DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Minayo & Sanches

 

Debate on the paper by Minayo & Sanches

 

 

Michael Eduardo Reichenheim

Instituto de Medicina Social
Universidade Estadual do Rio de Janeiro

 

 

Creio ser muito bem-vinda uma discussão aberta sobre o tema. Limitado pelo espaço (e, quiçá, pela minha própria falta de fôlego), gostaria de tecer apenas alguns comentários de cunho geral, mas propositalmente "seqüestrando" o enfoque para o domínio da Epidemiologia (e não da Ciência em geral ou da área da Saúde Coletiva como um todo), na perspectiva de que, mesmo guardando a superficialidade de um "pontapé inicial", esta especificidade possa ampliar a reflexão, tanto em direção à profundidade quanto às suas fronteiras (limitações).

Um dos pontos refere-se à afirmação colocada nas conclusões de que não há contradição nem continuidade entre as abordagens quantitativa e qualitativa, pois estas seriam de natureza diferente. Afirmam os autores que, na primeira, os dados apresentar-se-iam aos sentidos, enquanto a segunda trabalharia com valores, crenças, representações, hábitos, atitudes e opiniões. Penso que esta distinção não é tão clara e fácil como parece. É mister reconhecer que uma ciência empírica madura não aceita a idéia da mente humana como uma tábula rasa, neutra, esperando o mundo externo "falar aos sentidos" (Lakatos, 1986). Apesar de os dados poderem "falar", afetando os sentidos, estes são "ouvidos" por um cérebro pensante e ativo que previamente se "programou", formulando um constructo — uma rede de relações (nexos) entre os fenômenos ou eventos estudados — a ser ou não posteriormente corroborado empiricamente. A pergunta que se faz é como esta interpretação de um mundo pode ser concebida senão através de valores, crenças, representações, hábitos, atitudes e opiniões (não necessariamente nesta ordem, nem de caráter exaustivo), tanto por parte de quem propõe o modelo teórico como por parte dos atores no processo de captação de ocorrências empíricas. Se, na prática concreta (atual) da investigação epidemiológica, este arcabouço teórico é raramente pensado, projetado e explicitado, isto não descreve, como querem os autores do texto, um caráter imanente da abordagem quantitativa, mas revela o uso incompleto e, portanto, inadequado e imaturo da mesma. Deve-se levar em consideração que, no campo da vertente epidemiológica dos estudos de determinantes dos processos de saúde-doença, nem sempre se dispõe de elementos para montar estes modelos teóricos e, a partir destes, constituir estratégias para testes ou experimentos falsificadores ou corroboradores. Além disso, por este motivo, muitos programas de investigação epidemiológica ainda necessitam de "pescarias" exploratórias de cunho essencialmente indutivo. Mas, sob a ótica de um grande programa de investigação, cabe aos epidemiologistas — ou melhor, àqueles que se debruçam sobre o método e utilizam a Epidemiologia na sua prática de investigação — desenvolver este dormente mas tão relevante aspecto do procedimento metodológico: a modelagem teórica. Somente então poder-se-á avaliar com mais robustez se este é um programa metodológico em progressão (ascendente) ou um degenerativo que não merece investimento e requer descarte (em prol de uma abordagem estritamente qualitativa). Enfim, enfatizando que a distinção entre o qualitativo e o quantitativo não é clara nem fácil, poderíamos até sugerir que ela pode estar equivocada e que os dois campos espelham mais uma mescla do que uma aparente digressão.

Vale a pena também apontar uma questão que perpassa o texto e que está subjacente às reflexões epistemológicas de outro investigador (Almeida Filho, 1989; 1992), mas que nem sempre é pertinente em situações onde a Epidemiologia (e, portanto, um importante contingente no campo quantitativo!) é convocada. É preciso reconhecer que "nem tudo que brilha é ouro", isto é, nem tudo que é epidemiologia concerne ao domínio das investigações sobre as explicações, sobre os determinantes dos processos de saúde-doença. A Epidemiologia tem muitos objetivos e capacidades (enfoques) que transcendem a vertente referida acima e onde a discussão epistemológica concernente à dicotomia superficial/profundo é absolutamente irrelevante. Devemos nos perguntar, por exemplo, aonde entram estas questões epistemológicas e gnosiológicas: no âmbito dos estudos preditivos, isto é, dos modelos descritores, com a finalidade precípua de alocação de recursos em ações sanitárias; no âmbito dos estudos sobre novos testes diagnósticos e instrumentos de aferição; ou, ainda, no âmbito dos estudos epidemiológicos descritivos populacionais, visando uma monitoração situacional, etc.? Nestes tipos de estudo, cremos que pouco importa conhecer e explicitar os elos da cadeia de determinação, na medida em que o propósito central é o de eficácia descritiva.

Analogamente, devemos nos lembrar que nem tudo que envolve pesquisa, na área da saúde, envolve direta e nominalmente o social e que, portanto, a discussão e a reflexão sobre quantitativo plus ou versus qualitativo não podem passar estreitamente pela veia da questão social de produção de doença. Por exemplo, ao se avaliar a eficácia ou a efetividade de uma vacina usando o método epidemiológico, a questão da diferença social deve, ao contrário, ser mitigada no desenho. Em suma, chamamos a atenção para a necessidade de uma maior reflexão sobre os objetos, objetivos e funções da Epidemiologia (ou seja, um grande lote da área de investigação em saúde coletiva), localizando, assim, os esforços de compatibilização ou descompatibilização (conforme a posição de cada um) das correntes quantitativa e qualitativa.

Para finalizar, gostaria de sublinhar o ponto sobre a riqueza de uma possível integração dos estudos qualitativos e quantitativos (quer os primeiros contextualizando e provendo elementos para o refinamento de modelos a serem testados posteriormente, quer em termos de informações geradas por dados quantitativos, salientando pontos a serem aprofundados pela abordagem qualitativa), ou, até, de uma possível competição das duas abordagens no âmbito de um programa de investigação objeto-específico. No entanto, a ampla utilização das duas abordagens não pode ser convocada sem um importante alerta, principalmente para os ingressantes no campo da Saúde Coletiva. Este alerta concerne ao "fácil" uso dos procedimentos metodológicos nos dois âmbitos. No campo quantitativo, poderíamos citar o uso acrítico e equivocado de modelos matemáticos e da estatística em geral, a falta de rigor nos processos de aferição ou, ainda, a questão anteriormente levantada, sobre a ausência de explicitação de modelos teóricos (quando pertinente, evidentemente). No campo qualitativo (e aqui coloco-me, prudentemente, como um iniciante, como é a maioria oriunda da cartesiana tradição médica), poderíamos citar, entre outras coisas, a falta de referenciamento teórico na construção do próprio discurso e as afoitas incursões no campo, através de coletas de informação "rápidas demais". Estudos assim realizados caracterizam, na melhor das hipóteses, uma forma de jornalismo; na pior, uma epidemiologia malfeita, improvisada, assistemática, tão carente de rigor científico e — tal qual uma epidemiologia de grandes números, mas carente de modelos teóricos — vazia de conteúdo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LAKATOS, I., 1986a. Falsification and the methodology of scientific research programmes. In: Criticism and the Growth of Knowledge (I. Lakatos & A. Musgrave, eds.), Cambridge: Cambridge University Press.

______, 1986b. The Methodology of Scientific Research Programmes. Cambridge: Cambridge University Press.

ALMEIDA-FILHO, N., 1989. Epidemiologia Sem Números. Rio de Janeiro: Campus.

______, 1992. A Clínica e a Epidemiologia. São Paulo: APCE-Abrasco.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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