Resumo
Introdução: Diante da intensa medicalização do parto, evidencia-se a necessidade de profissionais orientadas pela normalidade desse evento, como parteiras diplomadas, sejam elas enfermeiras obstetras ou obstetrizes. Apesar da reconhecida importância, certas especificidades da atuação dessas profissionais ainda permanecem pouco elucidadas. Objetivo: Buscou-se identificar as ferramentas presentes na valise de parteiras diplomadas formadas pelo curso de Obstetrícia da Universidade de São Paulo. Metodologia: Trata-se de estudo descrito-exploratório, com abordagem qualitativa. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com cinco obstetrizes entre agosto de 2020 e maio de 2021, em ambiente virtual. O material foi analisado por meio de mapas dialógicos. Resultados: Na valise das entrevistadas, identificou-se tecnologias leves, leve-duras e duras. Entre as tecnologias leves encontram-se o afeto, a comunicação (saber falar, saber ouvir) e o vínculo. As tecnologias leve-duras incluem disciplinas básicas, evidências científicas, experiência e intuição. Por fim, as tecnologias duras contemplam instrumentos produzidos pela atividade humana, além do uso da materialidade do corpo. Conclusões: Verificou-se que as obstetrizes recorrem a tecnologias duras à medida que não conseguem atingir o fim desejado com tecnologias leves, embora utilizem os recursos relacionais de maneira transversal a todo o processo. Para empregar tais recursos tecnológicos, as profissionais utilizam saberes muito distintos, sem necessariamente hierarquizá-los.
Palavras-chave:
Obstetrizes; Parto humanizado; Parto domiciliar; Tecnologias de Baixo Custo
Introdução
Desde a década de 1950, a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1955OMS – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Expert Committee on Midwifery Training: first report. OMS: Genebra, 1955. Technical Reports Series. n. 93. ) reconhece a importância de treinar profissionais responsáveis pela atenção ao parto que sejam compassivos e, apesar de suas competências técnicas universais, sensíveis às especificidades sócio-históricas e culturais para utilizar os recursos que têm a sua disposição de maneira adequada e efetiva. A história da obstetrícia moderna, contudo, encarregou-se de dar condições à hegemonia de um modelo altamente centrado em tecnologias duras, possíveis de serem empunhadas apenas por autoridades médicas em locais bem distantes dos domicílios e comunidades às quais pertencem as parturientes: o hospital (Davis-Floyd, 2001DAVIS-FLOYD, R. The technocratic, humanistic, and holistic paradigms of childbirth. International Journal of Gynecology & Obstetrics, London, v. 75, n. 5, p. 5-23, 2001. DOI: 10.1016/S0020-7292(01)00510-0
https://doi.org/10.1016/S0020-7292(01)00... ; Spink, 2013SPINK, M. J. P. As origens históricas da obstetrícia moderna. In: SPINK, M. J. P. Psicologia social e saúde: práticas, saberes e sentidos. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 169-193. ; Mott, 2002MOTT, M. L. Assistência ao parto: do domicílio ao hospital (1830-1960). Projeto História, São Paulo, v. 25, p. 197-219, 2002. ).
Nesse contexto, reduzem-se os obstáculos para que as mulheres sejam submetidas a toda sorte de intervenções para a conveniência dos médicos e da instituição hospitalar. Como bem destaca Diniz ( 2001DINIZ, C. S. G. Entre a técnica e os direitos humanos: possibilidades e limites das propostas de humanização do parto. 2001. Tese (Doutorado em Medicina Preventiva) – Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. ), já na segunda metade do século XX, houve rápida expansão no uso de tecnologias com o objetivo de controlar o trabalho de parto e que, até hoje, cumprem as funções de monitorar, desencadear, regular ou acelerar o processo de parturição. Além de recursos como a ocitocina sintética, as cesarianas são abundantes no contexto brasileiro, no ano de 2021, cerca de 58% do total de partos aconteceu por via cirúrgica (Brasil, 2023BRASIL. Datasus: Departamento de informática do SUS. Informações de saúde: nascidos vivos. Brasília, DF: Ministério da Sáude, 2023. ), enquanto taxas maiores que 10% a 15% não se justificam (OMS, 1985OMS – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Appropriate technology for birth. Lancet, London, v. 326, n. 8452, p. 436-437, 1985. DOI: 10.1016/S0140-6736(85)92750-3
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(85)92... ).
Segundo Davis-Floyd ( 2001DAVIS-FLOYD, R. The technocratic, humanistic, and holistic paradigms of childbirth. International Journal of Gynecology & Obstetrics, London, v. 75, n. 5, p. 5-23, 2001. DOI: 10.1016/S0020-7292(01)00510-0
https://doi.org/10.1016/S0020-7292(01)00... ), diante da hegemonia do modelo tecnocrático e dos excessos da tecnomedicina, surge uma perspectiva humanista que, sem renunciar ao uso de tecnologias, busca humanizar a medicina e a obstetrícia, tornando-as relacionais, orientadas a parcerias e compassivas. No contexto assistencial, destaca-se o papel de parteiras diplomadas – sejam elas enfermeiras obstetras ou obstetrizes – na implementação de um modelo de atenção ao parto já preconizado pela OMS há mais de 70 anos. Esse modelo é definido pelo oferecimento de uma assistência segura, com o mínimo possível de intervenções e uso apropriado das tecnologias disponíveis. Conforme destaca o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, 2006 UNFPA – UNITED NATIONS POPULATION FUND. Towards MDG 5: Scaling up the capacity of midwives to reduce maternal mortality and morbidity. New York: UNFPA, 2006. ), quando treinadas adequadamente e em conformidade com as recomendações baseadas em evidências, enfermeiras obstetras e obstetrizes são fundamentais para diminuir os indicadores de mortalidade materna e infantil, para garantir direitos sexuais e reprodutivos e, também, para reduzir a excessiva medicalização da gestação e do parto.
No Brasil, a formação majoritária de parteiras diplomadas acontece por meio da especialização em Obstetrícia após a graduação em Enfermagem. Contudo, desde 2005, reabriu-se a possibilidade de um outro itinerário formativo. Vinculado à Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, o curso de Obstetrícia forma profissionais habilitadas na arte e no ofício de partejar por meio da entrada direta na universidade, resgatando o mesmo modelo de formação da Escola de Parteiras de São Paulo, que funcionou anexa à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo até 1971 (Riesco; Tsunechiro; Leister, 2002RIESCO, M. L. G; TSUNECHIRO, M. A. Formação profissional de obstetrizes e enfermeiras obstétricas: velhos problemas ou novas possibilidades? Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 2, p. 449-459, 2002. DOI: 10.1590/S0104-026X2002000200014
https://doi.org/10.1590/S0104-026X200200... ). Nesse contexto, desde a extinção da Escola de Parteiras até a reabertura do curso de obstetrícia, o único caminho possível para a formação de parteiras no Brasil era a graduação em enfermagem, o que contrasta com a tradição de formação de parteiras em cursos de entrada direta, comum na Europa (Riesco; Tsunechiro, 2002RIESCO, M. L. G; TSUNECHIRO, M. A. Formação profissional de obstetrizes e enfermeiras obstétricas: velhos problemas ou novas possibilidades? Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 2, p. 449-459, 2002. DOI: 10.1590/S0104-026X2002000200014
https://doi.org/10.1590/S0104-026X200200... ).
De acordo com seu Projeto Político Pedagógico (EACH, 2017 EACH – ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Projeto político pedagógico curso de graduação em obstetrícia. São Paulo, 2017. Disponível em: http://www5.each.usp.br/wp-content/uploads/2015/11/PPP-Obstetr%C3%ADcia-2017.pdf . Acesso em: 3 out. 2023.
http://www5.each.usp.br/wp-content/uploa... ), o curso de Obstetrícia se encontra estruturado em conformidade com as recomendações da OMS e da International Confederation of Midwives (ICM). Isso implica a formação de profissionais capazes de trabalhar no âmbito da educação e da promoção da saúde sexual e reprodutiva, com foco especial na atenção ao período gravídico puerperal. Atuando na atenção ao parto, as obstetrizes devem ser capazes de utilizar tecnologias de maneira apropriada.
Com base na questão norteadora “quais são as tecnologias das quais as obstetrizes dispõem para agir conforme as finalidades que almejam durante o manejo do trabalho de parto?” buscou-se identificar as ferramentas presentes na valise de parteiras diplomadas formadas pelo curso de Obstetrícia da Universidade de São Paulo (USP). Partiu-se da noção de valises tecnológicas como referencial teórico (MERHY, 200), levando-se em consideração que as tecnologias podem ser de três ordens distintas: leves, leve-duras e duras. As primeiras dizem respeito ao espaço relacional entre quem cuida e a pessoa que é cuidada. As tecnologias leve-duras, por sua vez, se resumem aos saberes estruturados que fundamentam o processo de tomada de decisão e ação. Finalmente, as últimas contemplam os equipamentos e outros instrumentos dotados de materialidades, sendo intimamente vinculadas à mão desses e dessas profissionais.
Metodologia
A pesquisa da qual resulta este artigo é de caráter qualitativo, descritivo e exploratório. As entrevistadas foram selecionadas a partir de uma lista de dez parteiras urbanas fornecida por uma informante-chave, nossa primeira entrevistada. Adotou-se como critérios de inclusão a formação em Obstetrícia e a atuação em partos domiciliares planejados na capital de São Paulo. Foram excluídas aquelas que não tiveram disponibilidade para participar da pesquisa no período de tempo estipulado para a coleta das informações a serem posteriormente analisadas. Também em função desse cronograma, contatos adicionais não foram feitos com outras profissionais e, portanto, interrompeu-se a captação de novas participantes. A aproximação inicial foi feito por meio de aplicativo de mensagens (WhatsApp) e as entrevistas foram conduzidas durante os meses de maio a agosto de 2021, após a devida aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, obtida em de maio de 2020 (CAAE: 30829520.5.0000.5482, parecer nº 4.031.049).
Utilizou-se como base um roteiro semiestruturado. Realizá-las dessa maneira permitiu que pudéssemos garantir certa liberdade ao perguntar e responder, o que proporcionou momentos de “construção, negociação e transformação de sentidos”, conforme defendem Aragaki et al. ( 2014ARAGAKI, S. S. et al. Entrevistas: negociando sentidos e coproduzindo versões de realidade. In: A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. SPINK, Mary Jane; BRIGAGÃO, Jacqueline; NASCIMENTO, Vanda; CORDEIRO, Mariana. (Org.). Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2014. , p. 62). Além da solicitação de uma caracterização inicial da formação recebida e do campo de trabalho em que se inseriam, o roteiro utilizado contemplou questões sobre as intervenções que essas profissionais costumam realizar para atingir os fins necessários durante o trabalho de parto, os instrumentos dos quais dispõem para intervir no processo e os saberes que fundamentam a tomada de decisão e ação, contempladas nas seguintes perguntas: (1) quais são os princípios que orientam sua prática?; (2) como você decide que é o momento de intervir no parto?; (3) quais tecnologias costumam ser utilizadas?; (4) quais são os saberes ou as fontes de conhecimento que você utiliza para avaliar qual é a situação que requer intervenções? O que embasa o processo de tomada de decisão e ação?; (5) em relação às mulheres parturientes, como costuma ser o processo de negociação quando você identifica a necessidade de intervenção?
Tendo em vista o período pandêmico e a diretriz de distanciamento físico, os encontros ocorreram em ambiente virtual (via plataforma Google Meet). As entrevistas foram feitas exclusivamente pela primeira autora deste artigo. Ao início de cada encontro, apresentou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, conforme determinações da Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), obteve-se o consentimento verbalmente. Os encontros on-line foram gravados para posterior transcrição do material. Cada um deles teve duração média de uma hora e contou apenas com a participação da pesquisadora responsável pela condução das entrevistas, além da profissional entrevistada.
Após a transcrição do conteúdo, utilizamos mapas dialógicos, ferramenta proveniente do campo da psicologia social (Spink; Medrado, 2013SPINK, M. J. P.; MEDRADO, B. Produção de sentido no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In: SPINK, M. J. P. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 2013. p. 22-41. ), para agregar os enunciados sobre os recursos tecnológicos utilizados no âmbito da assistência ao parto domiciliar planejado (PDP) em categorias pré-definidas à luz do aporte teórico sobre tecnologias no trabalho em saúde (Mehry, 2000MERHY, E. E. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface, Botucatu, v. 4, n. 6, p.109-116, 2000. DOI: 10.1590/S1414-32832000000100009
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200000... ), sendo elas: tecnologias leves, tecnologias leve-duras e tecnologias duras.
Resultados e discussão
Antes de seguirmos para a apresentação da análise discursiva, vale destacar algumas características das participantes da pesquisa. Tendo em vista nossos critérios de inclusão, todas possuíam ensino superior em Obstetrícia, sendo que duas delas tinham também o título de mestre. Todas as entrevistadas eram mulheres e residiam na capital paulista, o que demonstra uma perpetuação ao longo do tempo do perfil prevalente entre as pessoas egressas do curso de Obstetrícia descrito por Trintinália ( 2011 TRINTINÁLIA, M. M. J. Caracterização e inserção profissional de egressos do curso de graduação em obstetrícia da Universidade de São Paulo. 2011. 164 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/7/7141/tde-17082011-103213/. Acesso em: 24 abr. 2024.
http://www.teses.usp.br/teses/disponivei... ). A maioria das entrevistadas era branca (60%). Além disso, todas reconhecem sua condição de agentes de um movimento de humanização do parto. Com objetivo de preservar a relação profissional-enunciado e, ainda, o sigilo, utilizamos apenas as iniciais das obstetrizes entrevistadas. Os enunciados, agrupados conforme as categorias definidas, são apresentados a seguir.
Tecnologias leves: acolher, saber falar e saber ouvir
Para as obstetrizes entrevistadas, a comunicação foi uma das primeiras respostas a respeito das tecnologias que costumam ser utilizadas no trabalho de parto. De caráter relacional (Mehry, 2000MERHY, E. E. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface, Botucatu, v. 4, n. 6, p.109-116, 2000. DOI: 10.1590/S1414-32832000000100009
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200000... ), tal ferramenta cumpre função fundamental na identificação das demandas e necessidades das mulheres e parturientes.
A primeira coisa é saber ouvir, né. Então, ouvir no sentido de ouvir aquela mulher e ouvir o que ela tá passando e como ela tá passando ” (J.).
Nesse sentido, o ato de se comunicar com a mulher e pessoa parturiente deve ser entendido como um processo de troca por meio do qual obstetrizes interferem no processo. As profissionais entendem que tal dinâmica é o principal instrumento do qual dispõem para acolher as demandas, identificar necessidades e informar de maneira clara o que está acontecendo.
Sendo muito sincera, a comunicação, a minha fala, a forma como eu uso a minha voz, é o principal. É o que eu mais uso pra intervir. Eu digo que a comunicação é mais importante, porque me comunicando eu consigo escutar a mulher, consigo saber o que ela tá precisando, o que ela tá sentindo, qual é a questão ali, né. E consigo também me fazer mais clara com ela . (G.)
Destaca-se que a comunicação pode mudar os termos por meio dos quais as mulheres parturientes podem dar sentido à própria experiência de parto, interferindo no modo como as mulheres vivenciam esse momento, tornando a experiência mais positiva ou não.
Então, a forma que eu falo é uma dessas coisas. Então, ao invés de falar que na contração ela vai sentir dor, eu falo que a contração é uma onda, que ela vai passar por ela, né. Então, isso é uma coisa que eu, particularmente, gosto muito. É a gente sair um pouco dessa experiência de parto dolorosa e violenta pra uma experiência de parto que simplesmente vai acontecendo . (J.)
O gesto da comunicação é, por vezes, nomeado como diálogo. O uso desse termo pode ser compreendido como uma tentativa de dar sentido à comunicação como um processo inter-relacional de troca entre sujeitos com potencial transformador, operando um distanciamento dessas profissionais de concepções que reduzem a comunicação à transmissão de informações. Reconhece-se, portanto, que o diálogo é a primeira forma de intervenção efetiva, já que o parto pode ser entendido como um processo constante de convencimento.
Particularmente, eu uso muito o diálogo. Acho que o diálogo é o primeiro modo de intervenção efetiva. Às vezes você dialoga ali e você não precisa fazer nada, né. Só pegar a pessoa e falar ‘Pessoa, olha aqui para mim, vamos conversar, né. Que tá acontecendo? Que você tá sentindo?’. Eu acho que é isso. O diálogo, eu acho que é a intervenção que eu mais utilizo. Que a gente, em conjunto, mais utiliza. A todo momento a gente tá dialogando com a mulher, né e fazendo... Porque eu acho que é isso, né, o trabalho de parto é um processo de convencimento. Você fica lá o tempo inteiro convencendo aquela pessoa de que ela vai conseguir, né, que é possível . (M.)
À propósito do diálogo, argumenta-se, ainda, que é por meio dele que se estabelece uma relação de confiança entre mulher/parturiente, facilitando, inclusive, o processo de negociação nos casos de intervenções que, à princípio, não eram desejadas e se fizeram necessárias. Nesse sentido, a franca comunicação sobre a eventual necessidade de intervenções durante todo o período gestacional é fundamental para o trabalho intraparto da obstetriz e para que as mulheres tenham uma experiência positiva, mesmo nos casos em que intervenções mais invasivas se façam necessárias, principalmente no manejo de urgências e emergências.
A mulher, é muito difícil desconfiar quando você fala que vai transferir, porque você também tá indo lá, sabe? Ou, até quando você fala assim: “Então, eu vou romper sua bolsa porque o coraçãozinho não tá muito bem”, ela não vai questionar, porque ela sabe que você tá fazendo o melhor para ela ali. Eu acho que é construção de pré-natal diferente, uma criação de vínculo diferente. Então... E também ela não se sente desconfiada porque ela sabe o que tá rolando, né. Então, a gente, não, a gente não esconde nada, a gente sempre é muito franco. Que elas também pedem, né, até no plano de parto, que falem a verdade e a gente não é de mentir. Então, elas confiam muito nisso . (F.)
Aos poucos eu fui entendendo que eu precisava discutir isso com as mulheres durante o pré-natal. Mesmo que aconteça em 1% das vezes, né, então minha chance de uma hemorragia pós-parto de uma placenta retida é de 1%, eu preciso falar pra ela. Inclusive, isso pode acontecer. Então durante o pré-natal, a gente tem conversado muito sobre isso.E quando a gente tá fazendo coisas, a gente não consegue ser tão clara, não consegue explicar. Então a gente atua e depois conversa com ela o que aconteceu. Então já durante o pré-natal, ela sabe que isso pode acontecer . (L.)
Em última instância, a comunicação adequada de um conhecimento acumulado acerca do que acontece ao corpo parturiente é apontada como condição sine qua non para que mulheres e outras pessoas vivenciando esse processo sejam sujeitas à assistência oferecida. Isso resulta em um deslocamento do eixo de poder na assistência oferecida, inclusive no que diz respeito à tomada de decisão e controle do processo. Contudo, é preciso destacar que, para as obstetrizes, o empoderamento e a autodeterminação são possíveis apenas no contexto em que toda escolha seja fundamentada em informações transmitidas com qualidade pelas profissionais.
Eu acho que a gente não pode lutar pelo parto normal a qualquer custo se essa mulher não quer esse parto normal. Só que, ao mesmo tempo, eu preciso que ela tenha informação de qualidade para isso. Se ela tiver todas as informações referentes a isso, se puder escolher livremente, acho que é isso que embasa minha prática, que as mulheres sejam livres . (J.)
Eu acho que passar informação de qualidade e essa mulher conseguir ter o corpo dela sabendo o que tá acontecendo, tanto na gestação, quanto no parto, então uma coisa meio de empoderamento, mesmo, desse processo que foi tirado da gente . (J.)
Reconhecendo-se no interior do movimento de humanização, a postura dessas profissionais reflete a concepção de que humanizar o parto passa tanto pelo tratamento acolhedor e respeitoso quanto pelo respeito aos direitos à informação e à autodeterminação, evidenciando o caráter polissêmico do movimento de humanização apontado por Diniz (2005).
Tecnologias duras: o corpo como instrumento e o instrumento no corpo
Quando apenas as tecnologias leves não atingem o objetivo de garantir o andamento fisiológico do trabalho de parto, as profissionais se encaminham em direção ao uso de tecnologias mais duras para intervir no trabalho de parto, aquelas que, segundo a definição de Merhy ( 2000MERHY, E. E. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface, Botucatu, v. 4, n. 6, p.109-116, 2000. DOI: 10.1590/S1414-32832000000100009
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200000... ), são dotadas de materialidade.
E aí se você ouviu, falou, abraçou, chorou, mexeu na ambiência da casa, né, e você tá vendo ali que alguma coisa não tá fluindo, né. Então aí, a gente pensa em fazer alguma intervenção nossa, né. Propor algum exercício, mudança de posição. né. A partir disso você tá literalmente, para mim, intervindo no processo, né. Que até aí você tá deixando a mulher andar, ser livre, virar de cambalhota, sei lá. (M.)
Aqui, a materialidade relatada como ferramenta para condução do trabalho de parto não se encaixa completamente na definição de Merhy ( 2000MERHY, E. E. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface, Botucatu, v. 4, n. 6, p.109-116, 2000. DOI: 10.1590/S1414-32832000000100009
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200000... ) de tecnologias duras como instrumentos que envolvem aquilo que chamou de “trabalho morto” em seu processo produtivo. A ferramenta a que se referem diz respeito ao uso da materialidade do corpo da mulher ou pessoa parturiente por meio de exercícios e posições específicas, utilizando a anatomia a favor do processo de parturição.
Basicamente, usar o corpo da mãe a favor do nascimento. Então, posições que a mãe faz ao longo da gestação e do trabalho de parto, pra que esse nascimento seja mais fluido, né . (J.)
No que diz respeito ao uso da materialidade do corpo parturiente durante o trabalho de parto, as profissionais se referem ao método denominado Spinning Babies , criado pela parteira estadunidense Gail Tully. A proposta da abordagem é oferecer uma terceira perspectiva para a dicotomia entre tecnologia e natureza no parto, uma vez que, de acordo com a idealizadora do método, ambas não precisam excluir-se mutuamente 22 Disponível em: https://www.spinningbabies.com/about/what-is-spinning-babies/ . Acesso em: 2 jul. 2024. . Trata-se, portanto, de utilizar a materialidade da própria natureza como instrumento de intervenção no parto, trabalhando com o corpo de maneiras novas. Para nossas entrevistadas, o objetivo é utilizar o corpo do bebê e da mulher/pessoa em processo de parturição, antes de recorrer a outras tecnologias duras.
É algo que, realmente, ajuda muito no parto, muito, muito, muito. Então a gente entender com um olhar muito mais específico, saber que não é somente que a mulher faz força e que o bebê faz uma rotação, mas que sim, as partes moles do corpo, né, a pelve tá muito ligada, os tendões, o tanto de tensão que tem naquele corpo . (L.)
Entretanto, não é apenas a materialidade do corpo parturiente que entra na valise dessas profissionais como instrumentos de intervenção, mas também a materialidade de seus próprios corpos. Com suas mãos, a obstetriz pode intervir no parto dos mais diversos modos. As profissionais mencionam que o toque é uma das intervenções mais utilizadas no trabalho de parto, trazendo uma afetividade que dá recursos para que as mulheres lidem com a dor ritmada prolongada.
Eu acho que o toque, ele também ajuda muito assim. Às vezes, segurar na mão, né, fazer massagem, fazer um carinho no cabelo, sabe? Ou então deixar a pessoa encostar em você, chorar. (M.)
Nessa conjuntura, o toque é o contato físico entre obstetriz e parturiente utilizado como estratégia para fornecer à mulher apoio físico e emocional. Entretanto, as obstetrizes também utilizam suas mãos para realizar outros tipos de procedimentos. Um deles é a redução manual de colo, cujo uso é bem controverso no campo da humanização. A esse propósito, G. pontua que as mãos são um dos instrumentos mais versáteis e importantes de sua atuação:
As mãos da parteira... A parteira, ela é isso, né, a gente se resume às mãos. É o que a gente põe de fato pra jogo, né. E eu uso as mãos em vários sentidos, né. Eu uso as mãos, às vezes, só pra encostar na mulher. Uso as mãos pra intervir, no sentido de virar a cabeça do bebê, se precisar, reduzir colo, né, que é quando a gente empurra o colo, faz com que ele dilate no dedo. Então, isso é uma coisa que a gente usa muito e que na faculdade, por exemplo, eu achava um horror. Pensava ‘gente, que absurdo, né’. E é um absurdo se isso é usado de rotina . (G.)
Além disso, a mão da parteira será o primeiro recurso utilizado para realizar manobras em casos de distócias de ombro e de hemorragias pós-parto decorrentes de hipotonia uterina. Em contextos nos quais há liberdade para parir em posições não supinas, o algoritmo A SAIDA 33 O mnemônico A SAIDA consiste em: A = chamar ajuda, avisar parturiente, aumentar agachamento; S = pressão suprapúbica; A = alterar posição para quatro apoios (manobra de Gaskin); I = manobras internas (Rubin II, Wood, parafuso invertido); D = desprender ombro posterior; A = avaliar manobras de resgate. Com as três primeiras manobras, os autores têm observado sucesso em mais de 90% dos casos (Amorim et al., 2013 ) recomenda que o corpo parturiente seja utilizado para facilitar o desprendimento, recorrendo, se necessário, a manobras manuais (Amorim, et al., 2013AMORIM, M. M. R. et al. Distócia de ombro: proposta de um novo algoritmo para conduta em partos em posições não supinas. Revista Femina, Rio de Janeiro, v. 41, n. 3, p.115-124, 2013. ). Para o controle de hemorragias, os primeiros instrumentos utilizados pelas obstetrizes são suas mãos, para realizar massagem uterina e compressão bimanual do útero.
Caso essas estratégias não funcionem, a materialidade do corpo se associa a outras tecnologias duras. No controle de hemorragias decorrentes de hipotonia uterina, por exemplo, administra-se ocitócitos e outros medicamentos. Nesse sentido, faz-se uso de outras tecnologias duras, como o uso de substâncias uterotônicas no terceiro período, a fim de evitar hemorragias.
O que mais? Massagem uterina, medicação, né, no pós-parto. São várias intervenções, pegar acesso, por exemplo . (M.)
Ainda assim, o uso de tecnologias duras não está restrito ao manejo de urgências e emergências. As obstetrizes entrevistadas afirmam que as utilizam igualmente para conduzir o trabalho de parto, caso as tentativas com tecnologias mais leves não tenham cumprido seu objetivo. Nesse sentido, as profissionais argumentam que, caso avaliem a necessidade, podem recorrer à ruptura artificial das membranas do saco amniótico, também conhecida como amniotomia, procedimento feito com um instrumento específico e estéril, denominado amniótomo. Embora haja a recomendação de que a amniotomia não seja utilizada como recurso isolado na condução do trabalho de parto, apenas associada a ocitócitos (OMS, 2018 OMS – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Genebra: WHO, 2018. ), o contexto domiciliar acaba propiciando que alguns procedimentos sejam realizados antes do uso de fármacos como a ocitocina sintética, tendo em vista que, nesse caso, a parturiente deveria ser encaminhada para o plano B: seu hospital de referência.
Logo, além da materialidade do corpo, são muitos os instrumentos da parteira que se encaixam na tradicional definição de tecnologias duras, feita por Merhy ( 2000MERHY, E. E. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface, Botucatu, v. 4, n. 6, p.109-116, 2000. DOI: 10.1590/S1414-32832000000100009
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200000... ). Essas profissionais também carregam para o parto suas caixas de ferramentas, no sentido literal.
Olha, se eu for te falar todo o material que eu tenho... Eu tenho carro e eu vou de carro para os partos e o meu porta-malas, ele não existe para minha vida pessoal. Eu, quando eu vou escolher um carro, eu pergunto quantos litros cabe no porta-malas. Não quero saber se ele é potente, quantos quilômetros faz por litro, a potência. Risos. Então a gente tem uma lista, né, de materiais e recursos técnicos. Então vai desde oxigênio, cilindro de oxigênio, né, de pelo menos três litros. Então a gente precisa ver sempre a manutenção desse oxigênio, ver se ele tá recarregado todas as vezes. Então tem... Além de ter o material, a gente precisa checar se ele tá completo. Então, material de reanimação neonatal. Então a gente tem ringer, a gente tem soro fisiológico, a gente tem equipo. A gente tem medicamentos, né, então a gente tem seringa, agulha. A gente tem material específico pra punção, então jelco, garrote e swab. A gente tem kit também pra caso aconteça alguma laceração, então tem kit sutura, gase, luva estéril, xilocaína. Então antes do parto a gente dá uma checada em todo esse material e pro parto em si o que eu acabo levando? A banqueta que é algo que eu deixo lá e se a mulher quiser utilizar, ela utiliza . (L.)
Em algumas das intervenções citadas pelas obstetrizes há o uso de tecnologias duras que exigem a transferência para o hospital, caso o parto esteja acontecendo no domicílio, cuja prescrição não é prerrogativa de obstetrizes e enfermeiras obstetras. Tais intervenções podem se fazer necessárias tanto para o manejo de urgências e emergências, como uma hemorragia de difícil controle, quanto para a condução do trabalho de parto. Um desses casos é o uso da ocitocina. As obstetrizes afirmam que essa é, de fato, uma das possibilidades, sempre argumentando que recursos como esse são utilizados em casos de real necessidade.
Entre as tecnologias citadas cujo uso não é prerrogativa de parteiras diplomadas estão o vácuo-extrator, o fórceps, a analgesia e a cesárea. Desde que utilizadas quando houver necessidade, elas entendem que não estão interditadas no parto humanizado. Nesse sentido, as obstetrizes revelam utilizar recursos menos invasivos antes de partir para essas intervenções, mas que elas não estão descartadas. A questão é que elas pressupõem um trabalho em equipe que não pode se dar no parto domiciliar.
Porque eu sei que se não funcionar, eu vou ter que usar uma intervenção um pouco mais forte, eu acho, para isso. E aí, as outras coisas são: ocitocina, que eu posso ter que usar em algum momento. Romper bolsa é uma outra delas. Reduzir o colo acaba sendo uma prática que a gente faz. O uso do vácuo extrator. Não sou eu que acaba fazendo uso disso, né, parteira no nosso país não pode usar o vácuo, mas o médico vai. Só que a gente, ali, junto acaba participando desse processo, sim, só não sendo a pessoa que faz essa intervenção. Então, o vácuo-extrator. O fórceps é muito pouco usado na nossa medicina, principalmente no parto humanizado, mas, se houver necessidade, em alguns pequenos casos ele existe. E a cesariana também, eu acho que é uma intervenção boa, né, usada como deveria ser usada na vida. Acho que são essas, um pouco. Ah, e analgesia. Não é minha preferida, mas ela é muito boa . (J.)
Por fim, as entrevistadas têm a compreensão de que as tecnologias duras não substituem as tecnologias leves: ou seja, instrumentos e procedimentos são utilizados de maneira complementar aos recursos relacionais de que dispõem para proporcionar o bom andamento do trabalho de parto. Nesse sentido, o caso relatado a seguir ilustra como o uso de tecnologias leves pode garantir o resultado esperado no emprego de tecnologias duras após transferência para o hospital:
Eu sei que eu fui no ouvido dela e comecei a falar coisas assim, como ela era maravilhosa e tal. Tanto que a médica percebeu que quando eu falava algo no ouvido dela, que a médica não conseguia escutar, ela parava de gritar e ela prestava atenção, ela concentrava e conseguia fazer a força. No fim das contas, ela ficou com uma imagem super boa do parto. Então, a gente conseguiu de alguma forma tornar aquilo não um momento de pânico e de trauma, mas realmente focar que o filho dela tava nascendo, que a gente conseguiu ajudar ela com aquele vácuo, né. Então, foram as duas coisas, ter o vácuo, mas foi muito importante eu sacar do que ela precisava. (G.)
A situação descrita acima se insere em um contexto em que a parturiente precisava utilizar sua força corporal para viabilizar o sucesso do parto instrumental, mas se encontrava tomada de terror durante o período expulsivo. Tendo em vista a necessidade de trabalho conjunto entre parturiente e profissional habilitado para realizar a vácuo-extração, o emprego de tecnologias leves foi fundamental para a efetividade da tecnologia dura.
Tecnologias leve-duras: entre saberes estruturados e outras formas legítimas de produção de conhecimento
Se olharmos apenas para tecnologias leves e duras, algumas questões permanecem sem respostas. Por exemplo, como as obstetrizes sabem que tipo de exercício utilizar ou em qual momento? Como são detectadas situações em que a cesariana se faz necessária, como a desproporção céfalo-pélvica? Quanto a isso, Merhy ( 2000MERHY, E. E. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface, Botucatu, v. 4, n. 6, p.109-116, 2000. DOI: 10.1590/S1414-32832000000100009
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200000... ) argumenta que há um conjunto de tecnologias leve-duras que atravessa de maneira transversal o uso de tecnologias leves e duras: os saberes estruturados. É preciso, no mínimo, dominar repertórios de anatomia, conhecer os mecanismos do trabalho de parto e a fisiologia desse evento para, então, implementar práticas que utilizam o corpo a favor do parto, como vimos que essas profissionais fazem.
Eu sei que se eu mudar de posição eu consigo fazer com que essa mulher tenha um parto mais tranquilo, com menos dor ou então até mais rápido por esses exercícios. Então, particularmente, eu gosto muito desse tipo de prática. (J.)
Eu sei . Que saber é esse? No quinto período ideal, a estrutura curricular do curso prevê que, desde que tenham cumprido os pré-requisitos, as/os alunas/os cursem Fisiologia da Gestação, Parto e Pós-parto, abrangendo as adaptações gravídicas em sistemas estudados anteriormente. Além disso, essa disciplina introduz conteúdos que serão mobilizados diretamente na prática clínica pelas/os obstetrizes, como fisiologia e determinismo do parto, bem como seus períodos clínicos.
De acordo com o projeto político pedagógico do curso (EACH, 2017 EACH – ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Projeto político pedagógico curso de graduação em obstetrícia. São Paulo, 2017. Disponível em: http://www5.each.usp.br/wp-content/uploads/2015/11/PPP-Obstetr%C3%ADcia-2017.pdf . Acesso em: 3 out. 2023.
http://www5.each.usp.br/wp-content/uploa... ), tais disciplinas sedimentam as bases para os conhecimentos específicos sobre a gestação, o parto e pós-parto, despertando o raciocínio científico e crítico por meio da proposta de um processo de aprendizagem ativo e cooperativo. Seguindo as recomendações e diretrizes da ICM sobre o modelo de cuidado que deve ser oferecido pelas obstetrizes, é imperativo que a promoção do raciocínio crítico e científico esteja presente nas disciplinas básicas, estendendo-se àquelas que preparam as profissionais para a prática clínica. De acordo com a ICM, o cuidado ético e competente promovido por obstetrizes deve ser sempre guiado pela educação formal e contínua, por pesquisas científicas e aplicação prática da evidência (ICM, 2014 ICM – International Confederation of Midwives. Philosophy and modelo of Midwifery care, 2014. Disponível em: https://www.internationalmidwives.org/assets/files/general-files/2020/07/cd0005_v201406_en_philosophy-and-model-of-midwifery-care.pdf. Acesso em: 13 set. 2023.
https://www.internationalmidwives.org/as... ).
Espelhando o projeto político pedagógico (PPP) do curso de Obstetrícia, nossas entrevistadas situam as evidências científicas como um dos grandes pontos de sustentação e legitimação de suas práticas cotidianas de atenção ao parto. A proposta de uma assistência baseada em evidências científicas é colocada como o princípio que norteia a prática dessa categoria profissional.
Hoje eu trabalho só com parto humanizado, né, e uma das premissas do parto humanizado é que a gente tenha a Medicina Baseada em Evidências, ali, como nosso norte. Então, a gente tem bons estudos e estudos novos saindo sobre o acompanhamento mesmo do trabalho de parto e o que deveria ser levado como […] eu não posso dizer como comum, mas como deveria ser o fisiológico daquele nascimento, né . (J.)
Embora as evidências científicas norteiem a atuação dessas profissionais, as obstetrizes dão a entender que a atenção ao parto domiciliar tem suas especificidades. Por exemplo, não é a duração média do processo calculada com base em uma grande amostra que determinará quanto tempo um trabalho de parto pode durar sem precisar de intervenções mais resolutivas. Em casa, apoia-se na monitoração cuidadosa para avaliação da necessidade do emprego de alguma conduta ou, ao contrário, para avaliar se a situação pode ser ‘levada’ por mais algum tempo:
É, a gente tem algumas coisas, né. Por exemplo, em um parto domiciliar, a gente vai levando. A gente não tem... não trabalha com tempo, né. Mas, é claro, que a gente vê que tá passando algum tempo e a criança, né, o bebê começa a dar algum deslize, a gente vai avaliar . (F.)
Nesse sentido, as obstetrizes são sensíveis àquilo que Canguilhem ( 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. ) chamou de relatividade individual do normal, princípio segundo o qual o normal não pode ser aprisionado na média, nem reduzido ao que é mais comum a uma população. Em outras palavras, o parto normal não é necessariamente o parto médio. Logo, apesar de sua importância inegável, as produções científicas de cunho quantitativo não são o único tipo de conhecimento legítimo a guiar todo o processo de tomada de decisão e ação no cotidiano das obstetrizes.
Para lidar de maneira adequada com os corpos que, ao parir, colocam em questão essa normatividade estatística, faz-se necessário que o conhecimento sensível deixe de ser compreendido como fonte de engano para ser considerado válido na produção de conhecimento. Quem exerce a arte de partejar deve não apenas observar, mas também tatear e ouvir quem encontra diante de si, voltando-se para o corpo parturiente, em busca da singularidade – apreensível por meio dos detalhes facilmente ignorados – que possa orientar o cuidado e ação diante de possíveis intercorrências e mesmo o uso consciente das evidências científicas.
O parto dá sinais de que a gente precisa intervir. (F.)
Nesse sentido, o monitoramento dos sinais vitais é grande aliado das profissionais na detecção do risco real e, consequentemente, do emprego de intervenções para o manejo desse risco e evitar desfechos negativos. Para detectá-los, no entanto, é preciso dedicação e sentidos aguçados (Mortelaro; Cirelli, 2021MORTELARO, P. K.; CIRELLI, J. F. Corpos em relação: contribuição das epistemologias feministas para uma prática obstétrica situada. Saúde em debate, n. 45, v. esp. 1, p. 168-180, 2021. DOI: 10.1590/0103-11042021E113
https://doi.org/10.1590/0103-11042021E11... ).
Outro aspecto fundamental é o modo como o trabalho das obstetrizes é fundamentado pela experiência. Nesse sentido, aponta-se que muitos elementos atravessam a decisão de empregar condutas no trabalho de parto ou de intervir de determinada maneira, mas, quando se trata dos saberes que participam do processo, a experiência de atuação está no mesmo patamar de importância que as evidências científicas.
Primeiro as evidências científicas, né, os nossos limites enquanto profissional, né. A vontade da mulher, né, e... nossa eu ia falar uma coisa que é muito importante, mas fugiu da minha cabeça. Eu falei os desejos da mulher, os nossos limites, né, as evidências científicas. Ah, e a nossa experiência. A nossa experiência, eu acho que isso conta demais, demais, né . (M.)
A experiência é constantemente situada como um dos aspectos centrais da formação como parteira. Além da experiência adquirida ao longo da própria atuação profissional, o conhecimento adquirido pelas obstetrizes também se encontra intimamente atrelado à experiência de outras parteiras diplomadas.
Eu não sei se cabe aqui nessa resposta, mas eu colocaria também um pouco da prática mesmo que eu tive com outras parteiras. Então, acompanhar partos, acompanhar gestações e nascimentos com outras pessoas que já estavam na prática foi muito bom, porque cada uma traz um pouco das suas experiências, das suas vivências e do conhecimento delas . (J.)
Por fim, há ainda um aspecto fundamental da prática dessas profissionais que escapa às formas lineares de raciocínio indutivo e dedutivo, aos quais é concedido o monopólio da legitimidade em relação à produção de conhecimento nas sociedades ocidentais (Davis, 1989DAVIS, E. Women’s intuition. Berkeley: Celestial Arts, 1989. ). Ele consiste na intuição como fonte de conhecimento embasando o processo de tomada de decisão e ação das obstetrizes.
E tem um outro aspecto também, que é o da intuição, né, que não é exatamente, assim, tão cartesiano, mas às vezes simplesmente você tem a sensação de que algo não está bem e nem sempre você tem dados concretos, né. O batimento do bebê tá bom, a mulher tá bem, até tá evoluindo, mas tem alguma coisa ali que indica algum possível problema. E não necessariamente vai ser um problema físico, biológico, como uma hemorragia. Às vezes, é uma questão da mulher não tá confortável ali, ela tá querendo ir pro hospital e ela não tá te dizendo, por exemplo, né. Então eu enxergo muito esses aspectos. Então, eu percebo a minha tomada de decisão baseada naquilo que eu estudei, eu sei que provavelmente é isso que vai acontecer, e tem esse outro caminho da intuição. Que eu não sei nem dizer exatamente quais elementos, mas algo não tá legal, acho que a gente precisa fazer alguma coisa. Então, tem isso, né, assim que eu vejo . (G.)
Nesse sentido, argumenta-se que, além de todo saber fornecido pela tradição médica e que se encontra na base de sua formação, as obstetrizes dependem de sua intuição para agir de maneira adequada, ou, em suas palavras, do que chamam de feeling de parteira.
Acho que a medicina é muito útil, ela consegue nortear a gente muito bem, só que eu ainda preciso usar o meu feeling de parteira . (J.)
Esse feeling diz respeito a um modo de raciocínio muito específico e que mais se aproxima a um fluxo de impressões, uma variedade de elementos que as profissionais vão conectando de maneira quase automática, de modo que consigam agir de maneira intuitiva no trabalho de parto.
Eu acho que meu cérebro reuniu alguns pontos que meu cérebro vai conectando, que às vezes eu não preciso pensar nisso quando eu vou agir. A gente fala ‘as palavras saem soltas no parto em casa’, mas, na verdade, não. Assim a gente criou uma linha de raciocínio e a gente segue ela, sabe? (L.)
A intuição se apresenta como forma de se colocar em relação aos saberes que essas profissionais aprenderam, de maneira fragmentada, a respeito do trabalho de parto, um evento que, a despeito de nossos esforços de simplificá-lo, mantém-se complexo. Embora a formação de nossas entrevistadas ainda esteja situada no âmbito de um modelo biomédico – em que pesem os constantes esforços de reformá-lo, deslocando-o do paradigma tecnocrático para o paradigma humanizado –, elas desenvolveram a capacidade de reatar ligações desfeitas, unindo evidências científicas, saberes produzidos sobre a fisiologia e anatomia do corpo feminino e parturiente, sinais clínicos e outros elementos singulares que dizem respeito a cada experiência de parturição.
Considerações finais
À primeira vista, o trabalho das profissionais se encontra alinhado às recomendações da Organização Mundial de Saúde, implementando uma assistência cujo objetivo seria manter parturiente e bebê saudáveis e seguros, utilizando o mínimo possível de intervenções, sempre em compatibilidade com a segurança. Para tanto, elas utilizam as tecnologias que se encontram em suas valises, conforme a regulamentação profissional, sejam elas leves ou duras, empregando-as mediante a observação criteriosa do processo e interpretação dos achados.
Na valise dessas profissionais podemos encontrar desde tecnologias leves, de ordem relacional, até tecnologias duras, dotadas de materialidade. Estas últimas incluem tanto os instrumentos produzidos pela atividade humana – banqueta, amniótomo, agulha e linha para sutura –, quanto o próprio corpo das obstetrizes e das mulheres parturientes. Pudemos identificar que as profissionais recorrem a tecnologias duras à medida que não conseguem atingir o fim desejado com as tecnologias relacionais, embora não deixem de utilizá-las em todo o processo.
Para empregar tais recursos tecnológicos, as profissionais se valem de saberes muito distintos, sem necessariamente hierarquizá-los. Entre eles, estão presentes as disciplinas que estruturam a formação universitária, as evidências científicas e o conhecimento sensível, os quais se conjugam para formar um tripé que sustenta a tomada de decisão. Para conjugar fontes de conhecimento tão distintas – e, às vezes, contraditórias – a intuição parece cumprir um papel fundamental, possibilitando que os saberes que carregam em suas valises sejam efetivamente colocados em relação na assistência a cada experiência concreta de parturição. Por fim, a experiência que adquirirem com os anos de prática e com outras obstetrizes ou parteiras mais experientes permite que as profissionais criem a habilidade para manejar e empregar tudo aquilo que têm à disposição de maneira cada vez mais adequada e assertiva.
Em suma, os aspectos da atenção ao PDP aqui discutidos e analisados consistem em uma aproximação inicial com o tema. Embora o número reduzido de participantes tenha permitido que aspectos importantes do emprego de tecnologias fossem abordados em profundidade, a seleção das participantes por indicação e a restrição geográfica se apresentam como limitações deste estudo. Ademais, a restrição às obstetrizes como sujeitos de pesquisa pode contribuir para que se passe ao largo de práticas de atenção ao PDP empregadas por parteiras urbanas com outros caminhos formativos, como enfermeiras obstetras, e que atuem em outras regiões do Brasil, caso tais especificidades existam. Por esse motivo, faz-se necessário que pesquisas posteriores ampliem a produção de conhecimento em relação a valises tecnológicas de parteiras urbanas e os critérios adotados para mobilização e emprego de tais ferramentas.
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- 2Disponível em: https://www.spinningbabies.com/about/what-is-spinning-babies/ . Acesso em: 2 jul. 2024.
- 3O mnemônico A SAIDA consiste em: A = chamar ajuda, avisar parturiente, aumentar agachamento; S = pressão suprapúbica; A = alterar posição para quatro apoios (manobra de Gaskin); I = manobras internas (Rubin II, Wood, parafuso invertido); D = desprender ombro posterior; A = avaliar manobras de resgate. Com as três primeiras manobras, os autores têm observado sucesso em mais de 90% dos casos (Amorim et al., 2013AMORIM, M. M. R. et al. Distócia de ombro: proposta de um novo algoritmo para conduta em partos em posições não supinas. Revista Femina, Rio de Janeiro, v. 41, n. 3, p.115-124, 2013. )
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Out 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
30 Nov 2023 - Aceito
30 Abr 2024 - Revisado
28 Maio 2024