RESENHA/REVIEW
Paulo César Alves
Departamento de Sociologia e Departamento de Medicina Preventiva; Universidade Federal da Bahia
Representações sobre Saúde e Doença. Agentes de Cura e Pacientes no Contexto do SUDS. Marcos de Souza Queiroz. Campinas: Editora da Unicamp, 1991. 138 p., bibliografia. (Brochura) ISBN 85-268-0202-X Cr$ 45.000,00
Fazem-se necessários mais estudos sobre os efeitos da reorganização racionalizadora do sistema de saúde brasileiro. A chamada Reforma Sanitária foi, em grande parte, resultado de um planejamento que envolveu técnicos pertencentes à burocracia governamental ou às universidades. A perspectiva transformadora da assistência médico-sanitária permitiu algumas experiências regionais no modo de produção de serviços de saúde. De modo geral, apesar da grande quantidade de material escrito sobre a Reforma Sanitária, ainda é preciso determinar em que medida os paradigmas adotados nas construções regionais do projeto de reforma foram capazes de dar conta de uma transformação das práticas sanitárias. Tampouco estamos suficientemente informados de como a população brasileira tem absorvido e reelaborado as diversas mensagens (e práticas) reformistas. Para que a proposta da racionalidade do sistema de saúde se consolide, é necessário, entre outros fatores, conhecer como a população, dentro de seus parâmetros culturais, representa e avalia os serviços médicos e seus respectivos agentes. Neste aspecto, o livro de Marcos de Souza Queiroz contribui de forma significativa para preencher uma importante lacuna na nossa bibliografia. Trata-se de um texto que, enquanto nos fala sobre a compreensão da saúde e da doença como realidades sócio-culturalmente construídas, elucida alguns dilemas desses anos difíceis da implantação do SUDS.
O livro de Queiroz é o resultado de uma pesquisa antropológica, desenvolvida entre 1988 e 1989, em dois bairros de camadas trabalhadoras da cidade de Paulínia (aproximadamente 40 mil habitantes), situada a 14 quilômetros de Campinas, Estado de São Paulo. O projeto de pesquisa, ligado ao Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp, tem como principal objetivo investigar as representações e estratégias relativas à saúde e à doença utilizadas tanto pela população como pelos vários agentes, tais como médicos, farmacêuticos e emfermeiras, encarregados de promover a saúde. Para melhor compreender as representações e práticas populares sobre os problemas de saúde, o autor desenvolve uma rápida incursão no setor folk do sistema médico, isto é, nos agentes informais que promovem tratamento influenciado pela religião. Dessa forma, o campo de investigação da pesquisa abarca quase a totalidade daquilo que Kleinman chama de Health Care System: os setores profissional, folk (representado, em Paulínia, por benzedores e agentes religiosos) e popular ("medicina caseira"). Dentro desse extenso universo empírico de pesquisa, Queiroz unifica sua análise ao se concentrar na tensão resultante da presença de uma rede pública unificada e descentralizada de serviços de saúde ligada à Unicamp. Essa rede de saúde, concebida dentro dos princípios gerais que nortearam a implantação do SUDS, veio, em grande parte, substituir um campo antes inteiramente dominado pelos farmacêuticos e médicos particulares.
No seu aspecto morfológico, a estrutura do livro é aparentemente simples: após discorrer sobre as diferentes interpretações de doença e mal-estar (cap. 2), o autor analisa como a população local representa e avalia (a) a medicina popular (entendida como caseira e religiosa) (cap. 3), e (b) a medicina "oficial", isto é, a rede básica de serviços públicos de saúde, a medicina previdenciária, os farmacêuticos e a medicina privada e conveniada, envolvendo agentes tais como médicos, enfermeiras, atendentes de enfermagem e práticos de farmácia (capítulos 4 a 8).
Seguindo (apenas em parte) o arcabouço teórico de Boltanski em "As Classes Sociais e o Corpo", Queiroz chama a atenção para o fato de que prevalece nas pessoas entrevistadas a noção de saúde "como sendo integração individual à sociedade, envolvendo o cumprimento de tarefas entendidas como obrigatórias para o indivíduo" (p. 30). Doença, diferentemente da indisposição ou mal-estar, é vista como um evento que torna o indivíduo inapto para executar as atividades sob a sua responsabilidade, principalmente no que se refere ao trabalho. Doença, portanto, pode significar ameaça à sobrevivência familiar. Conseqüentemente, o tratamento médico, associado à idéia da intervenção no organismo humano e a uma tecnologia hospitalar especializada, deve visar a pronta recomposição da força de trabalho e do bem-estar. O exame clínico e o uso de medicamentos fortes constituem, em grande medida, os elementos mais importantes na percepção popular da medicina "oficial". Preconiza-se, portanto, uma solução individual e rápida no ato médico.
Pela análise das representações sobre saúde e doença, observa Queiroz, é que podemos compreender porque a rede básica de serviços públicos de Paulínia, ao fazer uso de uma concepção mais moderna de medicina e apresentar um nível técnico e organizacional relativamente alto para os padrões brasileiros, tem encontrado certas resistências não só dos farmacêuticos e médicos particulares, mas também da própria população. Entre outros fatores, um aspecto negativo que sobressai na avaliação popular desses serviços, principalmente no que se refere aos postos de saúde, é justamente a tentativa feita pelos agentes "oficiais" de cura de evitar o excesso de medicalização e de intervenção no organismo humano. Assim, a proposta modemizadora dos médicos da rede pública em grande parte impede uma melhor comunicação com a comunidade. Por causa dessa representação negativa, os farmacêuticos e os médicos particulares, ao aceitarem plenamente a condição auto-imposta de doente por parte do cliente, procurando-o supermedicalizá-lo, contam com um ponto forte a seu favor. Conclui o autor observando que é "um paradoxo o fato de os médicos da rede pública, que consideram extremamente importantes aspectos sociais e econômicos na origem e na manifestação de doenças, não utilizarem esse mesmo parâmetro no tratamento e na cura. A não-medicação, o não-uso de roupas brancas e o não-emprego de símbolos socialmente significativos, como, por exemplo, a exibição de aparelhos tecnologicamente complicados, são aspectos desta atitude que desconsidera o lado simbólico como pane importante no processo de cura" (p. 133). Temos, assim, um paradoxo pois "ao manter essa atitude insensível à cultura da comunidade, eles [os médicos da rede pública] correm o risco de ser considerados por ela incompetentes para diagnosticar e tratar doenças. Ao ceder a esse tipo de tentação, por outro lado, eles correm o risco de se comprometer com interesses alheios ao seu ideal" (p. 133), isto é, uma prática descompromissada com relação ao caráter "capitalista" da Medicina.
A leitura de "Representações sobre Saúde e Doença", exemplo significativo de pesquisa na área da Antropologia Médica, nos leva a refletir sobre aspectos importantes na relação da cultura de uma dada comunidade com a produção e consumo do ato médico. Um ponto, contudo, merece ser observado. Para explicar as concepções de saúde e doença da comunidade (cap. 2), Queiroz tende a focalizar a cultura mais no seu aspecto estrutural, objetivado. Se a perspectiva estrutural de análise permite, por um lado, identificar o universo simbólico que orienta os atores em diversas situações, por outro lado, ela tende a minimizar as combinações de diversas estratégias elaboradas por esses mesmos atores ao definir um processo terapêutico. A percepção dessas estratégias requer uma análise da cultura como algo que se constrói e ganha sentido no processo efetivo da interação social. Requer, portanto, uma investigação que possa sintetizar os aspectos macro e micro-sociológicos. Assim, pouca atenção é dada ao fato de que o conhecimento médico popular forma uma realidade socio-cultural aberta e flexível, de tal forma que os valores da medicina "oficiar" são continuamente absorvidos, (re)construídos e mesmo modificados dentro de processos interativos específicos. Acredito que é justamente no caráter flexível do conhecimento médico popular que podemos, em grande parte, compreender como, dentro de parâmetros culturais específicos, subsistem diferentes possibilidades interpretativas para uma dada aflição ou doença. O capítulo 2 poderia nos fornecer mais subsídios sobre as práticas e representações da saúde e da doença. A discussão sobre o modelo etiológico popular está limitada a um único nível de explicação causal da doença. Em rápidas pinceladas, o autor apenas menciona as idéias de nervosismo e fatalidade (destino, por exemplo) como os fatores etiológicos mais importantes no quadro interpretativo das doenças. Como leitores, ficamos interessados em saber como são construídos e interpretados esses fatores. Inclusive porque facilitaria a compreensão do capítulo (8) sobre as estratégias no consumo de agentes de saúde e de medicamentos.
No que pese as rápidas considerações acima mencionadas, é necessário enfatizar que estamos diante de um estudo de qualidade que deve ser lido não apenas pelos cientistas sociais, mas por todos aqueles interessados na questão de saúde.