A Inadequação dos Valores dos Limites de Tolerância Biológica para a Prevenção da Intoxicação Profissional pelo Chumbo no Brasil
The Inadequacy of Threshold Values for Preventing Lead Poisoning in Brazil
Ricardo Cordeiro [1]
Euclydes Custódio de Lima-Filho [2]
CORDEIRO, R. & LIMA-FILHO, E. C. The Inadequacy of Threshold Values for Preventing Lead Poisoning in Brazil. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (2): 177-186, Apr/Jun, 1995.
This article reviews studies performed since 1975 on the occurrence of central and peripheral neurological manifestations in low-level lead exposure. The review shows that in many workers exposed to lead who present indications of both biological effects and exposure below the limits established by the Brazilian laws, abnormalities are found in peripheral nerve conduction velocity and also in several central nervous system functions. The study thus suggests that the threshold values used in Brazil to confirm lead poisoning should be revised.
Key words: Lead Poisoning; Lead; Threshold Values; Worker's Health; Occupational
INTRODUÇÃO
O chumbo é um metal encontrado na natureza em estado livre, bem como em composição com vários outros elementos. Apresenta número atômico igual a 82, peso atômico igual a 207,21 e ponto de fusão igual a 327°C. A partir de 550°C começa a produzir vapor, entrando em ebulição ao atingir cerca de 1740°C. Em interação com outros elementos dá origem a compostos tais como sulfato de chumbo, cromato de chumbo, arsenato de chumbo, dióxido de chumbo, brometo de chumbo, chumbo-tetraetila, chumbo-tetrametila, litargírio (PbO), zarcão (Pb3O4), alvaiade [PbCO3.Pb(OH)2] (Spínola et al., 1980).
Devido ao seu baixo ponto de fusão, ductibilidade e facilidade em formar ligas metálicas, o chumbo foi um dos primeiros metais a serem manipulados pelo homem, que já desde a antigüidade o utilizava na fabricação de utensílios, armas e adornos. Foi no entanto a partir do século XVIII que sua utilização atingiu grande escala, quando passou a ser incorporado aos processos industriais então nascentes (Audesirk, 1985).
Existem compostos de chumbo dispersos na atmosfera em forma sólida e em forma gasosa. Estima-se que a concentração de chumbo atmosférico venha aumentando progressivamente. Camadas de neve da região Ártica, que se depositaram há cerca de 2000 anos, apresentam concentração de chumbo da ordem de 0,005 mg/kg. A concentração em camadas que se depositaram após 1750 data que marca o início da Revolução Industrial aumenta de forma acentuada, particularmente nas últimas décadas, atingindo 0,20 mg/kg em 1965, 400 vezes maior que os níveis "naturais" (Morozumi, 1969). Estudos em esqueletos humanos enterrados antes da disseminação do uso do chumbo demonstram um aumento de cerca de cem vezes na carga óssea do metal entre 3000 A.C. e o presente (Shapiro et al., 1975; Ericson et al., 1979; Grandjan et al., 1979).
Atualmente obtém-se o chumbo em estado livre através de diversas técnicas, sendo a mais comum a refinação elétrica pelo método de Parker. Tal processo de refinação se aplica, por exemplo, para a produção de chumbo metálico utilizado em inúmeros processos industriais, entre eles o da produção de acumuladores elétricos, ligas de chumbo, chapas, tubos, revestimentos de cabos e aços. Os compostos de chumbo têm também diversos usos industriais, entre eles a produção de vários pigmentos largamente utilizados na indústria química. Compostos orgânicos de chumbo até recentemente eram utilizados como antidetonantes na gasolina em nosso meio.
Os riscos à saúde associados à exposição ao chumbo foram constatados há pelo menos 2000 anos (Spínola et al., 1980; Windebank, 1993). Diferentemente de outros metais como o ferro, o zinco, o cobalto, o cromo, o manganês, o cobre o chumbo é um elemento absolutamente estranho ao metabolismo humano, em qualquer quantidade. É uma neurotoxina cuja presença nos diversos tecidos, a partir de uma concentração limiar, interfere em diversas passagens metabólicas, causando os sinais e sintomas da doença conhecida como saturnismo ou intoxicação pelo chumbo. Tal quadro pode tanto ter origem ambiental, mais restrito às crianças, quanto origem profissional, quando é chamado de intoxicação profissional pelo chumbo (IPCh).
Assiste-se hoje à diminuição da ocorrência da IPCh nos países do primeiro mundo, enquanto nos países como o nosso esta doença avança ainda (Spínola et al., 1980). Apesar da inexistência de dados sistematizados sobre a prevalência da IPCh em nosso meio, as informações atualmente disponíveis permitem supor que ela seja relativamente alta. Somente na cidade de Bauru, região noroeste do estado de São Paulo, foram diagnosticados 800 casos desta doença em trabalhadores de duas indústrias de acumuladores elétricos, entre 1985 e 1987 (Cordeiro, 1988). Em pesquisa realizada na região da Grande Belo Horizonte em 1987, encontrou-se 5296 de prevalência da IPCh entre trabalhadores do setor de fabricação e reformas de acumuladores elétricos (Rocha & Horta, 1987). Em 1989 encontrou-se uma prevalência de IPCh de 38% na maior fábrica de acumuladores elétricos da cidade de Campinas (Prefeitura Municipal de Campinas, 1989).
DIAGNÓSTICO OS LIMITES DE TOLERÂNCIA BIOLÓGICA
Tratando-se de uma doença intimamente associada ao trabalho, a fixação de critérios diagnósticos para a IPCh ganha ainda maior complexidade por se subordinar à discussão do estabelecimento dos limites de tolerância biológica (LTB) para esta patologia.
Embora alguns autores ainda discordem da utilização dos LTB como critério para a confirmação da IPCh, na prática, esta doença, cujos sinais e sintomas iniciais são absolutamente inespecíficos, é diagnosticada em nosso meio quando em um trabalhador que apresenta exposição profissional ao chumbo são constatados valores de indicadores biológicos que excedem os LTB definidos na Norma Regulamentadora Nº 7, aprovada pela portaria 3214, do Ministério do Trabalho, em 8 de junho de 1978 (Inamps, 1986; Buschinelli, 1987; Cordeiro, 1988; INSS, 1993). Assim sendo, adequar os valores dos LTB para a IPCh significa, entre outras coisas, aprimorar os critérios diagnósticos para esta doença.
Segundo Mendes (1980: 69), os LTP "... revisados periodicamente, são baseados em informações experimentais em humanos e em animais. (...) Tais critérios variam de país para país, e refletem não somente a política oficial de saúde ocupacional, como também as condições de viabilidade técnica e econômica para conseguir o controle desses agentes abaixo dos limites definidos".
Países que não desenvolveram seus próprios LTB costumam adotar critérios definidos por outras nações. Este é o caso do Brasil, onde LTB importados de outras realidades ganharam status de lei a partir da Consolidação das Leis do Trabalho, artigos 189 e 192, posteriormente disciplinados através da Norma Regulamentadora Nº 7, do Ministério do Trabalho, que define particularizadamente os atuais LTB para doenças consideradas de origem profissional pela legislação brasileira, entre elas a IPCh.
Para o diagnóstico e acompanhamento laboratorial de trabalhadores portadores de IPCh, recomenda-se a realização periódica de pelo menos um exame escolhido em cada um dos dois grupos diferentes de testes abaixo explicitados (Spínola et al., 1980; Alessio & Foà, 1983; Della Rosa, 1985).
O primeiro grupo é conhecido por indicador de dose interna. São testes que refletem a dose real do xenobiótico no sítio onde ele exerce sua ação, ou estimam, de forma indireta, o grau de exposição, desde que o nível do xenobiótico no material biológico esteja correlacionado com a concentração ambiental (Delia Rosa et al., 1991). Pertencem a este grupo, entre outros, as concentrações sangüínea e urinária de chumbo (Pb-S e Pb-U, respectivamente). Numerosos estudos demonstraram uma boa correlação entre as dosagens de Pb-S e Pb-U de trabalhadores expostos e os níveis de chumbo atmosférico no ambiente de trabalho (Basecqz et al., 1971; Waldron, 1971; Lauwerys, 1972). Por isto, estas dosagens são também chamadas de indicadores de exposição biológica, uma vez que estimam a exposição atual do trabalhador ao chumbo. O limite superior da normalidade para a Pb-S há quase três décadas é internacionalmente aceito como sendo 40 mg/dl (Lane et al., 1968). Já o limite de tolerância atualmente utilizado no Brasil para este indicador foi proposto pela Occupational Safety and Health Administration (OSHA) em 1975, como sendo 60 mg/dl (na Inglaterra, em 1967, era utilizado o valor de 80 mg/dl, nesta mesma ocasião o valor utilizado na Suécia era de 70 mg/dl Repko & Corum, 1984).
O segundo dos grupos anteriormente referidos é conhecido como indicador de efeito, que abrange a dosagem da atividade da enzima ácido d-aminolevulínico desidratase, e as dosagens da zinco-protoporfirina no sangue, da coproporfirina na urina, da protoporfirina eritrocitária livre e do ácido d-aminolevulínico da urina (ALA-U). Tais testes são utilizados como indicadores de efeito biológico, já que revelam alterações no organismo resultantes da ação direta ou indireta do xenobiótico na via metabólica da síntese do heme (Della Rosa & Siqueira, 1989). O limite superior da normalidade para a ALA-U é internacionalmente aceito como sendo 5 mg/l; enquanto que o limite de tolerância atualmente utilizado no Brasil para este indicador é 15 mg/l (MT, 1988).
PROBLEMAS RELATIVOS A TRANSPOSIÇÃO DOS LTB
Os LTB propostos para a IPCh têm variado historicamente, tanto no âmbito internacional, como no Brasil. Como foi dito anteriormente, os LTB são fixados de acordo com informações provenientes das indústrias e de investigações científicas, refletindo inclusive critérios estabelecidos em consonância com a política de saúde ocupacional do país. No Brasil, os LTB aplicados à IPCh foram fixados a partir de trabalhos realizados na América do Norte, patrocinados pelo National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH). Tal procedimento merece dois tipos de considerações: quanto ao processo de transposição destes limites para a nossa realidade, e quanto à própria magnitude destes limites.
Com relação à transposição dos limites estabelecidos pelo NIOSH, à parte o rigor científico e a isenção com que foram determinados, foram-no para serem aplicados a uma população de trabalhadores que não apresenta características étnicas, econômicas e sociais semelhantes às nossas. A priori, não há garantia nenhuma de que níveis de exposição ao chumbo seguros para trabalhadores norte-americanos isto é, que não impliquem no desenvolvimento de IPCh também o sejam para trabalhadores brasileiros.
O NIOSH recomenda, por exemplo, que trabalhadores não sejam submetidos, em sua jornada de trabalho, a concentrações atmosféricas de chumbo superiores a 150 mg/m3 (NIOSH, 1972). Se este limite é seguro na prevenção de IPCh para o trabalhadores americanos, não necessariamente pode ser transposto automaticamente para a nossa realidade, sem que antes seja analisado em que medida, por exemplo, fatores particulares tais como a extensão média da jornada de trabalho brasileira, a composição da dieta dos trabalhadores brasileiros, ou mesmo a sua ventilação pulmonar durante a jornada de trabalho, estão influindo na carga corpórea de chumbo absorvida.
É sabido que linhas de produção com baixa incorporação de tecnologia como é o caso da maioria das fábricas de acumuladores elétricos em nosso meio exigem grande esforço muscular dos trabalhadores para operá-las. Jornadas de trabalho extenuantes, por sua vez, submetem o trabalhador a um regime de hiperpnéia. Um trabalhador sob ritmo de trabalho muscular intenso pode ventilar cerca de até 15 vezes mais que outro em repouso.
Por outro lado, o aumento potencial da carga corpórea de chumbo pode ser expresso como:
CCC = C . V . F . T . 10-3
onde CCC = aumento potencial da carga corpórea de chumbo, em mg; C = concentração atmosférica de chumbo, em mg/m3; V = ventilação pulmonar, em m3/dia; F = fração retida do chumbo inalado e T = tempo de exposição, em dias (Alessio & Foà, 1983).
Ainda dentro desta linha de raciocínio, sabese que dietas pobres em cálcio e ferro podem aumentar a absorção do chumbo pelo trato intestinal, bem como aumentar a deposição deste metal nos ossos. Também dietas pobres em fósforo podem aumentar a absorção intestinal do chumbo (Six & Goyer, 1970; Goyer & Mahaffey, 1972; Mahaffey, 1974). Talvez seja essa a situação da dieta média dos trabalhadores brasileiros quando comparada com a de seus colegas norte-americanos.
Conclui-se, portanto, que mesmo estando a concentração atmosférica de chumbo dentro de limites seguros em outros países, o chumbo absorvido durante a jornada de trabalho pode ser bastante elevado em conseqüência de condições particulares dos trabalhadores brasileiros, como uma maior taxa de ventilação pulmonar ou diferenças no padrão alimentar.
Acrescente-se a isso o fato de que as alterações do desgaste muscular e da dieta anteriormente citadas podem estar contribuindo para o surgimento relativamente precoce das alterações metabólicas e funcionais da IPCh, como acontece em outros tipos de intoxicações, observação esta que nosremete ao próximo item.
PROBLEMAS RELATIVOS A ADEQUAÇÃO DOS LTB
Além dos problemas relacionados à transposição dos LTB para a realidade brasileira, há outra ordem de questionamento, justamente referente aos valores deste limite. Tal questionamento vem surgindo, à medida que avançam as pesquisas a respeito do comprometimento do sistema nervoso na IPCh.
Até meados da década de 70, consideravamse os distúrbios da síntese da hemoglobina, através da inibição das enzimas d-aminolevulínico desitratase e heme-sintetase, os primeiros efeitos adversos associados à elevação da concentração do chumbo nos tecidos moles (Waldrom & Stofen, 1974), muito embora já se conhecessem alguns distúrbios do sistema nervoso central associados à IPCh tais como hiperatividade, irritabilidade e depressão (Byers, 1959; Eisler & Bartousek, 1960; National Academic of Science, 1972) e já se soubesse que alguns desses distúrbios ocorriam logo nas fases iniciais da doença (Dingwall-Fordyce & Lane, 1963; Catton, 1970; Silbergeld, 1974). Também era sabido que portadores assintomáticos de IPCh podiam apresentar disfunções nervosas periféricas (Sessa, 1965; Catton, 1970; Seppäläinen & Hemberg, 1972), caracterizadas pela diminuição da velocidade de condução do impulso nervoso, predominantemente em fibras motoras dos membros superiores (Adams & Victor, 1981; Adams & Asbury, 1984), cuja etiopatogenia até hoje não está bem estabelecida. Discutiu-se durante este período se não se tratava primariamente de uma degeneração axonal causada pelo chumbo, irreversível portanto, ao invés da clássica hipomielinização decorrente da toxicidade do metal às células de Schwann (Fullerton, 1966; Lampert & Schochet, 1968; Schlaepfer, 1969; Fullerton & Harrison, 1969; Behse & Buchthal, 1978; Seppäläinen & Hernberg, 1972; Seppäläinen et al., 1975; Abbritti et al., 1977; Ashby, 1980).
A partir desta época, entretanto, vários grupos independentes de pesquisadores começaram a chamar a atenção para a presença de disfunções no sistema nervoso central e periférico, mesmo em níveis de exposição ao chumbo até então considerados insuficientes para provocar doença.
Em 1975, Vitale descreveu dois casos de neuropatia crônica em indivíduos que trabalhavam com chumbo, cujas Pb-S eram respectivamente 48 e 51 mg/dl. No mesmo ano, Seppäläinen et al. (1975) demonstraram haver diminuição da velocidade de condução motora máxima (MMCV) dos nervos mediano e ulnar, bem como diminuição da velocidade de condução de fibras motoras lentas (CVSF) do nervo ulnar, de 26 trabalhadores com Pb-S compreendida entre 50 e 70 mg/dl, e que não apresentavam manifestações clínicas segundo avaliação médica tradicional. A respeito destes dois trabalhos, Repko & Corum (1984: 09) comentaram:
"Ambos os estudos (...) demonstraram que os sinais clínicos de anormalidade do nervo periférico ocorrem em níveis baixos de absorção, que tais efeitos não são exemplos isolados de susceptibilidade aumentada pouco comum e, ainda, que são quantitativamente observáveis com métodos eletrofisiológicos adequados. Finalmente, o atual estudo de Seppäläinen et al., juntamente com seus estudos anteriores, indicam claramente um padrão dose-resposta entre o nível de chumbo no sangue e a velocidade de condução".
Em 1977, Abbritti et al. estudaram 118 trabalhadores sem nenhum antecedente clínico ou neurológico que pudesse acarretar disfunção neurológica periférica ocupacionalmente expostos ao chumbo inorgânico em indústrias de pigmentos e cerâmicas da Umbria, Itália. Destes, 28 apresentavam ALA-U menor que 6 mg/l, dentre os quais 16 trabalhadores (57,2%) apresentavam sinais eletromiográficos de neuropatia. Também entre estes 118 trabalhadores havia 2 com Pb-S menor que 40 mg/dl, dos quais um deles apresentava também sinais neuropáticos à eletromiografia.
Em 1979, Seppäläinen et al. e posteriormente em 1980, Seppäläinen & Hemberg descreveram, entre trabalhadores expostos ao chumbo cuja Pb-S nunca excedeu a 59 mg/dl, diminuição da velocidade de condução em fibras sensitivas (SCV) do nervo mediano, diminuição da velocidade de condução de fibras motoras lentas (CVSF) do nervo ulnar e diminuição da velocidade de condução de fibras motoras (MCV) do nervo tibial posterior, valores estes significativamente diferentes (p<0,05) daqueles encontrados em um grupo controle de trabalhadores cuja Pb-S nunca excedeu a 49 mg/dl. Estes estudos ainda demonstraram significativa diminuição (p<0,05) da velocidade de condução de fibras motoras lentas (CVSF) do nervo ulnar, quando comparados com o grupo controle anteriormente referido.
Em 1980, um grupo de estudos da Organização Mundial de Saúde (WHO, 1980:17) concluiu que "os efeitos neurológicos periféricos iniciais começam a ocorrer dentro de uma amplitude de variação da Pb-S de 40 a 50 mg/dl, podendo ocorrer em poucos indivíduos até abaixo de 40 mg/dl".
Em 1982, Bordo et al. estudaram um grupo de trabalhadores expostos ocupacionalmente ao chumbo, cujo tempo de exposição ao metal era menor que 10 anos, e cuja Pb-S máxima nunca excedeu 50 mg/dl. Constatou-se neste grupo uma significativa redução da velocidade de condução nervosa motora (MCV) e sensitiva (SCV) do nervo mediano, quando comparado com um grupo controle não exposto. Também neste estudo observou-se que as alterações eletromiográficas começam a ocorrer rapidamente após iniciada a exposição e que elas não se associam com o tempo acumulado de exposição. O desenho epidemiológico utilizado neste estudo, cross-sectional, não permite distinguir se este último achado se deve a uma grande sensibilidade ao chumbo no período inicial da exposição, seguida de algum mecanismo adaptativo desenvolvido no decorrer do tempo, ou então se seria o efeito de um processo seletivo, que resultaria numa maior prevalência de trabalhadores mais resistentes aos efeitos tóxicos do chumbo entre aqueles com maior tempo de exposição ao metal ["efeito do trabalhador sadio" (McMichael et al., 1975)].
Em 1985, Chen et al. encontraram significativa diminuição da velocidade de condução nervosa em fibras motoras (MCV) e sensitivas (SCV) do nervo mediano entre 20 trabalhadores ocupacionalmente expostos ao chumbo cujos níveis de exposição encontravam-se abaixo de 40 mg/dl, quando comparados com controles não ocupacionalmente expostos. Também neste ano, Jeyaratnam et al. encontraram significativa diminuição, quando comparado com um grupo controle não exposto, da velocidade de condução do impulso nervoso (MMCV) dos nervos mediano e tibial posterior em um grupo de 46 trabalhadores ocupacionalmente expostos a compostos orgânicos e inorgânicos de chumbo, cuja Pb-S média era de 47,9 mg/dl.
Em 1988, Fengsheng et al. estudaram 40 trabalhadores ocupacionalmente expostos ao chumbo, cujas Pb-S variavam entre 24 e 63 mg/dl (média geométrica = 40,03 mg/dl), e com ALA-U variando entre 1,4 e 10,6 mg/1 (média geométrica = 4,68 mg/l). Este grupo, quando comparado com um grupo controle de 50 trabalhadores não expostos ao metal, apresentou significativa redução da velocidade de condução motora máxima (MMCV) e da velocidade de condução sensitiva (SCV) dos nervos mediano e ulnar, bem como da MMCV do nervo peroneal e da SCV do nervo sural. Evidenciou-se, também, significativo aumento dos tempos de latência das fibras sensitivas e motoras dos nervos mediano e ulnar. Dentro deste grupo de 40 trabalhadores expostos, foram posteriormente estudados 19 trabalhadores cujas Pb-S eram todas menores que 40 mg/dl (variando entre 24,0 e 38,8 mg/dl, com média igual a 30,51 mg/dl), onde encontrou-se signigicativa redução da velocidade de condução motora (MMCV) do nervo peroneal e sensitiva (SCV) do nervo mediano, além de um aumento dos tempos de latência das fibras sensitivas e motoras dos nervos mediano e ulnar. No entanto, deve-se salientar que os parâmetros eletromiográficos estudados no grupo exposto estavam ainda dentro dos limites estabelecidos como normais.
Quanto ao sistema nervoso central, em 1978, Hanninen já havia encontrado retardo psicomotor e prejuízo da inteligência visual em trabalhadores com Pb-S entre 40 e 60 mg/dl.
Em 1983, Baker et al. encontraram alterações de funções nervosas superiores claramente evidenciáveis em trabalhadores ocupacionalmente expostos ao chumbo, cuja plumbemia se encontrava entre os limites de 40 e 60 mg/dl.
Em 1984, Baker et al. observaram desempenho significativamente pior, em relação a um grupo controle não exposto, nos testes de formação de conceitos verbais, performance visual-motora, memória e humor, entre trabalhadores ocupacionalmente expostos ao chumbo com Pb-S entre 40 e 60 mg/dl. Além disso, tais autores afirmam que na IPCh as alterações das funções nervosas superiores começam a surgir em níveis de intoxicação inferiores às necessárias para produzir alterações do sistema nervoso periférico. Deste modo, concordam literalmente com Baker et al. (1985) que referem que "Ocorrem distúrbios das funções nervosas superiores em adultos com níveis de exposição inferiores àqueles associados ao desenvolvimento de anormalidades no sistema nervoso periférico" (513), e que "Trabalhadores com Pb-S entre 40 e 60 mg/dl mostraram mal desempenho em testes deformação de conceitos verbais, performance visual-motora, memória e humor" (514).
Também nessa época, Campara et al. (1984), em estudo seccional, encontraram prejuízo significativo das funções relacionadas à capacidade de associação verbal de conceitos, compreensão visual, atenção e identificação visual, entre trabalhadores ocupacionalmente expostos ao chumbo, com Pb-S atual (no momento do estudo) entre 45 e 60 mg/dl e, além disso, cujos valores de Pb-S nunca ultrapassaram pregressamente o limite de 60 mg/dl.
Ainda em 1984, Mantere et al. publicaram os resultados de um estudo com cuidadoso desenho prospectivo. Nele uma coorte de 89 trabalhadores que iniciava sua exposição ocupacional ao chumbo foi seguida por 4 anos e comparada a outra não exposta. A plumbemia ponderada tempo (time-weighted B-Pb), bem como a plumbemia no momento da realização dos testes neuropsicológicos, para o grupo dos expostos nunca excedeu a 48 mg/dl. As duas coortes, que no início do estudo eram semelhantes, começaram a se diferenciar quanto à inteligência visual e à performance visualmotora, a partir do segundo ano de seguimento, às custas do prejuízo das aptidões neuropsicológicas citadas do grupo exposto. Os autores identificam a plumbemia de 30 mg/dl como o patamar a partir do qual já começam a ocorrer déficits de algumas das funções nervosas superiores.
Stollery (1989), em estudo seccional realizado com 94 trabalhadores expostos ao chumbo inorgânico, encontrou inequívocas evidências de aumento do tempo de reação e déficit de atenção entre os trabalhadores com plumbemia já a partir de 40 mg/dl.
Alguns trabalhos estudaram a concomitância de alterações da velocidade de condução do impulso nervoso em nível central e periférico em trabalhadores com exposição "segura" ao chumbo. Em 1986, Araki et al. encontraram em 20 trabalhadores expostos ao chumbo cujas Pb-S encontravam-se entre 16 e 64 mg/dl (média igual a 42 mg/dl) diminuição da velocidade de condução do impulso nervoso em nervo periférico (MCV e SCV medidas no nervo mediano) e aumento da latência somatossensorial evocada [short-latency somatosensoryevoked potential medida na região cérvico-espino-bulbar N9(Erb)-N13] (Araki et al., 1986b). Ainda em 1986, em outro estudo, Araki et al. encontraram diminuição de performance psicológica (picture completion avaliada através da versão japonesa do Wechsler Adult Intelligence Scale) neste mesmo grupo de trabalhadores (Araki et al., 1986a).
Concluindo, à luz dos novos conhecimentos advindos de estudos neurológicos e neurocomportamentais, ganha destaque mais uma vez a polêmica discussão a respeito dos critérios diagnósticos para a IPCh. Esta que até então era tradicionalmente vista como um conjunto de sinais e sintomas facilmente diagnosticada pelo clínico, passa cada vez mais a ser vista como uma intoxicação generalizada e de início insidioso em níveis de exposição por muitos ainda considerados como seguros, composta por diversas reações no interior do corpo, influenciando processos metabólicos básicos no indivíduo (Kehoe, 1972).
Para finalizar, ainda Repko & Corum (1984: 21), em revisão sobre o assunto concluem:
"...julgar o valor 80 mg/dl, ou mesmo 60 mg/dl, como sendo o nível abaixo do qual não ocorrem efeitos clínicos e cientificamente impreciso. Os efeitos biológicos, clínicos, neurológicos e comportamentais são evidentes nesses níveis e abaixo deles. O reconhecimento de danos nas funções neurocomportamentais como fase primária da doença fornece evidência válida para apoiar a teoria que afirma que a exposição ao chumbo inorgânico abaixo de níveis atualmente aceitos como seguros pode resultar em redução da capacidade funcional e, em conseqüência disso, causar danos materiais à saúde".
CONCLUSÕES
Uma vez que os LTB são definidos como quantidades máximas que os indicadores biológicos podem assumir assegurando a manutenção da saúde do indivíduo expostos (Siqueira, 1992), é urgente que sejam revistos os valores daqueles aplicados à monitorização biológica de trabalhadores expostos ao chumbo.
Já é suficientemente grande o número de estudos independentes apontando que o dano à saúde provocado pela IPCh começa já em níveis de exposição considerados seguros pela legislação brasileira.
O fato de o diagnóstico da IPCh ser reconhecido, na prática, apenas quando os indicadores de exposição e de efeito do trabalhador excederem os LTB estabelecidos pelo Ministério do Trabalho faz com que esta doença seja bastante subdiagnosticada em nosso meio; além de implicar diagnóstico tardio para aqueles trabalhadores que conseguem ter sua doença reconhecida.
A revisão dos LTB para a IPCh deve ser feita incorporando-se o conhecimento já internacionalmente acumulado e, ao mesmo tempo, baseando-se em pesquisas realizadas em nosso meio, pesquisas estas que levem em consideração as especificidades das populações trabalhadoras brasileiras.
RESUMO
CORDEIRO, R. & LIMA-FILHO, E. C. A Inadequação dos Valores dos Limites de Tolerância Biológica para a Prevenção da Intoxicação Profissional pelo Chumbo no Brasil. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (2): 177-186, abr/jun, 1995.
São revisados os trabalhos que, a partir de 1975,estudaram a ocorrência de manifestações neurológicas centrais e periféricas em trabalhadores ocupacionalmente expostos ao chumbo, que apresentavam níveis de exposição supostamente insuficientes para causarem Saturnismo. A partir da revisão realizada é sugerido que os limites de tolerância biológica utilizados em nosso meio para firmar o diagnóstico de intoxicação profissional pelo chumbo devam ser revistos. Tal sugestão baseia-se na existência de evidências bem estabelecidas que apontam disfunções da condução nervosa periférica e central, além de alterações de várias funções nervosas superiores, em trabalhadores profissionalmente expostos ao chumbo que apresentam indicadores de efeito biológico e indicadores de exposição inferiores aos limites estabelecidos pela legislação brasileira.
Palavras-Chave: Saturnismo; Chumbo; Limites de Tolerância Biológica; Saúde do Trabalhador; Saúde Ocupacional
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[1] Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Caixa Postal 543, Botucatu, SP, 18618-970, Brasil.
[2] Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos, Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, Rio de Janeiro, RJ, 21041210, Brasil.