Resumo
O objetivo deste artigo é identificar fatores associados ao conhecimento e utilização de estratégias de prevenção combinada do HIV entre mulheres trabalhadoras do sexo (MTS). Estudo epidemiológico transversal, utilizando o método Respondent Driven Sampling (RDS). Foram realizadas análises descritivas após ajustes requeridos pelo método RDS. Para investigar fatores associados ao conhecimento de PEP e PrEP e utilização do preservativo feminino foi usada a regressão de Poisson, utilizando como medida de associação o Odds Ratio. MTS sem vínculo com ONGs, que não receberam material informativo sobre prevenção e/ou participaram de palestras nos últimos seis meses e que não se identificam como MTS nos serviços de saúde têm menos conhecimento sobre PEP e PrEP e utilizam com menor frequência o preservativo feminino. De maneira geral, as MTS não têm conhecimento e acesso suficiente às tecnologias de prevenção combinada do HIV a ponto de usufruir de seus benefícios. Consideramos que a adoção de modelos diferenciados de cuidados voltados para MTS em parceria com ONGs pode ser uma estratégia efetiva para ampliação do conhecimento e utilização das tecnologias de prevenção do HIV no Brasil.
Palavras-chave:
HIV; Trabalho sexual; Prevenção
Introdução
No Brasil, aproximadamente 900 mil pessoas vivem com HIV (PVHIV) e todos os anos são registrados em média 40 mil casos novos11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaría de Vigilancia em Saúde, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais (BR). Boletim Epidemiológico Aids e DST. Ano IV nº 0. Brasília: MS;2017. [acessado 2020 mar 15]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2017/boletim-epidemiologico-hivaids-2017,22 Brasil. Ministerio da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de DST AIDS e Hepatites Virais. Relatório de Monitoramento Clínico do HIV. 2017; 94. Brasília: MS;2017. [acessado 2020 mar 15]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2017/relatorio-de-monitoramento-clinico-do-hiv. A epidemia de HIV no Brasil é considerada concentrada em alguns segmentos populacionais, incluindo as mulheres trabalhadoras do sexo (MTS) que acumulam uma taxa de prevalência estimada de 5,3% (IC 95%: 4,4% -6,2%), maior em relação à população geral (0,4%)11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaría de Vigilancia em Saúde, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais (BR). Boletim Epidemiológico Aids e DST. Ano IV nº 0. Brasília: MS;2017. [acessado 2020 mar 15]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2017/boletim-epidemiologico-hivaids-2017,33 Drew M, Guimarães C, Ferreira-j C. Prevalence estimates of HIV, syphilis, hepatitis B and C among female sex workers (FSW) in Brazil, 2016. 2018; 97(Supl. 1):3-8..
Outro dado importante é o aumento da prevalência de sífilis nessa população, estimada em 2016 (8,5%; IC95%: 7,3% -9,7%) 3,5 vezes superior a 2009 (2,4%; IC95%: 1,7% a 3,4%). Além disso, as estimativas de prevalência de HBV e HCV foram de 0,4% (IC 95%: 0,2%-0,7%) e 0,9% (95%IC: 0,6% -1,3%)33 Drew M, Guimarães C, Ferreira-j C. Prevalence estimates of HIV, syphilis, hepatitis B and C among female sex workers (FSW) in Brazil, 2016. 2018; 97(Supl. 1):3-8..
Consta-se no Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN), no período de 2007 a junho de 2019, um total de 207.207 (69,0%) casos de infecção pelo HIV em homens e 93.220 (31,0%) casos em mulheres. A razão de sexos para o ano de 2018 foi de 2,6 (M:F), ou seja, 26 homens para cada dez mulheres. Entre as mulheres, 37,2% dos casos se deram entre brancas e 53,6% entre negras (pretas, 12,9% e pardas, 40,7%)11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaría de Vigilancia em Saúde, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais (BR). Boletim Epidemiológico Aids e DST. Ano IV nº 0. Brasília: MS;2017. [acessado 2020 mar 15]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2017/boletim-epidemiologico-hivaids-2017.
Segundo Boletim Epidemiológico de HIV publicado pelo Ministério da Saúde em 2019, observou-se uma tendência de queda da taxa de detecção entre as mulheres nos últimos dez anos, que passou de 17,0 casos/100.000 habitantes em 2008, para 10,5 em 2018, representando uma redução de 38,2%11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaría de Vigilancia em Saúde, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais (BR). Boletim Epidemiológico Aids e DST. Ano IV nº 0. Brasília: MS;2017. [acessado 2020 mar 15]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2017/boletim-epidemiologico-hivaids-2017.
Entre as mulheres, verifica-se que, nos últimos dez anos, a taxa de detecção de HIV apresentou queda em todas as faixas etárias, sendo as faixas de 25 a 29 e de 30 a 34 anos as que apresentaram as maiores quedas: 51,2% e 53,2%, respectivamente, quando comparados os anos de 2008 e 201811 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaría de Vigilancia em Saúde, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais (BR). Boletim Epidemiológico Aids e DST. Ano IV nº 0. Brasília: MS;2017. [acessado 2020 mar 15]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2017/boletim-epidemiologico-hivaids-2017.
Em 2018, as faixas etárias com maior detecção foram as das mulheres entre 40 e 44 anos (20,5 casos/100.000 habitantes)11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaría de Vigilancia em Saúde, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais (BR). Boletim Epidemiológico Aids e DST. Ano IV nº 0. Brasília: MS;2017. [acessado 2020 mar 15]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2017/boletim-epidemiologico-hivaids-2017.
Na América Latina a epidemia de HIV é concentrada, estando em níveis considerados estáveis na população geral (0,2-0,7%). No Caribe, a epidemia é generalizada e uma das mais altas taxas de prevalências de HIV do mundo (<0,1-3%), sendo que as mulheres são responsáveis pela metade de todas as infecções. O cenário epidemiológico do HIV nos países latino-americanos é de maior prevalência entre homens que fazem sexo com homens (HSH), cerca de 11% a 17% na maioria dos países, com exceção de Bolívia (25%), México e Paraguai (21%) que demonstram prevalências acima de 20%44 AVERT. HIV and AIDS in Latin America regional overview. 2015 [Internet] [cited 2020 Mar 15]. Available from: http://www.avert.org/professionals/hiv-around-world/latin-america/overview
http://www.avert.org/professionals/hiv-a... ,55 Crabtree-ram B, Belaunzar PF, Sued O, Sierra-madero J, Cahn P, Pozniak A, Grinsztejn B. The HIV epidemic in Latin America: a time to reflect on the history of success and the challenges ahead. 2020; 1-4..
Foram registradas cem mil novas infecções de HIV na América Latina em 2017. O Brasil é responsável por 35% do número total de PVHIV da região e por 47% das novas infecções que ocorreram nesse período. Cerca de 1% das trabalhadoras do sexo do Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Paraguai, Peru e Uruguai viviam com HIV em 2017 em comparação com cerca de 5% na Bolívia, Brasil e Panamá. No Caribe, a prevalência varia entre 2% na Jamaica e 6% na Guiana. Quase 90% das novas infecções nesse período ocorreram em Cuba, na República Dominicana, no Haiti e na Jamaica. O Haiti responde por quase metade das novas infecções anuais por HIV e mortes relacionadas à Aids44 AVERT. HIV and AIDS in Latin America regional overview. 2015 [Internet] [cited 2020 Mar 15]. Available from: http://www.avert.org/professionals/hiv-around-world/latin-america/overview
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Estimativas mundiais demonstram que mulheres trabalhadoras do sexo podem chegar a ter 13,5 vezes mais chances de ter HIV do que outras mulheres (IC95% 10; 0-18·1)44 AVERT. HIV and AIDS in Latin America regional overview. 2015 [Internet] [cited 2020 Mar 15]. Available from: http://www.avert.org/professionals/hiv-around-world/latin-america/overview
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Estigma e discriminação são importantes barreiras que dificultam o acesso e o uso dos serviços de saúde, principalmente devido ao medo de se identificar como trabalhadora do sexo e receber um tratamento inadequado dos profissionais de saúde66 Dourado I, Guimarães MDC, Damacena GN, Magno L, De Souza Júnior PRB, Szwarcwald CL, Brazilian FSW Group. Sex work stigma and non-disclosure to health care providers: Data from a large RDS study among FSW in Brazil. BMC Int Health Hum Rights 2019; 19(1):1-8.,77 Chacham AS, Diniz SG, Maia MB, Galati AF, Mirim LA. Sexual and Reproductive Health Needs of Sex Workers: Two Feminist Projects in Brazil. Reprod Health Matters 2007; 15(29):108-118.. Estudo realizado pela RedTraSex (Red de Mujeres Trabajadoras Sexuales de Latinoamérica y el Caribe), em 14 países da América Latina, demonstra que quase dois terços das trabalhadoras do sexo entrevistadas não haviam mencionado seu trabalho na última visita ao serviço de saúde (REDTRASEX, 2013).
O trabalho sexual não é considerado crime no Brasil; a ilicitude é caracterizada quando há o envolvimento de menores de idade ou exploração sexual. Mesmo assim, essa ocupação ainda não está livre de discriminação e violações de direitos humanos66 Dourado I, Guimarães MDC, Damacena GN, Magno L, De Souza Júnior PRB, Szwarcwald CL, Brazilian FSW Group. Sex work stigma and non-disclosure to health care providers: Data from a large RDS study among FSW in Brazil. BMC Int Health Hum Rights 2019; 19(1):1-8.
7 Chacham AS, Diniz SG, Maia MB, Galati AF, Mirim LA. Sexual and Reproductive Health Needs of Sex Workers: Two Feminist Projects in Brazil. Reprod Health Matters 2007; 15(29):108-118.-88 Baral S, Beyrer C, Muessig K, Poteat T, Wirtz AL, Decker, MR Sherman SG, Kerrigan D. Burden of HIV among female sex workers in low-income and middle-income countries: A systematic review and meta-analysis. Lancet Infect Dis 2012; 12(7):538-549.. O modelo abolicionista, adotado na Argentina e também no Brasil desde 1942, quando entrou em vigor o atual Código Penal, considera certo grau de omissão do Estado no que diz respeito às garantias e direitos fundamentais de quem exerce o trabalho sexual, ou seja, nesse modelo, mesmo que não haja criminalização do trabalho sexual, quem o exerce fica à margem da sociedadeno que diz respeito aos direitos trabalhistas e previdenciários99 Dias LB. Uma reflexão crítica entre Prostituição e Políticas Públicas no Brasil. REP [Internet]. 2018; 2(1):44-46. [acessado 2020 mar 4]. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rep/article/view/7001
https://periodicos.unb.br/index.php/rep/... ,1010 Paes F, Queiroz C, Primo SM. Os sistemas político-jurídicos da prostituição e a regulamentação como legitimadora da prática exploratória. Fibra Lex 2016; 1:1-19..
Diferente do Brasil, alguns países sul-americanos como Uruguai, Equador e Bolívia adotam o regulamentarismo como sistema jurídico. Nesse modelo a profissão é reconhecida e regulamentada, porém existem algumas exigências a serem cumpridas, como por exemplo, que a mulher se submeta a exames periódicos ou que só exerça a atividade em locais determinados. Algumas garantias legais também são possibilitadas como a elaboração de contratos de trabalho, seguro social e aposentadoria1010 Paes F, Queiroz C, Primo SM. Os sistemas político-jurídicos da prostituição e a regulamentação como legitimadora da prática exploratória. Fibra Lex 2016; 1:1-19..
No Brasil, as estratégias de prevenção do HIV apresentam estágios diferentes de implantação. Dados divulgados pelo Ministério da Saúde sobre a Pesquisa de Conhecimentos Atitudes e Práticas na População Brasileira (PCAP) realizada em 2013 mostram que a maioria dos brasileiros (94%) sabe que o preservativo é melhor forma de prevenção às IST. Mesmo assim, 45% da população sexualmente ativa do país não usou preservativo nas relações sexuais casuais nos últimos 12 meses1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Pesquisa de Conhecimento, atitudes e práticas na população Brasileira. Série G. Estatística e Informação em Saúde. Brasília: MS; 2013. 166p.:il..
Nos anos 1990 vivenciamos a chamada tendência de feminização da epidemia de HIV, devido à evidência do crescimento de casos entre mulheres. Para responder a este fenômeno, o preservativo feminino começou a ser distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nos anos 2000 (NEPO, ABIA e UNFPA, 2011). A importância do preservativo feminino está relacionada principalmente ao fato de ser um insumo de prevenção sob o controle da mulher, permitindo maior autonomia em relação ao seu corpo e à sua vida sexual, especialmente em situações que envolvem negociação do uso do preservativo masculino1212 Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Preservativo feminino: das políticas globais à realidade brasileira. 2011. [acessado 2020 mar 4]. Brasília: UNFPA; 1987. Disponível em: www.unfpa.org.br..
Além das intervenções biomédicas consideradas clássicas, que incluem entre outras estratégias o uso de métodos de barreira como, por exemplo, o uso de preservativos, existe outro grupo de intervenções que estão relacionados à utilização de antirretrovirais (ARV) com o objetivo de limitar a capacidade do HIV de infectar indivíduo1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Prevenção Combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as) de saúde. Brasília: MS; 2017. 123 p.: il.11.,1414 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Prevenção Combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as) de saúde. Brasília: MS; 2017. 123 p.: il.11..
A Profilaxia Pós Exposição (PEP) é a utilização de antirretrovirais (ARV) por 28 dias, após qualquer situação em que exista o risco de contato com o vírus HIV. A recomendação é de início da PEP em até 72 horas, sendo mais eficaz se iniciado nas duas primeiras horas após a exposição. A PEP está disponível no SUS para profissionais de saúde, que tiveram exposição ao vírus do HIV decorrente de acidente ocupacional com material perfurocortante, desde 1999, e sua oferta vem sendo ampliada também para outros tipos de exposição, como no caso de exposição sexual consentida e nos casos de violência sexual. Nos últimos anos a oferta de PEP aumentou de 15.540 em 2009 para 107.340 profilaxias utilizadas em 20181515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI). Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Pós Exposição (PEP) de Risco à Infecção pelo HIV, IST e Hepatites Virais; Brasília:MS; 2018. [acessado 2020 mar 4]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2015/protocolo-clinico-e-diretrizes-terapeuticas-para-profilaxia-pos-exposicao-pep-de-risco,1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI). Relatório de monitoramento clínico do HIV. Brasília:MS; 2019. [acessado 2020 mar 4]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2019/relatorio-de-monitoramento-clinico-do-hiv-2019.
O Brasil foi o primeiro país da América Latina a instituir o tratamento para todas as PVHIV, independentemente do valor do CD4+, desde 2013. Até 2017, 45% dos países latino-americanos haviam adotado a mesma política de saúde, porém a cobertura de tratamento varia enormemente entre os países: de 36% na Bolívia a 67% no Peru (na América Latina) e de 31% em Belize, para 66% em Cuba (no Caribe)44 AVERT. HIV and AIDS in Latin America regional overview. 2015 [Internet] [cited 2020 Mar 15]. Available from: http://www.avert.org/professionals/hiv-around-world/latin-america/overview
http://www.avert.org/professionals/hiv-a... . As condições relacionadas à Aids continuam sendo as principais causas de morte entre PVHIV na região das Américas44 AVERT. HIV and AIDS in Latin America regional overview. 2015 [Internet] [cited 2020 Mar 15]. Available from: http://www.avert.org/professionals/hiv-around-world/latin-america/overview
http://www.avert.org/professionals/hiv-a... ,55 Crabtree-ram B, Belaunzar PF, Sued O, Sierra-madero J, Cahn P, Pozniak A, Grinsztejn B. The HIV epidemic in Latin America: a time to reflect on the history of success and the challenges ahead. 2020; 1-4..
A profilaxia pré-exposição ao HIV (PrEP) consiste na utilização de antirretrovirais por pessoas que não estão infectadas pelo HIV, mas que possam estar vivendo uma situação de vulnerabilidade ao vírus. A PrEP foi a intervenção biomédica mais recentemente incorporada ao âmbito da Prevenção Combinada no Brasil, em 20171717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI). Relatório de Implantação da Profilaxia Pós Exposição PrEP HIV 2019; Brasília:MS; 2019. [acessado 2020 mar 4]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2019/relatorio-de-implantacao-da-profilaxia-pos-exposicao-prep-hiv,1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Profilaxia pré-exposição (PrEP) de risco à infecção pelo HIV [Internet]. Vol. 1, Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas. 2018. 47 p. [acessado 2020 mar 4]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/publicacao/2017/protocolo-clinico-e-diretrizes-terapeuticas-para-profilaxia-pre-exposicao-prep-de-ri
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A oferta de PrEP na América Latina é escassa em toda a região. O Brasil é o único país da região em que a PrEP está disponível no SUS. Mesmo em países latino-americanos que têm sistemas públicos universais de saúde não existe oferta de PrEP de forma gratuita. No Chile, Costa Rica, Guatemala, México e Uruguai, a PrEP pode ser obtida por meio de provedores privados de saúde, ou projetos de pesquisa. Bahamas e Barbados eram os únicos países do Caribe que ofertavam PrEP através de um sistema público de saúde em 2018, embora também esteja disponível no sistema privado de saúde na Jamaica e no Suriname. A PrEP ainda não está disponível em Cuba, na República Dominica e Haiti44 AVERT. HIV and AIDS in Latin America regional overview. 2015 [Internet] [cited 2020 Mar 15]. Available from: http://www.avert.org/professionals/hiv-around-world/latin-america/overview
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Desde 2013 o Brasil vem investindo em modelos de prevenção combinada para tentar conter o avanço dos casos de HIV. Em um cenário epidemiológico de maior prevalência de HIV em alguns segmentos populacionais é importante que estes grupos possam ter acesso facilitado aos insumos de prevenção. Atualmente, o Brasil dispõe dos seguintes insumos/estratégias de prevenção combinada: oferta de preservativos femininos e masculinos, gel lubrificante, testagem regular para HIV, hepatites B e C e Sífilis; a prevenção da transmissão vertical (quando o vírus é transmitido para o bebê durante a gravidez), apoiada principalmente por ações que visam a qualificação do pré-natal; o diagnóstico e tratamento das IST e hepatites virais; a imunização para hepatites A e B; programas de redução de danos para pessoas que usam álcool e outras substâncias; a profilaxia pré exposição (PrEP); profilaxia pós exposição (PEP); e o tratamento para pessoas vivendo com HIV (PVHIV)1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Prevenção Combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as) de saúde. Brasília: MS; 2017. 123 p.: il.11.,1414 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Prevenção Combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as) de saúde. Brasília: MS; 2017. 123 p.: il.11..
Dada a importância que a epidemia Brasileira de HIV tem na região das Américas, este artigo tem por objetivo identificar os principais fatores associados ao conhecimento e a utilização de insumos de prevenção do HIV entre trabalhadoras do sexo, fornecendo evidências que apoiem a adoção de intervenções que facilitem o acesso das MTS às estratégias de prevenção combinada.
Materiais e métodos
Trata-se de um estudo epidemiológico transversal, utilizando amostragem baseada na metodologia Respondent Driven Sampling (RDS). Esse recorte é derivado de dados coletados do estudo realizado em 2016, denominado “Projeto Corrente da Saúde II”, realizado entre os meses de junho e novembro de 2016, com o objetivo de estimar aprevalência de HIV, sífilis e hepatite B e C e de avaliar conhecimentos, atitudes e práticas relacionadas à infecção pelo HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST) entre MTS33 Drew M, Guimarães C, Ferreira-j C. Prevalence estimates of HIV, syphilis, hepatitis B and C among female sex workers (FSW) in Brazil, 2016. 2018; 97(Supl. 1):3-8.,1919 Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza-Júnior P, Gui- marães M, Almeida W, Souza Ferreira AP, Ferreira-Júnior O, Dourado I, Brazilian FSW Group. Brazilian FSW Group (2018). Factors associated with HIV infection among female sex workers in Brazil. Medicine 2018; 97(Supl. 1):S54-S61.,2020 Damacena GN, Szwarcwald CL, Souza Júnior PRB, Ferreira Júnior OC, Almeida WS, Pascom ARP, Pimenta MC. Application of the Respondent-Driven Sampling methodology in a biological and behavioral surveillance survey among female sex workers, Brazil, 2016. Revista Brasileira de Epidemiologia 2019; 22(Supl. 1)::e190002..
As cidades e o tamanho mínimo da amostra foram estabelecidos pelo Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI) doMinistério da Saúde (MS), de acordo com critérios geográficos e epidemiológicos. O tamanho de amostra pré-estabelecido foi de no mínimo 350 entrevistas válidas por cidade, em alguns locais esse número foi um pouco maior totalizando 4.328 MTS entrevistadas1919 Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza-Júnior P, Gui- marães M, Almeida W, Souza Ferreira AP, Ferreira-Júnior O, Dourado I, Brazilian FSW Group. Brazilian FSW Group (2018). Factors associated with HIV infection among female sex workers in Brazil. Medicine 2018; 97(Supl. 1):S54-S61.,2020 Damacena GN, Szwarcwald CL, Souza Júnior PRB, Ferreira Júnior OC, Almeida WS, Pascom ARP, Pimenta MC. Application of the Respondent-Driven Sampling methodology in a biological and behavioral surveillance survey among female sex workers, Brazil, 2016. Revista Brasileira de Epidemiologia 2019; 22(Supl. 1)::e190002..
Foram analisados dados de 4.328 questionários preenchidos por mulheres trabalhadoras do sexo das cidades de Manaus, Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Campo Grande e Brasília. Os critérios de elegibilidade incluíram ser mulher biologicamente; mínimo 18 anos de idade; ser trabalhadora do sexo em uma das cidades do estudo; ter trocado sexo por dinheiro pelo menos uma vez nos últimos quatro meses anteriores a entrevista; apresentar um cupom válido; não ter participado da pesquisa anteriormente; não apresentar indício de uso de drogas ou álcool no momento da participação; aceitar o convite e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A descrição completa da metodologia utilizada foi publicada por Damacena (2019)2020 Damacena GN, Szwarcwald CL, Souza Júnior PRB, Ferreira Júnior OC, Almeida WS, Pascom ARP, Pimenta MC. Application of the Respondent-Driven Sampling methodology in a biological and behavioral surveillance survey among female sex workers, Brazil, 2016. Revista Brasileira de Epidemiologia 2019; 22(Supl. 1)::e190002..
Neste estudo utilizamos análise descritiva para conhecer as principais características relacionadas ao acesso e utilização de insumos de prevenção combinada do HIV e registrar características de utilização dos serviços de saúde. Consideramos variáveis referentes ao acesso (se recebeu preservativos e gel lubrificante) e a utilização de insumos de prevenção ao HIV (preservativo feminino, masculino, creme/gel lubrificante, tratamento de HIV e sífilis, vacinação de hepatite B, PrEP e PEP) e características de utilização dos serviços de saúde (local que recebeu insumos de prevenção e/ou participou de palestras nos últimos seis meses; local que procurou na ocorrência de uma IST; se buscou assistência quando sofreu violência física, verbal ou sexual; e se ela se identifica como MTS nos serviços de saúde).
Na análise descritiva, foram calculadas as prevalências das variáveis de interesse, após o ajuste para os diversos portes populacionais das 12 cidades (em que o tamanho da amostra de cada uma havia sido fixado em 350), e a correção da homofilia, que consiste na tendência a recrutar pessoas com características semelhantes, requisito metodológico da técnica de amostragem RDS.
Foram investigados os fatores associados a dois desfechos de interesse “conhecimento sobre PEP e PrEP” e “uso de preservativo feminino”. Inicialmente foram realizadas análises bivariadas e aplicados testes de hipóteses correspondentes (qui-quadrado e quando necessário teste de Fisher), calculados os respectivos intervalos de confiança de 95%, as razões de prevalência e os respectivos valores p. Posteriormente foi utilizado o modelo de regressão de Poisson.
As variáveis “escolaridade”, “identificação como trabalhadora do sexo no serviço de saúde”, “local de Trabalho” e “tempo de exposição na profissão” foram dicotomizadas para facilitar a análise.
A ordem de entrada de cada uma das variáveis no modelo seguiu segundo o nível de significância e a força de associação. As variáveis que entraram no modelo deveriam ter nível de significância de p-valor <0,10). Foram avaliados ajustes do modelo verificando se alguma variável perdia significância. Em caso positivo, esta era removida e entrava a próxima variável conforme sequência. Este foi o procedimento utilizado para estimar cada um dos modelos, sendo a medida de associação o oddsratio e seu intervalo de confiança de 95%.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Oswaldo Cruz Fundação. O banco de dados foi cedido pelo Departamento de Doenças Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde DCCI/SVS/MS1919 Szwarcwald CL, Damacena GN, Souza-Júnior P, Gui- marães M, Almeida W, Souza Ferreira AP, Ferreira-Júnior O, Dourado I, Brazilian FSW Group. Brazilian FSW Group (2018). Factors associated with HIV infection among female sex workers in Brazil. Medicine 2018; 97(Supl. 1):S54-S61.,2020 Damacena GN, Szwarcwald CL, Souza Júnior PRB, Ferreira Júnior OC, Almeida WS, Pascom ARP, Pimenta MC. Application of the Respondent-Driven Sampling methodology in a biological and behavioral surveillance survey among female sex workers, Brazil, 2016. Revista Brasileira de Epidemiologia 2019; 22(Supl. 1)::e190002..
Resultados
Na Tabela 1 podemos observar as principais características relacionadas ao acesso e a utilização de insumos de prevenção combinada. A maioria das participantes recebeu preservativos masculinos nos últimos seis meses (82,0%), porém cerca de 66% e 60 % declararam não ter recebido preservativo feminino e creme/gel lubrificante respectivamente, no mesmo período.
Cerca de 37% das participantes não estava vacinada contra hepatite B e um percentual de 16,5% desconhece seu status vacinal. Dentre àquelas MTS que referem ter sido vacinadas, 14,6% não lembra o número de doses.
No que diz respeito ao tratamento para HIV, entre aquelas mulheres que conhecem seu diagnóstico, um percentual importante de cerca de 29% interrompeu e ou não iniciou o tratamento.
Para o tratamento da sífilis foi encontrado um menor percentual de mulheres que não realizaram tratamento após o diagnóstico (12,2%).
A profilaxia pós exposição (PEP) foi utilizada por apenas 7,1% das mulheres entrevistadas.
A Tabela 2 apresenta informações sobre os serviços de saúde e tipo de assistência recebida pelas MTS. Nesta tabela é possível observar que o serviço público de saúde foi o local em que a maioria teve acesso a insumos e informações sobre prevenção.
Em relação à ocorrência de infecções sexualmente transmissíveis (IST) noúltimo ano, o local preferencial para atendimento foi o posto de saúde ou unidade de saúde da família (51,3%). Cerca de 17% referiu não ter procurado nenhum serviço.
Mais de 70% das mulheres que sofreram violência física ou sexual não procuraram um serviço de saúde e pouco mais da metade das participantes do estudo referiu nunca se identificar como MTS nos serviços de saúde (51,5%).
A Tabela 3 apresenta informações relacionadas aos fatores associados ao conhecimento de PEP e PrEP a partir do modelo logístico proposto. Nesta tabela observamos que MTS com maior escolaridade e aquelas que trabalham em locais fechados tem respectivamente 50% e 25% mais chance de ter conhecimento sobre a profilaxia pós exposição (PEP).
Em contrapartida, MTS que não participam ou são membros de ONG (RP: 0,60; IC: 95%%; 0,45-, 0,83) que não participaram de palestras ou receberam materiais sobre prevenção nos últimos seis meses (RP: 0,67; IC: 95%: 0,56-0,83) que não procuram o mesmo serviço de saúde (RP: 0,74; IC: 95%: 0,60-0,92) e aquelas que não se identificam como trabalhadora do sexo no serviço de saúde (RP: 0,74; IC: 95%: 0,61-0,91) estão no grupo de trabalhadoras que tem menos chances de ter conhecimento sobre a PEP. Em todas as análiseshouve significância estatística.
No que diz respeito à PrEP foi possível identificar associação entre menor conhecimento sobre a profilaxia entre as mulheres que não participam de ONG (RP: 0,49; IC: 95%; 0,35-0,69) não receberam materiais sobre prevenção nos últimos seis meses (RP: 0,65; IC95%; 0,50-0,85) e não se identificam como trabalhadoras do sexo nosserviços de saúde (RP: 0,56; IC: 95%; 0,44-0,74).
A Tabela 4 apresenta informações relacionadas aos fatores associados ao uso do preservativo feminino. Nesta tabela é possível observar que mulheres que trabalham em locais fechados (RP: 0,77; IC: 95%0,61-0,99), não são membros de ONG (RP: 0,57; IC: 95%; 0,40-0,83), não receberam material educativo sobre IST e/ou não participaram de palestras nos últimos seis meses (RP: 0,57; IC95%; 0,57-0,94) e também não se identificam como trabalhadora do sexo nos serviços de saúde (RP: 0,54; IC: 95%%; 0,42-0,70) tendem a usar menos o preservativo feminino.
Mulheres que realizam trabalho sexual há mais de 5 anos (RP: 1,31; IC: 95%%; 1,02-1,70) e que referem usar preservativo durante sexo vaginal com parceiro fixo em mais da metade das vezes em que o encontro sexual ocorre (RP: 2,39; IC: 95%; 1,57-3,65) tem mais chances de usar preservativo feminino.
Discussão
Apesar do percentual elevado de mulheres que recebem preservativos masculinos (81,9%), cerca de dois terços das participantes referiram não ter recebido preservativo feminino. A maior chance de utilização do preservativo feminino está relacionada à realização de trabalho sexual por mais de cinco anos e uso de preservativo com parceiro fixo.
Dados divulgados pelo Ministério da Saúde sobre a Pesquisa de Conhecimentos Atitudes e Práticas na População Brasileira (PCAP), realizada em 2013, apontou que apesar do elevado nível de conhecimento das mulheres sobre o preservativo feminino (85%), sua utilização é baixa (5,0%). A pesquisa também não apontou diferenças significativas no uso do preservativo relacionadas à escolaridade e à classe econômica1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Pesquisa de Conhecimento, atitudes e práticas na população Brasileira. Série G. Estatística e Informação em Saúde. Brasília: MS; 2013. 166p.:il..
O preservativo feminino foi incorporado aos serviços de saúde desde o ano 2000, porém sua distribuição não acompanhou grandes campanhas de orientação sobre o seu uso. Houve pouca divulgação, comercialização e em alguns momentos interrupção de sua disponibilidade, fatores que mantiveram o seu uso muito limitado1212 Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Preservativo feminino: das políticas globais à realidade brasileira. 2011. [acessado 2020 mar 4]. Brasília: UNFPA; 1987. Disponível em: www.unfpa.org.br..
O preservativo feminino de borracha nitrílica não é alergênico e pode ser colocado com até oito horas de antecedência, o que se torna uma facilidade em contextos de trabalho sexual, em que frequentemente é necessária uma negociação quanto ao uso do preservativo. Dessa forma, a mulher passa a ocupar um lugar central e decisivo relacionado ao grau de risco ao qual pretende se submeter1212 Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Preservativo feminino: das políticas globais à realidade brasileira. 2011. [acessado 2020 mar 4]. Brasília: UNFPA; 1987. Disponível em: www.unfpa.org.br..
Grangeiro et al.2121 Grangeiro A, Ferraz D, Calazans G, Zucchi EM, Díaz-Bermúdez XP, Grangeiro A, et al. The effect of prevention methods on reducing sexual risk for HIV and their potential mpact on a large-scale: a literature review. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(Supl. 1):43-62. estudaram os métodos de prevenção e as intervenções estruturais que podem ter impacto na incidência de HIV. Um dos resultados aponta para a importante contribuição do preservativo feminino na redução de riscos para MTS em situação de violência ou que fazem programas sem a utilização do preservativo pelo cliente buscando maior remuneração2121 Grangeiro A, Ferraz D, Calazans G, Zucchi EM, Díaz-Bermúdez XP, Grangeiro A, et al. The effect of prevention methods on reducing sexual risk for HIV and their potential mpact on a large-scale: a literature review. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(Supl. 1):43-62..
Entre as intervenções biomédicas que compõem o escopo da prevenção combinada ao HIV está a vacinação contra hepatite B. Em nossa análise, cerca de 31% estariam elegíveis à vacinação, ou seja, deveriam estar vacinadas, mas não estão e/ou não receberam todas as doses para garantir a imunização.
O desconhecimento sobre o risco da hepatite B e falta de acesso aos serviços de saúde são algumas das situações que dificultam a imunização de populações de maior vulnerabilidade.
Quanto às trabalhadoras do sexo portadoras de HIV, encontramos cerca de 29% que relataram não realizar tratamento e/ou tê-lo interrompido. Atualmente existem evidências irrefutáveis (estudos HPTN 0522222 Cohen MS, Chen YQ, McCauley M, Gamble T, Hos- seinipour MC, Kumarasamy N, Hakim JG, Kumwenda J, Grinsztejn B, Pilotto JH, Godbole SV, Mehendale S, Chariyalertsak S, Santos BR, Mayer KH, Hoffman IF, Eshleman SH, Piwowar-Manning E, Wang L, Makhema J, Mills LA, de Bruyn G, Sanne I, Eron J, Gallant J, Havlir D, Swindells S, Ribaudo H, Elharrar V, Burns D, Taha TE, Nielsen-Saines K, Celentano D, Essex M, Fleming TR, HPTN 052 Study Team. Antiretroviral therapy for the prevention of HIV-1 transmission. New Engl J Med 2016; 375(9):830-839., Partner2323 Vernazza P, Collins S, van Lunzen J, Corbelli GM, Estrada V, Geretti AM, Beloukas A, Asboe D, Viciana P, Gutiérrez F, Clotet B, Pradier C, Gerstoft J, Weber R, Westling K, Wandeler G, Prins JM, Rieger A, Stoeckle M, Kümmerle T, Bini T, Ammassari A, Gilson R, Krznaric I, Ristola M, Zangerle R, Handberg P, Antela A, Allan S, Phillips AN, Lundgren J, PARTNER Study Group. Sexual Activity Without Condoms and Risk of HIV Transmission in Serodifferent Couples When the HIV-Positive Partner Is Using Suppressive Antiretroviral Therapy. JAMA 2016; 316(2):171-181. e Opposites Attract2424 Bavinton BR, Prestage GP, Jin F, Phanuphak N, Grinsztejn B, Fairley CK, Baker D, Hoy J, Templeton DJ, Tee BK, Kelleher A, Grulich AE, Opposites Attract Study Group. Strategies used by gay male HIV serodiscordant couples to reduce the risk of HIV transmission from anal intercourse in three countries. J Int AIDS Society 2019; 22(4): e25277.), que demonstram que PVHIV em tratamento e com boa adesão à terapia antirretroviral (TARV), atingem rapidamente a supressão viral, representando um impacto extremamente positivo na redução da transmissão do HIV, embasando as atuais recomendações de tratamento como prevenção2121 Grangeiro A, Ferraz D, Calazans G, Zucchi EM, Díaz-Bermúdez XP, Grangeiro A, et al. The effect of prevention methods on reducing sexual risk for HIV and their potential mpact on a large-scale: a literature review. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(Supl. 1):43-62.
22 Cohen MS, Chen YQ, McCauley M, Gamble T, Hos- seinipour MC, Kumarasamy N, Hakim JG, Kumwenda J, Grinsztejn B, Pilotto JH, Godbole SV, Mehendale S, Chariyalertsak S, Santos BR, Mayer KH, Hoffman IF, Eshleman SH, Piwowar-Manning E, Wang L, Makhema J, Mills LA, de Bruyn G, Sanne I, Eron J, Gallant J, Havlir D, Swindells S, Ribaudo H, Elharrar V, Burns D, Taha TE, Nielsen-Saines K, Celentano D, Essex M, Fleming TR, HPTN 052 Study Team. Antiretroviral therapy for the prevention of HIV-1 transmission. New Engl J Med 2016; 375(9):830-839.
23 Vernazza P, Collins S, van Lunzen J, Corbelli GM, Estrada V, Geretti AM, Beloukas A, Asboe D, Viciana P, Gutiérrez F, Clotet B, Pradier C, Gerstoft J, Weber R, Westling K, Wandeler G, Prins JM, Rieger A, Stoeckle M, Kümmerle T, Bini T, Ammassari A, Gilson R, Krznaric I, Ristola M, Zangerle R, Handberg P, Antela A, Allan S, Phillips AN, Lundgren J, PARTNER Study Group. Sexual Activity Without Condoms and Risk of HIV Transmission in Serodifferent Couples When the HIV-Positive Partner Is Using Suppressive Antiretroviral Therapy. JAMA 2016; 316(2):171-181.
24 Bavinton BR, Prestage GP, Jin F, Phanuphak N, Grinsztejn B, Fairley CK, Baker D, Hoy J, Templeton DJ, Tee BK, Kelleher A, Grulich AE, Opposites Attract Study Group. Strategies used by gay male HIV serodiscordant couples to reduce the risk of HIV transmission from anal intercourse in three countries. J Int AIDS Society 2019; 22(4): e25277.-2525 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Manejo da infecção pelo hiv em adultos [Internet]. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo. 2018. 412 p. [acessado 2020 mar 4]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2013/protocolo-clinico-e-diretrizes-terapeuticas-para-manejo-da-infeccao-pelo-hiv-em-adultos.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2013/pr... .
Carvalho et al.2626 Carvalho PP, Barroso SM, Coelho HC, Penaforte FRO. Factors associated with antiretroviral therapy adherence in adults: An integrative review of literature. Cien Saude Colet 2019; 24(7):2543-2555. realizaram uma revisão integrativa de literatura e identificaram múltiplos fatores associados à adesão à TARV, estando entre eles questões individuais; características do tratamento; características da infecção, aspectos da relação com o serviço de saúde e apoio social. De acordo com essas variáveis, a adesão assumiu valores diferentes dependendo da população estudada, confirmando o caráter heterogêneo e regional dos fatores relacionados à adesão2626 Carvalho PP, Barroso SM, Coelho HC, Penaforte FRO. Factors associated with antiretroviral therapy adherence in adults: An integrative review of literature. Cien Saude Colet 2019; 24(7):2543-2555..
Ampliar o número de PVHIV em tratamento e diminuir o número de abandono da TARV são dois desafios importantes para o Brasil e para os demais países da América Latina. Estima-se que, ao final de 2018, havia aproximadamente 900 mil PVHIV no Brasil, das quais 766 mil (85%) estavam diagnosticadas. Destas, 594 mil (66%) estavam em tratamento e 62% (554 mil) estavam com carga viral suprimida55 Crabtree-ram B, Belaunzar PF, Sued O, Sierra-madero J, Cahn P, Pozniak A, Grinsztejn B. The HIV epidemic in Latin America: a time to reflect on the history of success and the challenges ahead. 2020; 1-4.,1212 Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Preservativo feminino: das políticas globais à realidade brasileira. 2011. [acessado 2020 mar 4]. Brasília: UNFPA; 1987. Disponível em: www.unfpa.org.br.. Na América Latina, em 2018, 80% das PVHIV estavam diagnosticadas, entre essas 62% estavam em tratamento e 55% atingiram a supressão viral44 AVERT. HIV and AIDS in Latin America regional overview. 2015 [Internet] [cited 2020 Mar 15]. Available from: http://www.avert.org/professionals/hiv-around-world/latin-america/overview
http://www.avert.org/professionals/hiv-a... .
No contexto do trabalho sexual, o enfrentamento desse desafio precisa considerar as especificidades e vulnerabilidades que o acompanham como, por exemplo, as barreiras enfrentadas por essa população para chegar aos serviços de saúde, incluindo estigma e discriminação.
Internacionalmente alguns estudos vêm demonstrando vantagens do início de tratamento do HIV fora dos serviços de saúde desde que a TARV seja iniciada com segurança. Estudo realizado em Malawi identificou um maior número de pessoas que iniciam tratamento em casa do que àquelas que foram encaminhadas a um serviço de saúde. Para Ford et al., iniciar a TARV fora dos serviços de saúde pode ampliar e melhorar o acesso ao tratamento do HIV, principalmente para populações com dificuldades de acesso. Na Tanzânia essa possibilidade melhorou as taxas de início de TARV e reduziu o abandono de tratamento entre trabalhadores do sexo2727 Ford N, Geng E, Ellman T, Orrell C, Ehrenkranz P, Sikazwe I, Jahn A, Rabkin M, Ayisi Addo S, Grimsrud A, Rosen, S, Zulu I, Reidy W, Lejone T, Apollo T, Holmes C, Kolling AF, Phate Lesihla R, Nguyen HH, Bakashaba B, Bygrave H. Emerging priorities for HIV service delivery. PLoS Med 2020;17(2): e1003028..
A indicação de que a PEP foi pouco utilizada pelas MTS (7,1%) aliado ao fato de que mulheres com maior escolaridade e que trabalham em locais fechados teriam mais chance de ter conhecimento sobre a PEP são informações que podem embasar a ampliação e a qualificação da oferta de PEP no país, visto que a maioria das trabalhadoras do sexo trabalha na rua e tem baixa escolaridade, de acordo com os achados de Szwarcwald et al., em estudo realizado com a mesma população2828 Szwarcwald CL, Almeida S, Damacena GN. Changes in attitudes, risky practices, and HIV and syphilis prevalence among female sex workers in Brazil from 2009 to 2016. Med 2018; 97(Supl. 1):S46-S53..
Fatores associados ao menor conhecimento sobre PEP e PrEP estão relacionados à dificuldade de acesso à informação, não vinculação a um serviço de saúde e revelação de sua atividade laboral. Cohen et al. descreve entre as lições aprendidas no programa de PEP da cidade de São Francisco (EUA), que a falta de conhecimento da PEP entre potenciais usuários contribui para sua subutilização2929 Cohen SE, Liu AY, Bernstein KT, Philip S. Preparing for HIV pre-exposure prophylaxis: Lessons learned from post-exposure prophylaxis. Am J Prev Med 2013; 44(1 Supl. 2):S80-S85.. De maneira geral, as trabalhadoras do sexo não têm conhecimento suficiente sobre PEP e PrEP a ponto de usufruir de seus benefícios.
Os serviços públicos, especialmente as Unidades de Saúde da Família, são os locais que as trabalhadoras do sexo procuram quando se trata de um problema relacionado às infecções sexualmente transmissíveis (IST) (51,3%). Em contrapartida, àquelas que foram vítimas de violência física ou sexual não buscaram qualquer tipo de assistência. Essa é uma informação importante que pode apoiar a organização das Redes de Atenção às Vítimas de Violência a partir da articulação dos serviços de atenção primária com demais equipamentos de saúde e proteção social. A ampliação desse tipo de serviço deve necessariamente estar ligada à oferta das tecnologias de prevenção combinada.
Outro achado importante foi relacionado à necessidade de vinculação a uma ONG para que as MTS tenham mais acesso à informação. Além disso, essa articulação entre ONG e setores públicos de saúde e de proteção social poderia potencializar os efeitos positivos da prevenção do HIV relacionados ao empoderamento das MTS.
Percentual importante das participantes deste estudo omite ser trabalhadora do sexo quando busca um serviço de saúde (51,5%). Dourado et al. apontam o estigma e a discriminação como as principais barreiras de acesso aos serviços de saúde. Os autores referem que a adoção da invisibilidade é uma estratégia para evitar atitudes discriminatórias por parte dos profissionais de saúde66 Dourado I, Guimarães MDC, Damacena GN, Magno L, De Souza Júnior PRB, Szwarcwald CL, Brazilian FSW Group. Sex work stigma and non-disclosure to health care providers: Data from a large RDS study among FSW in Brazil. BMC Int Health Hum Rights 2019; 19(1):1-8..
Limitações
Além das limitações próprias da metodologia RDS descritas por Damacena et al.2020 Damacena GN, Szwarcwald CL, Souza Júnior PRB, Ferreira Júnior OC, Almeida WS, Pascom ARP, Pimenta MC. Application of the Respondent-Driven Sampling methodology in a biological and behavioral surveillance survey among female sex workers, Brazil, 2016. Revista Brasileira de Epidemiologia 2019; 22(Supl. 1)::e190002., podemos citar o fato de que o instrumento de coleta de informações durante a entrevista não contemplava questões relacionadas à prevenção combinada, modelo de prevenção adotado pelo Brasil. Outras limitações estão relacionadas às questões de utilização da PEP e conhecimento da PrEP pelas trabalhadoras do sexo, que poderiam ter considerado os momentos de disponibilização dessas tecnologias nos serviços de saúde. Para utilização da PEP, a indicação clínica pode ter se constituído como um viés importante de utilização.
Conclusão
Mesmo com as limitações desse estudo, foi possível identificar que as trabalhadoras do sexo ainda não têm acesso assegurado às tecnologias de prevenção combinada no Brasil, especialmente à utilização de preservativo feminino e PEP, realização de tratamento para HIV e vacinação para hepatite B. Fica evidente, neste estudo, que as barreiras de acesso, principalmente aquelas relacionadas ao estigma e à discriminação impedem que as MTS possam se beneficiar de tais tecnologias, inclusive em situações que envolvem violência.
O perfil de MTS que tem menor conhecimento sobre as intervenções biomédicas (PEP e PrEP) foi associado a não vinculação a uma ONG, não participação em palestras e/ou acesso a informações sobre prevenção nos últimos seis meses. Também foi associado com o fato de não se identificarem como MTS nos serviços de saúde.
Dessa forma, consideramos que a ampliação da oferta de prevenção combinada em Serviços de Atenção Primária (APS), a adoção de modelos de cuidados diferenciados e a promoção de um ambiente livre de discriminação podem contribuir de maneira expressiva para que essas tecnologias alcancem quem mais iria se beneficiar delas, a exemplo das MTS, evitando novas infecções.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
09 Ago 2021 - Data do Fascículo
Ago 2021
Histórico
- Recebido
26 Mar 2020 - Aceito
08 Jun 2020 - Publicado
10 Jun 2020