida à reconstrução mamária talvez não esteja completamente ciente de que a escolha por essa modalidade pode impactar na sua vida em outras esferas além da física. Embora definir “mulher com câncer de mama” seja uma tarefa extensa, nos cabe levar em conta o recorte social das mulheres afetadas pelas vulnerabilidades do mercado de trabalho, como as que não têm vínculo empregatício formal. Além disso, as mulheres atendidas pelo SUS precisam ultrapassar mais barreiras para ter acesso ao tratamento, o que pode acarretar doenças localmente mais avançadas e maior necessidade de tratamentos como a mastectomia. Ao iniciar o processo de reconstrução, uma mulher que já esteve ausente da sua vida social e laboral pelo tratamento do câncer de mama terá que passar por outros períodos de reclusão para novas reabilitações. Volkmer et al. (2019Volkmer, C.; Santos, E. K. A.; Erdmann, A. L. et al. Reconstrução mamária sob a ótica de mulheres submetidas à mastectomia: uma metaetnografia. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 28, 2019. DOI: 10.1590/1980-265X-TCE-2016-0442
https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-20... , p. 11), em sua Metaetnografia, referem “existir” uma ambivalência de sentimentos quanto às expectativas e resultados da reconstrução mamária e complexidade no processo de “dar a volta por cima”. Além disso, mulheres que tiveram a mama reconstruída com próteses disseram não saber o quão longo e desconfortável seria todo o processo.
O perfil da sobrevivente do câncer de mama é reduzido a uma população branca, heterossexual, de classe média e imagem fina com busto equilibrado (Carter, 2003CARTER, T. Body count: autobiographies by women living with breast cancer. Journal of Popular Culture, [s. l.], v. 36, n. 4, p. 653-668, 2003. DOI: 10.1111/1540-5931.00039
https://doi.org/10.1111/1540-5931.00039... ). Em outras palavras, é compreensível que o acesso às tecnologias médicas que resultarão na reconstrução atenderá às estruturas sociais que privilegiam o mesmo tipo de mulher. Esse acesso pode ser visto como um determinado senso estético, expressando um senso de distinção (Bourdieu, 2011BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2011.). Em outras palavras, uma reconstrução mamária pode ser vista como uma distinção de classe social, com determinadas condições de existência que a diferenciam de outra classe.
Entre as possíveis causas para acessar ou não novas cirurgias e tratamentos, uma mulher com câncer de mama tem que dispor de uma rede de apoio para se afastar do trabalho, cuidar dos filhos (o que não reafirma que esse cuidado deve ser exclusivamente materno) e da própria saúde. Chauí (2020CHAUÍ, M. O totalitarismo neoliberal. Anacronismo e Irrupción, Ciudad Autonoma de Buenos Aires, v. 10, n. 18, p. 307-328, 2020. DOI: 10.62174/aei.5434
https://doi.org/10.62174/aei.5434... ) descreve o abandono do bem-estar social com o avanço das políticas neoliberais e a precarização do trabalho do Brasil. A compreensão da fragilidade social de uma mulher com câncer de mama no contexto da reconstrução mamária, ou seja, não mais fisicamente doente, pode colaborar para a recusa do procedimento sem uma reflexão mais profunda sobre o tema.
A quem interessa a reconstrução?
A cirurgia de reconstrução de mama, assim como qualquer outro procedimento cirúrgico na parte externa do corpo, como é o caso da mama, estabelece uma nova relação de identificação com a área tratada. Mulheres que necessitam remover a mama completamente e desejam a reconstrução, seja ela imediata - durante o tratamento do câncer - ou tardia - após conviver com a ausência do órgão, são informadas pela equipe de saúde a respeito dos riscos e benefícios dessa decisão. Não se trata de direcionar o olhar para as cicatrizes da mastectomia como símbolos exclusivos de uma doença, posto que também significam área tratada, mas discutir as expectativas de uma reconstrução que pode ser apenas social caso a pessoa não consiga subjetivar a neomama. Embora se pretenda reduzir os danos estéticos por essas técnicas, é possível que as mulheres mantenham a percepção da ausência da mama e/ou tenham uma mama falsa. Este texto não pretende negar o benefício da reconstrução mamária para a autoestima de uma gama de mulheres que buscaram e conseguiram esse procedimento. Porém, diante de uma “neomama”, que, normalmente demanda mais de duas cirurgias para sua completa composição, algumas mulheres não alcançam esse objetivo e podem não se sentir reparadas mesmo com a cirurgia estética.
Compreendendo os diversos vetores sociais que permeiam as perdas corporais do câncer de mama e os desejos de reconstrução mamária, a quem serve a presença de uma prótese mamária nas tecnologias de controle de corpos? Como os mecanismos de alteridade podem interferir nos desejos de uma mulher por cirurgias reparadoras que são, por tantas vezes, mais mórbidas que o próprio tratamento do câncer? Perguntas aparentemente difíceis de serem respondidas de forma simples trazem as representações sociais e os aspectos socioculturais da reconstrução mamária para o nosso foco de discussão. Em outras palavras, como a dimensão sociocultural pode contribuir para a percepção da reconstrução mamária?
A cultura ocidental do último século nos mostra a mama feminina como símbolo de beleza, maternidade e vitalidade. No cenário de uma mastectomia, múltiplos discursos podem convergir a favor ou contra a reconstrução em um processo repleto de tensão e ambivalência. Uma mulher que aceita e deseja ser submetida a esse processo pode estar motivada pelas representações culturais de ter mamas e do que molda sua compreensão sobre elas dentro do seu contexto social. Dados os discursos culturais a respeito das mamas, se uma mulher escolhe ter reconstrução mamária ou não, a decisão pode não ser meramente pessoal, mas contextualizada. Mensagens que comunicam o que pode ser “normal”, feminino e saudável dialogariam com a consciência e inconsciência das decisões (Webb; Jacox; Temple-Oberle, 2018WEBB, C.; JACOX, N.; TEMPLE-OBERLE, C. The Making of breasts: navigating the symbolism of breasts in women facing cancer. Plastic Surgery, Oakville, v. 27, n. 1, p. 1-5, 2018. DOI: 10.1177/2292550318800500
https://doi.org/10.1177/2292550318800500... ).
Mas, o que seria considerado “normal” quando falamos de corpos que não mantêm o padrão convencionado, ou seja, duas mamas? Canguilhem (2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., p. 145) nos mostra que o que é patológico não seria a ausência de uma norma, mas “que não tolera nenhum desvio das condições na qual é válida, pois é incapaz de se tornar outra norma”. Nesse sentido, saúde deixa de ser limitada à ausência de doença e se torna algo difícil de estabelecer julgamentos. O autor coloca em perspectiva saúde e doença, normal e patológico, nos deixando confortáveis para também admitir que uma mulher sem mama possa estar saudável dentro dos limites que se encontra.
A cultura nos discursos promove noções de aparência do que é “aceitável”, “desejável” e “bonito”, mesmo quando uma pessoa não está mais doente. A partir desse ponto, Ucok (2007UCOK, O. The fashioned survivor: Institutionalized representations of women with breast cancer. Communication & Medicine, Berlim, v. 4, n. 1, p. 67-78, 2007. DOI: 10.1515/CAM.2007.008
https://doi.org/10.1515/CAM.2007.008... ) trouxe materiais visuais de mulheres com câncer de mama tratadas para debater as compreensões dos significados culturais da doença. Foram fornecidos modelos visuais para uma feminilidade renovada durante e após o tratamento do câncer com o objetivo de discutir as definições existentes de beleza, feminilidade e aparências de gênero. Com ênfase na normalização da mudança de aparência, descrita como “problemática”, as imagens funcionaram para restringir os significados das mulheres e as escolhas sobre seus corpos, além das maneiras pelas quais elas podem gerenciar sua aparência corporal.
As decisões de uma mulher diante das perdas corporais decorrentes do câncer de mama e a necessidade ou não de reconstrução mamária nos remetem ao debate de Le Breton (2007LE BRETON, D. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes , 2007., p. 12) sobre corpo: “um corpo que merece cada vez mais a atenção entusiasmada do domínio social”. Ao se aprofundar na compreensão da corporeidade como um fenômeno cultural e social, o autor avança no tema da sociologia do corpo e suas lógicas culturais propagadas. No cenário do câncer de mama e das decisões a respeito de a quem serviria uma reconstrução, posto que se afasta do conceito de corpo normal ou reparado, nos aproximamos do autor ao afirmarmos que designar um corpo (quando é possível) traduz de imediato um fato do imaginário social e podemos entender os tipos diversos de estruturas societárias.
A cultura ocidental, especialmente a brasileira, que é uma das que mais consome procedimentos estéticos, nos infere que as relações sociais possam ser mais excludentes para mulheres com corpos que não atendem à normatização de ter mamas. Quando Le Breton (2007LE BRETON, D. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes , 2007., p. 7) escreve que “o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída” e que “antes de qualquer coisa, a existência é corporal”, ele elabora o pensamento de que a existência só é possível quando temos um corpo.
Nesse sentido, a reconstrução mamária também pode cumprir um papel social. A cirurgia plástica pode restaurar eventuais perdas sociais causadas pela mastectomia, que altera a forma corporal e, possivelmente, para alguns provoca a redefinição do corpo feminino. Porém, aqui nos interessa debater o ponto em que, diante da cultura, uma mulher pode se sentir reparada exclusivamente se for submetida à reconstrução mamária. Quando Le Breton (2007LE BRETON, D. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes , 2007.) relaciona prática social, corpo e cultura, nos aproximamos das hipóteses construídas anteriormente: “no fundamento de qualquer prática social, como mediador privilegiado e pivô da presença humana, o corpo está no cruzamento de todas as instâncias da cultura, o ponto de atribuição por excelência do campo simbólico” (2007, p. 31).
Ampliando o debate sobre reparação e reconstrução do corpo, é necessário refletir como o discurso biomédico está profundamente ligado às relações de poder ao vincular a reconstrução mamária ao reestabelecimento do que se entenderia por “normal”. Por meio da criação de uma demanda social, cujos pressupostos de normalidade são corpos simétricos, surge a noção de reposição de algo que precisa faltar porque está doente. Esse discurso diminui o espaço para o debate do que é ser normal, reparado, ou do que é se sentir ou não incompleto. Trata-se de reduzir a um procedimento cirúrgico todo o processo saúde-doença dentro das subjetividades.
Analisar o câncer de mama, a mastectomia e a reconstrução mamária apenas no discurso biomédico reparador do físico pode reforçar as opressões culturais que impactam o corpo feminino e impor às mulheres uma subordinação tanto na esfera pública (laboral) quanto na privada (afetiva).
A compreensão do corpo ocorre por meio de uma relação de mercado, na qual se espera que ele corresponda aos imperativos de eficiência social, isto é, que seja parte da força produtiva (Le Breton, 2011LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.). O olhar biomédico busca a eficiência e produtividade do corpo, sendo ele um instrumento que perece ou não. Dessa forma, deve ser submetido à instrumentação médica para reparo. Esse contexto cria a compreensão da prevenção do sofrimento e da morte. O corpo deixa de ser somente um objeto físico que exerce suas funções e também passa a ser algo que carrega significado cultural.
Não há um juízo de valor sobre desejar ou não a reconstrução de uma mama no contexto do câncer. O debate acerca do que é ser normal, ou melhor, o não debate se é normal eventualmente não ter mama é o que se apresenta como uma lacuna dentro das subjetividades da doença.
Corporeidade no contexto das perdas corporais
A corporeidade, segundo Le Breton (2007LE BRETON, D. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes , 2007., p. 7), é vista como “fenômeno social e cultural, motivo simbólico, objeto de representação e imaginários”. Nesse sentido, o quotidiano, em várias instâncias, é mediado pela corporeidade, servindo de ancoragem para o que se vê, saboreia, sente, toca, sendo base de significações elaboradas pelas pessoas no mundo que as cerca.
Para debater as subjetividades da reconstrução mamária no câncer de mama, é necessário falar sobre o corpo. A mama, como estrutura, além de um órgão, evoca o diálogo subjetivo das alterações físicas trazidas pelo tratamento cirúrgico do câncer de mama. Esse debate deve ir além das questões biomédicas. Nessa sessão pretendemos discutir como a literatura a respeito da corporeidade pode colaborar na compreensão das modificações da autoimagem e da imagem social dessas mulheres.
Embora não seja dito de forma literal, a sociedade ocidental, em especial as latinas, compreende um protótipo de mulher de sucesso: mulher de pele clara, seios fartos, corpo curvilíneo, cabelos longos, sensual e com capacidade reprodutiva preservada. A normatização do corpo feminino já sofreu algumas variações ao longo dos últimos séculos.
Na Europa em franco crescimento econômico e industrialização ao final do século XVIII, coube às instituições, por meio da ciência e dos mecanismos punitivos, normatizar corpos. No caso da saúde, coube à medicina determinar o que é sanitarismo, a hospitalização do parto, o que é ou não atitude saudável e como as pessoas deveriam cuidar dos seus próprios corpos. Michel Foucault descreve essas tecnologias de controle como dispositivos (Foucault, 1987FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.). No caso do corpo feminino, o dispositivo de sexualidade é o que mais afeta e aproxima mulheres do sofrimento relacionado aos estigmas do câncer de mama.
Um corpo controlado para ser útil, docilizado e coerente com a produção econômica não pode ser mutilado, deformado ou adoecido. A compreensão da saúde como mecanismo de controle social atribui ao corpo feminino obrigações incompatíveis com as vulnerabilidades do humano. Sob o aspecto cultural, soma-se ainda a cobrança da manutenção da jovialidade, ausência de rugas e magreza permanente.
Ao nos afastarmos do conceito e olhar foucaultiano sobre o controle de corpos por um poder maior, no caso desta reflexão, propomos um debate mais aproximado das relações interpessoais, no qual os vetores de interferência entre os sujeitos vão ocorrer na interação, ou seja, na materialidade. O debate da materialidade é a chave que nos leva de Foucault para a literatura de Judith Butler: não há nada acima do subconsciente e da situação social. Dessa forma, nenhuma subjetividade acontece sem a materialidade da interação provocada pela interpelação (Butler, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.).
O estudo do corpo numa perspectiva butleriana pode ser delimitado no campo da alteridade. Quando uma pessoa olha para o outro e se observa em suas individualidades, é capaz de se reconhecer nessa interação. Só é possível saber quem somos quando observamos o outro, que é diferente de nós. Nesse espaço moram os estudos sobre ontologia que nos encaminhariam para a compreensão das frustrações com as modificações corporais pelo câncer de mama.
O pressuposto cultural de que uma mulher com câncer de mama é um sujeito debilitado, inativo e economicamente improdutível, pois está exclusivamente dedicada ao tratamento da sua enfermidade, colabora para o processo de ontologização (Prins; Meijer, 2022PRINS, B.; MEIJER, I. C. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 155-167, 2002. DOI: 10.1590/S0104-026X2002000100009
https://doi.org/10.1590/S0104-026X200200... ). Socialmente, ela será tratada como alguém que merece cuidado, menos capaz do cumprimento de metas e deveres e também alguém a quem o afeto pode ser relegado. Afinal, quem em tratamento de câncer vai pensar em saúde afetiva ou sexual? Esse encaixotamento do que se espera do comportamento da pessoa com câncer pode se expressar a partir das modificações corporais que são expostas com a doença e pelo tratamento. Ao lidar com uma mulher sem o volume mamário sob a roupa, a sociedade precipita sentimentos que ela deveria ter e a impede de possíveis escolhas e desejos.
Ao debater gênero, Butler (1999BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e a subversão da identidade. Nova York: Routledge , 1999.) se dedica a pensar o tema a partir de uma identidade que é pré-discursiva e anterior à relação social. No ambiente da oncologia mamária, esse contexto também é afetado quando não se reconhecem atributos femininos na mulher mastectomizada. Não cabe dizer que se trata de uma afetação de gênero, mas de uma afetação corporal, a da inteligibilidade, que evocará os pressupostos de como deveríamos dialogar com uma pessoa doente.
A inteligibilidade de corpos, na ótica butleriana, é a coadunação de gênero, sexo biológico e desejo (Butler, 1993BUTLER, J. Bodies that matter. Nova York: Routledge, 1993.). Um corpo que dialoga com “coerência” dentro desses limites é socialmente compreendido como um corpo dentro da normalidade e que merece afeto. Ao debater inteligibilidade em gênero, a autora quer se aproximar especialmente da população transexual, mais especificamente do sentimento de abjeção que esse segmento recebe.
A inteligibilidade corporal da mulher com câncer de mama pode ser quebrada quando ela deixa de apresentar características que a identificam socialmente como uma “mulher normal”. Uma mulher, normalmente, declara que os atributos físicos que a caracterizam como um sujeito feminino não são necessariamente genitais, mas as mamas, cabelos, sobrancelhas e atitude corporal. É nesse ponto que a mulher com seu corpo modificado pela doença pode sentir necessidade de alguma forma de reconstrução mamária, atendendo, assim, aos pressupostos sociais do “corpo reparado”. Esse cenário social pode nos remeter a uma forma de adaptação do corpo. Algumas mulheres recorrem às reconstruções mamárias e outras optam por relações diferentes, socialmente inteligíveis ou não, com seus corpos. As relações sociais por meio do corpo não dependerão necessariamente da reconstrução, mas devemos considerar que algumas mulheres, diante da ausência da mama, podem se sentir reparadas pela cirurgia.
Le Breton (2003LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.) também reflete sobre as relações pessoais e sociais com os corpos. O autor propõe um trinômio corpo-sujeito-sociedade, no qual as práticas especialmente científicas vão afetar esse equilíbrio. Exemplos como tatuagens, cirurgias plásticas estéticas e modificação cirúrgica de gênero descolam o diálogo secular entre corpo e alma para o formato corpo e indivíduo. A liberdade e maior facilidade de manipular a forma corporal são traduzidas como alter ego do sujeito, que está para atender suas vontades.
Deslocado dos desejos de modificação, ou adequação corporal, o pensamento de Le Breton surge como ponto de partida para compreender parte das frustrações da mulher que tem sua aparência feminina afetada pela mastectomia no tratamento do câncer de mama. No tempo moderno e ocidental discutido por ele pode não caber o retrocesso das perdas corporais no reconhecimento do sujeito que está inserido socialmente. Não parecem ser apenas necessárias a interação e a interpelação dos pensamentos de Butler, mas uma relação pessoal que também será exposta socialmente. O corpo alterado gera conflito no indivíduo e, por consequência, perturbação das relações sociais.
Considerações finais
O corpo feminino é um corpo historicamente marcado pela vigilância, observação, medicalização e punição social. Observar que o Brasil é o segundo colocado mundial no consumo de cirurgias plásticas estéticas (Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica, 2023SOCIEDADE INTERNACIONAL DE CIRURGIA PLÁSTICA E ESTÉTICA. A mais recente pesquisa global da ISAPS demonstra aumento significativo em cirurgias estéticas em todo o mundo. ISAPS, Mount Royal, 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.isaps.org/media/hdmi0del/2021-global-survey-press-release-portuguese-latam.pdf . Acesso em: 22 jul. 2024.
https://www.isaps.org/media/hdmi0del/202... ), perdendo apenas para os Estados Unidos, abre uma oportunidade de debate a respeito de como uma mulher é socialmente vista. Quando esse grupo de mulheres é atravessado pelas alterações corporais do câncer de mama, podemos inferir uma maior dificuldade de compreensão das possíveis perspectivas do que é, ou deveria ser, normal para cada indivíduo.
Ao elevarmos o debate sobre corporeidade e câncer de mama para o discurso médico, citamos, em outra obra, Marilena Chauí (2014CHAUÍ, M. A ideologia da competência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2014.), que discute o mito da “ideologia da competência”. Em seu livro de nome homônimo, a autora problematiza o uso da competência em detrimento da exploração econômica, dominação política e exclusão cultural de uma parte da sociedade por outra. No exemplo do nosso debate, afirmar que qualquer mulher possa se beneficiar da reconstrução mamária como atalho para a completude, nos parece desprezar o que é ser completo. Utilizar o discurso médico para generalizar perdas, dores ou formas corporais pode não ser uma forma de acolher integralmente.
Ao problematizarmos como os princípios da alteridade, por meio da interpelação, criam sujeitos ontologizados pelas modificações corporais do câncer de mama, permitimos que alguma mulher escolha o questionamento do que é o corpo satisfatório, na esfera pública ou não, para seguir a própria vida. A interface dos estudos sobre gênero e inteligibilidade de corpos, embora não contextualizada no câncer de mama em sua origem, possibilita a análise dos corpos diferentes, não mais adoecidos, como matéria que ainda precisa de correção para não ficar à margem social. Corpos que precisariam ser reparados para adequação e sensação de normalidade. O vetor que traz a demanda, externa ao desejo pessoal, sugerindo que alguém precisa de reparo, foi teorizado em formas e momentos distintos: Focault, pelos dispositivos de controle e sexualidade; Butler, pela interpelação e construção do discurso; e Le Breton, por meio das análises sociais da corporeidade.
Escolher reconstruir a mama tange subjetividades que atingem a intimidade da pessoa, porém dialogam com as demandas da cultura e da sociedade, que pode não estar confortável com as decisões individuais. Os mecanismos de alteridade que podem afetar o poder de decisão de uma mulher sem a mama a respeito de seu próprio corpo devem ser considerados, tendo em vista o fato de que todo indivíduo está relativizado dentro da sociedade, da cultura e de seus desejos pessoais. Assim, mantemos o debate sobre corpo e cultura mais ampliado, sobretudo para mulheres que desejam a reconstrução, sem negar que seja possível seguir confortável apenas com as cicatrizes da mastectomia.
Referências
- ARCHANGELO, S. C. V.; SABINO NETO, M.; VEIGA, D. F. et al. Sexuality, depression, and body image after breast reconstruction. Clinics, São Paulo, v. 74, e883, 2017. DOI: https://doi.org/10.6061/clinics/2019/e883
» https://doi.org/10.6061/clinics/2019/e883 - BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2011.
- BUTLER, J. Bodies that matter. Nova York: Routledge, 1993.
- BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e a subversão da identidade. Nova York: Routledge , 1999.
- BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
- PRINS, B.; MEIJER, I. C. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 155-167, 2002. DOI: 10.1590/S0104-026X2002000100009
» https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100009 - CARTER, T. Body count: autobiographies by women living with breast cancer. Journal of Popular Culture, [s. l.], v. 36, n. 4, p. 653-668, 2003. DOI: 10.1111/1540-5931.00039
» https://doi.org/10.1111/1540-5931.00039 - CHAUÍ, M. A ideologia da competência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2014.
- CHAUÍ, M. O totalitarismo neoliberal. Anacronismo e Irrupción, Ciudad Autonoma de Buenos Aires, v. 10, n. 18, p. 307-328, 2020. DOI: 10.62174/aei.5434
» https://doi.org/10.62174/aei.5434 - DÉTREZ, C. Santas ou feiticeiras: a construção social do corpo feminino. Tradução Tania Navarro Swain. Labrys: Estudos Feministas. Brasília, DF: EdUnB, n. 4, 2003.
- EDMONDS, A. Pretty Modern: beauty, sex, and plastic surgery in Brazil. Durham: Duke University Press, 2010.
- EHRENREICH, B. Welcome to cancerland. Harper’s Magazine, Nova York, nov. 2001. Disponível em: Disponível em: https://harpers.org/archive/2001/11/welcome-to-cancerland/ Acesso em: 22 jul. 2024.
» https://harpers.org/archive/2001/11/welcome-to-cancerland/ - FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
- FARNSWORTH L. Rejecting Stigma - embracing ‘living flat’: motivations for resisting breast reconstruction and prosthetic breasts after mastectomy. Tese (Mestrado em Ciências Sociais) - Departamento de Sociologia e Antropologia, Concordia University, Montreal,, 2019.
- CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
- GOFFMAN E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. São Paulo: LTC, 1981.
- GONÇALVES, S. R. O. S.; ARRAIS, F. M. A.; FERNANDES, A. F. C. As implicações da mastectomia no cotidiano de um grupo de mulheres. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste, [s. l.], v. 8, n. 2, p. 9-17, 2007.
- INCA - Instituto Nacional do Câncer (INCA). Dados e números sobre câncer de mama: Relatório anual. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde (MS), 2022.
- LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.
- LE BRETON, D. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes , 2007.
- LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
- MATTHEWS, H.; CARROLL, N.; RENSHAW, D. et al. Predictors of satisfaction and quality of life following post - mastectomy breast reconstruction. Psychooncology, Chichester, v. 26, n. 11, p. 1860-1865, 2017. DOI: 10.1002/pon.4397
» https://doi.org/10.1002/pon.4397 - PEREIRA, G. B.; GOMES, A. M. S. M.; OLIVEIRA, R. R. Impacto do tratamento do câncer de mama na autoimagem e nos relacionamentos afetivos de mulheres mastectomizadas. Life Style, [s. l.], v. 4, n. 1, p. 99-119, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/327950263_IMPACTO_DO_TRATAMENTO_DO_CANCER_DE_MAMA_NA_AUTOIMAGEM_E_NOS_RELACIONAMENTOS_AFETIVOS_DE_MULHERES_MASTECTOMIZADAS Acesso em: 5 fev. 2023.
» https://www.researchgate.net/publication/327950263_IMPACTO_DO_TRATAMENTO_DO_CANCER_DE_MAMA_NA_AUTOIMAGEM_E_NOS_RELACIONAMENTOS_AFETIVOS_DE_MULHERES_MASTECTOMIZADAS - PITTERMANN A.; RADTKE C. Psychological aspects of breast reconstruction after breast cancer. Breast Care, Basel, v. 14, n. 5, p. 298-301. DOI:10.1159/000503024, 2019.
» https://doi.org/10.1159/000503024 - SANTOS, C. B. O.; SIVIERO, I. M. P. S.; PIETRAFESA, G. A. B. A sexualidade da mulher acometida com o câncer de mama. Revista Interdisciplinar em Ciências da Saúde e Biológicas, Santo Ângelo, v. 4, n. 2, p. 15-25, 2020. DOI: 10.31512/ricsb.v4i2.97
» https://doi.org/10.31512/ricsb.v4i2.97 - SOCIEDADE INTERNACIONAL DE CIRURGIA PLÁSTICA E ESTÉTICA. A mais recente pesquisa global da ISAPS demonstra aumento significativo em cirurgias estéticas em todo o mundo. ISAPS, Mount Royal, 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.isaps.org/media/hdmi0del/2021-global-survey-press-release-portuguese-latam.pdf Acesso em: 22 jul. 2024.
» https://www.isaps.org/media/hdmi0del/2021-global-survey-press-release-portuguese-latam.pdf - TOBAR, F.; YALOUR, M. R. Como fazer teses em saúde pública: conselhos e ideias para formular projetos e redigir teses e informes de pesquisas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002.
- UCOK, O. The fashioned survivor: Institutionalized representations of women with breast cancer. Communication & Medicine, Berlim, v. 4, n. 1, p. 67-78, 2007. DOI: 10.1515/CAM.2007.008
» https://doi.org/10.1515/CAM.2007.008 - Volkmer, C.; Santos, E. K. A.; Erdmann, A. L. et al. Reconstrução mamária sob a ótica de mulheres submetidas à mastectomia: uma metaetnografia. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 28, 2019. DOI: 10.1590/1980-265X-TCE-2016-0442
» https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2016-0442 - WEBB, C.; JACOX, N.; TEMPLE-OBERLE, C. The Making of breasts: navigating the symbolism of breasts in women facing cancer. Plastic Surgery, Oakville, v. 27, n. 1, p. 1-5, 2018. DOI: 10.1177/2292550318800500
» https://doi.org/10.1177/2292550318800500
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
27 Set 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
04 Jan 2024 - Revisado
29 Fev 2024 - Aceito
09 Abr 2024