A violência nossa de cada dia, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2019

Maria Cecília de Souza Minayo Liana Wernersbach Pinto Cosme Marcelo Furtado Passos da Silva Sobre os autores

Resumo

Baseado na Pesquisa Nacional de Saúde, este artigo teve como objetivo verificar a associação entre as características sociodemográficas, de saúde e comportamental e a ocorrência de violência psicológica, física e sexual no Brasil, no ano de 2019. Modelos logísticos foram ajustados a quatro desfechos: ter sofrido violência física ou psicológica ou sexual nos últimos 12 meses; ter sofrido violência psicológica nos últimos 12 meses; ter sofrido violência física nos últimos 12 meses; ter sofrido violência sexual nos últimos 12 meses. Observou-se prevalência de 17,36% de violência psicológica, 4,15% de violência física e 0,76% de violência sexual. Permaneceram nos modelos finais as variáveis zona, sexo, faixa etária, cor da pele/raça, estado civil, rendimento per capita, estado de saúde, problema de saúde mental e consumo de álcool. Esses resultados podem e devem contribuir para propostas adequadas de ações de prevenção e de promoção, já que a Política Nacional de Prevenção de Acidentes e Violência, inclui esses fenômenos sociais no rol dos problemas que provocam adoecimento e mortes.

Palavras-chave:
Violência; Inquéritos Epidemiológicos; Brasil

Introdução

Dos 23 módulos que compuseram a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2019)11 Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa nacional de saúde: 2019: acidentes, violências, doenças transmissíveis, atividade sexual, características do trabalho e apoio social. Rio de Janeiro: IBGE; 2020., realizada por parceria entre o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Ministério da Saúde (MS) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), um deles foi “Violências”. Esse tema entrou no rol das políticas de saúde do Brasil em 2001, quando foi promulgada a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (PNRMAV)22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Brasília: MS; 2001.. A violência, segundo definição da Organização Mundial da Saúde em The World Report on Violence and Health (WHO)33 World Health Organization (WHO). World report on violence and health. Geneva: WHO; 2002. consiste no “uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação”. Esse fenômeno que acompanha a humanidade ocorre na sociedade e têm consequências para vítimas, perpetradores e comunidade e atinge pessoas de todas as idades, classes, gênero e raça/etnia de forma distinta33 World Health Organization (WHO). World report on violence and health. Geneva: WHO; 2002..

Embora a atenção midiática focalize os acidentes e as agressões mais espetaculares, a violência continua presente nas mais diferentes formas cotidianas de interação e todas afetam a saúde. As expressões que subjazem às relações sociais são definidas como “violência interpessoal” conceituada pela OMS como “uso intencional da força física ou do poder para atacar ou ameaçar alguém, algum grupo ou a comunidade, cujo resultado sejam lesões, morte, sofrimento psicológico, subdesenvolvimento pessoal e emocional e privações”33 World Health Organization (WHO). World report on violence and health. Geneva: WHO; 2002..

No documento World Report on violence and health, a violência interpessoal é definida em duas subcategorias: familiar e entre parceiros íntimos; e comunitária, a que acontece entre pessoas que se conhecem ou não e costuma ocorrer fora de casa. No primeiro caso, o conceito recobre abuso e maus tratos de crianças e adolescentes, agressões entre parceiros íntimos, e abuso de idosos. No segundo, inclui violência juvenil, abuso sexual, roubos, assaltos e maus tratos nas escolas, locais de trabalho, prisões e instituições de longa permanência. Em todas as situações mencionadas, encontram-se as violências físicas, psicológicas e sexuais e a recomendação de que essa tipologia precisa ser conhecida em sua especificidade em estudos locais, porque permeiam as relações familiares, laborais, hierárquicas e sociais em geral, provocando sofrimento, dor, lesões e morte33 World Health Organization (WHO). World report on violence and health. Geneva: WHO; 2002.

4 Minayo MCS, Assis SG, organizadores. Novas e velhas faces da violência no século XXI: Visão da literatura brasileira do campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017.
-55 Minayo MCS, Franco S. Violence and Health. Oxford Encyclop Glob Public Health 2020; 1-23. DOI: 10.1093/acrefore/9780190632366.013.32.
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
.

O objetivo desse artigo é verificar a associação entre as características sociodemográficas, comportamentais e de autoavaliação de saúde e a ocorrência de violência psicológica, física e sexual no Brasil, no ano de 2019, a partir dos dados da Pesquisa Nacional de Saúde.

Materiais e métodos

O presente artigo se constitui em um estudo transversal de base secundária, que utilizou dados da PNS 2019, um inquérito nacional de base domiciliar realizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde (MS) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Essa pesquisa teve como objetivo coletar informações sobre o acesso e uso dos serviços de saúde e sobre as condições de saúde da população. Maiores detalhes sobre o contexto de realização do estudo e como se deu a coleta de dados podem ser encontrados em Stopa et al.66 Stopa SR, Szwarcwald CL, Oliveira MM, Gouvea ECDP, Vieira MLFP, Freitas MPS, Sardinha LMV, Macário EM. Pesquisa Nacional de Saúde 2019: histórico, métodos e perspectivas. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(5):e2020315..

A população-alvo da PNS é composta pelos indivíduos com 15 anos ou mais moradores em domicílio particulares permanentes, sendo ela representativa para o Brasil, suas Grandes Regiões, Unidades da Federação, Regiões Metropolitanas, Capitais e municípios. Cabe destacar que na análise dos dados sobre violência participaram apenas os indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, uma vez que o módulo de violência foi respondido somente por pessoas a partir dessa faixa etária.

Na PNS 2019 foi empregada amostragem conglomerada em três estágios, com os setores censitários ou conjunto de setores, os domicílios e os moradores de 15 anos ou mais constituindo, respectivamente, as unidades de primeiro, segundo e terceiro estágio. A PNS é parte do Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares (SIPD), sendo empregada a mesma amostra mestre da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios contínua (PNAD). Maiores detalhes sobre o processo de amostragem e o processo de coleta de dados podem ser encontrados em publicações prévias11 Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa nacional de saúde: 2019: acidentes, violências, doenças transmissíveis, atividade sexual, características do trabalho e apoio social. Rio de Janeiro: IBGE; 2020.,66 Stopa SR, Szwarcwald CL, Oliveira MM, Gouvea ECDP, Vieira MLFP, Freitas MPS, Sardinha LMV, Macário EM. Pesquisa Nacional de Saúde 2019: histórico, métodos e perspectivas. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(5):e2020315..

Foram consideradas quatro variáveis desfecho, a saber: (1) “ter sofrido violência psicológica ou física ou sexual nos últimos 12 meses”; (2) “ter sofrido violência psicológica nos últimos 12 meses”; (3) “ter sofrido violência física nos últimos 12 meses”; e (4) “ter sofrido violência sexual nos últimos 12 meses”. A prevalência de cada um dos quatro desfechos foi calculada considerando a proporção de respostas positivas para cada um deles. O mesmo procedimento foi aplicado para cada uma das categorias das variáveis explicativas.

O desfecho “ter sofrido violência psicológica ou física ou sexual nos últimos 12 meses” foi criado a partir da junção de três outras variáveis criadas previamente, a saber: “ter sofrido violência psicológica nos últimos 12 meses”, “ter sofrido violência física nos últimos 12 meses” e “ter sofrido violência sexual nos últimos 12 meses”.

A violência psicológica foi aferida a partir de cinco questões do questionário: “Nos últimos doze meses, alguém te ofendeu, humilhou ou ridicularizou na frente de outras pessoas?”, “Nos últimos doze meses, alguém gritou com você ou te xingou?”, “Nos últimos doze meses, alguém usou redes sociais ou celular para ameaçar, ofender, xingar ou expor imagens suas sem o seu consentimento?”, “Nos últimos doze meses, alguém te ameaçou de ferir ou machucar, alguém importante para você?” e “Nos últimos doze meses, alguém destruiu alguma coisa sua de propósito?”.

Na obtenção da variável relativa à violência física usaram-se as seguintes perguntas do questionário: “Nos últimos doze meses, alguém te deu um tapa ou uma bofetada?”, “Nos últimos doze meses, alguém te empurrou, segurou com força ou jogou algo em você com a intenção de machucar?”, “Nos últimos doze meses, alguém te deu um soco, chutou ou arrastou pelo cabelo?”, “Nos últimos doze meses, alguém tentou ou efetivamente estrangulou, asfixiou ou te queimou de propósito?” e “Nos últimos doze meses, alguém te ameaçou ou feriu com uma faca, arma de fogo ou alguma outra arma ou objeto?”.

Para a violência sexual empregaram-se duas perguntas do questionário, a saber: “Nos últimos doze meses, alguém tocou, manipulou, beijou ou expôs partes do seu corpo contra sua vontade?” e “Nos últimos doze meses, alguém te ameaçou ou forçou a ter relações sexuais ou quaisquer outros atos sexuais contra sua vontade?”.

Na elaboração das variáveis relativas às violências psicológica, física e sexual a presença de uma resposta positiva a qualquer uma das perguntas representava vitimização por aquela forma de violência.

As variáveis explicativas utilizadas foram organizadas em três blocos, a saber:

  1. - Sociodemográficas: zona (urbana e rural); região (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste); sexo (masculino e feminino); faixa etária (19 a 29 anos, 30 a 39 anos, 40 a 49 anos, 50 a 59 anos, 60 ou mais); cor da pele/raça (branca, amarela, preta ou parda e indígena); estado civil (casado, divorciado ou desquitado ou separado judicialmente, viúvo, solteiro); escolaridade (sem instrução ou fundamental incompleto, fundamental completo ou médio incompleto, ensino médio completo ou superior incompleto, ensino superior completo); renda (até ½ salário mínimo, mais de ½ até 1 salário mínimo, mais de 1 até 2 salários mínimos, mais de 2 até 5 salários mínimos, mais de 5 salários mínimos);

  2. - Saúde: autoavaliação do estado de saúde (muito bom, bom, regular, ruim, muito ruim); diagnóstico de depressão ou outra doença mental (não, sim);

  3. - Comportamental: consumo de álcool (não bebo nunca, menos de uma vez por mês, uma ou mais vezes por mês).

Todo o processo de ponderação e pós-estratificação foi realizado pelo IBGE e espera-se, dado o desenho amostral probabilístico e os procedimentos empregados, que os estimadores calculados de forma correta, não apresentem vieses. O desenho e os pesos do plano amostral foram incluídos em todas as análises.

Com a finalidade de verificar os fatores associados a cada um dos quatro desfechos em análise foram ajustados modelos de regressão de Poisson, com utilização do método backward não automático de seleção de variáveis. Inicialmente, foram inseridas nos modelos todas as variáveis que tiveram p-valor inferior a 0,25 no modelo simples. As razões de prevalência brutas e ajustadas foram calculadas, bem como seus respectivos intervalos de confiança de 95%. No modelo final foram mantidas as variáveis com p-valor inferior a 0,05. As análises foram realizadas no software R versão 4.1.3, sendo empregadas as bibliotecas survey e tableone.

A PNS foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), do Conselho Nacional de Saúde (CNS), em agosto de 2019. A pesquisa atende a todas as normas e diretrizes da Resolução 466/2012 do CNS e todos os respondentes foram esclarecidos e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados

A análise dos dados da PNS mostra que 18,3% das pessoas com 18 anos ou mais sofreram violência psicológica, física ou sexual em 2019. Sua distribuição segundo Região e Unidade da Federação (UF) pode ser observada na Figura 1, onde se verifica que 13 das 27 UF apresentaram proporção acima da estimativa nacional, ou seja, foram superiores a 18,3%. As maiores prevalências foram observadas em Sergipe (24,9%), Roraima (22,3%), Bahia (21,8%) e Mato Grosso do Sul (20,6%). E as menores no Acre (12,4%), Santa Catarina (13,3%), Mato Grosso (14,8%) e Rondônia (15,5%).

Figura 1
Proporção de pessoas com 18 anos ou mais de idade que sofreram violência (psicológica ou física ou sexual) nos últimos 12 meses anteriores à entrevista segundo UF e Região do país, Brasil, 2019.

Na Tabela 1, observam-se as distribuições das características sociodemográficas, do estado de saúde e do consumo de álcool segundo a vitimização por violência psicológica ou física ou sexual, analisadas de forma agregada. Verifica-se da tabela percentual ligeiramente superior de ocorrência de violência entre os residentes na zona urbana. Os percentuais de vitimização segundo região do país são bem semelhantes, tendo variado de 16,65% no Sul a 18,72% no Nordeste. Entre as mulheres, 19,38% informaram ter sofrido violência contra 17,01% para os homens. Quanto à faixa etária, observa-se prevalência mais elevada entre os mais jovens e decréscimo com o avanço da idade. Sobressaem ainda aqueles de cor da pele/raça preta/parda ou indígena (19,59%), as pessoas solteiras (22,90%), com ensino fundamental completo ou médio incompleto (20,71%) e renda até ½ salário-mínimo (21,39%). Com relação ao estado de saúde, verifica-se aumento da prevalência de vitimização por violência na medida em que piora a avaliação do indivíduo sobre sua própria saúde. Assim, verifica-se da tabela que a prevalência de violência foi de 16,90% entre aqueles que avaliaram seu estado de saúde como muito bom contra 29,57% entre aqueles que avaliaram como muito ruim. No que se refere a saúde mental, observa-se maior ocorrência de vitimização por violência entre aqueles que afirmaram ter problemas de saúde mental (31,56%). Nota-se ainda da tabela que a medida que aumenta o consumo de álcool, também aumenta a vitimização por violência. Observou-se diferença significativa nas prevalências para todas as variáveis analisadas, sendo p<0,04 para a variável região e p<0,001 para as demais.

Tabela 1
Prevalência (%) de violência na população brasileira de adultos (≥18 anos) segundo características sociodemográficas, estado de saúde, problema de saúde mental e consumo de álcool, Brasil, 2019.

Na Tabela 2 é apresentada a distribuição das variáveis explicativas segundo tipo de violência sofrida. Chama atenção a diferença na vitimização segundo natureza da violência, com a violência psicológica sendo a mais referida entre os entrevistados (17,36%). Observa-se prevalências mais elevadas entre aqueles que habitam a zona urbana. Quanto à região do país, novamente verifica-se percentuais semelhantes de vitimização, variando de 15,90% a 17,83% para a violência psicológica, 3,84% a 4,71% para a física e de 0,49% a 0,93% para a sexual, estas, contudo, não foram significativas. O sexo feminino exibe maior prevalência para todos os tipos de violência, sem, contudo, exibir diferença significativa para a violência física. Destacam-se ainda aqueles de faixas etárias mais jovens e de cor de pele/raça preta/parda ou indígena. Vale ressaltar, contudo, que a variável cor da pele/raça não se mostrou significativa para vitimização por violência sexual. As três formas de violência ocorrem com maior frequência entre os solteiros, com aqueles que têm o ensino fundamental completo e médio incompleto e com os que ganham até ½ salário mínimo. Novamente observa-se um gradiente para as variáveis estado de saúde e consumo de álcool. Assim, aqueles com pior estado de saúde exibiram maior prevalência de violência, assim como aqueles que informaram maior consumo de álcool. Cabe destacar, contudo, que a variável estado de saúde não mostrou significância estatística para a violência sexual. Verifica-se ainda prevalências maiores entre aqueles que informaram possuir problemas de saúde mental.

Tabela 2
Prevalência (%) de violências (psicológica, física e sexual) na população brasileira de adultos (≥18 anos) segundo características sociodemográficas, estado de saúde, problema de saúde mental e consumo de álcool, Brasil, 2019.

Na Tabela 3, podem-se observar as razões de prevalência brutas e ajustadas para as variáveis incluídas no modelo final para o desfecho “ter sofrido violência psicológica ou física ou sexual nos últimos 12 meses”. Viver em zona urbana representa um risco 33% maior de sofrer violência. Verifica-se que as mulheres têm uma prevalência 8,0% maior de sofrer violência se comparadas aos homens, controlando-se as demais variáveis. Já em relação à idade, percebe-se a presença de um gradiente, com diminuição da prevalência de sofrer violência à medida que se avança para as faixas mais velhas. Assim, observa-se que a prevalência para os mais jovens (18 a 29 anos) é 1,58 vezes maior se comparada com a categoria de 60 anos ou mais, ajustando-se pelas demais variáveis. Os indivíduos de cor da pele/raça negra ou indígena mostraram prevalência 13% maior se comparados aos indivíduos brancos ou amarelos, controlando-se pelas demais variáveis. Observa-se ainda que a prevalência aumenta para divorciados/desquitados/separados judicialmente (22%) e diminui para viúvos (18%) e casados (17%) quando essas categorias são comparadas aos solteiros, após se controlar pelas demais variáveis. Em relação à renda, nota-se prevalência 9,0% menor entre os que recebem de ½ a dois salários mínimos e entre os que têm renda de mais de ½ até um salário mínimo, após ajuste pelas demais variáveis. Um gradiente para as variáveis estado de saúde e consumo de álcool também foi identificado. Desta forma, verifica-se na tabela que a prevalência de ter sofrido violência aumenta à medida que piora a avaliação de saúde pelo indivíduo. Situação semelhante se observa para o consumo de álcool, cuja razão de prevalência aumenta à medida que eleva o uso, sendo 27% maior entre os que afirmaram ingerir bebida alcoólica uma ou mais vezes por mês quando comparados aos indivíduos que informaram não beber nunca, após ajuste pelas demais variáveis. Por fim, nota-se aumento de 77% na razão de prevalências de vitimização por alguma forma de violência dentre aqueles que afirmaram ter algum problema de saúde mental.

Tabela 3
Razões de prevalência (RP) brutas e ajustadas das variáveis do modelo final da ocorrência de violência psicológica ou física ou sexual na população brasileira de adultos (≥18 anos), Brasil, 2019.

A Tabela 4 exibe o modelo final para a vitimização por violência psicológica, na qual se pode observar um padrão bastante semelhante ao das violências agregadas (Tabela 3). Assim, residir em zona urbana, ser do sexo feminino, ser jovem (18 a 29 anos), ter cor da pele/raça negra ou indígena, ser divorciado, mencionar estado de saúde ruim ou muito ruim, relatar problema de saúde mental e consumir álcool uma ou mais vezes por mês, resultaram em uma prevalência aumentada quando se comparam às categorias de base dessas variáveis. Já para as categorias ser casado ou viúvo, ter renda de ½ a 1 salário mínimo exibiram prevalências diminuídas em relação às categorias de base.

Tabela 4
Razões de prevalência (RP) brutas e ajustadas das variáveis do modelo final da ocorrência de violência psicológica na população brasileira de adultos (≥18 anos), Brasil, 2019.

No que concerne a vitimização por violência física (Tabela 5), novamente se nota um padrão semelhante aos verificados para os desfechos das violências agregadas (Tabela 3) e psicológica (Tabela 4). Nota-se na tabela que os percentuais de aumento das prevalências se mostram bem mais acentuados para a faixa etária mais jovem, ser de cor da pele/raça negra/indígena, ter estado de saúde ruim ou muito ruim e relatar consumo de álcool. Quanto ao estado civil, apenas a categoria “casado” se mostrou estatisticamente significativa, sendo verificada uma prevalência 31% menor, quando comparada aos solteiros. Outro diferencial é em relação a variável renda, onde se nota que não só todas as categorias foram significativas, mas que à medida que aumenta a renda, tende a se reduzir a prevalência de vitimização por violência física.

Tabela 5
Razões de prevalência (RP) brutas e ajustadas das variáveis do modelo final da ocorrência de violência física na população brasileira de adultos (≥18 anos), Brasil, 2019.

O modelo final para a violência sexual (Tabela 6) exibiu algumas prevalências ainda mais elevadas que as verificadas para a violência física. Adicionalmente, não se verificou significância para a variável zona (excluída do modelo final) e houve inclusão da variável região. Nesta, nota-se na tabela, que pertencer à região Sul acarreta uma prevalência 40% menor de sofrer essa forma de violência em relação à região Centro-oeste, controlando-se pelas demais variáveis. Constata-se ainda, após ajuste pelas demais variáveis, prevalência aumentada para o sexo feminino (133,0%), para a faixa etária de 18 a 29 anos (464,0%), para o estado de saúde muito ruim (230,0%), para os problemas de saúde mental (114,0%) e para o consumo de álcool uma ou mais vezes por mês (69%), quando comparada às categorias de base. Foram observados gradientes para as variáveis “estado de saúde” e “consumo de álcool”. Ser casado mostrou uma prevalência 67,0% menor de sofrer violência sexual comparado a ser solteiro, controlando-se pelas demais variáveis do modelo. Outro ponto interessante é que o modelo final para essa forma de violência não incluiu as variáveis cor da pele/raça e rendimento per capita.

Tabela 6
Razões de prevalência (RP) brutas e ajustadas das variáveis do modelo final da ocorrência de violência sexual na população brasileira de adultos (≥18 anos), Brasil, 2019.

Discussão

A análise dos dados da PNS mostra que 18,3% das pessoas com 18 anos ou mais disseram sofrer violência psicológica, física ou sexual em 2019. Dentro de seu escopo, a PNS 2019 elucida várias questões e corrobora com achados de investigações de cunho estratégico e operacional no Brasil44 Minayo MCS, Assis SG, organizadores. Novas e velhas faces da violência no século XXI: Visão da literatura brasileira do campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017.,77 Malta DC, Minayo MCS, Soares Filho, AM, Silva MMA, Montenegro MMS, Ladeira RM, Morais Neto OL, Melo AP, Mooney M, Naghavi M. Mortalidade e anos de vida perdidos por violências interpessoais e autoprovocadas no Brasil e Estados: análise das estimativas do Estudo Carga Global de Doença, 1990 e 2015. Rev Bras Epidemiol 2017; 20(Supl. 1):142-156.

8 Cerqueira D, Ferreira H, Bueno S, Alves PP, Lima RS, Marques D, Silva FAB, Lunelli IC, Rodrigues RI, Lins GOA, Armstrong KC, Lira P, Coelho D, Barros B, Sobral I, Pacheco D, Pimentel A. Atlas da violência. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2021.

9 Malta DC, Minayo MCS, Cardoso LSM, Veloso, GA, Teixeira, RA, Pinto, IV, Naghavi M. Mortalidade de adolescentes e adultos jovens brasileiros entre 1990 e 2019: uma análise do estudo Carga Global de Doença. Cien Saude Colet 2021; 26(9):4069-4086.

10 Mascarenhas MD, Sinimbu RB, Malta, DC; Silva MMA, Santos AF, Veira MLFP, Szwarcwald CL. Violência cometida por pessoa conhecida - Brasil, 2013. Cien Saude Colet 2017; 22(11):3763-3772.

11 Cecilio LPP, Garbin CAS, Rovida, TAS, Queiróz, APDG, Garbin AJI. Violência interpessoal: estudo descritivo dos casos não fatais atendidos em uma unidade de urgência e emergência referência de sete municípios do estado de São Paulo, Brasil, 2008 a 2010. Epidemiol Serv Saude, 2012; 21(2):293-304.
-1212 Tauffer J, Zack BT, Berticelli MC, Kássim MJN, Carmello M, Maraschin MS. Perfil dos casos de violência interpessoal e autoprovocada atendidos em um hospital público do Paraná, 2014 a 2018. J Epidemiol Infect Control 2020; 10(1):2-7., embora os modelos finais ajustados tenham sido bastante semelhantes para todas as formas de violência, sendo as maiores diferenças verificadas para a violência sexual. Observa-se que a vida urbana traz mais risco (33%) do que a rural, o que é compreensível porque é nas cidades que se aglomeram as pessoas e é onde se concentram as desigualdades1313 Campello T, Gentili P, Rodrigues M, Hoewell GR. Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás. Saude Debate 2018; 42(Supl. 3):54-66.,1414 Pitombeira DF, Oliveira, LC. Pobreza e desigualdades sociais: tensões entre direitos, austeridade e suas implicações na atenção primária. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1699-1708.. Em qualquer desses dois ambientes, as mulheres têm mais probabilidade se sofrer agressões (+8,0%) do que os homens, evidenciada na prevalência aumentada de lesão física, psicológica ou sexual, o que vem sobejamente atestado na literatura nacional e internacional1515 Stith SM, Smith DB, Penn CE, Ward DB, DariTritt D. Intimate partner physical abuse perpetration and victimization risk factors: a meta-analytic review. Aggression Violent Behav 2004; 10(1):65-98.

16 Garcia-Moreno C, Jansen HAFM, Ellsberg M, Heise L, Watts C. WHO multi-country study on women's health and domestic violence against women. Geneva: WHO; 2005.

17 World Health Organization (WHO). Preventing intimate partner and sexual violence against women: Taking action and generating evidence. Geneva: WHO; 2010.
-1818 United Nations Population Fund. Gender based violence. UNFPA; 2014.. Os homens morrem muito mais por violência, as mulheres sofrem mais os seus efeitos44 Minayo MCS, Assis SG, organizadores. Novas e velhas faces da violência no século XXI: Visão da literatura brasileira do campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017.,55 Minayo MCS, Franco S. Violence and Health. Oxford Encyclop Glob Public Health 2020; 1-23. DOI: 10.1093/acrefore/9780190632366.013.32.
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
. A violência contra a mulher é estrutural, manifesta-se como um problema típico do patriarcalismo que prevalece e se reproduz culturalmente no mundo, a despeito dos movimentos sociais para superá-lo. Muitas das violências contra elas ocorrem nas relações com parceiros íntimos ou com ex-companheiros e a maioria das vítimas tem entre 20 e 44 anos.

A quantificação da violência interpessoal no nível global é uma operação muito difícil e é complicado comparar a realidade do país com a de outras regiões por investigações de grande magnitude, pois embora possam ter o mesmo escopo, nem sempre utilizam as mesmas variáveis. Eis aqui exemplo de um estudo coordenado por Haagsma et al.1919 Haagsma JA, Graetz N, Bolliger I, Naghavi M, Higashi H, Mullany E, Abera SF, Abraham JP, Adofo K, Alsharif U, Ameh EA, Ammar W, Antonio CA, Barrero LH, Bekele T, Bose D, Brazinova A, Catalá-López F, Dandona L, Dandona R, Dargan PI, De Leo D, Degenhardt L, Derrett S, Dharmaratne SD, Driscoll TR, Duan L, Petrovich Ermakov S, Farzadfar F, Feigin VL, Franklin RC, Gabbe B, Gosselin RA, Hafezi-Nejad N, Hamadeh RR, Hijar M, Hu G, Jayaraman SP, Jiang G, Khader YS, Khan EA, Krishnaswami S, Kulkarni C, Lecky FE, Leung R, Lunevicius R, Lyons RA, Majdan M, Mason-Jones AJ, Matzopoulos R, Meaney PA, Mekonnen W, Miller TR, Mock CN, Norman RE, Orozco R, Polinder S, Pourmalek F, Rahimi-Movaghar V, Refaat A, Rojas-Rueda D, Roy N, Schwebel DC, Shaheen A, Shahraz S, Skirbekk V, Søreide K, Soshnikov S, Stein DJ, Sykes BL, Tabb KM, Temesgen AM, Tenkorang EY, Theadom AM, Tran BX, Vasankari TJ, Vavilala MS, Vlassov VV, Woldeyohannes SM, Yip P, Yonemoto N, Younis MZ, Yu C, Murray CJ, Vos T. The global burden of injury: Incidence, mortality, disability-adjusted life years and time trends from the Global Burden of Disease study 2013. Inj Prev 2016; 22(1):3-18. com 90 autores dos mais diferentes países, usando um modelo integrativo que simultaneamente estimou incidência, prevalência e remissão, por idade e sexo e apontou com dados de 2013, que 973 milhões de pessoas haviam afirmado ter sofrido algum tipo de lesão que os havia levado a recorrer aos serviços de saúde. E 4,8 milhões morreram em consequência. A prevalência da violência interpessoal global estimada por esses autores foi de 8,3%. Eles ressaltam que as agressões que provocam lesões e necessitam de cuidados médicos haviam diminuído em 31% entre 1990 e 2003 no conjunto dos países estudados. A taxa de declínio dos dias de vida perdidos foi significativa para 22 tipos de agressões, inclusive para as mais graves.

Malta et al.77 Malta DC, Minayo MCS, Soares Filho, AM, Silva MMA, Montenegro MMS, Ladeira RM, Morais Neto OL, Melo AP, Mooney M, Naghavi M. Mortalidade e anos de vida perdidos por violências interpessoais e autoprovocadas no Brasil e Estados: análise das estimativas do Estudo Carga Global de Doença, 1990 e 2015. Rev Bras Epidemiol 2017; 20(Supl. 1):142-156. lideraram uma pesquisa no Brasil com a mesma metodologia utilizada por Haagsma et al.1919 Haagsma JA, Graetz N, Bolliger I, Naghavi M, Higashi H, Mullany E, Abera SF, Abraham JP, Adofo K, Alsharif U, Ameh EA, Ammar W, Antonio CA, Barrero LH, Bekele T, Bose D, Brazinova A, Catalá-López F, Dandona L, Dandona R, Dargan PI, De Leo D, Degenhardt L, Derrett S, Dharmaratne SD, Driscoll TR, Duan L, Petrovich Ermakov S, Farzadfar F, Feigin VL, Franklin RC, Gabbe B, Gosselin RA, Hafezi-Nejad N, Hamadeh RR, Hijar M, Hu G, Jayaraman SP, Jiang G, Khader YS, Khan EA, Krishnaswami S, Kulkarni C, Lecky FE, Leung R, Lunevicius R, Lyons RA, Majdan M, Mason-Jones AJ, Matzopoulos R, Meaney PA, Mekonnen W, Miller TR, Mock CN, Norman RE, Orozco R, Polinder S, Pourmalek F, Rahimi-Movaghar V, Refaat A, Rojas-Rueda D, Roy N, Schwebel DC, Shaheen A, Shahraz S, Skirbekk V, Søreide K, Soshnikov S, Stein DJ, Sykes BL, Tabb KM, Temesgen AM, Tenkorang EY, Theadom AM, Tran BX, Vasankari TJ, Vavilala MS, Vlassov VV, Woldeyohannes SM, Yip P, Yonemoto N, Younis MZ, Yu C, Murray CJ, Vos T. The global burden of injury: Incidence, mortality, disability-adjusted life years and time trends from the Global Burden of Disease study 2013. Inj Prev 2016; 22(1):3-18. e encontraram, contra todo o senso comum, que também aqui as mortes por violência, que foram responsáveis em 1990 por 134.931 óbitos, recuaram para 81.200, 22,8% menos em 2015, sendo os principais grupos de causas, mortes e lesões por homicídios e acidentes de transporte. Malta et al.99 Malta DC, Minayo MCS, Cardoso LSM, Veloso, GA, Teixeira, RA, Pinto, IV, Naghavi M. Mortalidade de adolescentes e adultos jovens brasileiros entre 1990 e 2019: uma análise do estudo Carga Global de Doença. Cien Saude Colet 2021; 26(9):4069-4086. repetiram o estudo com dados de 1990 até 2019 sobre mortes de adolescentes e jovens e evidenciaram uma redução de 30,8% de óbitos de meninas e de 6,2% dos meninos. Corroborando com os dados da PNAD 2019, observou-se aumento das taxas de mortalidade no Norte e Nordeste e expressiva redução no Sudeste e no Sul. Há também trabalhos locais e importantes, no mesmo sentido, como o de Cecílio et al.1111 Cecilio LPP, Garbin CAS, Rovida, TAS, Queiróz, APDG, Garbin AJI. Violência interpessoal: estudo descritivo dos casos não fatais atendidos em uma unidade de urgência e emergência referência de sete municípios do estado de São Paulo, Brasil, 2008 a 2010. Epidemiol Serv Saude, 2012; 21(2):293-304. realizado em São Paulo e o de Tauffer et al.1212 Tauffer J, Zack BT, Berticelli MC, Kássim MJN, Carmello M, Maraschin MS. Perfil dos casos de violência interpessoal e autoprovocada atendidos em um hospital público do Paraná, 2014 a 2018. J Epidemiol Infect Control 2020; 10(1):2-7. com dados do Paraná.

É também uma questão reconhecida pelos especialistas que o grupo mais vitimizado por violência - tanto por mortes como por lesões4,5,7.8,20-22 - é o de jovens de 18 a 29 anos, faixa etária que a PNS 2019 apontou com prevalência de 158,0% de danos sofridos. Esse fato é magnificado pelos percentuais de aumento das prevalências para pessoas de cor da pele negra2222 Minayo MCS, Mariz RSA. Perfil dos autores de letalidade violenta no município do Rio de Janeiro. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 3):5023-5032.

23 Schwarcz LM, Gomes FS, editores. Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.

24 Almeida S. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento; 2018.
-2525 Andrade CB, Assis SG. Assédio moral no trabalho, gênero, raça e poder: revisão de literatura. Rev Bras Saude Ocup 2018; 43:e11. e de etnia indígena2626 Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Violência contra os povos indígenas no Brasil - Relatório 2016 [Internet]. [acessado 2020 mar 18]. Disponível em: https://www.cimi.org.br/pub/relatorio/Relatorio-violencia-contra-povos-indigenas_2016-Cimi.pdf.
https://www.cimi.org.br/pub/relatorio/Re...
, diferencial acentuado pelo consumo de álcool que, além das violências que afetam a sociedade brasileira em geral, sofrem uma série de situações específicas como sexismo, racismo, homofobia e transfobia44 Minayo MCS, Assis SG, organizadores. Novas e velhas faces da violência no século XXI: Visão da literatura brasileira do campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017.,55 Minayo MCS, Franco S. Violence and Health. Oxford Encyclop Glob Public Health 2020; 1-23. DOI: 10.1093/acrefore/9780190632366.013.32.
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
,2222 Minayo MCS, Mariz RSA. Perfil dos autores de letalidade violenta no município do Rio de Janeiro. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 3):5023-5032.

23 Schwarcz LM, Gomes FS, editores. Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.

24 Almeida S. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento; 2018.

25 Andrade CB, Assis SG. Assédio moral no trabalho, gênero, raça e poder: revisão de literatura. Rev Bras Saude Ocup 2018; 43:e11.
-2626 Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Violência contra os povos indígenas no Brasil - Relatório 2016 [Internet]. [acessado 2020 mar 18]. Disponível em: https://www.cimi.org.br/pub/relatorio/Relatorio-violencia-contra-povos-indigenas_2016-Cimi.pdf.
https://www.cimi.org.br/pub/relatorio/Re...
.

Para a categoria “casado”, a PNS 2019 verificou uma prevalência estatisticamente significativa 31% menor de vitimização por violência o que é confirmado, por vários autores, dentre os quais Lucas et al.2727 Lucas RE, Clarck AE, Yannis G, Ed D. Reexamining Adaptation, and the Set Point Model of Happiness: reactions to changes in marital status. J Pers Soc Psychol 2003; 84(3):527-539.. Esse longo estudo longitudinal acompanhou 24.000 indivíduos casados por 15 anos e encontrou nesse grupo mais segurança, mais satisfação e menos problemas de saúde do que entre os solteiros, viúvos e descasados. É ampla a bibliografia a respeito, no entanto, nos últimos anos, cada vez mais a questão de gênero tem se complexificado e os autores2828 Hughes EM, Waite LJ. Marital biography and health in mid-life. J Health Soc Behav 2009; 50(3):344-358. diferenciam o casamento saudável do casamento infeliz e abusivo.

Um ponto crucial apontado pelo estudo é a associação da vitimização por alguma forma de violência com o estado de saúde muito ruim, com problemas de saúde mental e com o consumo frequente de álcool. Esses dados não são explicados na pesquisa, mas aguçam a curiosidade dos estudiosos para os efeitos de recursividade entre o comportamento violento e as reações deles advindos em forma de depressão, sofrimento mental, alcoolismo (que frequentemente é causa e efeito) e outros problemas psicológicos33 World Health Organization (WHO). World report on violence and health. Geneva: WHO; 2002.

4 Minayo MCS, Assis SG, organizadores. Novas e velhas faces da violência no século XXI: Visão da literatura brasileira do campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017.
-55 Minayo MCS, Franco S. Violence and Health. Oxford Encyclop Glob Public Health 2020; 1-23. DOI: 10.1093/acrefore/9780190632366.013.32.
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
,2222 Minayo MCS, Mariz RSA. Perfil dos autores de letalidade violenta no município do Rio de Janeiro. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 3):5023-5032.

23 Schwarcz LM, Gomes FS, editores. Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.

24 Almeida S. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento; 2018.

25 Andrade CB, Assis SG. Assédio moral no trabalho, gênero, raça e poder: revisão de literatura. Rev Bras Saude Ocup 2018; 43:e11.

26 Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Violência contra os povos indígenas no Brasil - Relatório 2016 [Internet]. [acessado 2020 mar 18]. Disponível em: https://www.cimi.org.br/pub/relatorio/Relatorio-violencia-contra-povos-indigenas_2016-Cimi.pdf.
https://www.cimi.org.br/pub/relatorio/Re...
-2727 Lucas RE, Clarck AE, Yannis G, Ed D. Reexamining Adaptation, and the Set Point Model of Happiness: reactions to changes in marital status. J Pers Soc Psychol 2003; 84(3):527-539..

Por serem apresentados de modo agregado, os dados que mostram as maiores prevalências de violência interpessoal que afetam a saúde, acima da média nacional (18/100.000) são os de Sergipe (24,9%), Roraima (22,3%) e Bahia (21,8%) não permitem uma análise mais aprofundada. No entanto, estudos como o Atlas da Violência99 Malta DC, Minayo MCS, Cardoso LSM, Veloso, GA, Teixeira, RA, Pinto, IV, Naghavi M. Mortalidade de adolescentes e adultos jovens brasileiros entre 1990 e 2019: uma análise do estudo Carga Global de Doença. Cien Saude Colet 2021; 26(9):4069-4086. têm mostrado aumento da morbimortalidade por violência no Nordeste e no Norte do país, consistentemente, nos últimos anos.

Termina-se esta discussão, relatando uma importante limitação deste trabalho e da PNS 2019 em relação ao tema em foco. Nessa versão, para cada tipo de violência, foi elaborado um conjunto de perguntas que descreve ações representativas de suas expressões, seguidas por indagações a respeito do autor, do local e da frequência. Num bloco subsequente, foi perguntado o autor e o local da violência mais grave sofrida. E num seguinte, as consequências desses eventos para a saúde e o atendimento recebido para os casos mais severos. Esse último conjunto de questões, contudo, não pode ser utilizado no presente trabalho uma vez que não havia indicação a que tipos de violência tais dados se referiam.

Conclusões

Cabe louvar a iniciativa do IBGE associado ao Ministério da Saúde e à Fiocruz de, na PNS 2019, colocar importantes questões sobre a violência como parte dos problemas que afetam a saúde da população. O módulo sobre “Violências”, já tratado na PNS 2013, aqui foi ampliado na PNS 2019, investigando separadamente, as expressões psicológicas, físicas e sexuais, bem como a necessidade de uso de serviços de saúde em virtude das lesões mais graves.

Fica patente neste estudo que no Brasil, o ambiente familiar, comunitário, institucional e social em geral é permeado pelos vários tipos de violência interpessoal que afetam a saúde individual e coletiva e diminuem o potencial do saudável crescimento e desenvolvimento. Esse fato ficou simbolizado numa cifra (18,3%), cifra essa que significa o conjunto do que foi enunciado pelos entrevistados na pesquisa. Como referido na discussão, a estimativa mundial é de 8,3%, ou seja, muito menor.

Uma conclusão importante deste trabalho é que os dados trazidos pela PNS 2019 convergem inteiramente com as pesquisas feitas no país sobre o tema, seja com informações do DATASUS seja com investigações de dados locais ou regionais. Também corroboram afirmações de organismos internacionais, particularmente, da OMS e do UNICEF que também consideram a violência um fenômeno prevenível sobre o qual é preciso agir.

A finalidade estratégica tanto da PNS 2019, e em particular deste trabalho é reforçar o conhecimento acumulado e a urgente necessidade de atuar com os instrumentos e estratégias propostos desde 2001 pela Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2022
  • Aceito
    18 Maio 2022
  • Publicado
    20 Maio 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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