Ujvari SC, Adoni T. A História do Século XX Pelas Descobertas da Medicina.São Paulo: Editora Contexto Trade; 2014.
A história do século XX pelas descobertas da Medicina, de Stefan Cunha Ujvaria e Tarso Adoni é um livro completo e complexo. É completo por abordar quase todas as descobertas da medicina no referido século, o que o torna um referencial importante para os interessados nessa área, que após a leitura passam a ter elementos para pesquisa e aprofundamento em temas específicos. Contudo, esta virtude o torna complexo de se ler, pois muito embora cada um dos vinte e dois capítulos se apresente com um ano específico, em ordem cronológica crescente (1901 a 1996, com um capítulo adicional sobre o século XXI), existe menção de muitos eventos em um mesmo capítulo. Essa menção de acontecimentos, necessária para explicar e contextualizar as descobertas, precisa muitas vezes de várias passagens que se deram em continentes diferentes e em momentos distintos. Um exemplo é o trecho em que os autores mesclam o feito do cirurgião norte-americano Charles Bailey na correção de efeitos da válvula mitral e um episódio político em outro país: No ano em que Bailey obteve sucesso, um novo regime político assumia as rédeas do governo da África do Sul. Por isso, algumas vezes, o leitor menos afeito à tal tergiversação pode perder o foco do que é o principal no texto. Ademais, a linguagem é romanceada, como neste trecho: A Europa, rasgada por estradas de ferro, presenciou o crescente desfile de vagões que ligavam jazidas de carvão e pedreiras às fábricas urbanas.
A crítica está longe de tornar a obra dispensável. Guardados os devidos cuidados na leitura para que o leitor menos habituado às obras literárias e mais aos textos curtos e diretos da área médica, pode-se aprender muito. A introdução não deixa dúvidas e afirma que, apesar do avanço tecnológico do século XIX, a medicina teve um péssimo desenvolvimento – a industrialização trouxe poluição, doenças e mortes. O século XX trouxe a cura de muitas moléstias, trouxe as vacinas para as doenças transmissíveis, os antibióticos e os exames para a detecção precoce das doenças. A obra relata essa história.
O desenvolvimento do livro ocorre em pequenos capítulos, que tem uma sequência temporal marcada no título. Ano 1901 – dormindo com o inimigo, trata da descoberta de Walter Reed sobre a febre amarela. O assunto é atual, pois, nos dias de hoje, lida-se com a endemia de dengue no Brasil, além de outras. Reed descobriu a cura para a febre amarela, mas a dengue ainda não tem cura. Nesses últimos meses do ano de 2015, vive-se Brasil a epidemia de Zika vírus, também transmitida pelo Aedes aegypti. Ano 1905 – o látex ensanguentado trata da descoberta do ácido carbólico (fenol) e do primeiro par de luvas cirúrgicas da história da Medicina para prevenção da dermatite de contato. Estas duas descobertas transformaram os centros cirúrgicos da época.
A década de 1910 abarca três capítulos. Ano 1910 – Os genes deixam a caixa de pandora traça um caminho que vai da redescoberta do experimento de Mendel em 1900 às moscas do experimento de Morgan – estudioso que descobriu a localização dos genes nos cromossomos. O capítulo finaliza com o movimento da eugenia. Ano 1912 – O prefácio dos transplantes trata da descoberta de Alexis Carrel na área de suturas e como ele desvelou a técnica dos transplantes. Carrel foi premiado com o Prêmio Nobel em 1912 por suas contribuições. Ano 1919 – o fim dos ossos fracos trata da história da cura do raquitismo.
Os anos de 1920 trazem dois capítulos. Ano 1921 – intrigas e brigas na descoberta da insulina aponta que a diabetes já era conhecida desde a Antiguidade, mas mesmo no século XVIII ainda se estava longe de descobrir sua causa e como tratá-la. Os médicos achavam que a doença era causada pelo mau funcionamento dos rins e o primeiro experimento em humanos feito com sucesso ocorreu em 1922. O título do capítulo deixa o leitor curioso e os autores são capazes de traçar as relações entre os vários pesquisadores – nem sempre amistosas – na busca da causa e tratamento do diabetes. Ano 1927 – O inimigo invisível se torna aliado aborda o caso da primeira paciente a ser tratada com elementos radioativos para redução de um tumor. Em 1927 surgiu uma forma mais segura e menos nociva à saúde de radioterapia, com doses fracionadas e menos intensas. Os autores mencionam, contudo, que o avanço definitivo veio após a Segunda Guerra Mundial, com uma forma totalmente segura de radioterapia para o tratamento de câncer.
Os antibióticos são abordados no capítulo Ano 1935 – chegam os antibióticos. São mencionadas a sulfanilamida e a penicilina e os experimentos feitos com cobaias humanas para testar a eficácia deste último no combate à sífilis. Ano 1947 – da laranja à tuberculose é uma aula de causalidade em epidemiologia, reservando parte importante ao estatístico Austin Bradford Hill, que havia sobrevivido à letal tuberculose e à Primeira Guerra Mundial. O capítulo conta sobre o método de aleatorização utilizado por Hill, que selecionou mais de cem cobaias humanas para a pesquisa sobre o tratamento da tuberculose com estreptomicina. Austin Bradford Hill é personagem importante no capítulo seguinte, novamente. Ano 1952 – A maldita fumaça conta a história do estudo de coorte com médicos britânicos, conduzido por Richard Doll e Bradford Hill que desvendaram a associação entre o cigarro e o câncer de pulmão. Esse capítulo também deveria ser leitura obrigatória a alunos de graduação e pós-graduação que se aventuram pela epidemiologia e pelos desenhos de estudos.
Ano 1952 – Um grego salva as mulheres relata a história do grego George Papanicolaou e o teste Papanicolaou. A maior parte do capítulo é voltada a esse tema, mas a droga LSD, utilizada pela CIA para conter o avanço do comunismo, também foi mencionada.
Os anos de 1960 mereceram quatro capítulos. O primeiro deles é Ano 1960 – a chegada da pílula anticoncepcional. O segundo é Ano 1962 – a primeira vitória contra o câncer, que relata a combinação exitosa das drogas aminopterina, 6-MP, corticoide e vincristina. Esse capítulo se associa bem ao capítulo referente ao ano 1927 onde se mencionava a radioterapia. Ano 1967 – a impensável substituição de um órgão vital tem estreita relação com o capítulo referente aos transplantes, de 1912, mas vai além, relatando novos acontecimentos e terminando com o primeiro transplante cardíaco, ocorrido em 1953. Finalmente, o último capítulo da década de 1960 é Ano 1969 – a longa busca pela transfusão sanguínea.
Ano 1971 – A visão do interior humano aborda as radiografias e as tomografias. Ano 1977 – O triunfo das vacinas relata que, embora os primeiros registros de imunização já tivessem sido encontrados desde 1774, houve um caminho grande a percorrer para uma vacinação segura. Esse capítulo trata da vacinação contra a varíola e da erradicação da doença, sendo muito útil para aqueles interessados na vigilância epidemiológica. Ano 1978 – A construção do bebê de proveta percorre a história da inseminação artificial, desde o inventor do microscópio, Antony Leeuwenhoek, até o evento histórico de 1978, o nascimento de Louise Brown, o primeiro bebê de proveta humano. Ano 1979 – O fim da maior intoxicação mundial conta a história do chumbo. Destaque para o estudo que perdurou de 1975 a 1978 e demonstrou que quanto maior a concentração de chumbo nos dentes, menores os níveis de desempenho escolar das crianças. Com base nesse estudo, as leis nos Estados Unidos e em outros países estabeleceram a redução do uso permitido de chumbo nos combustíveis.
Os últimos três capítulos tratam da história do colesterol (Ano 1984 – A longa perseguição ao colesterol), do surgimento da Aids e suas evoluções no tratamento (Ano 1996 – A chegada de um coquetel) e dos avanços que foram trazidos pelo projeto Genoma Humano (Século XXI – O garimpo dos genes). Em relação a este último capítulo, é uma aula muito clara àqueles que pouco sabem sobre a relação dos genes com saúde. Os autores trazem claramente a descoberta de que câncer de mama é afetado pela história familiar (mutação no cromossomo 17) e também trazem a história da descoberta da doença de Alzheimer feita pelo psiquiatra e neurologista Alois Alzheimer. Chama ainda a atenção o relato das descobertas de Jean-Martin Charcot, que estudou uma doença previamente descrita em 1817 por James Parkinson: a doença de Parkinson. Alzheimer e Parkinson ainda não tem cura, mas o estudo dos genes pode mudar o tratamento e o prognóstico dessas doenças, o que é especialmente relevante em contexto demográfico de populações cada vez mais longevas. Os autores, estrategicamente, comentam sobre isso, ao dizer que essas doenças eram raras quando a esperança de vida ao nascer das populações era baixa. Hoje, essas doenças crescem em importância em decorrência da maior expetativa de anos a serem vividos a partir de uma certa idade.
Uma obra de literatura pode ser considerada excelente quando permite ao leitor desejar avançar. No caso deste livro, talvez tivesse sido pertinente um comentário geral sobre a Medicina Baseada em Evidência que tem sido aclamada como um principal avanço nas ciências ligadas à medicina, mas criticada como um modelo alternativo às descobertas pela prática e ensino da medicina. O livro de Ujvari e Adoni e, para os que se sentirem motivados, o artigo de Wyer e Silva1Wyer PC, Silva SA. Where is the wisdom? I - A conceptual history of evidence-based medicine. J Eval Clin Pract 2009; 15(6):891-898., publicado em 2009 no Journal of Evaluation in Clinical Practice – que mostra o desafio trazido pela quantidade imensa de publicações na área biomédica desde meados dos anos 1990 – são duas indicações que vão adicionar uma mistura interessante de conhecimento sobre medicina e entretenimento.
Referências
- Wyer PC, Silva SA. Where is the wisdom? I - A conceptual history of evidence-based medicine. J Eval Clin Pract 2009; 15(6):891-898.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Maio 2016