O SUS em territórios vulnerabilizados: reflexões sobre violência, sofrimento mental e invisibilidades nas favelas do Rio de Janeiro

The SUS in vulnerable territories: reflection about violence, mental suffering and invisibilities in the favelas of Rio de Janeiro

Viviani Cristina Costa Tatiana Wargas de Faria Baptista Marize Bastos da Cunha Sobre os autores

RESUMO

O artigo propõe discutir os impactos da violência na experiência cotidiana e nas condições de vida dos trabalhadores e usuários do Sistema Único de Saúde, que vivem e trabalham em localidades do espaço urbano designadas como ‘territórios conflagrados’. Para abarcar a complexidade do tema nos debruçamos sobre dois conjuntos de indagações, que se interrelacionam a diferentes campos do conhecimento: i) os territórios no campo da saúde e, mais especificamente, do descritivo conflagrado; ii) o fenômeno da violência urbana – considerando às disputas armadas pelo poder e comando do tráfico de drogas em territórios conflagrados de favelas – e seus impactos no trabalho da Atenção Básica. A partir da autoetnografia foram trazidas diferentes cenas vivenciadas em unidades de Atenção Básica do município do Rio de Janeiro. Verificou-se uma sobreposição de invisibilidades e violências que geram sofrimento mental e expõem vários desafios e dilemas na prestação do cuidado desses territórios. Propõe-se a ampliação do conceito de território conflagrado com o intuito de abarcar os processos sociais relacionados ao fenômeno da violência e dar visibilidade à necessidade da efetiva transformação das condições de vida e saúde das coletividades. Compreendemos a importância de articulação interdisciplinar e intersetorial tendo em vista que esse complexo problema social traz impactos para a saúde pública.

PALAVRAS-CHAVES
Atenção Primária à Saúde; Saúde mental; Vulnerabilidade social; Violência

ABSTRACT

The article proposes to discuss the impacts of violence on the daily experience and living conditions of workers and users of the Unified Health System, who live and work in urban areas designated as ‘conflagrated territories’. To encompass the complexity of the theme, we focus on two sets of questions, which are interrelated to different fields of knowledge: i) territories in the field of health and, more specifically, the descriptive conflagration; ii) the phenomenon of urban violence – considering the armed disputes over the power and command of drug traffic in convulsed territories from slums – and its impacts on the work of Primary Care. From the autoethnography, different scenes experienced in Primary Care units in the city of Rio de Janeiro were brought. Was observed an overlap of invisibilities and violence that generate mental suffering and expose several challenges and dilemmas in the provision of care in these territories. It is proposed to expand the concept of convulsed territory to encompass the social processes related to the phenomenon of violence and to give visibility to the need for an effective transformation of the living and health conditions of communities. We understand the importance of interdisciplinary and intersectoral articulation, given that this complex social problem impacts public health.

KEYWORDS
Primary Health Care; Mental health; Social vulnerability; Violence

Introdução

Rio de Janeiro/RJ, terça-feira, 10 de dezembro de 2019, são 6:45 da manhã e o grupo de whatsapp da equipe de trabalhadores de uma das Clínicas de Família da Zona Norte da cidade repercute uma cena de confronto armado no território entre o tráfico local e a polícia militar. Diversas são as preocupações que mobilizam a narrativa daqueles trabalhadores, que vão desde a tomada de decisão relativa ao funcionamento da unidade, a partir dos critérios de avaliação de risco, ao medo pelas diferentes situações de violência vivenciadas. Evidencia-se o medo pela exposição dos profissionais que estão chegando à unidade para iniciar o trabalho; pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) que estão entre o fogo cruzado, abaixados em suas casas ou escondidos em alguma viela; pelos vizinhos e /ou familiares que precisam se deslocar do bairro para trabalhar; pelo funcionamento ou fechamento das escolas e creches; acrescentados pelo compartilhamento das cenas de violência através de imagens, áudios e ou/ relatos. (registro em diário pessoal enquanto trabalhadora de saúde do município no período de 2018 a 2020).

Quem trabalha e/ou reside em territórios vulnerabilizados do Rio de Janeiro provavelmente já vivenciou uma cena parecida como a descrita acima. Ela traduz importantes questões, tais como: o setor saúde tem incorporado a complexidade dos territórios no planejamento das ações e na operacionalização do cuidado nos serviços? Quais os impactos da violência armada nos processos de trabalho, no acesso aos equipamentos de saúde e nas condições física e mental dos sujeitos envolvidos? O verbo conflagrado tem contribuído para visibilizar as iniquidades existentes e os enfrentamentos necessários para a mudança dessa condição? Ou tem criado estigma e mantido a hierarquização dos direitos de cidadania?

Ao nosso ver, tais perguntas revelam que a experiência subjetiva de trabalho na Atenção Básica (AB) desnuda como as diversas formas de violência se sobrepõem e entrelaçam às demandas de cuidado nomeadas como de saúde mental no cotidiano da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Esse é o nosso horizonte de pesquisa, o elemento que desencadeia nossa problematização.

Abordaremos a dimensão dessa problemática para o campo da saúde coletiva, compreendendo a especificidade desse município, da organização de sua rede, dos processos de vulnerabilização, injustiça social e o dinamismo dos territórios. Compreendemos que se trata de um fenômeno social complexo, que abarca diferentes dimensões que podem ser mais bem compreendidas a partir de uma perspectiva interdisciplinar. Entende-se a abertura interdisciplinar e conceitual como uma exigência da saúde pública diante do desafio de transcender a racionalidade técnico-científica e de responder à complexidade que os problemas de saúde impõem11 Gomes R, Deslandes SM. Interdisciplinaridade em Saúde Pública: um campo em construção. Rev. Latino-am. Enfermagem. 1994; 2(2):103-114..

Nesse sentido, a proposta do artigo é discutir os impactos da violência na experiência cotidiana e nas condições de vida dos trabalhadores e usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), que vivem e trabalham em localidades do espaço urbano designadas como ‘territórios conflagrados’. Refletindo criticamente o uso desta denominação e suas implicações para a criação de um significado social de violência e a prestação de cuidado nesses territórios.

Metodologia

O material empírico deste artigo é baseado em autoetnografia, ou seja, relatos, observações e experiências transcritas em diário pessoal e que são fruto de experiência de trabalho em áreas de favelas e das questões suscitadas na prática assistencial diária de atuação no SUS, mais especificamente nos serviços da AB localizados na Zona Norte do Rio de Janeiro, no período de 2018 a 2020. Foram as experiências enquanto trabalhadora da saúde e todas as afetações pessoais22 Favret-Saada J. Ser afetado. Cad. Campo. 2005; (13):155-161. ali mobilizadas que revelaram, a partir da demanda traduzida por questões de saúde mental, um contexto no qual havia um entrelaçamento e sobreposição de violências, injustiças sociais e sofrimento. Tais registros foram emoldurados por um olhar de pesquisador servindo como material de reflexão.

Nesse sentido, elegemos como método de pesquisa a autoetnografia, ou seja, um gênero da etnografia e método de pesquisa qualitativo. A autoetnografia é um compilado de informações coletadas pelo pesquisador33 Fiore M. Uso de drogas: substâncias, sujeitos e eventos [tese]. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 2012. 254 p., trazido das próprias memórias, de diálogos que ocorreram no passado em relação ao estudo dos grupos sociais. É a somatória potente entre o clássico teórico de análise crítica dos textos com a escuta dos sujeitos do qual a pesquisa fala. Escutar o ‘outro’ gera formas de sínteses simbólicas para compreender as sociedades e até mesmo o comportamento do Estado. Os símbolos que nos caracterizam se retroalimentam e é necessário entender este ciclo, não somente uma das partes44 Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. Plural. 2017; 24(1):214-241.. A elaboração analítica sobre a própria experiência passada do pesquisador seria, assim, uma forma de recolher informações, em nosso caso, sobre as relações dos diferentes agentes em suas ocupações, sofrimento mental e desigualdades sociais no cotidiano das suas práticas nas favelas.

Ressalta-se que nas cenas aqui mobilizadas foi preservado o anonimato das pessoas, sendo usado nomes fictícios nos relatos recuperados do campo de trabalho, conforme previsto pela resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 510de abril de 2016.

Território e saúde coletiva: entre o conceito e a operacionalização do cuidado no SUS

Começamos aqui recordando uma experiência de trabalho em unidades da AB, localizadas em um subúrbio da Zona Norte da capital.

No primeiro dia de trabalho na equipe Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf), eu percebi que iria matriciar equipes que passavam por dinâmicas territoriais bem distintas. A equipe NASF era responsável pelo apoio de duas Clínicas de Família (CF). A distância entre as duas unidades era de apenas 2 quilômetros. E, mesmo sendo tão próximas, a recepção nos serviços ocorreu de forma distinta. Eu fui orientada a comparecer primeiro na unidade A, local onde a gerente iria me recepcionar. A única exigência era o uso do crachá. O uso do crachá pelo profissional é um direito do usuário, mas no território é também uma forma de proteção do trabalhador. Já para unidade B, a orientação era a de não entrar na favela sozinha. Eu deveria avisar assim que saltasse na estação de trem mais próxima e um ACS iria ao me encontro. Na saída da estação de trem nos deparamos com os ‘meninos do radinho’, uma espécie de olhos do tráfico para mapear possíveis ameaças de outras facções rivais e /ou da segurança pública. Seguindo o caminho até a unidade, cerca de 500 metros, passamos por uma boca que vendia maconha e cocaína. Todos os ‘atores’, como são nomeados os jovens do tráfico naquela CF, expunham armas de fogo e comunicavam-se pelo rádio transmissor. Mais tarde entendi que o ACS que me recepcionou era também uma liderança comunitária. Entrar com ele era uma espécie de ritual de apresentação na favela. (registro em diário pessoal enquanto trabalhadora de saúde do município no período de 2018 a 2020).

O relato evidencia uma importante dimensão das contradições da cidade: o direito de ir e vir. Os meninos ligados ao tráfico – assim chamados porque, no Brasil, o traficante da favela é, em sua maioria, negro e jovem – têm sua locomoção circunscrita a um espaço extremamente restrito. Não saem da localidade da favela em que sua facção mantém o comando e nem mesmo comparecem à CF quando necessitam de algum acompanhamento em saúde. Nesses casos, a equipe deve prestar os cuidados de forma domiciliar.

Já os moradores e trabalhadores estão submetidos a determinadas regras do território que precisam ser observadas para garantir sua mobilidade e direito de ir e vir. Convivem e presenciam o mercado ilegal de venda de entorpecentes, associado a outro mercado ilegal, que é o da venda de armas. A presença ostensiva dos fuzis e a iminência do conflito é uma constante, refletindo não apenas no modo cotidiano de organizar a vida, como também trazendo implicações para a saúde das pessoas.

Nesta cena, destaca-se a figura de um líder comunitário, indicado na experiência relatada e pelo lugar de mediação que ele exerce entre trabalhadores da saúde e um equipamento do Estado, moradores e o tráfico. O líder, reconhecido pela população como um morador importante na saúde e no processo de alfabetização de crianças, reúne os requisitos para exercer essa mediação.

Todos esses aspectos contribuem para a compreensão das relações de poder, de solidariedade e de acesso do lugar e, no caso específico da saúde, como inserem-se os equipamentos e dispositivos de atenção no território, como se lida com a segurança dos trabalhadores da saúde e todo impacto nas condições de vida da população envolvida. O que para nós visibiliza a necessidade de avançar nos desafios e potenciais que podem ser abarcados na efetivação das práticas sanitárias a partir da dimensão territorial.

Na prática gerencial e assistencial do SUS, na cidade do Rio de Janeiro, o conceito de território circunscreve áreas de cobertura e planejamento das ESF, definindo a cobertura assistencial das unidades e quais as famílias terão o acompanhamento longitudinal proposto.

Entre esses territórios, denominam-se territórios conflagrados as áreas em que ocorrem disputas armadas pelo poder e controle ilegal local. A questão é tão marcante dessas localidades, que foram criadas estratégias de funcionamento das unidades de saúde da AB de acordo com a magnitude do conflito instaurado, através do protocolo de Acesso Mais Seguro (AMS). O protocolo desenvolvido em conjunto com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha objetiva reduzir a exposição dos profissionais, dos equipamentos e dos usuários à violência armada55 Cômite Internacional da Cruz Vermelha. Programa Acesso Mais Seguro. [acesso em 2021 set 2]. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/document/o-programa-acesso-mais-seguro.
https://www.icrc.org/pt/document/o-progr...
.

O plano propõe a constituição de uma equipe interna de profissionais de cada unidade, que passam por uma capacitação realizada por multiplicadores ligados à Coordenadoria Geral de Atenção Primária. A capacitação busca auxiliar os profissionais a construir critérios para determinar a situação de risco do território de acordo com um semáforo de cores verde, amarelo e vermelho. Esses símbolos indicam que, quando a unidade está em verde, o trabalho que implica circular no território pode ocorrer; o amarelo determina sinal de alerta e que apenas ações internas na unidade podem ser realizadas; já o vermelho indica o fechamento ao longo do dia ou mesmo a não abertura do serviço.

Em uma revisão não sistematizada, encontramos a seguinte compreensão de território conflagrado: sem definição66 Medeiros CS, Silva IS, Ferreira JVG. Nós por nós mesmo um relato de experiência decolonial em educação no Complexo da Maré. Periferia. 2021; 13(1):346-362.; território com a presença da violência armada77 Gallo EA. Educação patrimonial em contexto periférico: Preservação da igreja de São Daniel em Manguinhos/RJ. Periferia. 2020; 12(2):134-155., 88 Cezar CCM. Estratégia de Saúde da Família em território conflagrado pela violência armada: o desafio das ações de promoção da saúde no Complexo da Maré. [dissertação]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016. 104 p.; sob o domínio do tráfico de drogas99 Broide J. Adolescência e Violência: criação de dispositivos clínicos no território conflagrado das periferias. Rev. psicol. política. 2010; 10(19):95-106.; com prevalência do ordenamento jurídico criminal1010 Pereira ERN. Gestão escolar em territórios conflagrados: efeitos sobre a cultura profissional de diretores de escolas de São Paulo. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2018. 436 p.; localidade com frágil presença do Estado de Direito, que se evidencia na precarização de serviços públicos e em uma segurança pública que atua constantemente com violência1111 Krenzinger M, Farias P, Morgado R, et al. Violência de gênero e desigualdade racial em uma pesquisa com mulheres do território conflagrado do conjunto de favelas da Maré/Rio de Janeiro. Rev. Trab. Necessário. 2021; 19(38):266-289.. O Projeto de Lei nº 9.762 de 2018, de autoria do deputado federal Ivan Valente (PSOL), define em seu art.1 §2º territórios conflagrados pela violência uma área caracterizada pelos altos índices de violência, apresentando índices de homicídios superiores à média nacional em mais de 25% e/ou que sejam objeto de operações de segurança resultantes de intervenção federal ou de garantia de lei e ordem.

No entanto, para quem trabalha e vive nesses territórios, restringir a compreensão de um território conflagrado como um território de disputa armada pelo poder local não visibiliza todas as implicações que esse cenário urbano impõe. Da mesma forma, o plano de AMS, não abarca toda a complexidade produzida nos modos de trabalho. Afinal, o que significa trabalhar sob o sinal amarelo? O que significa ter que se esconder, em meio a um tiroteio, em uma sala de raio-x, pois essa é a sala teoricamente mais segura da unidade?

Vale lembrar que a expansão da ESF na cidade se deu sob a gestão de Organizações Sociais (OS), em unidades containers e, sendo containers, a exposição e risco em um momento de conflito é ainda maior para os profissionais e a população atendida. Nesse contexto, o que significa uma demanda de saúde mental nomeada como transtornos de ansiedade e/ou depressão diante de uma sobreposição de situações de violência e não garantia de direitos que compõem a história da maioria das famílias assistidas? O que significa acordar para trabalhar e ver a descrição de como está o território? Se há tiroteio, se a escola abriu, o posicionamento dos meninos do radinho e das bancas de tráfico de drogas, a presença do caveirão, como é chamado popularmente o carro blindado da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro que entra em favelas para incursões. O que significa mapear situações de violência e não poder acompanhar, encaminhar e até mesmo orientar, pois dependendo da ação poderá gerar riscos a si mesmo ou aos colegas da equipe? Qual o limite ético que profissionais de saúde enfrentam diante destas situações-limites, que significam escolher entre cumprir suas funções ou proteger sua vida e de outras pessoas?

Essas indagações, associadas a outros aspectos observados durante o período de trabalho no Nasf como as equipes incompletas, o adicional de distância para atrair os profissionais médicos, os dias de unidade aberta/fechada e a demanda crescente de cuidado em saúde mental revela parte dos desafios inscritos no problema.

Na prática, o trabalhador do SUS que desenvolve a prestação de cuidados nas favelas convive com o cinismo do Estado presente nessas localidades. Trabalha com uma sensação de enxugar gelo, na medida em que sabem que a melhoria das condições de saúde depende da melhoria das condições de vida. Que o mesmo Estado que propõe uma unidade de saúde, está integrado nas disputas ilegais de poder, seja via milícia, seja via facções criminosas1212 Zaluar A, Conceição IS. Favelas sob o controle das Milícias no Rio de Janeiro- que paz? Rev. São Paulo em Persp. 2001; 21(2):89-101..

Que o mesmo Estado que propõe cuidado pela via da saúde, propõe o encarceramento e ações desastrosas da segurança pública, como ocorreu na Chacina do Jacarezinho em 2021, desconsiderando a determinação legal do Supremo Tribunal Federal para não realização de operações policiais durante a pandemia do coronavírus. Que o ACS, integrante da equipe ESF e, portanto, agente do Estado, vai precisar sair do trabalho durante uma ação da polícia no território para garantir que sua casa não seja invadida em uma ação militar.

A este respeito, Bourdieu1313 Bourdieu P. Miséria do Mundo. Petrópolis: Vozes; 1997. expõe a precariedade enfrentada pelos trabalhadores de serviços públicos essenciais. Para o autor, a contradição colocada entre a precariedade e a manutenção do trabalho para garantia mínima de uma prestação do serviço, revelam dramas sociais vividos muitas vezes como dramas pessoais.

Reconhecemos que a ampliação dos serviços nessas áreas contribuiu para tornar visível injustiças sociais e formas de opressão em uma sociedade que permanece hierarquizando direitos e a condição de cidadania. Assim como que precisamos nos debruçar sobre os desafios que essas invisibilidades colocam para o SUS e apontar caminhos possíveis para a efetiva mudança. Sob esse aspecto, há um conjunto de questões já sinalizadas no debate acadêmico da saúde que merecem ser retomadas, dentre elas o próprio uso do conceito de território.

Uma importante contribuição para a ampliação do entendimento de território veio com os estudos de Milton Santos1414 Santos M. O retorno do território. In: Santos M, Souza MAA, Silveira ML, organizadores. Território, Globalização e Fragmentação. São Paulo: Hucitec; 1998. p. 15-20., ao apontar que o território é construído e desconstruído por relações de poder que envolvem uma gama muito grande de atores que territorializam suas ações com o passar do tempo, sendo uma fração do espaço local articulado ao global e, portanto, formado por lugares contíguos e lugares em rede, no qual coexistem intenções de distintos atores e conflitos. Demonstra que são diversos os processos ocorridos e em constante construção, que estão em estreita relação na constituição de territórios e territorialidades, sendo esses temporários, permanentes, estáveis e instáveis. Para o autor, o seu uso se dá pela dinâmica dos lugares e gera valores de múltiplas naturezas: culturais, econômicas, sociais, financeiras, dentre outras.

Confluindo com esse avanço, um grupo de sanitaristas do movimento conhecido como Epidemiologia Crítica, que ocorreu na América Latina nas décadas de 1960/701515 Monken M, Peiter P, Barcellos C, et al. O território na saúde: construindo referências para análises de saúde e ambiente. In: Miranda AC, Barcellos C, Moreira JC, et al. Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 23-41., fez duras críticas à epidemiologia dos fatores de risco e às concepções ecológicas das doenças pela centralidade nos parâmetros estatísticos atrelada aos conceitos biologicistas das doenças, e não consideração pelos processos de determinação social da saúde. Engajados no processo de transformação social, questionam as condições de vida e sociais, os modelos de Estado e a necessidade de arranjos que buscassem enfrentar as desigualdades históricas e estruturais presentes nesses territórios.

Este movimento ganhou vários adeptos na saúde pública brasileira, ajudando a difundir o conceito de ‘espaço geográfico’, em substituição ao ‘espaço geométrico’ tradicionalmente utilizado pela epidemiologia1515 Monken M, Peiter P, Barcellos C, et al. O território na saúde: construindo referências para análises de saúde e ambiente. In: Miranda AC, Barcellos C, Moreira JC, et al. Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 23-41.. A adoção do conceito de Espaço Geográfico na saúde pública, tomada do autor Milton Santos, vem, portanto, do desejo de transformação social e da necessidade de demonstrar os efeitos danosos da desigualdade social na saúde das populações. Essa confluência constituiu um novo arcabouço político e epistêmico para a definição de território.

No Brasil, a saúde coletiva incorpora o conceito de território em seus marcos normativos e nas proposições de políticas desde a constituição do SUS. No entanto, nos desenhos de gestão e na prática de cuidado, observamos uma ênfase na compreensão de território enquanto um mapa frio, definido como áreas de adscrição por abrangência de equipamentos e carteira de serviços. Corroborando com essa afirmativa, diversos estudos partem da problemática do uso desses termos dentro do campo da saúde pública, o que vem ocorrendo sem muita preocupação com a definição que foi dada pela ciência que o originou1515 Monken M, Peiter P, Barcellos C, et al. O território na saúde: construindo referências para análises de saúde e ambiente. In: Miranda AC, Barcellos C, Moreira JC, et al. Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 23-41., 1616 Monken M, Barcellos C. Vigilância em saúde e território utilizado: possibilidades teóricas e metodológicas. Cad. Saúde Pública. 2005; 21(3):898-906., 1717 Santos AL, Rigotto RM. Território e territorialização: incorporando as relações produção, trabalho, ambiente e saúde na atenção básica à saúde. Trab. educ. saúde. 2010; 8(3):387-406., 1818 Furtado JP, Oda WY, Borysow IC, et al. A concepção de território na Saúde Mental. Cad. Saúde Pública. 2016 [acesso em 2022 out 13]; 32(9):1-15. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/mhkpNm87vhrXYBWKzy7psjy/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/csp/a/mhkpNm87vh...
.

Dessa forma, conhecer a cultura, os signos e as marcas históricas do local, aliado ao cotidiano e as vivências singulares de cada usuário apresentam-se como fundamentais para a consolidação da mudança de paradigma na atenção à saúde. É imprescindível que os formuladores e operadores de saúde questionem se sua abordagem do e no território estão produzindo inserção, autonomia ou institucionalização e coerção da vida nas práticas de cuidado. Como coloca Gondim et al.1919 Gondim GMM, Monken M, Iñiguez L, et al. O território da saúde: Organização do sistema de saúde e territorialização. In: Miranda AC, Barcellos C, Moreira JC, et al. Território, Ambiente e Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 237-255., é preciso reconhecer processos e territorialidades, que muitas vezes transgridem os limites impostos por atores determinados.

Monken et al.1515 Monken M, Peiter P, Barcellos C, et al. O território na saúde: construindo referências para análises de saúde e ambiente. In: Miranda AC, Barcellos C, Moreira JC, et al. Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 23-41. assinalam que

A busca de novos paradigmas para o campo da saúde coletiva deve ser acompanhada pelo desenvolvimento de métodos que articulem os níveis do indivíduo e das coletividades1515 Monken M, Peiter P, Barcellos C, et al. O território na saúde: construindo referências para análises de saúde e ambiente. In: Miranda AC, Barcellos C, Moreira JC, et al. Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 23-41.(905).

Apontando a necessidade de incorporação de instrumentos que incluam a dimensão da categoria ‘lugar’ na identificação de situações--problema para a saúde.

Cunha et al.2020 Cunha MB, Pivetta F, Porto MFS, et al. Vigilância Popular em Saúde: contribuições para repensar a participação no SUS. In: Botelho BO, Vasconcelos EM, Prado EV, Cruz PJS. Educação Popular em Saúde. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 79-101. apontam um desencontro entre o território vivo e sua dinâmica, e o território adscrito na AB destacando dois constrangimentos. O primeiro, relacionado a não incorporação do saber e experiência de vida dos moradores, com predomínio de uma visão pautada no paradigma da medicina ocidental clássica; e o segundo, aos processos de trabalho nos equipamentos sanitários, que não permitem a operacionalização na prática de fundamentos e diretrizes da AB, como a intersetorialidade, a humanização e a educação permanente.

A intervenção sobre espaços e populações constitui, como aponta Foucault2121 Foucault M. Microfísica do Poder. 24. ed. São Paulo: Graal; 2007., em formas preponderantes de manifestação do poder sobre a vida e a morte ao longo da história, como o poder do soberano, o poder disciplinar e o biopoder. A evolução das ciências médicas e das pesquisas envolvendo o corpo humano desembocaram em significativas questões e reflexões sobre o ‘fazer viver e deixar morrer’ e questões éticas que envolvem o controle e o poder médico sobre as populações.

Mbembe2222 Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 edições; 2018. traça um paralelo entre a biopolítica de Foucault e o paradigma do Estado de Exceção demarcado por Agamben, apontando a importância do conhecimento produzido pelos dois autores, mas também os seus limites para a compreensão sobre “fazer viver e deixar morrer” na contemporaneidade. Partindo da chave de análise do que se operacionalizou nos Estados escravistas e em regimes coloniais contemporâneos, denuncia a ausência da liberdade, expressões de terror, perda do lar, direitos ao corpo e do estatuto político. Dessa forma, reconhece o racismo como modelo exemplar do que ele chama “tecnologia destinada ao exercício do biopoder”2222 Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 edições; 2018.(18).

Assim como, que os usos indiscriminados de armas de fogo entre populações operam processos de conflitos e destruição a fim de sistematizar as “novas formas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’”2222 Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 edições; 2018.(71).

Partindo das reflexões trazidas pela cena e pelos autores citados, chamamos a atenção para o fato de que há ainda um caminho a ser trilhado na aplicação prática do conceito de território e em seu potencial para a organização e práticas de saúde que visem a efetiva mudança nas iniquidades existentes. É possível operacionalizar de fato propostas mais amplas do que a de território político administrativo, conferindo-lhe maior densidade teórico-metodológica-assistencial nas práticas e perspectivas de cuidado e na sua interface com outros setores que se relacionam com a questão da violência e seus impactos na saúde mental dos indivíduos.

Com vistas a essa ampliação, problematizamos o uso que tem sido feito do adjetivo ‘conflagrado’ na definição dos territórios ao ser associado, pelos meios de comunicação em massa e incorporados por grande parte da sociedade, a uma guerra às drogas e contra a criminalidade, reduzindo essas populações a um único modo de vida. Nos jornais e noticiários, observamos a invisibilidade dos impactos dos conflitos armados na vida e morte dos sujeitos envolvidos e todas as formas de resistência e vida que estão presentes nesses territórios, em contraponto à ênfase dos resultados das apreensões de drogas, dinheiro e armas.

Dessa forma, propomos uma compreensão de território conflagrado que inclua os processos que se desenvolvem nestas localidades e a sobreposição de violências, abrangendo as produzidas por políticas e agentes públicos e não somente as relacionadas aos ilegalismos. Conflagrado indica, portanto, a sobreposição de formas de violência, que só podem ser compreendidas no âmbito da produção e reprodução do capitalismo e sua forma política, que operam definindo limites à vida e produzindo mortes. A vida no território conflagrado se dá no limite da morte. Porque se morre a qualquer momento de bala perdida, corpos desaparecem e vítimas são obrigadas a provarem que não são culpadas.

Estudos têm apontado parte desses impactos na saúde. Gonçalves et al.2323 Gonçalves HCB, Queiroz MR, Delgado PG. Violência urbana e saúde mental: desafios de uma nova agenda? Fractal: Rev Psicol. 2017; 29(1):17-23. indicam que a violência urbana, seja nos territórios ou dentro dos espaços institucionais, produz efeitos negativos para a saúde pública, seja como fator de agravo à população, ou como barreira de acesso aos serviços. Impactando direta ou indiretamente a saúde das populações mais gravemente afetadas e provocando efeitos nos processos de trabalho2424 Minayo MCS. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cad. Saúde Pública. 1994; 10(1):07-18., 2525 Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006., principalmente da ESF, que tem sua prática assistencial pautada na territorialização das ações em saúde. Mari, Mello e Figueira2626 Mari JJ, Mello MF, Figueira I. The impact of urban violence on mental health. Rev. Bras. Psiquiatria. 2008; 30(3):183-184. assinalam indícios de alta prevalência de transtornos mentais associados a eventos traumáticos nas grandes cidades. Soma-se a essas evidências o fato de que, no Brasil, a violência afeta a população de modo desigual, gerando riscos diferenciados em função de gênero, raça/cor, idade e espaço social2727 Souza ER, Lima MLC. Panorama da violência urbana no Brasil e suas capitais. Ciênc. Saúde Colet. 2006; (11):1211-1222..

As falas abaixo, registradas durante o trabalho na AB em favelas da Zona Norte, exemplificam parte desses efeitos:

A mudança de unidade ocorreu após afastamento do trabalho de três meses. Ali eu adoeci, tive várias crises de fibromialgia, perdi cerca de 10 quilos. Os conflitos armados eram frequentes no território e a avaliação de risco era feita apenas por uma pessoa, que era considerada um líder comunitário, mas não era trabalhador da unidade. Frequentemente ficávamos em meio ao tiroteio. Mas a pior cena, foi ver uma pessoa sendo executada por um fuzil há menos de cinco metros de distância. Ali, eu desabei.

Eu gastei oito anos para parar de sentir o cheiro do micro-ondas. Chegar na unidade e sentir o cheiro dos corpos que foram incinerados marcou a minha experiência na estratégia. Eu desenvolvi transtorno de ansiedade e precisei ser trocada de unidade. (registros em diário pessoal enquanto trabalhadora de saúde do município no período de 2018 a 2020).

Apesar das evidências sobre a produção de sofrimento psíquico, do aumento da taxa de mortalidade, do encarceramento, da interrupção de serviços públicos, poucos são os enfrentamentos para a mudança dessa condição de sobreposição de violências nas populações. Nesse sentido, propomos uma discussão que incorpore os processos de determinação dos conflitos e das condições de vida nesses lugares. Esses enfrentamentos são necessários para que se possa alcançar uma mudança efetiva na vida dos moradores de favelas. Para que eles possam viver e não sobreviver.

Compreendemos que, na análise destes conflitos e da forma como os moradores e trabalhadores do território experimentam este processo, o prisma da interseccionalidade traz uma ferramenta importante para explicar como as categorias de raça, classe, gênero, idade, estatuto de cidadania e outras posicionam as pessoas de maneira diferente no mundo. Estabelecendo canais de sucesso ou marginalização dos sujeitos e parcelas da população a partir de domínios de poder2828 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2020..

Ao pensar a favela nessa cidade podemos pensar que as disputas sob o controle do território abarcam três domínios de poder distintos, porém interconectados: o do tráfico, o da polícia e o da milícia. Disputas essas que reverberam em domínios estruturais de poder da sociedade brasileira, como as condições de moradia, o acesso à educação e a saúde nas favelas. E ao domínio cultural, como, por exemplo, o papel da mídia, que fabrica e dissemina narrativas de diferenciação do valor da vida de quem reside em favelas. Encontramos em Zaluar e Pereira2929 Zaluar AM, Pereira MA. Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV; 2014. trechos do Jornal do Brasil (1900) e da Revista Renascença (1905) que demonstram como já no início do século XX os morros da cidade eram vistos por setores da população e pela polícia como locais perigosos, refúgio de criminosos. Os autores também revelam que o primeiro censo de favelas da capital, realizado em 1948, escancara o racismo em um documento oficial ao apontar que os pretos e pardos prevalecem nas favelas por serem “hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às exigências sociais modernas”2929 Zaluar AM, Pereira MA. Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV; 2014.(56).

Atenção Básica e o cuidado em saúde mental em territórios urbanos violentos

Em julho de 2018, Renata, 45 anos, casada e mãe de dois filhos compareceu como demanda espontânea à ESF em crise e foi acolhida pela Terapeuta Ocupacional da equipe do NASF. Apresentava-se chorosa, com pensamento confuso, voz trêmula e ideação suicida. Estava há dias sem conciliar bem o sono, a alimentação e com dificuldades de manter-se no trabalho. Havia perdido o filho primogênito, de 25 anos, que fora assassinado pelo tráfico quatro semanas antes. O filho foi esquartejado por trocar mensagens no celular com a namorada de um dos chefes do tráfico local. O velório não pode ser realizado porque o corpo não foi encontrado. Renata justificava: ‘Ele era trabalhador, um bom rapaz, só gostava de namorar’. A denúncia de corpo desaparecido ao sistema de justiça não pode ser feita pelo medo que a família tinha de represálias do tráfico.

Nos atendimentos individuais que se seguiram outras violências apareceram. Renata foi estuprada por um desconhecido, aos 24 anos de idade, quando estava a caminho de uma entrevista de emprego. A primeira pessoa que ela contou foi uma amiga, que a culpou por ela ter se colocado em uma situação de risco (sic). Diante da reação da amiga, ela decidiu calar-se. Meses depois ela procurou ajuda de um médico, pois não conseguia ter relações sexuais com o marido. A orientação do mesmo foi que ela passasse a praticar sexo anal. Renata sente-se mal pela orientação médica e cala-se, retomando o episódio 25 anos depois, nos atendimentos realizados na ESF.

Ao longo do ano de 2019 toda a equipe NASF da unidade foi desfeita, a equipe de ACS foi reduzida e vários profissionais foram demitidos e /ou não aceitaram a nova proposta de trabalho com redução significativa de salário. Renata foi encaminhada para atendimento na atenção secundária, mas sem previsão de vaga para continuidade de acompanhamento em saúde mental. (registro em diário pessoal enquanto trabalhadora de saúde do município no período de 2018 a 2020).

A narrativa acima desnuda uma sobreposição de violências sofridas por Renata, associadas aos processos de vulnerabilização que perpassam o seu território de moradia, as violências de gênero e a reprodução da não garantia de direitos de cidadania a grande parte da população brasileira. Renata não pôde denunciar o desaparecimento do filho e nem falar sobre isso com seus familiares e vizinhos. Não recorre ao que seria direito garantido pelo Estado porque esse mesmo Estado não lhe garante os seus direitos. Infelizmente, esse relato é uma representação das diversas formas de opressão a que estão sujeitos os moradores de territórios conflagrados. Territórios carregados pelo estigma do crime, estigma que deslegitima a fala de seus moradores.

Machado3030 Machado LAS. Vida sob Cerco. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2008. desenvolve o conceito de sociabilidade violenta, apontando que os favelados vivem sob um triplo cerco: o dos traficantes que mantém o domínio do território; o da polícia, que tem ‘permissão para matar’ suspeitos, e a mentalidade de setores da população que erguem muros simbólicos de desinteresse, inviabilizando uma questão coletiva e circunscrevendo a um problema particular. Na investigação realizada pelo autor, os depoimentos revelam o silenciamento, aniquilamento dos sujeitos, um cotidiano em que a violência é esperada e o esforço é o de seguir em frente.

Minayo2525 Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006. aponta a violência como uma temática complexa, polissêmica e controversa que afeta a área da saúde ao acarretar lesões, traumas e mortes físicas e emocionais. A autora busca sua conceituação do fenômeno da violência a partir da produção do campo sociológico, retomando autores como Pascal e Hannah Arendt, ao situar a violência como uma manifestação causada por outros processos, sendo capaz de dramatizar causas. Traduz a existência de problemas sociais, evidenciando conflitos de autoridade, lutas pelo poder e domínio, posse e/ou aniquilamento do outro ou de seus bens.

Recorremos à proposição de Das et al.3131 Das V, Poole D. Anthropology in the margins of the State. New Delhi: Oxford University Press; 2004. de “margem do Estado” para a compreensão das reproduções de poder, violência e não garantia de direitos pensando nas áreas de favelas. As autoras propõem três dimensões: 1) periferias habitadas por pessoas tidas como insuficientemente socializadas de acordo com as leis e a ordem vigentes; 2) lugares onde os direitos podem ser violados através de dinâmicas distintas de interação das pessoas com documentos, práticas e palavras do Estado; e 3) um espaço localizado entre corpos, leis e disciplina33 Fiore M. Uso de drogas: substâncias, sujeitos e eventos [tese]. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 2012. 254 p.(8, 9, 10). O salto teórico das autoras é o de pensar o Estado a partir de suas próprias margens, não reproduzindo os equívocos de estudos que entendem os espaços onde se localizam as favelas como resultados de uma atuação falha dos organismos estatais.

Em todos os sentidos acima, a margem deve ser compreendida em uma perspectiva relacional. Ou seja, a margem não significa fora do Estado ou a parte da sociedade. As favelas são parte de nossa organização política e societal, tendo um papel importante na acumulação capitalista e na forma política que a sustenta. Os seus moradores, em estado de vulnerabilização, produzem uma mão-de--obra barata, acessível e descartável. São ainda consumidores de produtos, mobilizadores de uma economia de escala volátil que geram custos sociais mínimos para o capital e para o Estado, garantindo um mínimo de renda para um consumo e transferência de recursos para o circuito principal.

É uma parcela da população incluída no circuito inferior da economia, sem qualquer proteção, sem respeito às suas vidas. Como salienta Sabroza3232 Sabroza PC. Concepções sobre Saúde e Doença. Curso de Qualificação de gestores do SUS. Rio de Janeiro: ENSP- Fiocruz; 2004., são inseridos, inseguros e irados, apresentam baixa incorporação nas inovações técnico-científicas e não têm garantida a seguridade social. Produzem uma nova segmentação da população urbana: os vulneráveis, que estão integrados ao circuito inferior e inseguro do capitalismo; e os excluídos, com dificuldades de conseguir alguma fonte de renda e perda da condição de cidadão.

Estes territórios vulnerabilizados, percebidos como lugar de violência, são parte integrante da estrutura e dinâmica de uma forma política de Estado, onde regulação, controle e opressão tem um lugar fundamental. Portanto, eles são marcados por uma forma de atuação do Estado, e não por sua ausência. Como muitos ativistas de favelas destacam, o Estado está na favela sim, está com a intervenção armada, com serviços públicos precarizados.

Retomando Mbembe3333 Mbembe A. Necropolítica. Rev. Art. Ens. 2016; (32):122-151., esse modo de operar evidencia a ‘necropolítica’, ou seja, práticas de Estado que ao invés de produzir vida produzem morte, sendo o racismo elemento crucial para sua compreensão. A partir dessa discussão, denuncia a hierarquização sobre a cidadania, a vida e a morte transfigurando o elemento da hierarquização entre o Norte e o Sul global.

Essa hierarquização é reproduzida dentro do espaço urbano de metrópoles do Sul, como, por exemplo, nas favelas cariocas. Ali enxergamos o necropoder, espetacularizado pela mídia nacional sob a justificativa de guerra às drogas. A autorização para extinguir o ‘bandido’ é dada de maneira tácita pelo Estado, que identifica o traficante de drogas nas favelas e sujeita um corpo negro – dos traficantes e dos moradores, entrelaçando injustiças de gênero, raça e classe, ao construir minorias descartáveis.

O que aprofunda a discussão nas favelas é que a não garantia de direitos individuais acontece sem a deflagração de um Estado de Exceção3434 Agambem G. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo; 2008.. Ou seja, algumas populações e territórios não conseguem ter assegurado o que a constituição garante. Isso vem sendo denunciado constantemente e permanece não chocando. Pessoas são assassinadas: 111 tiros foram disparados contra 5 corpos de jovens negros, que comemoravam o primeiro emprego, na chacina de Costa Barros/ RJ. Cotidianamente denúncias são feitas e fica a pergunta: Por que essa sobreposição de violações dos direitos fundamentais não se tornam uma questão a ser enfrentada?

A resposta ecoa nos corpos que podem morrer, nas não garantias de direito que permitem matar, nas vidas que não valem a pena. Para o Estado, é apenas uma vida descartável. Mas para quem vive nesses territórios e/ou trabalha em um cotidiano imerso em sobreposições de violência isso desnuda invisibilidades, sofrimentos, situações iníquas de saúde. Nesse sentido, podemos pensar que o trabalhador, mesmo o que reside em outras áreas da cidade, também é margem.

Abarcando o avanço teórico dos autores, compreendemos que o adjetivo conflagrado indica uma sobreposição de violências inscritas nestes territórios, resultante de processos complexos associados à reprodução do capitalismo e suas formas políticas; a produção da favela enquanto margem do Estado3131 Das V, Poole D. Anthropology in the margins of the State. New Delhi: Oxford University Press; 2004., a disputa armada pelo poder do comércio de drogas ilegais ligadas ao narcotráfico, sendo esse um desdobramento da chamada Guerra às Drogas; às políticas constituídas para o exercício do necropoder3333 Mbembe A. Necropolítica. Rev. Art. Ens. 2016; (32):122-151..

Considerações finais

Os relatos e as cenas descritas trazem à tona parte do impacto da violência contínua em territórios conflagrados nas condições de vida e saúde da população, principalmente das pessoas que vivem e trabalham em favelas. A repetição dessas narrativas que reaparecem como demandas de cuidado em saúde na ESF e são, muitas vezes invisibilizadas e não registradas nas estatísticas, demonstram a necessidade de refletirmos sobre como nos mantemos ainda subjugados e presos em uma lógica colonial e patriarcal, que reinventa constantemente novas formas de controle, poder e morte das minorias.

Os fios cruzados dessas histórias, associados às relações de poder do território, desnudam o descompasso entre a consolidação democrática e a garantia de direitos básicos, sociais e civis, ao manter injustiças interseccionadas no tripé classe, raça e gênero. Essas vidas denunciam um dos nós da sociedade brasileira: a produção de uma cidadania hierarquizada que permanece impedindo a universalização de direitos e a proliferação de espaços de violência, espaços institucionais, territoriais e sociais.

Buscamos refletir sobre a utilização do conceito de território na saúde, considerando a dinamicidade necessária às práticas de cuidado no espaço onde a vida acontece. Tomando como lugar de análise territórios urbanos conflagrados e equipamentos da AB, torna-se imperativa a análise crítica sobre as condições de vida e saúde das coletividades que vivenciam experiências cotidianas de violência e não garantia de direitos sob uma perspectiva interdisciplinar e dialógica.

Refletimos sobre um dos desafios atuais do espaço urbano brasileiro: viver e trabalhar em territórios conflagrados; buscando aprofundar em outros aspectos dessa dimensão, como as diversas formas de violência narradas ao longo do texto, seus impactos nas necessidades de saúde e na construção do cuidado. Esse desafio aponta para a necessidade de enfrentamentos políticos, sociais e de saúde pública, que combinam questões históricas nunca superadas, como o racismo e a guerra às drogas, a questões essencialmente conjunturais, como a crise da saúde pública. O acirramento das desigualdades, do sofrimento, da desassistência e a reprodução de mortes evitáveis, que mantém vulnerabilidades entre territórios e grupos, de acordo com a raça, gênero e condições socioeconômicas, precisam ser objeto de estudos e enfrentamento entre as diversas áreas do conhecimento e a sociedade. É preciso se pensar em uma transformação efetiva com vistas à garantia de direitos das populações que se encontram às margens do Estado.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Gomes R, Deslandes SM. Interdisciplinaridade em Saúde Pública: um campo em construção. Rev. Latino-am. Enfermagem. 1994; 2(2):103-114.
  • 2
    Favret-Saada J. Ser afetado. Cad. Campo. 2005; (13):155-161.
  • 3
    Fiore M. Uso de drogas: substâncias, sujeitos e eventos [tese]. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 2012. 254 p.
  • 4
    Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. Plural. 2017; 24(1):214-241.
  • 5
    Cômite Internacional da Cruz Vermelha. Programa Acesso Mais Seguro. [acesso em 2021 set 2]. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/document/o-programa-acesso-mais-seguro
    » https://www.icrc.org/pt/document/o-programa-acesso-mais-seguro
  • 6
    Medeiros CS, Silva IS, Ferreira JVG. Nós por nós mesmo um relato de experiência decolonial em educação no Complexo da Maré. Periferia. 2021; 13(1):346-362.
  • 7
    Gallo EA. Educação patrimonial em contexto periférico: Preservação da igreja de São Daniel em Manguinhos/RJ. Periferia. 2020; 12(2):134-155.
  • 8
    Cezar CCM. Estratégia de Saúde da Família em território conflagrado pela violência armada: o desafio das ações de promoção da saúde no Complexo da Maré. [dissertação]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016. 104 p.
  • 9
    Broide J. Adolescência e Violência: criação de dispositivos clínicos no território conflagrado das periferias. Rev. psicol. política. 2010; 10(19):95-106.
  • 10
    Pereira ERN. Gestão escolar em territórios conflagrados: efeitos sobre a cultura profissional de diretores de escolas de São Paulo. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2018. 436 p.
  • 11
    Krenzinger M, Farias P, Morgado R, et al. Violência de gênero e desigualdade racial em uma pesquisa com mulheres do território conflagrado do conjunto de favelas da Maré/Rio de Janeiro. Rev. Trab. Necessário. 2021; 19(38):266-289.
  • 12
    Zaluar A, Conceição IS. Favelas sob o controle das Milícias no Rio de Janeiro- que paz? Rev. São Paulo em Persp. 2001; 21(2):89-101.
  • 13
    Bourdieu P. Miséria do Mundo. Petrópolis: Vozes; 1997.
  • 14
    Santos M. O retorno do território. In: Santos M, Souza MAA, Silveira ML, organizadores. Território, Globalização e Fragmentação. São Paulo: Hucitec; 1998. p. 15-20.
  • 15
    Monken M, Peiter P, Barcellos C, et al. O território na saúde: construindo referências para análises de saúde e ambiente. In: Miranda AC, Barcellos C, Moreira JC, et al. Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 23-41.
  • 16
    Monken M, Barcellos C. Vigilância em saúde e território utilizado: possibilidades teóricas e metodológicas. Cad. Saúde Pública. 2005; 21(3):898-906.
  • 17
    Santos AL, Rigotto RM. Território e territorialização: incorporando as relações produção, trabalho, ambiente e saúde na atenção básica à saúde. Trab. educ. saúde. 2010; 8(3):387-406.
  • 18
    Furtado JP, Oda WY, Borysow IC, et al. A concepção de território na Saúde Mental. Cad. Saúde Pública. 2016 [acesso em 2022 out 13]; 32(9):1-15. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/mhkpNm87vhrXYBWKzy7psjy/?lang=pt
    » https://www.scielo.br/j/csp/a/mhkpNm87vhrXYBWKzy7psjy/?lang=pt
  • 19
    Gondim GMM, Monken M, Iñiguez L, et al. O território da saúde: Organização do sistema de saúde e territorialização. In: Miranda AC, Barcellos C, Moreira JC, et al. Território, Ambiente e Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 237-255.
  • 20
    Cunha MB, Pivetta F, Porto MFS, et al. Vigilância Popular em Saúde: contribuições para repensar a participação no SUS. In: Botelho BO, Vasconcelos EM, Prado EV, Cruz PJS. Educação Popular em Saúde. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 79-101.
  • 21
    Foucault M. Microfísica do Poder. 24. ed. São Paulo: Graal; 2007.
  • 22
    Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 edições; 2018.
  • 23
    Gonçalves HCB, Queiroz MR, Delgado PG. Violência urbana e saúde mental: desafios de uma nova agenda? Fractal: Rev Psicol. 2017; 29(1):17-23.
  • 24
    Minayo MCS. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cad. Saúde Pública. 1994; 10(1):07-18.
  • 25
    Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.
  • 26
    Mari JJ, Mello MF, Figueira I. The impact of urban violence on mental health. Rev. Bras. Psiquiatria. 2008; 30(3):183-184.
  • 27
    Souza ER, Lima MLC. Panorama da violência urbana no Brasil e suas capitais. Ciênc. Saúde Colet. 2006; (11):1211-1222.
  • 28
    Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2020.
  • 29
    Zaluar AM, Pereira MA. Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV; 2014.
  • 30
    Machado LAS. Vida sob Cerco. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2008.
  • 31
    Das V, Poole D. Anthropology in the margins of the State. New Delhi: Oxford University Press; 2004.
  • 32
    Sabroza PC. Concepções sobre Saúde e Doença. Curso de Qualificação de gestores do SUS. Rio de Janeiro: ENSP- Fiocruz; 2004.
  • 33
    Mbembe A. Necropolítica. Rev. Art. Ens. 2016; (32):122-151.
  • 34
    Agambem G. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo; 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2021
  • Aceito
    29 Jul 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br