Resumo
O acesso aos serviços de saúde é bandeira de luta dos movimentos sociais, e compõe o fluxo pela busca de cuidados na rede de urgência e emergência (UE). O objetivo deste artigo é analisar esse acesso no município de Boa Vista do Ramos e elaborar reflexões sobre o fluxo de usuários ribeirinhos em situação de UE. Trata-se de um estudo descritivo baseado em dados qualitativos, no qual o espaço foi incorporado à análise. As etapas consistiram em: levantamento de informações sobre a localização geográfica de lugares de interesse; entrevistas com os atores locais; organização e análise dos dados secundários e primários; e geração de mapas temáticos. A remoção dos pacientes em situação de UE em território boavistense não segue um padrão fixo, ou sequer similar. A fixação de equipes ribeirinhas completas e a sua permanência ininterrupta em área vem consolidando essas localidades como pontos de atenção à saúde. A seca e a cheia dos rios determinam caminhos, aproximando ou distanciando espacialmente. Frente à complexidade do cenário de vida, as decisões dos itinerários de cuidado estão atreladas às experiências prévias com o sistema de saúde local. O fluxo dos usuários diz muito sobre a imprevisibilidade das escolhas e das opções cotidianas.
Palavras-chave:
Acesso aos Serviços de Saúde; Região Amazônica; População Rural; Mapeamento Geográfico
Introdução
O acesso universal aos serviços de saúde, além de ser uma garantia constitucional, é bandeira de luta dos movimentos sociais e se constituiu como um dos direitos fundamentais de cidadania (Jesus; Assis, 2010JESUS, W. L. A; ASSIS, M. M. A. Revisão sistemática sobre o conceito de acesso nos serviços de saúde: contribuições do planejamento. Ciência e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 161-170, 2010. https://doi.org/10.1590/S1413-81232010000100022
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201000... ). Na composição deste estudo, o fluxo é indissociável do acesso e representa a busca de atendimento no setor formal da saúde, bem como a trajetória percorrida pelo usuário e o responsável pelo paciente em busca de cuidado e resolutividade na Rede de Urgência e Emergência (RUE). Aqui concordamos com Oliveira, Mattos e Auta (2009OLIVEIRA, L. H; MATTOS, R. A; AUTA, I. S. Cidadãos peregrinos: os “usuários” do SUS e os significados de sua demanda a prontos-socorros e hospitais no contexto de um processo de reorientação do modelo assistencial. Ciência e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 14, n. 5, p. 1929-1938, 2009. https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000500035
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200900... ) que o usuário é um sujeito ativo na defesa de seus interesses, e que, apesar de demonstrar conhecimento das normas do sistema de saúde pautadas na lógica territorial, na hierarquização e no conceito de porta de entrada pela atenção básica, ele procura outros aspectos da realidade em sua busca por assistência que lhe proporcionem melhor possibilidade de acesso.
Nessa busca, ele apreende a sua experiência histórica frente aos serviços de saúde ofertados, com todas as suas normas e regras, e dependendo da sua necessidade de acesso, reinterpreta as normas e busca os caminhos que proporcionem experiências de cuidado condizentes com as suas demandas.
O reconhecimento do território é um passo básico para a caracterização da população e dos seus problemas de saúde, bem como para a avaliação do impacto dos serviços sobre os níveis de saúde dela (Monken; Barcellos, 2005MONKEN, M.; BARCELLOS, C. Vigilância em saúde e território utilizado: possibilidades teóricas e metodológicas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, p. 898-906, 2005. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000300024
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500... ). No contexto da região amazônica, o território de interesse deste estudo é o líquido, que aqui evidencia o lugar de vida ribeirinho e onde o processo saúde-doença-cuidado se expressa. Esse território vai além dos cursos d’água e possui variações mais acentuadas na geografia espacial e humana, com combinações de concentração/dispersão populacional muito amplas e condições de distância e acesso muito adversas (Schweickardt; Lima; Ferla, 2021SCHWEICKARDT, J. C; LIMA, R. T. S; FERLA, A. A. O programa Mais Médicos no território amazônico: acesso e qualidade na atenção básica, travessias de fronteiras e o direito à saúde das gentes. In: SCHWEICKARDT, J. C; LIMA, R. T. S; FERLA, A. A (Org.). Mais Médicos na Amazônia: efeitos no território líquido e suas gentes. ed. Porto Alegre: Rede Unida, 2021. p. 40-52.), provocando desafios de gestão, pesquisa, ensino-aprendizagem e, sobretudo, de equidade para com essas populações.
Estudos sobre acesso e fluxos populacionais no setor de saúde (com inúmeras metodologias) tem sido cada vez mais comuns (Pacheco; Silva; Ramos, 2017PACHECO, A. M; SILVA, R. D. M; RAMOS, M. C. Organização do fluxo de atendimento aos usuários abusivos ou dependentes de álcool e outras drogas. Revista Brasileira de Pesquisa em Saúde, Vitória, v. 19, n. 1, p. 21-27, 2017. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufes.br/rbps/article/view/17712 . Acesso em: 12 jun. 2024.
https://periodicos.ufes.br/rbps/article/... ; Galvani et al., 2021GALVANI, F. B. et al. Fluxo de rede do paciente oncológico no município de Patos de Minas. Brazilian Journal of Health Review, Curitiba, v. 4, n. 3, p. 13389-13395, 2021. https://doi.org/10.34119/bjhrv4n3-287
https://doi.org/10.34119/bjhrv4n3-287... ; Antonacci et al., 2013ANTONACCI, M. H. et al. Estrutura e fluxo da rede de saúde como possibilidade de mudança nos serviços de atenção psicossocial. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 47, n. 4, p. 891-898, 2013. https://doi.org/10.1590/S0080-623420130000400017
https://doi.org/10.1590/S0080-6234201300... ; Roese, 2005ROESE, A. Fluxos e acesso dos usuários a serviços de saúde de média complexidade no município de Camaquã, RS. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.; Freire, 2021FREIRE, K. M. R. Mapeamento de fluxo dos casos de dengue nos estabelecimentos de saúde no Distrito Federal. 2021. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2021.), com forte concentração em áreas urbanas metropolitanas. Fluxos em redes de saúde como componente de gestão também são encontrados na literatura (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Manual instrutivo da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2013.; 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Implantação das Redes de Atenção à Saúde e outras estratégias da SAS. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2014.; 2015BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS - Volume 5: Saúde Mental. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2015.; 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 3, de 28 de setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as redes do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 set. 2017.) como indutores para estados e municípios. No entanto, há uma escassez de estudos que envolvam a população ribeirinha (Queiroz et al., 2018QUEIROZ, M. K. S. et al. Fluxos assistenciais e a integralidade da assistência à saúde de ribeirinhos. Revista Enfermagem UERJ, Rio de Janeiro, v. 26, e26706, 2018. https://doi.org/10.12957/reuerj
https://doi.org/10.12957/reuerj... ; Reis, 2021REIS, A. E. S. Acesso e fluxos da população ribeirinha aos serviços de saúde no município de Parintins-AM: uma abordagem participativa. 2021. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Instituto Leônidas e Maria Deane, Manaus, 2021.).
Diante do exposto, este artigo visa analisar o acesso aos serviços de saúde no município de Boa Vista do Ramos (BVR), no Amazonas, e elaborar reflexões sobre o fluxo de usuários ribeirinhos em situação de urgência e emergência.
Metodologia
Este é um estudo de natureza descritiva, desenvolvido com base em dados qualitativos. O espaço foi incorporado à análise, precedido de uma fase exploratória, com apresentação visual dos dados sob forma de gráficos, tabelas e mapas cartográficos.
As etapas do estudo foram compostas por: (1) Levantamento de informações sobre a localização geográfica das comunidades, as internações e remoções de pacientes no hospital geral, as unidades básicas de saúde, as comunidades e a secretaria municipal de saúde do município de Boa Vista do Ramos; (2) Entrevistas com os atores locais de interesse deste estudo; (3) Organização e análise das bases de dados secundários (tabelas e gráficos) e primários (fala dos atores locais); e (4) Geração de mapas temáticos (representação da área de estudo e dos fluxos de remoção dos pacientes).
A pesquisa qualitativa entra como opção metodológica, em especial com a cartografia, possibilitando inúmeras formas de narrar. A compilação fotográfica, o diário de campo, a observação participante e as conversas com atores locais compuseram a primeira aproximação com o campo de estudo. Esta etapa colaborou na delimitação da base territorial do estudo, sendo considerados como fatores de escolha: o reconhecimento indissociável do território como a interação de objetos e ações; a demarcação do território de atuação de saúde, por serem de atuação das equipes - falas de gestores, dos profissionais de saúde e usuários; e as delimitações utilizadas que são estabelecidas e reconhecidas pela população local.
As entrevistas ajudaram a sedimentar a etapa anterior, também qualitativa, através de um roteiro semiestruturado “aplicado” em vários cenários de interesse do estudo. As entrevistas narrativas atendem ao desejo de “contar a história sobre algum acontecimento importante da vida e do contexto social”, sendo considerada uma forma de entrevista não estruturada e de profundidade (Jovchelovitch; Bauer, 2008JOVCHELOVITCH, S; BAUER, M.W. Entrevista narrativa. In: Bauer, M. W.; Gaskell, G. (Ed.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petropolis: Vozes, 2008. p. 90-113.), cuja análise buscou evidenciar os significados que orientaram escolhas, fluxos e caminhos no decorrer das situações de urgência e emergência.
As questões abertas referentes a essas situações foram aplicadas nas entrevistas em diferentes grupos de atores locais, como os exemplos:
Usuários
Como é realizado o encaminhamento para o hospital do município? Alguém da equipe da Saúde da Família acompanha os usuários no transporte ou para dar entrada no hospital?
Trabalhadores da saúde
Relatar como as pessoas acessam a Rede de Urgência e Emergência no município. Como os pacientes chegam até o hospital do município?
Gestores
Como está estruturada a Rede de Urgência e Emergência no município? Como funciona a entrada dos pacientes no hospital? Como acontece a entrada dos pacientes da área ribeirinha do município?
Os depoimentos dos atores locais foram gravados e transcritos na íntegra, e as anotações oriundas da observação foram devidamente categorizadas e ordenadas por temas priorizados nesta pesquisa. Essa escolha, após aproximações, viabilizou a análise e apreensão dos sentidos atribuídos à RUE, ao seu acesso e ao contexto amazônico envolvente. A fim de resguardar o anonimato dos entrevistados, cada um recebeu um código, registrado com as iniciais e pela categoria pertencente. Também foram considerados a entonação de voz e os silêncios entre as falas, bem como a ênfase em palavras ou expressões (Gomes et al., 2005GOMES, R. et al. Organização, processamento, análise e interpretação de dados: o desafio da triangulação. In: MINAYO, M. C. S; ASSIS, S. G; SOUZA, E. R. (Org.). Avaliação por triangulação de métodos: Abordagem de Programas Sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. p. 185-221.). Tais procedimentos foram utilizados para revelar o funcionamento das ações do programa, as incongruências entre o que era falado e o que era praticado nas rotinas das unidades de saúde, o entendimento dos sujeitos sobre esse contexto e as relações sociais nele travadas (Minayo, 2004MINAYO, M. C. S. Fase de Trabalho de Campo. In: MINAYO, M. C. S. O Desafio do Conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Saúde. 8a. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 105-196.).
A coleta e organização dos dados secundários foi realizada de forma colaborativa por pesquisadores e funcionários da Unidade Hospitalar de Boa Vista do Ramos- Clóvis Negreiro. Os funcionários envolvidos atuam diretamente no processo de remoção de pacientes para outros municípios. Para tal, foi idealizado conjuntamente um banco de dados de remoções de pacientes atendidos/internados no hospital no período de junho de 2017 até dezembro de 2019. A escolha do período de captação de dados se deu por sugestão dos colaboradores do hospital, considerando uma mudança de gestão municipal e hospitalar; além do aprimoramento da organização dos dados pelo setor responsável das remoções. Os dados foram tabulados e analisados no programa Microsoft Office Excel 365.
Para a elaboração dos mapa temáticos, foram coletadas coordenadas geográficas das comunidades das calhas do Rio Curuçá e Paraná do Ramos utilizando um receptor do Sistema de Posicionamento Global (GPS); em seguida, foi elaborada a organização do banco de dados geográfico de remoções de BVR para outros municípios em situação de urgência e emergência, com enfoque na intervenção manual, para ajustes de coordenadas e retirada de registros com incompletudes e inconsistências. Finalmente, realizou-se a distribuição espacial das comunidades e municípios de interesse do estudo. A ferramenta para a produção de mapas foi o programa livre e de código aberto QGIS, versão 3.20.3. Foram elaborados mapas de fluxos de remoção dos pacientes, que demonstram o percurso realizado pelos usuários em busca de cuidado em saúde pela rede formal e se baseando nos padrões de origem-destino deles.
Quanto aos aspectos éticos e legais, este estudo está respaldado pela aprovação em Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob o registro CAAE 99460918.3.0000.520.
Resultados e discussão
A remoção de pacientes em situação de urgência e emergência em território boavistense, representada no mapa (Figura 1), marcadamente não segue um padrão fixo ou sequer similar no decorrer do período analisado. No ano de 2018, mesmo com o incremento das remoções, o fluxo para a sede municipal teve um leque menor de deslocamentos nas regionais. Há fatores elencados nas entrevistas e na observação participante que permitem problematizar os achados das remoções intramunicipais em BVR.
A entrada de usuários na unidade hospitalar pode ser por livre demanda ou por encaminhamento. O deslocamento do usuário em situação de urgência e emergência das comunidades ribeirinhas pode se dar por iniciativa própria, sem nenhum membro da equipe de saúde, ou pode ser acompanhado por membros da equipe de saúde ribeirinha, com o respectivo encaminhamento e cuidados iniciais possíveis para a situação que desencadeou a transferência. Para o primeiro caso, há uma forte tendência que o usuário ou o responsável pelo paciente informem como endereço de origem a sede municipal, por terem laços de parentesco na cidade ou por buscarem agilidade no atendimento. Ao serem indagados sobre a entrada no hospital, todos se identificaram como sendo da comunidade de origem. Apesar de não conseguirmos mensurar com fidedignidade os dados de entrada no hospital, essa prática pode estar sendo reproduzida em BVR.
No ano de 2018 e início de 2019, foram inauguradas duas Unidades Básicas de Saúde Ribeirinhas em duas regiões, no Curuçá e no Lago Preto. A fixação de equipes ribeirinhas completas e a sua permanência ininterrupta em área vêm consolidando mais e mais essas localidades como pontos de atenção à saúde na busca de cuidado pela população. O reconhecimento dos entrevistados quanto à melhoria do acesso aos serviços de saúde locais é observado em algumas entrevistas:
Assim, quando não tinha o posto de saúde ali no Santo Antônio eles procuravam sim, muito Itacoatiara e Urucurituba, depois que o posto foi inaugurado e que funcionou realmente a gente só leva pra lá, é muito difícil agora ter um caso que eles levam para Itacoatiara (A04).
Tem, tem ajudado bastante melhorou essa parte aí, se alguém precisar ajeitar os dentes vai lá e ajeita, precisa fazer uma consulta vai lá e tem enfermeiro, médico, essa parte melhorou muito (L01).
A consolidação de estratégias de fixação de profissionais de saúde em território ribeirinho vem, paulatinamente, redirecionando o fluxo de usuários para uma clara vinculação à equipe de saúde local. A atuação das equipes ribeirinhas é fundamental para a melhoria na qualidade dos serviços de saúde disponibilizados (Santos et al., 2021SANTOS, I. O. et al. Avanços e desafios na saúde das populações ribeirinhas na região amazônica: uma revisão integrativa. Revista APS, Juiz de Fora, v. 24, Supl, 1, p. 185-199, 2021.) incluindo o cuidado em urgência e emergência.
Ainda na Figura 1, se constatam fluxos contínuos de usuários moradores de comunidades pertencentes ao município de Barreirinha. Além do mapa, a fala da gestão, quando indagada sobre o fluxo de outros municípios para a rede de saúde de BVR, esclarece:
Às vezes Barreirinha (BAE), a gente recebe…porque nós temos uma Comunidade muito próximo daqui que é Cametá (G01).
Nós recebemos de Barreirinha né, e…. é, porque é assim fica mais próximo do atendimento a eles do que o próprio município sede deles, então tem muitas vilas aí que se encontram na estrada de Boa Vista, então para eles facilitam muito mais vir para cá, do que ir até Barreirinha (G03).
Outra reflexão oriunda da fala dos usuários, um “contrafluxo” à reflexão anterior, refere-se ao deslocamento próprio de usuários ribeirinhos de BVR para outros municípios em busca de cuidado, principalmente dos moradores das comunidades localizadas na cabeceira dos rios. Fluxos que não são contabilizados como dados de remoção oficiais ocorrem em determinadas épocas do ano (principalmente na cheia dos rios), com ou sem a participação do Agente Comunitário de Saúde.
[…] e da outra que também teve aí um problema, mas o filho dela foi doença que deu nele, aí levei ela pro posto, daí ela voltou, aí ela, mas foi por conta dela, quis ir pra Maués, aí de Maués o filho dela morreu em viagem. Eu queria levar pra Boa Vista, só que ela queria levar pra Maués, eu não trabalho pra Maués, trabalho pra Boa Vista, aí perdeu o filho dela, morreu. É, Maués é perto daqui na época da cheia, agora tá longe, mas na época da cheia é perto, mais perto que Boa Vista, vai atalhando por aqui pelos furos também (A02).
Olha, é no caso eu, um belo dia tenho um problema de hérnia de próstata, sou operado ne…o meu socorro pra aqui, pra Uricurituba, no caso eu fui pra lá pedir socorro, pois eu achava que era mais perto, é só que no caso eu sangrei quase que o sangue todo…aí eu tive que ir pra Manaus (U01)
[…] porque antes era feita pra lá Urucurituba, Maués por ser mais próximo pra eles porque se você vai no Arrozal você entra pra ali você já vai para Urucurituba, então pra eles a acessibilidade seria mais para Urucurituba e não Boa Vista, principalmente Betel (T02)
A condição de morador de uma comunidade, de certa vida social e cultural, faz parte do complexo jogo do cuidado. O contexto não é somente uma moldura dos determinantes sociais, mas forma o complexo cenário difícil de ser representado teoricamente porque é, antes de tudo, vivido (Heufemann; Lima; Schweickardt, 2016HEUFEMANN, N.E.C; LIMA, R.T.S; SCHWEICKARDT, J.C. A produção do cuidado em saúde num território amazônico: o ‘longe muito longe’ transformado pelas Redes Vivas. In: MERHY, E.E. et al. (Org.). Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis, 2016. p. 332-335.). O contexto de vida nessas falas marca as escolhas pelo cuidado e, por conseguinte, o fluxo da urgência e emergência. A seca e a cheia determinam caminhos, abrem ou fecham furos, aproximam ou distanciam espacialmente os pontos de atenção à saúde. Para além dessas escolhas, que também são financeiras, ficou evidente no campo de pesquisa que há laços familiares entre comunitários nos mais distintos municípios, o que também influencia na escolha do destino da remoção. Não há qualquer ajuda de custo que possibilite a garantia de hospedagem e/ou alimentação ao responsável pelo paciente, exceto quando dentro da própria unidade hospitalar e no período da internação.
Frente a toda complexidade do cenário de vida, as decisões dos itinerários de cuidado estão atreladas às experiências prévias com o sistema de saúde local e a própria “lida comunitária”, ao se depararem com situações de urgência e emergência. Nas palavras de Oliveira, Mattos e Auta (2009OLIVEIRA, L. H; MATTOS, R. A; AUTA, I. S. Cidadãos peregrinos: os “usuários” do SUS e os significados de sua demanda a prontos-socorros e hospitais no contexto de um processo de reorientação do modelo assistencial. Ciência e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 14, n. 5, p. 1929-1938, 2009. https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000500035
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200900... ):
Os usuários, no seu dia a dia, graças a uma monitoração reflexiva de suas experiências, estabelecem juízos de valor sobre os diversos serviços que se apresentam a eles no sistema de saúde, ou seja, o usuário faz, cotidianamente, uma avaliação dos serviços de saúde, que não é formal ou técnica, mas sim uma avaliação não percebida por ele no nível discursivo, embora o seja no nível de sua consciência prática (2009, p. 1932).
Essa avaliação informal, do cotidiano da vida, é o primeiro “furo no muro” dos cuidados em urgência e emergência, que não levam em conta as fronteiras traçadas nos mapas, os limites de jurisdições municipais e tampouco as divisões de um sistema de saúde fragmentado. A busca por cuidados ressignifica a fronteira para além de uma linha de separação, transformando-a em um espaço/lugar que se quer, acima de tudo, acolhedor e resolutivo. Claramente, os furos no muro vão surgindo porque há um distanciamento dos fluxos da RUE tradicional e dos idealizados pela gestão local da saúde, bem como de modelos de atenção à saúde centrados no fazer médico e nas tecnologias duras.
Modelos de atenção precisam considerar o território, as iniciativas das comunidades, o fazer do trabalhador da saúde e, principalmente, o usuário da rede de saúde. É indispensável, para se cumprir a promessa de um sistema único e organizado para a integralidade e humanização, que ele funcione como “malha de cuidado” ininterrupto à saúde, e não como um sistema burocrático e despersonalizado (Silva Junior; Alves, 2007SILVA JUNIOR, A. G.; ALVES, C. A. Modelos Assistenciais em Saúde: desafios e perspectivas. In: MOROSINI, M. V. G. C. (Org.). Modelos de atenção e a saúde da família. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007.). Além disso, em relação ao território vivo, não faz sentido manter dicotomia entre o território geográfico e as suas gentes, uma vez que ele se compõe pelas relações estabelecidas.
Como apontam os já esperados resultados a distribuição das origens das remoções tem forte centralidade em usuários provenientes da área urbana (85%) em relação a área rural (15%), o que pode ser melhor observado na Tabela 1. Das remoções rurais, 3,5% são provenientes de comunidades localizadas em outro município (Barreirinha).
Outro resultado foi a identificação das principais causas de remoções de BVR para outros municípios, como mostrado na Figura 2. Parintins (PIN) é o município de referência da Região de Saúde do Baixo Amazonas (Resaba) para acolhimento das situações de urgência e emergência que extrapolam os cuidados dos municípios da Regional. Dentre as cinco principais causas de remoção do período estudado, todas têm como ponto de atenção, saindo de BVR, o município de Parintins. Uma análise mais detalhada dos mapas revela que as principais razões para o fluxo em direção ao município de referência são as causas externas e as relacionadas à gravidez, ao parto e ao puerpério. A presença de médicos especializados em traumato-ortopedia, cirurgia geral e ginecologia/obstetrícia incrementa esse fluxo
PIN é o nosso polo, então, o paciente que precisa ser referenciado agente referência para PIN, só que nós temos um grande problema…porque se nós ligarmos pra PIN e dizer: olha, nós estamos encaminhando um recém-nascido assim, eles dizem que não tem leito, nunca tem leito, nunca tem especialista, nunca, nunca, nunca nunca…e às vezes que nós mandamos pra lá, a maioria dos casos vem sem resolução, então, embora Itacoatiara (ITC) não seja o nosso polo, o que que a gente faz? Quando o paciente está mais grave, nós sabemos que ele tem que ir pra Manaus e que nem Parintins vai resolver, o que que a gente faz? Os pacientes mais graves nós mandamos para ITC. Por quê? Porque nós sabemos que de lá, o transporte até Manaus é mais fácil, porque é terrestre, tem ambulância, então a gente acaba fazendo assim: paciente muito grave, ITC; paciente grave, PIN […] (G01)
Na fala da gestão municipal, se evidencia a colaboração de outro município de referência da Regional de Saúde do Médio Amazonas: Itacoatiara. Não há como desconsiderar o “poder de atração” da capital para as remoções, não só por conter a maior densidade (tecnologia dura) do estado, mas também por ser o único município a ter disponibilidade de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) na rede pública, oferecer uma gama importante de exames complementares laboratoriais e de imagem, e concentrar um espectro diversificado de médicos especialistas. Além disso, o acesso terrestre à capital partindo de Itacoatiara é fator determinante para o incremento do fluxo BVR-ITC, das escolhas das remoções e dos acordos entre os municípios. Ressalta-se que ao remover o usuário para o município referência da Resaba, o distanciamento da capital Manaus é maior e o acesso é hidroviário ou aéreo. Em trabalho que analisa a regionalização no Amazonas, há destaque para o que se tem como “pedra fundamental” da realidade da saúde no estado: comportar uma rede de serviços de saúde insuficiente e as dificuldades de fixação de recursos humanos, principalmente nos municípios de pequeno porte (Garnelo; Sousa; Silva, 2017GARNELO, L.; SOUSA, A. B. L; SILVA, C. O. Regionalização em Saúde no Amazonas: avanços e desafios. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, p. 1225-1234, 2017. https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.27082016
https://doi.org/10.1590/1413-81232017224... ).
O município de Itacoatiara, contrariando os acordos regionais, é a principal cidade de atração das remoções de BVR nas cinco principais causas (Figura 3) destacadas neste estudo. A gravidade (maior ou menor/urgência ou emergência) do usuário ativa dispositivos de escolha pela remoção do usuário: para qual município essa remoção será direcionada? Para além da gravidade, envolve articulações e decisões prévias, como a indicação médica e os contatos entre os hospitais da Regional (PIN) ou Extra Regional (ITC). Além disso, a gravidade do usuário determina qual profissional deverá realizar o acompanhamento na ambulancha: quando há maior gravidade, enfermeiro(a); quando a gravidade é menor, técnico(a) de enfermagem.
Remoção de pacientes do município de Boa Vista do Ramos para municípios de referência regional, 2017-2019
Os arranjos locais e (extra) regionais se alinham a um fluxo já estabelecido pelo próprio usuário em situação de sofrimento e extrapolam os acordos regionais locais. Além disso, demonstram as fragilidades das pactuações “do formal, das reuniões, das atas” e afloram os “acordos gestor-gestor, diretor-diretor” com centralidade nas necessidades clínicas do momento, buscando remover barreiras de acesso e driblar as iniquidades impostas não somente pela geografia local, mas pelas limitações dos sistemas de saúde da Resaba.
Os mapas demonstram que, para além de Parintins e Itacoatiara, Barreirinha (BAE) e Maués (MBZ) são, em menor escala, referência para BVR para algumas remoções. Ausentes nas falas iniciais dos gestores, essas sinalizam uma fragilidade comum em inúmeros hospitais de pequeno porte na Amazônia, que é a ausência de médicos. Quando se esgota o manejo hospitalar realizado por outro profissional de saúde, não médico, esses usuários, em sua grande maioria em situação de risco materno e fetal no trabalho de parto e em outras intercorrências na gestação, são removidos para MBZ ou BAE com médicos em suas unidades hospitalares e mais próximos do município de BVR. A fala a seguir ressalta um acordo adicional “extrarregional” e representa o segundo “furo do muro” das pactuações formais.
[…] realmente, é aquela situação…com relação a BAE e MBZ é mais uma questão só de apoio entendeu, porque as vezes o município de BVR acaba ficando sem médico dentro do hospital, mas é por questões de deslocamento/ausência/algum problema aí a gente precisa dessa parte, da atenção especializada, no caso do hospital e a gente acaba pedindo o apoio desses municípios pra fazer esse atendimento pra gente; não é uma remoção como a gente faz pra PIN ou ITC (G04)
O tempo de deslocamento é um fator crucial para as situações que envolvem a urgência e emergência; nas realidades rurais ribeirinhas, por sua vez, está atrelado aos períodos de seca e cheia dos rios, às intempéries climáticas, à potência do motor da embarcação, à aquisição de combustível e à presença ou não de equipes ribeirinhas fixas nas comunidades. Confluencia com aspectos marcantes na fala de um usuário da Comunidade do Guajará, que como Agente Comunitário de Saúde (ACS), acostumado a acompanhar os deslocamentos e fazer os primeiros cuidados locais, viu-se em uma situação de urgência e emergência.
[…] primeiro foi quando eu comecei a adoecer, quando puxaram a minha doença, que eu adoeci, saí daqui de casa tava “praiado”, tava só mesmo um canalzinho aqui….tudo praia, tudo praia, tudo terra isso aqui [apontando] …aí saímos de casa sete e meia da manhã, cheguemo na Cavado me pegaram, me botaram na carroça, me puxaram pro outro lado que eu não conseguia andar…eu dentro da carroça, quando dava aquele choque que eu gritava e gritava de tanta dor…eles paravam a carroça…aí cheguemo em Boa Vista parece que foi duas hora da tarde (CODINOME U03).
Deslocamentos penosos que envolvem percursos distintos (lago, rio e trilha na floresta) estampam a dramaticidade da urgência e emergência ribeirinha em tempos de seca das vias fluviais, agravados pela ausência de equipes de saúde como suporte em comunidades ribeirinhas. Um maior detalhamento da situação aflitiva ressalta outros aspectos da RUE local.
[…] era terça- feira, desde sábado…me levaram e internaram pra lá e fui lá pro hospital, o médico picava assim na minha barriga [fez gestos], só que ainda não tinha estorado a minha apendicite… ainda não….quando foi umas seis horas sete horas da tarde comecei a provocar [vomitar] aí ela estourou….aí passei terça a noite, quarta feira o dia todinho, quando foi 5 hora da tarde da quarta feira me transferiram pra Itacoatiara na lancha…cheguemo umas nove horas da noite em Itacoatiara, passei a noite em Itacoatiara no hospital aí quando foi no outro dia veio aquela crise, uma crise pra me matar já, aquela veio pra me matar já….aí fizeram a minha filha, me acompanhou, chamaram a enfermeira, ela ia lá e ela não conhecia, nunca tinha passado essas coisas no hospital…ahhh Lorena, vai chamando uma enfermeira que eu não aguento mais não, vem me acudir que eu não to aguentando de dor, vou morrer….então liga pra BVR e daqui eu não aguento mais e vou morrer mesmo….isso aqui queria estourar tudo, muita dor, foi nessa hora veio dois, nem sei o que que era, uma enfermeira ou médico, nem sei o que que era, vendo a minha situação lá, vou meter uma sonda…quando colocaram a sonda teve um alívio, me botaram na ambulância e me encaminharam pra Manaus, na mesma hora…cheguemo em Manaus era duas hora da tarde, quinta-feira, quatro hora da tarde me botaram pra fazer a cirurgia, me operaram, abriram a minha barriga [mostrou a incisão]…quando recobrei já estava lá no quinto andar do 28 [hospital de grande porte e referência em atendimento de urgência e emergência no Estado do Amazonas] (CODINOME U03).
Claramente, o deslocamento narrado evidencia a gravidade da situação vivida pelo usuário, além de esclarecer e corroborar com os achados encontrados na base de dados em depoimentos de gestores e nos mapas temáticos. As situações de maior gravidade clínica são transferidas para a cidade de Itacoatiara, e a rede de saúde de Manaus se configura como apoio e porta de entrada para as situações de urgência do estado. O sistema binário (deslocamento fluvial e aéreo) das relações entre Manaus e outros municípios institui um tipo de organização da assistência, no qual os residentes no interior do estado são obrigados a recorrer regularmente à metrópole em busca de cuidados, não havendo uma rede de interações sanitárias que se assemelhe àquilo que é preconizado para uma região de saúde (Garnelo; Sousa; Silva, 2017GARNELO, L.; SOUSA, A. B. L; SILVA, C. O. Regionalização em Saúde no Amazonas: avanços e desafios. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, p. 1225-1234, 2017. https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.27082016
https://doi.org/10.1590/1413-81232017224... ) e reforçando/aprofundando as fragilidades dos sistemas municipais de saúde que compõem o Amazonas. A sequência da narrativa demonstra outros pontos de atenção regional.
Aí passou, passou e quando ia completar 01 ano, faltava dois dia, tornou de novo, desse lado [apontou o local] a aparecer essa doença em mim….aí, pra BVR! Já não fazia coco, só vinha vômito, aí a alimentação vinha pra cima…passei em BVR 05 dia aí só que o médico só me dava remédio pra dor, pra vômito, pra purgar…mas me dava e eu não purgava…aí eu mandei ela pedir a minha alta pra mim ir pra Maués. Até ligar pro Dr Alexandre e lá não ia desistir não e de lá…isso vai melhorar, se sair daí vai sair mais pior….quando ele fez um documento pra eu assinar ne, ele foi lá comigo aí ele viu a minha situação….vou encaminhar ele pra Parintins….e tornaram a abrir a minha barriga de novo [falou e mostrou o corte]…duas operação na minha barriga, uma em Manaus, a primeira, e outra em Parintins (CODINOME U03).
As cidades de Maués e Parintins aparecem como pontos de apoio no relato, por interlocução do próprio usuário como protagonista do seu cuidado e na decisão do médico pela opção de transferência para o município de referência da Resaba.
O tempo e as distâncias na Amazônia são plurais. Não se definem pela lógica cronológica ou pela quilometragem. O tempo é medido em horas e/ou dias de viagem. Há um intenso dinamismo que se movimenta o tempo todo, assumindo outros sentidos e significados que não apenas o cronológico; o cuidado em saúde nesse território ribeirinho incorpora singularidades que não envolvem apenas os aspectos clínicos, coincidentes com a gramática biomédica do usuário (Martins et al., 2022MARTINS, F. M. et al. Produção de existências em ato na Amazônia: “território líquido” que se mostra à pesquisa como travessia de fronteiras. Interface, Botucatu, v. 26, e210361, 2022. https://doi.org/10.1590/interface.210361
https://doi.org/10.1590/interface.210361... ).
Considerações finais
Boa Vista do Ramos representa, fielmente, a realidade de boa parte dos municípios Amazônicos de pequeno porte, que têm nos rios as suas estradas, e com isso um componente ribeirinho importante e preponderante. Isso abre uma dimensão importante no processo de entendimento da espacialização na saúde e a sua contribuição como ferramenta complementar a processos avaliativos e de planejamento em saúde.
É inegável a importância do olhar estrangeiro e, sobretudo, a incorporação da fala dos envolvidos e implicados diretamente nas remoções de usuários em sofrimento agudo e do responsável pelo paciente; enriquecendo os dados secundários, o traçado dos mapas e a qualidade da escrita. O estranhamento analítico com o contexto, como um “terceiro” no processamento da própria experiência, é fundamental para quebrar a naturalização com que a desassistência ou a omissão das políticas públicas opera na análise da produção da saúde no território amazônico.
O fluxo de usuários de Barreirinha para Boa Vista do Ramos e, principalmente o “contrafluxo” desse último para Maués, Urucurituba e Itacoatiara representam o primeiro “furo no muro” do cuidado, que se pretende integral e equânime. O protagonismo comunitário e dos usuários é marcante nas falas e reforça que o cuidado em saúde na rede formal tem inúmeros aspectos, mas a sua disponibilidade não reconhece mapas, municípios ou fluxos institucionais, sendo a lógica dos custos e do tempo, além do regime dos rios e a presença de familiares, essenciais para delinear o ir e vir do usuário em situação de sofrimento.
A descontinuidade do cuidado médico, com a ausência desse profissional na rede hospitalar em momentos pontuais, demonstrou uma discordância das pactuações formais, demonstrando o aparecimento da rede de apoio informal entre gestores e como as demandas mobilizam recursos, equipes, acordos e, sobretudo, criatividade no fazer saúde.
As limitações deste estudo condizem com a escolha do desenho de pesquisa, sendo uma delas a impossibilidade em “traçar” o percurso do domicílio até a comunidade ribeirinha, tendo em vista que há conglomerados humanos ainda mais dispersos do que a “comunidade maior” apontada que não fizeram parte desta análise, o que poderia ajudar a compor novas investigações e aprofundar o entendimento da dinâmica de deslocamentos em momento de sofrimento agudo.
O fluxo dos usuários, neste estudo, diz muito sobre a imprevisibilidade das escolhas, as opções no cotidiano e, acima de tudo, em como o cuidado pode ser diversificado na rede de saúde. As iniquidades de acesso aos serviços de saúde impõem aos usuários outras formas de repensar o seu cuidado e o da comunidade. É importante que outros estudos aprofundem aspectos ligados à medicina tradicional e aos cuidados comunitários, delineando de forma mais clara o impacto que essas práticas podem ter em situações de urgência e emergência.
Territórios complexos e com fluxos populacionais complexos requerem soluções complexas, sinalizando a necessidade de repactuações em colegiados, como os conselhos de saúde, a Comissão Intergestores Regional e a Comissão Intergestores Bipartite, para maior qualificar o acesso à RUE, incluindo valorizar a trajetória do usuário na busca de ajuda na rede de saúde, investir na formação permanente e continuada dos profissionais que diretamente lidam com situações de sofrimento agudo e alocar recursos materiais que complementem o cuidado.
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- 1Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Dez 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
15 Maio 2024 - Revisado
15 Maio 2024 - Aceito
28 Maio 2024