Intervenções estimuladoras de mudança em cenários de educação na saúde

Romeu Gomes José Maurício de Oliveira Everton Soeiro Vânia Rodrigues Bezerra Sobre os autores

Resumo

O artigo objetiva analisar a percepção de participantes sobre o efeito de intervenções desenvolvidas no âmbito de um projeto que integra o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS). Adotou-se o desenho metodológico de avaliação normativa, na perspectiva da abordagem de pesquisa qualitativa. Na pesquisa, foram envolvidos 21 profissionais de saúde de cinco projetos de intervenção, representando as cinco regiões brasileiras. As mudanças percebidas e tangibilizadas foram constatadas como resultado das intervenções. Dentre as conclusões, destaca-se que houve convergência entre percepções e intencionalidades do projeto avaliado.

Palavras-chave:
Projeto de intervenção; Residência; Mudança e Educação na saúde

Introdução

As intervenções - que comumente podem ser entendidas como interdições ou imposições - neste trabalho estão sendo empregadas como ações empreendidas no sentido de obter mudanças numa realidade específica. Minayo11 Minayo MCS. Construção de indicadores qualitativos para avaliação de mudanças. Rev Educ Med 2009; 33(1 Supl. 1):83-91., de forma resumida, concebe a mudança como o resultado de determinadas intervenções sociais ou pedagógicas sobre instituições e atores.

As ações das intervenções podem se desdobrar em atividades inovadoras que usualmente não se vislumbram pelos membros de uma comunidade. Em termos culturais, sociais, políticos e ideológicos, as intervenções podem impulsar o agir na direção do enfrentamento coletivo de problemas comunitários22 Almeida LBC. Projetos de intervenção em educomunicação [Internet]. [acessado 2023 out 3]. Disponível em: https://docplayer.com.br/37588150-Projetos-de-intervencao-em-educomunicacao.html.
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No âmbito das políticas e programas, uma intervenção - situada em espaços e tempos determinados - pode ser traduzida por um sistema organizado de ação visando solucionar uma situação problemática, envolvendo:

agentes (os atores); uma estrutura (o conjunto de recursos e das regras, que escapam ao controle dos atores); processos (relações entre os recursos e as atividades) e um objetivo (o estado futuro para a qual o processo de ação é orientado)33 Champagne F, Brousselle A, Hartz Z, Contandriopoulos AP. Modelizar as intervenções. In: Brousselle A, Champagne F, Contandriopoulos AP, Hartz Z, organizadores. Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 61-74.(p.61).

A partir de Guba e Lincoln, Champagne et al.44 Champagne F, Contandriopoulos AP, Brousselle A, Hartz Z, Denis JL. A avaliação no campo da saúde: conceitos e métodos. In: Brousselle A, Champagne F, Contandriopoulos AP, Hartz Z, organizadores. Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 41-60. observam que qualquer dispositivo de avaliação é em si uma intervenção; assim como os cuidados em saúde podem ser considerados intervenções44 Champagne F, Contandriopoulos AP, Brousselle A, Hartz Z, Denis JL. A avaliação no campo da saúde: conceitos e métodos. In: Brousselle A, Champagne F, Contandriopoulos AP, Hartz Z, organizadores. Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 41-60.. Ampliando essa ideia, situamos as intervenções com predomínio no campo da avaliação de quarta geração.

Para Guba e Lincoln55 Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas: Ed. Unicamp; 2011., a avaliação de quarta geração procura ultrapassar as gerações que as precederam que eram centradas “na mensuração, na descrição e no juízo de valor, para abarcar um no nível em que a principal dinâmica é a negociação”55 Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas: Ed. Unicamp; 2011.(p.13). Segundo os autores, a avaliação de quarta geração ancora-se em dois elementos básicos: enfoque responsivo (determinação de quais perguntas devem ser postas e quais informações devem ser coletadas a partir das informações dos grupos de interesse) e metodologia construtivista (baseada na suposição de que há uma construção da realidade por parte das pessoas sob a influência de fatores culturais e sociais que produzem construções socialmente compartilhadas). Dentro dessa perspectiva, entende-se que a avaliação não se restringe a um especialista, uma vez que nela interesses técnicos, práticos e libertadores se mesclam, afigurando-se como como um processo de negociação66 Gomes R, Petta HL, Pereira SMSF. Práticas avaliativas: bases conceituais na formação profissional em saúde. In: Lima VV, Padilha RQ, organizadores. Reflexões e inovações na educação de profissionais de saúde. Volume I. Rio de Janeiro: Atheneu; 2018. p. 101-109.. Gomes e Lima77 Gomes R, Lima VV. Princípios para a avaliação nos serviços de saúde. In: Silva RM, Jorge MSB, Silva Júnior AG, organizadores. Planejamento, gestão e avaliação nas práticas de saúde. Fortaleza: Editora da Universidade Estadual do Ceará - EdUECE; 2015. observam que:

Embora a quarta geração da avaliação tenha incluído o pluralismo de valores no “o quê avaliar”, este ainda é um dos maiores desafios, uma vez que afeta diretamente a concentração de poder daqueles que, convencionalmente, definem o que deve ser avaliado e o fazem segundo seus próprios valores e interesses77 Gomes R, Lima VV. Princípios para a avaliação nos serviços de saúde. In: Silva RM, Jorge MSB, Silva Júnior AG, organizadores. Planejamento, gestão e avaliação nas práticas de saúde. Fortaleza: Editora da Universidade Estadual do Ceará - EdUECE; 2015.(p.329).

Ainda na relação entre intervenção e avaliação, entende-se - com base em Patton88 Patton MQ. Developmental evaluation [Internet]. [cited 2017 ago 28]. Available from: http://www.abcee.org/cms/wp-content/uploads/2011/02/Dev-Eval-paper-October-2011.pdf.
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- que a avaliação: (a) não se volta apenas para resultados previamente previstos por intervenções, dentro da lógica linear de causa-efeito; (b) facilita a emergência de processos de transformação e (c) contribui para que as pessoas aprendam a pensar valorativamente no sentido de garantir um impacto mais duradouro do que resultados específicos gerados durante a própria avaliação77 Gomes R, Lima VV. Princípios para a avaliação nos serviços de saúde. In: Silva RM, Jorge MSB, Silva Júnior AG, organizadores. Planejamento, gestão e avaliação nas práticas de saúde. Fortaleza: Editora da Universidade Estadual do Ceará - EdUECE; 2015.,88 Patton MQ. Developmental evaluation [Internet]. [cited 2017 ago 28]. Available from: http://www.abcee.org/cms/wp-content/uploads/2011/02/Dev-Eval-paper-October-2011.pdf.
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Nesse sentido, a intervenção é entendida como o produto da relação entre o conjunto dos atores, das estruturas e dos processos, em um determinado contexto e momento, considerando suas singularidades, tendo como resultado esperado a mudança desta realidade99 Contandriopoulos AP, Champagne F, Denis JL, Pineault R. A avaliação na área da saúde: conceitos e métodos. In: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática da análise da implantação de programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 29-47..

No campo educacional, se considerarmos que “ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo”1010 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2011.(p.96) a construção de um plano de intervenção representa uma oportunidade concreta para traduzir ações na transformação da realidade.

O Hospital Sírio-Libanês (HSL) vêm desenvolvendo experiências que associam a formação de profissionais a projetos de intervenções, no âmbito do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), em parceria com o Ministério da Saúde (MS), bem como com a participação do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (CONASS) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS). Dentre essas experiências, destaca-se o projeto Desenvolvimento da Gestão de Programas de Residência e da Preceptoria no Sistema Único de Saúde (DGPSUS), desenvolvido em todas as unidades federadas do país1111 Soeiro E, Oliveira JM, Schiesari LMC, Silva RF, Garcia VL, Feliciano AB, Malvezi E, Melo FAB, Marcolini JDM, Ogata MN, Sampaio SF, Costa ACL, Cristo CS, Paula LS. Caderno do projeto: desenvolvimento da gestão de programas de residência e da preceptoria no SUS - DGPSUS. Caderno do Projeto 2021-2023. São Paulo: Hospital Sírio-Libanês, Ministério da Saúde; 2023..

Esse projeto, que tem como objeto prioritário a qualificação dos programas de residência em saúde e da preceptoria de residentes e graduandos no SUS, utiliza - como um dos eixos estruturantes - as chamadas metodologias ativas. Tais metodologias são utilizadas tanto na formação dos profissionais de saúde que participam do DGPSUS, como também nas intervenções no contexto real do mundo do trabalho onde se inserem os participantes formados pelo projeto. As propostas de intervenção são materializadas por meio de Projetos de Intervenção (PI), que se constituem em um trabalho técnico-científico e político, orientado para mudanças numa determinada realidade, a partir do reconhecimento de necessidades relacionadas às áreas de gestão, atenção à saúde e educação nos territórios sanitários e educacionais dos participantes.

Nos PI, o objeto de estudo e aprendizagem focaliza problemas ligados à realidade concreta dos participantes e uma proposta de intervenção para o enfrentamento desses problemas. Sua formulação busca articular conhecimento e ação1212 Matus C. O plano como aposta. Sao Paulo Perspect 1991; 5(4):22-28. para a proposição e implantação de respostas técnicas e políticas que visem as melhores práticas, no contexto do SUS. Uma mediação entre o conhecimento, a ação e a política1111 Soeiro E, Oliveira JM, Schiesari LMC, Silva RF, Garcia VL, Feliciano AB, Malvezi E, Melo FAB, Marcolini JDM, Ogata MN, Sampaio SF, Costa ACL, Cristo CS, Paula LS. Caderno do projeto: desenvolvimento da gestão de programas de residência e da preceptoria no SUS - DGPSUS. Caderno do Projeto 2021-2023. São Paulo: Hospital Sírio-Libanês, Ministério da Saúde; 2023..

Essa produção é construída de modo fundamentado nos princípios do SUS - universalidade, equidade, integralidade e participação social; nas diretrizes da gestão da clínica1313 Gomes R, Caleman G. A polissemia da governança clínica: uma revisão de literatura. Cien Saude Colet 2015; 20(8):2431-2439.,1414 Padilha RQ, Gomes R, Lima VV, Soeiro E, Oliveira JM, Schiesari LMC, Silva SF, Oliveira MS. Princípios para a gestão da clínica: conectando gestão, atenção à saúde e educação na saúde. Cien Saude Colet 2018; 23(12):4249-4257., visando a integralidade, humanização e qualidade do cuidado; na abordagem construtivista da educação, apoiando a transformação das práticas; e na gestão coletiva e participativa.

A intervenção, no âmbito do DGPSUS, não se relaciona à pesquisa clínica ou a estudos experimentais em geral. Sua concepção encontra-se associada à gestão social, cujos eixos centrais são a participação, o diálogo, a deliberação e a emancipação1515 Teixeira TS, Alcântara VC, Garcia AS, Pereira JR. O DRPE como método de intervenção da gestão social. Rev FSA 2019; 16(4):3-19..

Integrando esse projeto mais amplo, o objeto do presente estudo é a percepção dos possíveis efeitos do DGPSUS no cenário de programas de residências e de estágios de graduação em município-sede/região que integraram o triênio 2018-2020.

Ao se tratar de uma análise de efeito, faz-se necessário distinguir dois conceitos importantes, segundo Champagne et al.1616 Champagne F, Brousselle A, Contandriopoulos AP, Hartz Z. A análise dos efeitos. In: Brousselle A, Champagne F, Contandriopoulos AP, Hartz Z, organizadores. Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 159-182.: análise de efeitos e apreciação normativa. Segundo os autores,

a análise de efeito se interessa pelo conjunto dos efeitos possíveis de uma intervenção, enquanto a apreciação normativa se interessa apenas pelos efeitos almejados pela intervenção [...] a análise de efeitos tem por objeto a relação de causalidade entre os serviços e os efeitos, enquanto a apreciação normativa não examina essa relação e se limita a comparar os efeitos observados com os resultados esperados1616 Champagne F, Brousselle A, Contandriopoulos AP, Hartz Z. A análise dos efeitos. In: Brousselle A, Champagne F, Contandriopoulos AP, Hartz Z, organizadores. Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 159-182.(p.159).

O presente estudo se relaciona à apreciação normativa. Assim, a questão central é a seguinte: a percepção dos participantes envolvidos em intervenções do DGPSUS acerca dos efeitos ocorridos pós-intervenção relaciona-se com os resultados originalmente esperados pelos projetos de intervenção?

A partir dessa perspectiva, o artigo visa analisar a percepção de participantes envolvidos em intervenções do DGPSUS e os resultados esperados para intervenções no âmbito dos projetos originais das intervenções, concebidas pelo projeto no triênio 2018-2020.

Em termos de resultados esperados, entendendo que a investigação tinha como objeto um programa de apoio a mudanças no campo da educação na saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), esperávamos encontrar resultados que indicassem a modificação da realidade da preceptoria na graduação e nas residências em saúde bem como da sua gestão de programas de residência.

Em síntese, a hipótese do estudo é que projetos de intervenção no campo da preceptoria e da gestão de residências com resultados tangíveis e que tiveram suas ações continuadas promovem mudanças nos cenários de práticas de formação profissional.

Metodologia

Marco teórico-metodológico

Como marco do nosso estudo, optamos pelo conceito de mudança. Minayo1717 Minayo MCS. Mudança: conceito-chave para intervenções sociais e para avaliação de programas. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 53-70. aponta a mudança como conceito-chave para as intervenções sociais e para avaliação de programas. Ao refletir sobre o conceito de mudança social, a autora observa que há cientistas sociais que associam esse conceito a transformações que acontecem simultaneamente nas organizações sociais e nas mentalidades, enquanto outros se voltam mais para as mudanças que ocorrem a partir de intervenções específicas.

Relacionado a essas duas lógicas para se pensar a mudança, podemos mencionar Haferkamp e Smelser1818 Haferkamp H, Smelser NJ. Social change and modernity. Berkeley, Los Angeles, Oxford: University of California Press; 1992., quando mencionam que, no âmbito dos estudos acerca da mudança social, afiguram-se um ponto de tensão entre a busca por teorias gerais e a realização de estudos especializados. Segundo esses autores, qualquer teoria da mudança deve abrigar três elementos interrelacionados: (i) determinantes estruturais da mudança social; (ii) processos e mecanismos de mudança social e (iii) direções da mudança social. Eles chamam a atenção para o fato de que, entre os determinantes estruturais dos diferentes processos de mudança social, estão as consequências acumuladas de sequências anteriores à mudança.

Após a discussão do conceito de mudança social, Minayo1717 Minayo MCS. Mudança: conceito-chave para intervenções sociais e para avaliação de programas. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 53-70. coloca em foco a mudança da intervenção educacional e social e a mudança de valores. Mesmo correndo o risco de cairmos numa visão simplista acerca do assunto, destacamos algumas ideias dessa autora e de Terrén1919 Terrén E. Postmodernidad, legitimidad y educación. Educ Soc 1999; XX(67):11-47., bem como o diálogo entre os dois autores. Buscando compreender a mudança educacional e seu contexto, Terrén observa que tal mudança:

pode ser vista como uma exaustão dos conceitos de progresso e racionalidade do Iluminismo, ou como o advento de uma nova era econômica de desorganização e flexibilidade no domínio econômico ou, ainda, como o abandono das metodologias clássicas na produção e gerenciamento do conhecimento1919 Terrén E. Postmodernidad, legitimidad y educación. Educ Soc 1999; XX(67):11-47.(p.11).

Avançando sua análise, Terrén situa a crise de alguns parâmetros educacionais na compreensão da mudança social mudança por meio de três dimensões: cultural, socioeconômica e organizacional. Com um destaque importante acerca dessa crise, Minayo observa que “não foram os valores da educação que entraram em crise e sim sua práxis tradicional”1717 Minayo MCS. Mudança: conceito-chave para intervenções sociais e para avaliação de programas. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 53-70.(p.61). A autora faz esse destaque para constatar que a educação formal, mais do que nunca, é indicador potente de desenvolvimento humano da sociedade.

Para avançarmos na mudança educacional, Terrén nos apresenta o que ele denomina de “paradigma pós-burocrático” que se encontra em esboço. Segundo ele, tal paradigma:

caracteriza-se assim pela sua ênfase em objetivos específicos de curto prazo, na flexibilidade estrutural, na abertura de canais multidireccionais de informação e comunicação e na individualidade e criatividade como motores fundamentais da adaptação ao ambiente1919 Terrén E. Postmodernidad, legitimidad y educación. Educ Soc 1999; XX(67):11-47.(p.28).

Tanto Terrén e Minayo destacam o construtivismo como modelo pedagógico que melhor reflete o momento atual de anseios de mudanças educacionais. Com base em Terrén, Minayo observa que esse modelo “que se traduz em métodos e práticas, valoriza o particular, o variável, o contingente, o flexível, o interesse local, o engajamento dos indivíduos e suas potencialidades pessoais”1717 Minayo MCS. Mudança: conceito-chave para intervenções sociais e para avaliação de programas. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 53-70.(p.63).

Seguindo na análise de contextos das mudanças educacionais, Minayo adverte que se faz necessário incorporar uma nova concepção do tempo e de temporalidade. Em outras palavras, se torna relevante conceber o tempo como “qualitativo, flexível, que escape a preditibilidade e cuja implementação organizativa exija um sistema de confiança das organizações em seus membros em quem pretendem atingir com sua ação”1717 Minayo MCS. Mudança: conceito-chave para intervenções sociais e para avaliação de programas. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 53-70.(p.63). Concluindo sua discussão, Minayo observa:

Qualquer intervenção ou avaliação social precisa ser entendida dentro do seu nível de especificidades quanto às mudanças a que se propõe, mas também deve levar em conta os contextos ampliados de organização do sistema social, cultural e do universo de valores, de determinado momento histórico1717 Minayo MCS. Mudança: conceito-chave para intervenções sociais e para avaliação de programas. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 53-70.(p.69).

Desenho do estudo

O estudo fundamenta-se em numa abordagem de pesquisa qualitativa, entendida como um conjunto de práticas interpretativas que procura contemplar significado e intencionalidade relacionados às ações, relações e estruturas sociais2020 Denzin NK, Lincoln YSD. Introdução: a disciplina e a prática da pesquisa qualitativa. In: Denzin NK, Lincoln YSD, organizadores. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. Porto Alegre: Artmed; 2006.,2121 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006..

A partir dessa abordagem, adotou-se o desenho metodológico de avaliação normativa. Diferentemente da pesquisa de avaliação, pode ser considerada como uma análise ex post de uma intervenção, usando métodos científicos. A avaliação normativa é “a atividade que consiste em fazer um julgamento sobre uma intervenção, comparando os recursos empregados e sua organização (estrutura), os serviços ou bens produzidos (processo) e os resultados obtidos, como critérios e normas”99 Contandriopoulos AP, Champagne F, Denis JL, Pineault R. A avaliação na área da saúde: conceitos e métodos. In: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática da análise da implantação de programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 29-47.(p.34).

A avaliação normativa teve como foco geral projetos de intervenção (PI) implementados no triênio 2018-2020 no desenvolvimento do DGPUS. Nesse triênio, foram elaborados 161 PI, sendo que, desse total, 152 foram concluídos (94%) e 133 (83%) tiveram resultados com evidências. Para a escolha das intervenções, foi utilizada uma amostra de conveniência, selecionando cinco experiências exitosas de intervenção, sendo uma por região do país. Para ser selecionada, cada experiência deveria ter: (a) resultados tangíveis em relação ao que se propunha; (b) uma implementação, após o seu planejamento, de pelo menos dois anos; (c) possibilidade de, em 2023, apresentar continuidade de alguma atividade decorrente de seus resultados; (d) anuência da gestão da qual se insere a atividade a ser observada e (e) consentimento dos integrantes que foram envolvidos em 2023 para serem entrevistados e participarem de uma atividade a ser observada. Com base nesses critérios, a coordenação do DGPSUS e profissionais que supervisionaram a implantação das intervenções selecionaram as cinco experiências.

Em cada experiência selecionada, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com pelo menos dois profissionais que, de alguma forma, participaram da implantação do PI. As questões foram as seguintes: (1) Como foi a sua experiência na intervenção em que você participou? (2) Como você avalia a implantação dessa intervenção? (3) O que você destaca de concreto que atesta ou que deveria atestar para considerar o resultado exitoso da implantação do PI? (4) Você percebe alguma ação ou atividade em curso que foi decorrente dos resultados da intervenção em que você participou? (5) Com base na sua experiência, quais aspectos você considera que deve permanecer ou mudar em futuras intervenções?

As entrevistas foram gravadas em dispositivo de telefone celular, gerando arquivos de áudio com extensão “.m4a”. Os arquivos de áudio foram salvos em computador. No que se refere à transcrição, cada entrevista gravada foi ouvida com pausas para que fossem digitadas em arquivo Word. Ao final, os pesquisadores escutaram a gravação de cada entrevista e compararam sua escuta com o texto transcrito para assegurar a fidelidade do depoimento e, caso necessário, foram realizados ajustes na digitação.

O tratamento analítico das transcrições das entrevistas ocorrera com base na adaptação de Gomes2222 Gomes R. A análise de dados em pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, organizadora. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2016. p. 72-95. da técnica de análise temática concebida por Bardin2323 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1979.. Após leitura compreensiva do material de forma exaustiva, realizou-se a análise propriamente dita, buscando:

(a) distribuir trechos, frases ou fragmentos de cada texto de análise pelo esquema de classificação ... [que a princípio podem ser as questão da entrevista]; (b) fazer uma leitura dialogando as partes dos textos em cada classe do esquema de classificação; (c) identificar, através de inferências, os núcleos de sentidos apontados pelas partes dos textos em cada classe do esquema de classificação; (d) dialogar os núcleos de sentidos com os pressupostos iniciais e, se necessário, realizar outros pressupostos; (e) analisar os diferentes núcleos de sentidos presentes nas várias classes do esquema de classificação para buscarmos temáticas mais amplas ou eixos em torno dos quais podem ser discutidas as diferentes partes dos textos analisados; (f) reagrupar as partes dos textos por temas encontrados; (g) elaborar uma redação por tema, de modo a dar conta dos sentidos dos textos e de sua articulação com o(s) conceito(s) teórico(s) que orienta(m) a análise [...] Como etapa final.. [será elaborada] uma síntese interpretativa através de uma redação que possa dialogar com os temas com objetivos, questões e pressupostos da pesquisa2424 Thomas WI, Thomas DS. The child in America: Behavior problems and programs. New York: Knopf; 1928.(p.83).

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Hospital Sírio-Libanês.

Resultados

Caracterização dos PI e dos sujeitos envolvidos

O conjunto dos projetos de intervenção (PI) focalizados neste estudo, em geral, apresenta as seguintes características: (a) representa capitais e cidades do interior das cinco regiões brasileiras; (b) abrange uma diversidade de áreas temáticas, sendo que todas elas dialogam com os macroproblemas construídos e elencados pelo Projeto e validados com os Parceiros Ministério da Saúde, CONASS e CONASEMS1111 Soeiro E, Oliveira JM, Schiesari LMC, Silva RF, Garcia VL, Feliciano AB, Malvezi E, Melo FAB, Marcolini JDM, Ogata MN, Sampaio SF, Costa ACL, Cristo CS, Paula LS. Caderno do projeto: desenvolvimento da gestão de programas de residência e da preceptoria no SUS - DGPSUS. Caderno do Projeto 2021-2023. São Paulo: Hospital Sírio-Libanês, Ministério da Saúde; 2023. e (c) em termos de instituições, predomina a presença de universidades, hospitais e rede de atenção básica (Quadro 1).

Quadro 1
Caracterização dos Projetos de Intervenção do Triênio 18-20, DGPSUS, PROADI HSL, envolvidos nesse estudo.

No que se refere aos entrevistados, em geral, observamos que predominam: o sexo feminino; a cor de pele autorreferida parda; a graduação de medicina; egressos de outras edições do DGFPSUS e profissionais que não atuavam na residência no período da visita a campo (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição absoluta e proporcional do perfil dos entrevistados.

A mudança como indicador de êxito

Com base na compreensão do conjunto de falas dos sujeitos entrevistados, podemos considerar que a mudança se afigura como temática central. Nesse sentido há uma convergência entre a percepção dos entrevistados e as intencionalidades dos projetos de intervenção (PI) que tiveram como resultado maior a geração de mudança no cenário de práticas da gestão e/ou preceptoria no âmbito de programas de residência.

Frente aos resultados do PI apontados pelos entrevistados, podemos supor que a mudança é um indicador de êxito das ações empreendidas. Essa temática, no conjunto das falas, pode ser classificada em duas temáticas: mudança percebida e mudança tangibilizada.

Mudança percebida

Ao se referirem aos resultados dos PI, os entrevistados apontam - de forma explicita - a mudança.

A gente está muito interessado também nas mudanças de realidade [...] quer que as pessoas interfiram na sua realidade e modifique (Vitória, 1).

Eu acho que [houve] a mudança da prática e o conhecimento (Rio Verde, 2).

Eu estou conseguindo mudar aqui dentro em função do que eles [residentes] estão trazendo (Palmas, 2).

Então, eu te diria que as próprias intervenções que eu vivencio têm mudado bastante (Pelotas, 1).

Em outras falas, ainda que não se explicite a mudança, ela se encontra implícita quando se fala de deslocamentos de uma situação para outra situação, como por exemplo da não padronização de avaliação para uma ação mais padronizada ou de uma atuação de uma área isolada para uma atuação conjunta, envolvendo mais de uma área. Assim, a mudança é vista por meio da comparação entre um momento anterior à intervenção com o momento a ela posterior. Nesse sentido, as “intervenções procuram fornecer subsídios para o pensar diferente, que impulsione a ação e a mudança - de um estado A, para um estado B”22 Almeida LBC. Projetos de intervenção em educomunicação [Internet]. [acessado 2023 out 3]. Disponível em: https://docplayer.com.br/37588150-Projetos-de-intervencao-em-educomunicacao.html.
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Foi efetivo, a gente até consegue ver o deslocamento dos programas em si [que passam a ter padronização de avaliação] (Palmas 1).

Hoje a gente faz a anamnese do paciente, em conjunto. Então, as duas áreas [Educação Física e Nutrição] estão na mesma anamnese, seja ouvindo a parte específica da nutrição ou vice-versa (Pelotas, 3).

Ainda que tal mudança ou aspectos que a revelam sejam atribuídos à instância do percebido, não se pode, em termos avaliativos, minimizar tal fato. Em termos de realidade social, a percepção e a interpretação que se faz acerca das situações são fundamentais. Como Thomas e Thomas observam “se os homens definem as situações como reais, elas são reais nas suas consequências”2424 Thomas WI, Thomas DS. The child in America: Behavior problems and programs. New York: Knopf; 1928.(p.572). No sentido de ampliar essa ideia, podemos recorrer a Berger e Luckmann2525 Berger L, Luckmann L. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes; 2000. que consideram que a percepção dos sentidos em si é moldada pelos sentidos subjetivos atribuídos a uma experiência objetivamente vivida. Com base nesses autores, podemos supor que se os profissionais percebem que houve mudança após o desenvolvimento dos projetos de intervenção, eles poderão adotar formas de agir em seus cotidianos de acordo com o que eles julgam ser mudança. Assim, mudança objetiva e mudança subjetiva se mesclam.

Mudança tangibilizada

Ao se refletir acerca do que, entre os resultados obtidos nas intervenções, permaneceu de evidente decorrentes de mudanças, os entrevistados procuraram a princípio enumerar algo tangível.

[De concreto ficou] o instrumento [de avaliação], que a gente criou, é o instrumento unificado para os planos de residência, que aí ele é direcionado para as ações de atenção, gestão e educação (Palmas, 3).

[Um grupo sobre a influência da intervenção] produziu uma [...] cartilha com a rede de apoio do território. Aí, isso foi bem tangível, bem concreto, tenho esse material (Recife, 1).

Nós fizemos, na época [...] a portaria do NAV [Núcleo de Avaliação], o plano de avaliação, a revisão dos instrumentos que até então tinham sido utilizados (Palmas, 4).

Eu vou falar da última evidência concreta que vai acontecer dia sete, depois de amanhã. É um seminário de integração que a gente... da integração em si, os serviços, com as instituições de ensino, as instituições formadoras (Vitória, 3).

Então, de forma concreta eu pude implantar algumas metodologias ativas no CAPS como a simulação clínica, fazendo a dramatização, tipo o jogo de papeis e a sala invertida que é outra metodologia (Recife 2).

Universitário e atingiu mais de 3 mil e 400 pessoas (Rio Verde, 10).

A partir dessa construção desse PI a gente conseguiu fazer o primeiro encontro de preceptoria da RAPS [Rede de Atenção Psicossocial] de Recife (Recife, 1).

[De concreto tivemos] institucionalizou-se de fato a residência em Vitória [...] quando se coloca isso [a formalização do programa] em um documento oficial [...] isso também traz um valor, mas traz uma responsabilidade, os documentos oficiais de institucionalização [...] é o primeiro passo (Vitória, 4).

[De concreto] a gente conseguiu montar uma disciplina chamada Ciranda dos Saberes, que era para reunir os residentes do primeiro ano que estavam rodando espaços diferentes [...] que foi muito bem avaliada pelos residentes (Recife, 4).

Nesses casos de apresentação dos resultados, uma forma de evidenciá-lo é promover a tangibilidade. Uma evidência mais concreta consiste na apresentação de algo que possa ser compreendido como um produto que possa ser tocado ou sentido2626 Questionpro [Internet]. [cited 2023 out 3]. Available from: https://www.questionpro.com/blog/pt-br/tangibilizar-servico/#:~:text=O%20que%20%C3%A9 %20tangibilizar%20servi%C3%A7o,e%20entendido%2C%20que%20seja%20real.
https://www.questionpro.com/blog/pt-br/t...
. Um dos entrevistados utilizou mensuração para apoiar a apresentação evidência de mudança.

Nós crescemos muito na parte de educação permanente [projeto criado a partir da intervenção], como por exemplo, só no ano de 2022, nós tivemos 44 qualificações só no Hospital Municipal (Rio Verde, 1).

Outra forma encontrada pelos entrevistados para evidenciar a mudança foi a apresentação de um padrão atribuído às ações que não existia antes da finalização do projeto de intervenção.

[Eu destacaria] o alinhamento dos programas [no que se refere a avaliações], eu vejo uma fala mais entoada entre as coordenações, um planejamento mais efetivo a partir dessas avaliações (Palmas, 1).

Preceptores e tutores conseguiram visualizar o deslocamento dos residentes e das residentes, e as residentes e os residentes também conseguiram visualizar esse deslocamento (Palmas, 2).

O maior êxito nesse PI foi a inclusão do profissional [dos serviços de saúde] no processo de preceptoria (Rio Verde, 1).

Surgiu após o PI. Por isso que no início eu falei da sementinha plantada, foi a partir do PI porque foi a partir do PI que começou a desenvolver toda a criação desse fluxo gigantesco [inserção de residentes nos serviços de saúde] que está hoje (Rio Verde, 3).

Tornar algo tangível pode se relacionar à demonstração de algo com existência real. Guba e Lincoln observam que “não existe nenhuma realidade única e ‘real’, mas apenas múltiplas realidades construídas pelos seres humanos”55 Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas: Ed. Unicamp; 2011.(p.74). Se esta afirmação for aceita, podemos supor que a demonstração da realidade da mudança, no mínimo, se afigura por diferentes formas de nomeação. Uma das estratégias mais comuns da perspectiva convencional é de que algo é tangível na medida em que apresenta alguma quantidade mensurável. Em contrapartida, na lógica construtivista, as construções existem na mente dos construtores, não podendo ser reduzidas a entidades mensuráveis; estas - quando muito - podem servir de apoio a uma construção55 Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas: Ed. Unicamp; 2011.. Isso se observa no conjunto das falas dos entrevistados que predomina a nomeação de padrões para demonstrar que, a partir das intervenções, ocorreram mudanças tangíveis.

Discussão

A partir da interpretação das falas dos entrevistados, podemos estabelecer algumas inferências em termos de efeitos dos projetos de intervenção implementados. Tais inferências - que se traduzem mais em dimensões de processo do que produtos de mudança - podem ser resumidas da seguinte forma: (a) coletivos foram formados a partir da implementação dos PI, envolvendo outros profissionais que não participaram diretamente da implementação das ações; (b) os resultados dos PI possibilitaram o estabelecimento de uma continuidade das ações vivenciadas pelos profissionais nelas envolvidos; (c) estratégias para viabilizar a continuidade da mudança ultrapassaram o âmbito dos programas de residência, sendo ampliadas para outras ações de educação na saúde e (d) a ampliação das ações para além do escopo dos PI foi capaz de traduzir um reconhecimento de que é possível produzir mudanças no setor público, mais especificamente no campo educacional do Sistema Único de Saúde.

Tanto os resultados atribuídos aos PI como as ações exitosas deles decorridas podem ser tributados aos sujeitos envolvidos direta ou indiretamente nesses projetos. Eles implementaram ações que - na percepção deles - poderiam melhor abordar os problemas que deram origem às intervenções. Segundo Habermas2727 Habermas J. The theory of communicative action, volume two: Lifeworld and system: A critique of functionalist reason. Boston: Beacon Press; 1987., são os indivíduos, e não os sistemas, que são os protagonistas das ações sociais, e são eles que significam as suas ações. Nesse sentido, os indivíduos são a base das ações sociais e, portanto, indivíduos ou grupos geram fatos sociais dependendo do significado dessas ações. Mutatis mutandis, podemos considerar que as mudanças ocorreram mais por conta do envolvimento dos profissionais que atribuíram sentido às ações por eles implementadas. Assim, podemos supor que, mesmo em diferentes cenários, em localidades distintas, a mudança é possível por meio do protagonismo das pessoas.

Ampliando a ideia de que as ações voltadas para a mudança podem ser tributadas aos profissionais que nelas se envolveram, podemos considerar que as intervenções se configuraram como um espaço de oportunidades para que fossem desenvolvidas ações comunicativas que fizeram a diferença no êxito das ações.

Concretamente os efeitos das ações dos profissionais decorrentes dos projetos de intervenção podem ser ilustrados com iniciativas que ultrapassaram o campo da residência e ganharam êxito em espaços dos sistemas locais de saúde. A exemplo disso, destaca-se a influência do grupo originário do PI de Pelotas-RS que conseguiu implementar ações interdisciplinares em grupos de outros profissionais, no combate à epidemia de COVID-19. Outro exemplo é o PI de Rio Verde-GO, que se iniciou no Hospital Municipal Universitário e extrapolou os muros desse hospital, influenciado na implantação dos Núcleos de Qualidade e Educação Permanente em todo o município.

O fato de os profissionais de saúde serem protagonistas no alcance dos resultados dos PI, de certa forma, pode atestar a mudança, uma vez que - como vimos no marco teórico-referencial - as mudanças ocorrem nas organizações de nas mentalidades1717 Minayo MCS. Mudança: conceito-chave para intervenções sociais e para avaliação de programas. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 53-70.. A partir da implementação das ações dos PI, tais profissionais passaram a ver suas atividades e seus cenários das práticas de uma forma diferente dos momentos que antecederam os PI. Esse novo olhar sobre as intencionalidades projetadas nos projetos contribuiu para que mudanças ocorressem no campo das práticas.

As mudanças percebidas e tangibilizadas foram constatadas em nosso estudo em recortes de contextos dos serviços de saúde locais. Possivelmente tais mudanças poderão trazer impactos nesses serviços. Entretanto, isso só será possível avaliar num maior espaço de tempo e com um estudo em que se possa triangular distintas visões sobre desdobramentos das mudanças por meio de distintas estratégias de investigação.

Por último observamos que, para que os efeitos dos PI avancem no tempo e nos espaços locais, alguns desafios ainda deverão ser equacionados. Dentre eles, destacamos o de conseguirmos avaliar os efeitos obtidos pela implementação dos PI na formação de pessoas mais preparadas e adequadas às necessidades do SUS e de seus usuários. Reconhecemos que o SUS, com o qual o DGPSUS tem compromisso de apoio, é um sistema em processo de implantação e qualificação. O sistema educacional voltado para a formação de profissionais de saúde deve acompanhar esse processo de consolidação e oferecer uma formação voltada para as necessidades da população brasileira e para as diretrizes deste sistema público. Esta articulação e sintonia é essencial, isto é, há uma exigência que os sistemas educacionais brasileiros se moldem ativamente para acompanhar e sustentar esse processo.

Na presente pesquisa não fica nítida essa compreensão. Não se observa que os movimentos apoiados no âmbito do DGPSUS deveriam ser um disparador de um processo de mudança continuada que se alimenta das transformações do sistema público de saúde brasileiro. As mudanças logradas, para que alcancem os compromissos com o SUS, deveriam ter um caráter permanente e articulado. Sabemos que as mudanças de governança interferem na perenidade dos projetos e na instância do projeto DGPSUS não se propõe a este olhar longitudinal devido a própria natureza do PROADI-SUS. No âmbito desse programa, não é comum a produção de reportes pós finalização dos projetos e, frente à essa ausência, pode ocorrer a perda de seguimento e dificuldade no monitoramento das ações. Levando em conta a perspectiva triangular de Haferkamp e Smelser1818 Haferkamp H, Smelser NJ. Social change and modernity. Berkeley, Los Angeles, Oxford: University of California Press; 1992., talvez só passemos considerar que, após a implementação dos PI, é possível pensarmos na existência de processos e mecanismos de mudança, faltando vislumbrarmos as direções dessa mudança e suas implicações nos determinantes estruturais das ações educativas promovidas pelo projeto avaliado.

Considerações finais

Se considerarmos a percepção como indicador de mudanças, podemos observar que no repertório das respostas - que os profissionais produziram frente às questões da pesquisa - a mudança se configurou como uma possibilidade de a formação de residentes ocorrer de uma forma mais comprometida com as realidades em que se inserem. Ainda nos repertórios das respostas, em termos de avaliação normativa, podemos atestar a convergência entre percepções e intencionalidades do projeto que foi avaliado.

Ainda que tenhamos focalizado um recorte no tempo, com base na escuta das respostas dos profissionais, consideramos que projetos de formação - como os de intervenção avaliados - podem tornar mais perene as realizações das capacitações, ou seja, o ganho é individual na mudança de cada um dos participantes e é coletivo quando considerarmos que as intervenções ocorreram de forma singularizada nos territórios em que foram implementadas. Não podemos, também, desconsiderar que a utilização de metodologias ativas possa se expandir, por meio de suas ferramentas incorporadas no dia a dia dos serviços de saúde, tornando o ganho para além do projeto avaliado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2023
  • Aceito
    22 Dez 2023
  • Publicado
    24 Dez 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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