RESENHA/REVIEW
Carlos E. A. Coimbra Jr.
Núcleo de Doenças Endêmicas Samuel Pessoa; Escola Nacional de Saúde Pública
Bodies, Pleasures and Passions: Sexual Culture in Contemporary Brazil. Richard G. Parker. Boston: Beacon Press, 1991. 203 p., bibliografia, index. (Capa Dura) ISBN 0-8070-4102-5 US$ 24.95
O livro de Parker traz importante contribuição à antropologia da sexualidade. Organizado em sete capítulos, Parker procede a uma detalhada análise sobre as formas de expressão da sexualidade do brasileiro a partir de dados etnográficos coletados principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, na primeira metade dos anos 80. O texto é denso, toca em questões polêmicas e é riquíssimo em material etnográfico, incluindo poesias e letras de canções populares, fontes históricas variadas e fragmentos de entrevistas. A preocupação de Parker com aspectos de ordem metodológica é muito oportuna, já que, não raro, os antropólogos esquecem-se de detalhar ao leitor os procedimentos empregados na pesquisa. O apêndice 1 descreve os pontos mais importantes que nortearam os procedimentos de campo adotados pelo pesquisador, enquanto que o apêndice 2 apresenta os informantes que participaram do estudo.
O autor parte de ampla revisão crítica da literatura sobre erotismo e percepção de corpo e beleza física, incluindo documentos clássicos produzidos por viajantes do período colonial, até os trabalhos de sociólogos e antropólogos como Gilberto Freire, Paulo Prado e Roberto da Mata.
Parker chama a atenção para a força exercida, ainda em nossos dias, pela tradição patriarcal na definição e legitimação da hierarquia entre os sexos, marcada por rígida diferenciação dos papéis sexuais. Segundo este modelo, o homem insere-se no plano do "poder", da "força", enquanto a mulher ocupa posição secundária, caracterizada por "submissão" e "fragilidade". Tal diferenciação faz-se refletir na atribuição dos papéis sexuais e na organização da vida sexual do brasileiro. Segundo este modelo, a vida sexual seria estruturada em torno de duas polarizações básicas: masculinidade/atividade e feminilidade/passividade. É a partir deste modelo que Parker explica o fato do homem brasileiro não se perceber homossexual durante o intercurso anal com outro homem, desde que este assuma o papel de "ativo", isto é, seja ele quem "penetre". Tal situação não encontra paralelo em outras culturas, como, por exemplo, nos E.U.A., onde o envolvimento sexual de um indivíduo com outro de mesmo sexo biológico seria percebido como uma relação homossexual, independentemente do mesmo ter assumido um papel "ativo" ou "passivo" durante a relação.
No capítulo 4, o autor analisa a influência das instituições cristãs e da moderna ciência biomédica na construção do universo sexual do brasileiro. Para Parker, ambas tradições contribuíram para situar o entendimento sobre comportamentos e práticas sexuais na esfera do legítimo/ilegítimo, normal/patológico. Por um lado, a Igreja contribuiu para a atribuição de noções de pecado, culpa e vergonha aos atos que transgrediam a rígida tríade de conceitos reguladores da expressão da sexualidade casamento, monogamia e procriação. A contribuição da medicina, por sua vez, fez-se no sentido de deslocar o discurso acerca das "transgressões sexuais" da esfera do pecado para a esfera das patologias, das enfermidades, dos "desvios" sexuais. Neste sentido, tanto a religião como a ciência exerceram e continuam a exercer importante papel na formação da cultura sexual brasileira através da imposição de práticas regulatórias e restritivas sobre a expressão da sexualidade.
Segundo Parker, foi somente a partir de meados deste século que as discussões sobre temas relacionados à sexualidade tornaram-se mais públicas, fato que o autor associa ao aceleramento do processo de urbanização do país. De certo modo, esta modernização permitiu uma reorganização da hierarquia sexual tradicional, passando pela estrutura da família e a moral predominantemente religiosa. Até então pouco debatidos no cenário público, temas como a masturbação, o tabu da virgindade e a homossexualidade passaram a ser discutidos intensamente por diversos setores da sociedade. Porém, o autor observa que, apesar destas transformações, a essência da cultura sexual brasileira permaneceu inalterada, restringindo-se as inovações à parcela mais restrita da sociedade.
São nos capítulos 5 e 6 que Parker teoriza mais profundamente sobre o universo sexual do brasileiro. Partindo do entendimento das categorias "proibição" e "transgressão", e centrado na oposição entre público e privado, o autor parte para a análise da ideologia do erótico na cultura brasileira. De acordo com sua interpretação, o corpo, investido de erotismo, torna-se objeto e instrumento ilimitado de prazer. Na esfera do privado, sob a proteção do olhar público, o corpo tem o potencial de expressar-se sem limites, dando vazão às fantasias e desejos mais recônditos. Tal ideologia representa importante alternativa ao sistema social marcado por sanções médico-religiosas e familiares, reforçando a máxima popular segundo a qual "entre quatro paredes tudo pode acontecer" (p. 100).
Contudo, como o autor bem coloca, há no espaço ritual do carnaval a possibilidade de rebelar-se contra a ordem e a rotina do dia a dia. Neste espaço, onde a ordem estabelecida e as estruturas hierárquicas são dissolvidas ou invertidas, ocorre a supressão das proibições, permitindo a declaração da igualdade entre todos os seres humanos (pp. 139-140). Ao fazer a ponte entre a esfera da sexualidade e o carnaval, Parker mostra que o sexo realizado entre pessoas que não se conhecem e nunca voltarão a se encontrar, o sexo nas ruas e praias, sexo grupal, sexo entre indivíduos de diferentes raças e idades, assim como tantas outras práticas, deixam os limites impostos pelas quatro paredes e vêm a público num contexto em que, aos atores sociais, é permitido a expressão de suas fantasias.
Em sua análise, Parker trabalha com as categorias sacanagem e malandragem, ressaltando a importância simbólica das mesmas na construção de uma ideologia do erótico regida pela lógica da transgressão. Segundo o autor, o conceito de sacanagem embute, de forma simbólica muito complexa, uma série de noções aparentemente antagônicas, como hostilidade, entretenimento e excitação sexual, que, em última instância, envolvem a transgressão das normas sociais (pp. 101-103).
Em suma, o trabalho de Parker é uma etnografia bem sucedida onde o autor teoriza a respeito de tema da maior complexidade, em um país caracterizado por grande diversidade cultural, onde os estudos sobre representações sexuais são poucos e pontuais. Apesar de pretender ser um estudo amplo acerca das representações sexuais no Brasil, o próprio autor chama a atenção, em seu capítulo de conclusão, para as limitações intrínsecas da obra quanto a sua universalidade, já que a mesma baseia-se em um recorte bem definido do que se poder-se-ia chamar universo cultural brasileiro, marcadamente as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Contudo, a análise não se deteve à apreensão da realidade da vida sexual de grupos específicos, mas sim à gramática sobre a qual indivíduos e grupos sociais se baseiam para construírem seus universos sexuais. Esta abordagem permitiu ao autor a identificação de categorias significantes elementares que perpassam as fronteiras do regionalismo e de grupos sociais.
Afora o conteúdo essencialmente antropológico, Corpos, Prazeres e Paixões lança possibilidades de reflexão sobre a questão das formas de expressão da sexualidade e transmissão da AIDS no Brasil. O autor chega a fazer algumas incursões neste campo, indagando sobre as possíveis implicações da cultura sexual brasileira na epidemiologia da AIDS, sem contudo aprofundar esta questão. Por sua originalidade e densidade, a importância da obra de Parker transcende os limites acadêmicos da área da antropologia e, a meu ver, é leitura básica para os profissionais em saúde interessados na investigação epidemiológica da AIDS e programas de prevenção e educação em saúde.
No final de 1991 foi lançada uma edição em português pela Editora Best Seller de São Paulo ("Corpos, Prazeres e Paixões: A Cultura Sexual no Brasil Contemporâneo").