Ditadura, Saúde e Propaganda: O Programa Nacional de Imunização (PNI) e a campanha midiática de vacinação obrigatória

Dictatorship, Health and Propaganda: The National Immunization Program (PNI) and the media campaign for compulsory vaccination

Keila Auxiliadora Carvalho Sobre o autor

Resumo

Este artigo analisa os filmes produzidos e veiculados, entre 1976 e 1978, pela Agência Nacional e pela Assessoria de Relações Públicas (ARP) para a campanha de divulgação da vacinação obrigatória que foi instituída pelo Plano Nacional de Imunizações (PNI), criado em 1975, e regulamentado pelo Decreto nº 78.231, de 12 de agosto de 1976. O objetivo é compreender a narrativa construída através de imagens e discursos visando tornar a vacina uma prática culturalmente aceita. Para isso, recorre-se à legislação que versa sobre o tema no período analisado, qual seja na ditadura civil-militar. O regime ditatorial é abordado a partir dos aspectos conceituais que orientam as análises sobre a apropriação das campanhas de saúde como propaganda e dos investimentos em um modelo de saúde privada e curativista. Conclui-se, assim, que a iniciativa de criação do PNI trata-se de um hiato nesse processo de privatização da saúde, já que não é uma ação orientada pela responsabilidade da ditadura para com a saúde da população, mas sim, uma ação que envolveu a gerência de múltiplos atores do campo da saúde, e que foi encampada pelo regime por se tratar de um processo diretamente atrelado a interesses ligados ao projeto de modernização conservadora do país.

Key words:
Dictatorship; Compulsory vaccination; Health; Media campaign

Abstract

This article analyzes the films produced and broadcast between 1976 and 1978 by the National Agency and the Public Relations Office (ARP) for the campaign to publicize the mandatory vaccination that was instituted by the National Immunization Plan (PNI), created in 1975 and regulated by Decree No. 78,231 of August 12, 1976. The objective is to understand the narrative constructed through images and speeches aimed at convincing the population to make vaccination a culturally accepted practice. To achieve this, we examine the legislation on the subject during the period under analysis, namely the civil-military dictatorship. The dictatorial regime is approached based on the conceptual aspects that guide the analysis of the appropriation of health campaigns as propaganda and investments in a private and curative health model. We can therefore conclude that the initiative to create the PNI is a hiatus in this process of privatizing health, since it is not an action guided by the dictatorship’s responsibility for the health of the population, but an action that involved the management of multiple actors in the health field, and which was embraced by the regime because it was a process directly linked to interests connected to the country’s conservative modernization project.

Key words:
Dictatorship; Compulsory vaccination; Health; Media campaign

Introdução

Criado em 18 de setembro de 1973 pelo Ministério da Saúde durante a ditadura civil-militar, o Plano Nacional de Imunizações (PNI) completou 50 anos em 2023. “O objetivo do PNI era promover o controle do sarampo, tuberculose, difteria, tétano, coqueluche e poliomielite, e manter erradicada a varíola no país”11 Benchimol JL, coordenador. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001. (p.320). O PNI foi oficialmente reconhecido pela Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975, regulamentada pelo Decreto nº 78.231, de 12 de agosto de 1976, e a partir de então passou a coordenar a Política Nacional de Imunizações no país. A referida legislação dispunha sobre a organização das ações de vigilância epidemiológica e estabelecia normas relativas à notificação compulsória de doenças e obrigatoriedade da vacinação.

No Decreto nº 78.231, artigo 39, ficou estabelecido que a vigência da vacinação obrigatória e a sanção ao seu descumprimento seria válida a partir de 1º de julho de 1978. No parágrafo primeiro determinou-se que o pagamento do salário-família por dependentes de segurados de diferentes sistemas da previdência social somente seria realizado a partir de 1º de julho de 1978, mediante o atestado de vacinação obrigatória, dos dependentes nascidos a partir 1º de julho de 1977. Ou seja, haveria cerca de dois anos para que a população se adaptasse à realidade da vacinação obrigatória. Partindo disto, o presente artigo tem como objetivo analisar os filmes produzidos e veiculados, entre 1976 e 1978, pela Agência Nacional e pela Assessoria de Relações Públicas (ARP) para a campanha de divulgação da vacinação obrigatória. Buscamos, deste modo, compreender a narrativa construída através de imagens e discursos visando convencer a população a tornar a vacina uma prática culturalmente aceita.

A campanha de conscientização sobre a importância da vacinação deve ser pensada em sua complexidade, pois, embora o país vivesse sob uma ditadura, inúmeros atores estiveram envolvidos na configuração do PNI, atendendo às prerrogativas de uma política de saúde preventiva. Assim, o Ministério da Saúde promoveu intensa campanha de mobilização popular em torno da importância e, obviamente, da obrigatoriedade da vacinação infantil. Neste sentido, procurou-se abordar o tema de forma não coercitiva, embora a legislação estabelecesse sanção àqueles que não a cumprisse, no caso, a suspensão do salário família.

As campanhas de vacinação nos Arquivos da Ditadura

Realizamos uma busca no fundo da Secretaria de Imprensa e Divulgação da Presidência da República no Arquivo Nacional (AN)22 Fundo/Coleção U3, código: BR RJANRIO U3., onde não foi possível acessar os filmes, pois o acervo está com acesso restrito para tratamento técnico. Mas, como parte desse material já foi disponibilizado no canal oficial do AN na plataforma YouTube33 Arquivo Nacional [canal no Youtube]. [acessado 2024 jan 18]. Disponível em: https://www.youtube.com/@ArquivoNacionalBrasil.
https://www.youtube.com/@ArquivoNacional...
, procederemos a análise dos filmes que podem ser acessados. Assim, foram identificados sete filmes com o tema da vacinação obrigatória entre 1977 e 1978. Destes, dois são animações produzidas pela Assessoria de Relações Públicas (ARP), e cinco filmes são live-action produzidos pela Agência Nacional.

Para desenvolver o estudo, utilizamos a metodologia de análise das fontes audiovisuais, “a partir da percepção de suas estruturas internas de linguagem e seus mecanismos de representação da realidade”44 Napolitano M. Fontes Audiovisuais: A história depois do papel. In: Pinsky C, organizadora. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto; 2015. p. 235-290. (p.236). O que significa tentar compreender a lógica explícita, mas também implícita na sua criação, isto é, as mensagens transmitidas nesses filmes. Desse modo, compreendemos que o processo de produção é apenas uma das variáveis possíveis na análise desse tipo de fonte, que traz como dimensão igualmente importante o seu processo de recepção. Este último, mais difícil de ser acessado porque envolve um universo muito mais complexo, que engloba o que o consumidor fabrica com estas imagens55 De Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994. (p.93). Ou seja, nas fontes audiovisuais, é necessário considerar que a mensagem produzida - com determinada intenção - não é assimilada pelo receptor de forma direta; entre estes dois extremos - produção/recepção - está o processo de interpretação dessa mensagem. A interpretação ocorre com base no universo sociocultural de cada sujeito/receptor e somente a partir disso é que esse indivíduo irá atribuir sentido à mensagem que lhe é transmitida. Tal sentido pode afastar-se ou aproximar-se da intenção daqueles que produziram a mensagem. Nosso foco neste artigo não é, necessariamente, a recepção das mensagens presentes nos filmes, mas a estratégia de comunicação adotada para divulgar a obrigatoriedade da vacinação, valendo-se da estrutura de comunicação criada pela ditadura civil-militar.

Cabe destacar que a análise das fontes audiovisuais foram realizadas mediante consulta da seguinte legislação: 1) Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975, que dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências; 2) Decreto nº 78.231, de 12 de agosto de 1976, que regulamenta a Lei n° 6.259, de 30 de outubro de 1975, que dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências; 3) Lei nº 4.266, de 03 de outubro de 1963, que institui o salário família do trabalhador.

O Ministério da Saúde, o PNI e a Vigilância Epidemiológica

Embora as vacinas não fossem uma novidade para a população brasileira, dado que a primeira campanha de imunização em massa no país ocorreu no início do século XX, no bojo das obras de modernização da capital federal, quando o presidente Rodrigues Alves e o prefeito da cidade do Rio de Janeiro convocaram o sanitarista Oswaldo Cruz para controlar a epidemia de varíola. E o médico, então, coordenou a primeira campanha de imunização em massa no país, entre 10 e 16 de novembro de 1904. Foi somente em 1975 através da Lei 6.259, que se estabeleceu um Programa Nacional de Imunização (PNI) e a organização das ações de vigilância epidemiológica e notificação compulsória de doenças. No artigo 3º da referida lei, ficou determinado que caberia ao Ministério da Saúde elaborar o PNI com a definição das vacinações, inclusive as de caráter obrigatório66 Brasil. Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975. Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1975; 31 out.. Esta lei foi regulamentada no ano seguinte, 1976, pelo Decreto nº 78.231.

A criação do PNI está vinculada a um processo mais amplo em que as tensões em torno da chamada Guerra Fria, entre os anos de 1960 e 1970, propiciaram a assistência internacional em regiões como América Latina, África e Ásia. Tal assistência fora empreendida “no financiamento de recursos humanos e organizacionais, na produção, controle de qualidade e distribuição da vacina antivariólica, nas campanhas de vacinação sistemática e na organização de sistemas de vigilância epidemiológica com busca ativa de casos”77 Hochman G. Quando e como uma doença desaparece. A varíola e sua erradicação no Brasil, 1966/1973. RBS 2021; 9(21):103-128. (p.108). Dessa forma, é possível compreender que a movimentação em torno da vacinação “pode ser caracterizada como marcadamente importante para a história da saúde e da utilização de imunobiológicos no país e no mundo”88 Ponte CF. Vacinação, controle de qualidade e produção de vacinas no Brasil a partir de 1960. Hist Cien Saude Manguinhos 2003; 10 (Supl. 2):619-653. (p.621). A Campanha Mundial de Erradicação da Varíola somada ao avanço técnico-científico no desenvolvimento e produção de imunizantes leva a expansão do uso de vacinas em âmbito mundial. A outra face da moeda é que “também nesse período a vacina se torna, paulatinamente, um negócio interessante para empresas multinacionais”88 Ponte CF. Vacinação, controle de qualidade e produção de vacinas no Brasil a partir de 1960. Hist Cien Saude Manguinhos 2003; 10 (Supl. 2):619-653. (p.622), ou seja, conglomerados empresariais entenderam que a vacina ainda poderia ser eficiente na obtenção de lucro.

No Brasil especificamente, é interessante destacar que durante a ditadura civil-militar o Decreto nº 78.231 que regulamentou o PNI, estabeleceu diversas atribuições ao Ministério da Saúde, mas todas no campo preventivo. Haja vista que o regime assumiu uma forma de conduzir as políticas de saúde, pela qual a assistência médica e todo o arsenal da medicina curativista - hospitais, laboratórios, consultas especializadas etc. - ficava sob jurisdição do Ministério do Trabalho e Previdência Social. Assim, os recursos dos Institutos de Aposentadoria e Pensão, unificados em 1967, no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), foram destinados ao setor privado para que pudesse prover o sistema de assistência médico-hospitalar. Ao passo que, com exíguos recursos, o Ministério da Saúde precisava se ocupar de epidemias e problemas que não eram de interesse do mercado. Em 1976, por exemplo, quando promulgado o Decreto nº 78.231, o Ministério da Saúde recebeu 1,58% do orçamento geral da União, esse percentual é considerado exíguo frente ao investimento em outros Ministérios como o dos Transportes, por exemplo, que no mesmo período recebia cerca de 12%99 Costa NR. Direito à saúde na Constituição: um primeiro balanço. Cad Saude Publica 1989; 5(1):98-104. (p.101).

Embora com baixo orçamento, coube ao Ministério da Saúde estruturar um sistema de vigilância epidemiológica, que definiu a organização das ações de vigilância nos termos apresentados na Figura 1.

Figura 1
Organograma do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica.

Com essa estrutura, o Ministério da Saúde pretendia manter sob atenção epidemiológica todo o território brasileiro, através da notificação obrigatória das doenças previstas no Regulamento Sanitário Internacional e as vinculadas ao PNI. A primeira normativa sobre doenças de notificação compulsória no Brasil, foi o Decreto no 49.974-A, de 21 de janeiro de 1961, que relacionava cerca de 45 enfermidades. O Decreto nº 78.231, de 12 de agosto de 1976, ampliou esse número incorporando, além das doenças previstas no Regulamento Sanitário Internacional, aquelas vinculadas ao PNI e as que eram controladas por órgãos específicos do Ministério da Saúde, como malária, hanseníase e tuberculose, além das meningites. Sobre as doenças de notificação compulsória1010 Teixeira MG, Penna GO, Risi JB, Penna ML, Alvim MF, Moraes JC, Luna E. Seleção das doenças de notificação compulsória: critérios e recomendações para as três esferas de governo. Inf Epidemiol Sus 1998; 7(1):7-28., em relação ao PNI, o Decreto estabeleceu que o Ministério da Saúde seria responsável por elaborar, publicar e atualizar, a cada dois anos, quais seriam as vacinas obrigatórias. Essa definição levaria em conta as doenças consideradas relevantes no quadro nosológico nacional, por isso, a importância de manter em funcionamento o sistema de vigilância epidemiológica.

Em termos operacionais, os responsáveis institucionais pela vacinação obrigatória eram, em âmbito nacional, o Ministério da Saúde, e as secretarias de saúde das unidades federadas nos seus respectivos territórios. Os serviços de saúde que realizassem a aplicação das vacinas deveriam emitir o Atestado de Vacinação, com informações padronizadas pelo Ministério da Saúde: identificação civil da pessoa vacinada, tipo e data da vacina aplicada, identificação do serviço de saúde onde foi realizada e rubrica do executor da vacinação. Por fim, o Decreto estabelecia a sanção a que estavam sujeitos àqueles que descumprissem a legislação e definia o prazo em que entraria em vigor.

A consequência do descumprimento da vacina era a suspensão do salário-família, dado que o Decreto determinava que “para efeito de pagamento de salário-família por dependentes de segurados de diferentes sistemas de previdência social, os atestados de vacinação obrigatória, somente serão exigidos a partir de 1º de julho de 1978, em relação aos dependentes nascidos a partir 1º de julho de 1977”1111 Brasil. Decreto nº 78.231, de 12 de agosto de 1976. Regulamenta a Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975, que dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1976; 13 ago.. A Lei nº 4.266, de 3 de outubro de 1963, instituiu o salário família do trabalhador, “pago sob a forma de uma quota percentual, calculada sobre o valor do salário mínimo local, por filho menor de qualquer condição, até 14 anos de idade”1212 Brasil. Lei nº 4.266, de 3 de outubro de 1963. Institui o salário família do trabalhador. Diário Oficial da União 1963; 8 out.. Como se observa, a sanção atingia a população trabalhadora, ou seja, os seguimentos menos abastados eram os principais alvos das campanhas de vacinação, podemos considerar duas questões em relação a isso. A primeira refere-se ao fato de serem esses os segmentos que compunham a maioria da população do país; a segunda está relacionada ao fato de ser a população economicamente vulnerável que estava mais exposta a condições propícias ao desenvolvimento e agravamento das doenças.

As ações do Ministério da Saúde eram bastante restritas e estavam, basicamente, circunscritas ao controle epidemiológico. Entretanto, os problemas de saúde pública eram agudos e estavam relacionados à degradação das condições de vida de segmentos da população - sobretudo urbana - não atingidos pelos benefícios da industrialização e do crescimento econômico. Atrelado a isso, conforme destacamos, esteve a opção por um modelo de saúde clínico curativista, que também dava mostras de esgotamento, pois não conseguiu atender à crescente demanda por assistência médica, que parecia ilimitada numa sociedade em franco processo de expansão da população urbana.

Entre 1969 e 1974, o Brasil viveu um período de prosperidade que ficou conhecido como “milagre econômico”, com altos índices de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), industrialização e inflação baixa. Ao passo que, também, foi o período de maior repressão do regime ditatorial, sob o governo do general Emílio Garrastazu Médici, houve censura, prisões e morte de opositores. Foram “anos de chumbo” para alguns e “anos de ouro” para outros1313 Cordeiro JM. A direita em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV; 2015.. No caso da saúde, como era uma estrutura dependente de elevado nível de emprego e salários, com o fim do milagre econômico e a crise que se seguiu, aprofundou-se o esgotamento do modelo de investimento em saúde. Por isto, a partir de meados da década de 1970 estava em pauta uma série de debates em torno dos caminhos que assumiria a saúde pública no Brasil, uma vez que o modelo curativista não dava conta de atender aos amplos setores da população.

Sugismundo e Dr. Previnildo: saúde, mídia e propaganda

Nos filmes utilizados na campanha de divulgação da vacinação obrigatória é possível destacar algumas questões para serem discutidas, quais sejam: a produção de uma campanha para esclarecimento do que já havia se estabelecido legalmente; a construção do argumento veiculado, por meio de imagens e diálogos; o esforço de aproximar a lei da vida cotidiana, a fim de tornar a vacinação um elemento culturalmente aceito.

Em relação à produção da campanha, precisamos fazer algumas considerações sobre a forma como a ditadura civil-militar se apropriou de elementos de diversos campos - saúde, educação, economia etc. - para fazer propaganda do regime. O historiador Carlos Fico, ao tratar sobre as especificidades assumidas pela propaganda na ditadura civil-militar, mostrou como os militares se negaram a adotar um estilo de propaganda personalista com exaltação dos líderes militares, nos moldes do que fizera o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), na ditadura Vargas. Nessa linha, a própria ideia de criação de um órgão que cuidasse da imagem do governo gerou controvérsia e quando a prerrogativa fora aceita, decidiram não usar um nome que se remetesse à propaganda, “vem daí, portanto, a peculiar denominação de ‘Relações Públicas’ às atividades que eram, afinal, de propaganda”1414 Fico C. Reinventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV; 1997. (p.90). O autor ainda explicou que o eufemismo para tratar a propaganda estava relacionado à tentativa dos militares de negar o caráter ditatorial do governo, para isso, empreenderam iniciativas como o rodízio de presidentes, a construção de um arcabouço legal através dos Atos Institucionais e promoção de uma propaganda que se afastasse do modelo da ditadura varguista e, até mesmo, dos regimes nazifascistas.

A partir dessas prerrogativas que, em janeiro de 1968, foi criada a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), que passou a se chamar Assessoria de Relações Públicas (ARP) em 1976. Nos primeiros anos, sob a chefia de Hernani d’Aguiar, a AERP funcionou como um órgão de comunicação oficial. Em 1971, a agência sofreu um processo de reestruturação, que lhe deu projeção nacional, quando passou a ser chefiada por Octávio Costa e Toledo Camargo. É desse período a primeira campanha que se apropriou do campo da saúde para fazer propaganda do regime, intitulada “Povo desenvolvido é povo limpo”, e tinha como objetivo promover uma conscientização sobre a importância de adotar hábitos de higiene. Encomendada pela Agência Especial de Relações Públicas (AERP) ao publicitário Ruy Perotti Barbosa, da agência privada Linxfilm, que criou animações protagonizadas pelo personagem Sujismundo. Os filmes variavam entre 60 e 90 segundos de duração e foram veiculados na TV e no cinema, além de jingles para as rádios. “A campanha alcançou grande popularidade, e após uma breve suspensão devido a algumas polêmicas em torno da ideia de atrelar limpeza a desenvolvimento e a simpatia do personagem Sujismundo, foi retomada em 1973, com novos personagens”1515 Carvalho KA. A Propaganda é subliminar: higiene e saúde na ditadura civil-militar brasileira In: Rollemberg D, Janaína MC. Por uma revisão crítica: ditadura e sociedade no Brasil. Salvador: Sagga; 2021. p. 195-220. (p.198), o Sujismundinho, filho do protagonista dos filmes anteriores, uma criança que, ao contrário do adulto, era capaz de aprender com os erros e mudar seus hábitos. Os filmes também passaram a contar com o Dr. Prevenildo, um médico cuja imagem era oposta à de Sujismundo, pois estava sempre muito limpo e explicava pedagogicamente preceitos sobre saúde e higiene à população.

Essas breves considerações em relação à campanha anteriormente encomendada pela AERP, servem para explicar o caráter peculiar das propagandas durante a ditadura civil-militar, pois, do ponto de vista mais teórico, elas trazem certa dificuldade para sua conceituação, já que “não se pode falar de um projeto de propaganda política muito clara - como foi o projeto de criação do SNI - ou que empolgasse da mesma maneira os militares”1414 Fico C. Reinventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV; 1997. (p.93). Assim, as propagadas eram matizadas em meio a temas que eram caros à população, a fim de parecerem despolitizadas, mas com mensagens de otimismo em relação aos rumos assumidos pelo país, procurando estimular a população brasileira a construir uma imagem positiva da ditadura. No caso específico da campanha criada após o PNI, com o objetivo de divulgar a obrigatoriedade da vacinação, temos esses elementos que foram construídos na AERP e mantidos na ARP, mas também temos uma outra conjuntura e com ela outras questões. A campanha ocorre entre 1977 e 1978, e conta menos com filmes de animação produzidos pela ARP, do que filmes live-action produzidos pela Agência Nacional.

Filmes de animações

Para analisar as animações precisamos considerar algumas questões referentes ao órgão responsável por sua produção. No início do governo Geisel (1974-1979), a Assessoria Especial de Relações Públicas não foi mantida. Como o historiador Carlos Fico explica, na imprensa ventilavam informações de que o general considerava que propagandas ufanistas constituíam gastos supérfluos usados em governos totalitários e eram inadequados aos tempos de abertura política, por isso dissolveu a AERP1414 Fico C. Reinventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV; 1997. (p.104). Entretanto, após um ano da posse de Ernesto Geisel, restabeleceu-se a estrutura do órgão anterior com o nome simplificado, qual seja Assessoria de Relações Públicas (ARP), que seria responsável por produzir uma propaganda menos ufanistas e mais voltada ao fortalecimento da imagem da Arena, partido da ditadura que começou a perder força no pleito eleitoral de 1974. A ARP manteve então as campanhas de utilidade pública, por serem consideradas mais “neutras”, como fora o caso daquelas de saúde estreladas pelos personagens Sujismundo, Sujismundinho e Dr. Prevenildo.

Assim, o governo Geisel não deixou de investir em propaganda, porém, como salientou Carlos Fico, as campanhas realizadas pela ARP procuraram transmitir um “otimismo responsável”, ou seja, se desenvolviam em torno de temas de utilidade pública, criando uma atmosfera de otimismo, porém fiel à realidade. Foi nessa perspectiva que todas as campanhas publicitárias divulgadas em 1977 se encerravam com o slogan “O Brasil é feito por nós”, apresentado junto a um cata-vento de papel verde e amarelo, que denotava a ideia de um movimento possível de ser executado a partir da própria força. No caso, o Brasil se movimentando rumo ao desenvolvimento graças aos esforços do seu povo. Em 1978, esse slogan desaparece, nos levando a inferir que isso ocorreu devido ao agravamento da crise econômica atrelado ao projeto de distensão política. Alguns seguimentos militares acreditavam que era preciso realizar a transição para a democracia enquanto eles ainda podiam coordenar o processo. A Lei nº 6.683, conhecida como lei da anistia, sancionada por João Batista Figueiredo em 28 de agosto de 1979, é simbólica nesse sentido, pois anistiou os chamados crimes conexos, ou seja, os militares não foram responsabilizados pelos crimes cometidos pelos agentes do Estado. No que se refere especificamente à saúde, a lógica de que um esforço individual, a vacinação dos filhos, seria capaz de prevenir doenças foi uma tônica presente em todos os filmes da campanha.

A primeira animação que vamos analisar trata-se de um filme com duração de 1’21’’, divulgado no ano de 19771616 Arquivo Nacional. Vacinação (1977) [vídeo na Internet]. [acessado 2024 jan 10]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=koGSTTPuUiw.
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, protagonizado pelos personagens: Dr. Prevenildo, Sujismundinho e Sujismundo. A cena inicial é uma placa com os dizeres “Posto de Saúde Dr. Prevenildo” que tinha abaixo um cartaz com o seguinte informe: “Hoje é dia de vacinação”. Nesse cenário aparece o médico Dr. Prevenildo de posse de uma pistola de vacinação perguntando a uma enfermeira se todos já haviam chegado, ela diz que sim e cita alguns nomes, enfatizando que: “até o Sujismundinho” estava lá. Na cena seguinte a enfermeira está na frente do garoto perguntando-o se ele está com medo, ao que ele responde não, mas que o pai dele sim, porque não queria ser vacinado, então Sujismundo aparece e reitera a fala do filho: “é isso mesmo não quero tomar espetadas inúteis, afinal não estou doente”. A resposta é dada pelo Dr. Prevenildo que continua com a pistola na mão e explica que “é por não estar doente que precisa se vacinar” e segue explicando didaticamente que “a vacina é um preparado que protege contra as doenças, quando seu filho recebe uma dose de vacina o líquido estimula as defesas naturais do organismo, tornando-as muito mais fortes para combater os germes causadores das doenças”. Durante essa explicação aparecem imagens simulando uma luta entre as defesas e os germes, que terminam mortos pelas primeiras.

Por fim, Sujismundo diz impressionado: “Poxa! É isso que a vacina faz?”, ao que o Dr. Prevenildo responde: “Sim! E é por atitudes como a sua que muitos brasileiros morrem ou ficam incapazes”. Nesse momento Sujismundo aparece com um balãozinho se imaginando morto. O médico ainda explica que a vacina não dói nada e pergunta a Sujismundo se ele iria bancar o medroso perto das crianças, o personagem responde sorrindo que claro que não iria já estendendo a manga do paletó. Segue a cena final em que aparece uma caderneta de vacinação enquanto ouve-se a voz do Dr. Prevenildo explicando: “Atenção! A partir de 1º de julho a vacina é obrigatória no Brasil. Se seu filho não for vacinado até completar 1 ano, perderá o direito ao salário família até o momento que o senhor vacine e apresente o atestado instituído por lei”. O slogan “o Brasil é feito por nós” sugere a aliança entre o regime civil-militar e a sociedade. A Figura 2 é a captura da cena em que o Dr. Prevenildo vacina Sujismundo enquanto Sujismundinho e outras crianças observam.

Figura 2
Cena em que o Dr. Prevenildo vacina Sujismundo enquanto Sujismundinho e outras crianças observam.

A segunda animação da campanha é um filme curto de 57’’ divulgado em 1978. A primeira cena ocorre com o Dr. Prevenildo explicando que a vacinação infantil se tornou obrigatória no Brasil, e era preciso que os pais vacinassem seus filhos no primeiro ano de vida com as seguintes vacinas: “contra a paralisia infantil; a Tríplice, que protege conta o tétano, coqueluche e krupp; a B.C.G contra tuberculose; a que protege contra varíola e contra o sarampo”1717 Arquivo Nacional. Sugismundo e a vacinação (1978) [vídeo na Internet]. [acessado 2024 jan 10]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4lCWs78ojFI.
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. Ao longo da explicação são projetadas imagens atrás do médico, inclusive de um quadro com a listagem de vacinas obrigatórias: Anti-pólio, Tríplice, B.C.G, Anti-variólica e Anti-sarampo. A cena finaliza com o som de um assobio, quando aparece Sujismundo, com a esposa segurando um bebê de colo e Sujismundinho. Então, ele diz “olá Dr. Prevenildo, queria lhe dizer que já regularizei minha caderneta de vacinação, quando Sujismundinho terceiro fez um ano tomou todas as vacinas necessárias, está protegido e agora já posso receber o salário família, e inclusive os meses que ficaram em atraso”. O filme se encerra com o Dr. Prevenildo parabenizando Sujismundo por ter cumprido a lei, e admoestando as pessoas a vacinarem seus filhos antes de completar o primeiro ano de vida. O slogan usado em 1977 não aparece mais. Dessa vez é projetada a imagem do mapa do Brasil com uma estrela ao centro. Inferimos que essa mudança esteve relacionada às questões internas da ARP e ao processo de abertura política empreendido no governo Geisel, cuja preocupação não insidia mais em criar uma imagem positiva do regime, mas realizar a volta dos militares aos quartéis sem a responsabilização por seus crimes.

Em relação as animações descritas aqui, precisamos considerar que, embora já tivessem alcançado grande popularidade, sobretudo, pelo personagem Sujismundo criado no início dos anos de 1970, eram filmes que tinham um conteúdo claro, bastante didático para informar a população acerca da vacinação obrigatória. Por outro lado, também possuíam certo conteúdo cômico, pelos desenhos animados e, principalmente, pela simpatia de Sujismundo. Nas primeiras campanhas estreladas por esse personagem, esse tom simpático foi muito criticado, já que poderia transmitir uma imagem contrária àquela que se pretendia, ou seja, ao invés da ideia de que ser anti-higiênico era ruim, poderia suscitar que era bom. No caso da campanha de vacinação, houve uma preocupação em criar uma narrativa que o personagem negava a vacina inicialmente, mas quando esclarecido sobre sua importância, ele muda de ideia e, inclusive, vacina a si e aos seus filhos. É uma estratégia interessante para tornar a vacina culturalmente aceita, já que, como é evidenciado durante todos os diálogos, elas salvam vidas e evitam doenças. Nesse sentido, precisamos apresentar os filmes de live-action para podermos estabelecer algumas reflexões em torno da diferença de abordagem entre os dois gêneros fílmicos.

Filmes live-action

A campanha realizada a partir desse gênero fílmico, em 1977, deu-se através da divulgação dos tipos específicos de vacinas obrigatórias e as doenças que combatiam. Em 1978, foi divulgado um filme que tratava da importância da vacinação, em termos gerais. O filme sobre a vacina tríplice1818 Arquivo Nacional. Vacina tríplice (1977) [vídeo na Internet]. [acessado 2024 jan 10]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1Mj8LvQz-Ow.
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, que prevenia coqueluche, tétano e difteria em crianças de três meses a um ano de idade, tem como cenário inicial uma espécie de gasômetro, com uma imagem bastante nebulosa e um narrador com voz grave e pausada explicando sobre como a vacina era capaz de evitar doenças que anteriormente levavam à morte. Nesse cenário há uma família, cujos pais amparavam o filho que tossia ininterruptamente e, enquanto isso, o narrador diz “Antigamente pensava-se que os odores de gás curavam a coqueluche, usava-se levar os doentes aos gasômetros”. A cena se modifica para um quarto de hospital onde uma criança está deitada e sendo assistida por um médico, enquanto o narrador fala que “Antigamente também a difteria matava muita gente, principalmente crianças”. A cena seguinte é de uma mulher advertindo uma criança que saía correndo de casa, mas era ignorada pelo garoto que continuava correndo, então, aparecia na tela a imagem de um prego onde ele estava prestes a pisar, enquanto isso, o narrador explica que “Ainda hoje muita gente morre de tétano”. As cenas finais se dão com um médico explicando que as doenças coqueluche, difteria e tétano eram evitadas com a vacina tríplice, aplicada em duas doses nas crianças entre 3 meses e 1 ano de idade e um reforço após um ano. Durante essa explicação são projetadas imagens de um bebê sendo segurado pela mãe que descia sua fralda a fim de receber a vacina, cuja seringa era preparada e enfim injetada na pele do bebê. Ao final o médico retorna a tela para enfatizar: “vacine seus filhos, basta levá-los a um posto de saúde”.

Ao contrário das animações, há uma dramaticidade no filme traduzida tanto pela narrativa, quanto pelas imagens e sons. Chama atenção a cena do momento em que a agulha é injetada na pele do bebê, pois pode despertar um sentimento de desconforto ou até mesmo pena da criança. Não obstante, a narrativa é de que as vacinas impedem o contágio de doenças que geram sofrimentos maiores. Esse apelo dramático parece se intensificar em alguns filmes da campanha, por exemplo, o de divulgação da vacina B.C.G. contra varíola e tuberculose1919 Arquivo Nacional. Vacinação (1977) - BCG e varíola [vídeo na Internet]. [acessado 2024 jan 11]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PFBJBMnDuKc.
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. É um filme curto de 1’, que se inicia com a imagem do vírus da varíola visto a partir de um microscópio, em seguida a imagem de uma criança com algumas pequenas bolhas nas costas e uma outra imagem da evolução da doença. Quando as costas da criança já estão complemente tomadas de bolhas, a câmera se aproxima para que o expectador veja as feridas de perto. Enquanto isso, o narrador explica que a varíola já havia provocado milhões de mortes no mundo e que a vacina já havia livrado o Brasil da doença desde 1971. Nesse momento, começam as cenas em que crianças são vacinadas, e o apelo do narrador para que não deixassem a doença voltar e que, para isso, era preciso vacinar as crianças a partir de dois meses de idade. O filme continua com a projeção de uma imagem de microscópio do bacilo de Koch, causador da tuberculose. A cena seguinte é de algumas imagens de raio-X e de uma criança tendo os pulmões auscultados por uma médica, enquanto o narrador explica que a tuberculose mata milhares de pessoas anualmente, pois, atacava os pulmões, os ossos, intestino e outros órgãos. Então, começam cenas em que crianças são vacinadas, todas com enfoque no momento exato em que a vacina é injetada. Enquanto isso, o narrador diz que a vacina B.C.G., aplicada logo ao nascer, evita a tuberculose, por isso, adverte que os pais vacinassem seus filhos e que, para isso, bastava levá-los a um posto de saúde.

O filme de divulgação da vacina contra o sarampo2020 Arquivo Nacional. Vacinação contra o sarampo (1977) [vídeo na Internet]. [acessado 2024 jan 18]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=flrx5oOCsts.
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é bem curto, tem 37’’, se passa basicamente com a imagem de uma criança bocejando e triste debruçada em uma janela. Isso ao som de chuva e canto de pássaros que é interrompido pela voz do narrador, que passa a explicar de forma comovente que “o pior do sarampo não é a criança ficar trancada no quarto, o pior do sarampo é que ele ainda causa muitas mortes em nosso país, e o seu filho não precisa ter sarampo, ninguém precisa ter sarampo”. Enquanto isso, a imagem do rosto da criança, uma menina com semblante entristecido e desanimada é focada pela câmera. Então o narrador adverte aos pais que vacinem seus filhos, pois bastava uma única dose entre o oitavo e o décimo segundo mês de vida, reforçando que para isto era só levá-los a um posto de saúde. Nesse filme, o apelo dramático é dado pela imagem do rosto da menina extremamente entristecida e desanimada, além claro, da informação de que o sarampo matava, em uma clara tentativa de mobilizar os pais a partir do medo de perderem seus filhos.

O filme de divulgação da vacina de poliomielite2121 Arquivo Nacional. Vacinação (1977) [vídeo na Internet]. [acessado 2024 jan 20]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SGvaVdIYXEM.
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, cuja duração é de 39’’, tem um conteúdo extremamente complexo, sobretudo, visto a partir de uma perspectiva presente. Porém não queríamos ser anacrônicos e nos concentramos no conteúdo, tendo em vista o contexto em que foi produzido. O filme é todo em torno de uma única cena protagonizada por um garoto loiro e de olhos claros, que inicialmente tem a câmera focada exclusivamente em seu rosto, cuja expressão denota que ele estava fazendo um enorme esforço que gerava nele sofrimento. São cerca de 20’’ até que o expectador entenda que ele está em uma clínica de reabilitação tentando se mover, sem sucesso, apoiado em duas barras horizontais. As pernas da criança estão envolvidas em um aparelho que é preso a uma bota. Essa cena tem ao fundo uma música instrumental parecida a uma marcha fúnebre, que só é interrompida já no final do filme com o narrador recomendando aos pais que vacinassem seus filhos contra a paralisia infantil, com três doses a partir do segundo mês de vida até completar 1 ano, bastando levá-los a um posto de saúde. A Figura 3 apresenta a cena em que o expectador entende que o esforço da criança é para tentar se mover, pois tem paralisia infantil e está em uma clínica de reabilitação.

Figura 3
Cena em que o expectador entende que o esforço da criança é para tentar se mover, pois tem paralisia infantil e está em uma clínica de reabilitação.

O apelo a condição física do garoto, loiro e de olhos claros, nos faz refletir acerca do alcance dessa campanha, ao contrário da varíola, da tuberculose, da difteria e da coqueluche, cuja conjuntura social era capaz de determinar quais camadas seriam mais afetadas, já que condições sanitárias, de alimentação dentre outras, facilitavam tanto o desenvolvimento, quanto a proliferação dessas doenças. Já a paralisia infantil era um tipo de doença que ultrapassava as barreiras sociais, por isso, a importância de se utilizar a imagem de uma criança que representasse setores mais abastados da sociedade, a fim de também mobilizá-los a vacinarem seus filhos. Há nos filmes um conteúdo que pretende suscitar medo nas pessoas, o medo de que os filhos adoeçam, de que fiquem com sequelas de doenças e de que morram. Não há nesse gênero a informação de que o salário família seria a suspenso em caso de descumprimento da lei, essa informação foi fornecida de forma muito didática nas animações. Aqui preferiu-se mobilizar através de certa pedagogia do medo. Os filmes descritos até aqui foram divulgados em 1977 e, assim como no caso na animação divulgada no mesmo ano, todos se encerram com o slogan “O Brasil é feito por nós”, pois, além dessa perspectiva de difundir o terror, havia também o intuito de mobilizar as pessoas a se tornarem parte do projeto de país proposto pela ditadura. Nesse tipo de campanha estava subtendido que havia um governo atento às condições de saúde da população, embora, como destacado os investimentos não asseveravam isso.

O último filme que vamos analisar tem 34’’, foi divulgado em 19782222 Arquivo Nacional. Vacinação (1978) [vídeo na Internet]. [acessado 2024 jan 22]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GvNlO2HVvVs.
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e não tem como tema a vacina contra uma doença específica, mas sim, a importância da vacinação das crianças de modo geral. Assim, a cena inicial se passa em um posto de saúde, onde há um grupo de mães com seus respectivos filhos no colo, recebendo de uma enfermeira a vacinação com uma pistola, junto a elas está um jovem médico que passa a ser focado pela câmera para explicar que a simples vacina que os filhos recebem de graça em um posto de saúde podem evitar doenças graves. No entanto, essas vacinas precisavam ser aplicadas na idade certa, “pois algumas doenças, como a paralisia infantil, por exemplo, podem causar problemas para o resto da vida e outras como o tétano e o sarampo podem levar até a morte”. O médico emenda advertindo que uma vacina custava tão pouco frente ao custo da doença que ela poderia evitar. Então o filme se encerra com o médico chamando atenção dos pais para que vacinassem seus filhos no primeiro ano de vida e para isso bastava levá-los a um posto de saúde, enquanto isso é projetada a imagem de uma criança sendo vacinada por uma pistola. O filme se encerra com a imagem da bandeira do Brasil com a estrela no centro, não há mais o slogan presente nas produções divulgadas no ano anterior, 1977.

Considerações finais

A campanha midiática para divulgar a vacinação obrigatória instituída pelo PNI, tanto no formato de animação quanto de live-action, foi produzida dentro de uma lógica de publicidade em torno da imagem do regime civil-militar, haja vista que tanto a Agência Nacional quando a Agência de Relações Públicas eram órgãos diretamente ligados ao governo. Nessa perspectiva, os filmes se aproximam muito de outras produções do período, quando eram comuns campanhas midiáticas sobre diversos temas: higiene, educação, trabalho, trânsito, inflação e vários outros. Tais campanhas criavam um diálogo indireto do regime com as pessoas comuns ao tratarem de temas corriqueiros, do cotidiano das pessoas, inclusive. As campanhas analisadas nesse artigo são um exemplo dessa narrativa que consegue dialogar com as pessoas e mobilizá-las para que determinadas ações, como a vacinação dos seus filhos, sejam incorporadas a cultura.

Nos filmes de animação a sanção ao descumprimento da vacinação obrigatória, qual seja a suspensão do salário família foi muito bem explorada. O Dr. Prevenildo tratou de explicar a questão e o Sujismundo apareceu no filme de 1978 mostrando que estava com a vacinação dos filhos em dia e havia recebido o salário família, incluindo os atrasados. Nos filmes de live-action, por outro lado, não se explorou a perspectiva da sanção, mas o medo em relação às doenças que poderiam ser evitadas com a vacinação. Com isso, inferimos que havia uma preocupação em não levar o expectador a construir uma imagem punitiva da ditadura, pois nas animações a ideia de coerção acabava sendo minimizada pela comicidade do personagem Sujismundo e pela simpatia do Dr. Prevenildo. Nos filmes com pessoas reais, apelava-se para a lógica de que havia uma preocupação com a saúde das crianças e, somente por isso, a vacinação era obrigatória. A imagem do bom governo, atento aos problemas da população fica bastante evidenciada.

No entanto, precisamos deixar claro que não se tratava disso, havia uma preocupação da ditadura sobretudo com indicadores epidemiológicos, porque desde o início dos anos 1970 discutia-se em âmbito mundial a necessidade de imunização das pessoas. O pesquisador Jaime Benchimol destacou que em 1974 foi aprovado pela Assembleia Mundial de Saúde o Programa Ampliado de Imunizações (PAI), cujo objetivo era ampliar o uso, aprimorar a tecnologia e incentivar a produção de imunizantes no mundo inteiro, foi nessa linha que o PNI foi criado, em 1975. No caso das Américas, “o programa foi reforçado por iniciativas da Organização Pan-Americana de Saúde e de governos que já vinham discutindo formas de ampliar a cobertura vacinal”11 Benchimol JL, coordenador. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001. (p.322). E os governos ditatoriais que se instauraram na América Latina acabaram por encampar a ideia de imunização como forma de intervenção contra as doenças transmissíveis, pois elas acabavam sendo mais vantajosas do que os investimentos nas “reformas sociais propugnadas pelos sanitaristas, que se achavam, majoritariamente, na oposição”11 Benchimol JL, coordenador. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001. (p.322).

Portanto, o fato de o PNI ter sido criado no contexto da ditadura civil-militar não pode levar a uma interpretação de que o regime estivesse na vanguarda das ações do cuidado preventivo com a saúde da população. Ao contrário, como destacado, houve uma política orientada para o financiamento privado em saúde, o que agradou setores empresariais do ramo, que conseguiram obter seu quinhão do “milagre econômico”, mas que promoveram no país um modelo de saúde curativista que deixava à margem amplos setores da sociedade, e os exíguos investimentos no Ministério da Saúde asseveram esse processo. Assim, é possível compreender que o PNI, bem como as campanhas de divulgação da vacinação obrigatória, foi uma ação pontual, embora muito importante no campo da saúde pública, mas só posteriormente, com o advento da democracia e a criação do Sistema Único de Saúde, pôde ser aperfeiçoado e até ser reconhecido como referência mundial, como é atualmente.

Referências

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    Arquivo Nacional. Vacinação (1978) [vídeo na Internet]. [acessado 2024 jan 22]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GvNlO2HVvVs
    » https://www.youtube.com/watch?v=GvNlO2HVvVs

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Out 2024

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2024
  • Aceito
    12 Abr 2024
  • Publicado
    14 Abr 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br