Saúde e Doença: Um Olhar Antropológico.

Paulo César Alves & Maria Cecília de Souza Minayo (organizadores). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994. 124 p.

ISBN 85-85676-07-8 R$ 17,00

 

Esta pequena coletânea acaba com um dos problemas mais difíceis de quem ensina a antropologia de saúde. Ela reúne treze trabalhos, escritos por antropólogos e profissionais de saúde, que versam sobre uma diversidade de assuntos. Contribui, assim, para demonstrar a riqueza e abrangência de um campo de pesquisa e interação profissional cada vez mais dinâmico no Brasil. Estas leituras certamente vão servir como base para muitas disciplinas de antropologia de saúde. Atualmente as publicações sobre saúde e antropologia se espalham entre muitas revistas e livros que, por suas próprias especializações, freqüentemente terminam por ficar desconhecidas e quase inacessíveis para muitos leitores innteressados. Nesta situação, o trabalho de "juntar" leituras para uma disciplina tem sido um quebra-cabeça. E vai continuar sendo um desafio, mas um desafio amenizado pela certeza de saber que agora, num só lugar, se dispõe de um conjunto de trabalhos de excelente qualidade, cuja referência principal é a realidade brasileira.

Antes de apresentar os conteúdos abordados pelos autores, faço algumas observações gerais sobre a coletânea. Primeiro, pela lista de autores, é um prazer registrar que os antropólogos estão cavando espaços adicionais para o exercício da sua profissão, e cursos e instituições de saúde estão servindo como excelentes anfitriões. Segundo, o próprio tamanho dos artigos (geralmente, são curtos) os faz muito adequados para leitura e dicussão. Estéticamente, o livro agrada, apesar da letra pequena que estimula uma nova visita ao oftalmologista!

O terceiro elemento para observação é mais complexa. Na sua introdução informativa, os organizadores dizem que há "lacunas temáticas" e que "não tem por objetivo resumir as diversas tendências teóricas e metodológicas" no campo, e sugerem que os artigos podem ser classificados entre quatro categorias: 1. "saúde, doença e cura com a religiosidade popular," 2. "o universo de saúde mental', 'nervoso' e problemas psicossociais", 3. "relações dialéticas entre sujeito-objeto (que é sujeito) na configuração do campo das terapêuticas e da própria produção da enfermidade", e 4. "as questões hoje presentes no campo profissional de produção de agentes e de práticas terapêuticas" (p. 10). Estas categorias servem como um guia bastante efetivo para a leitura, demonstram um cuidado com uma caracterização de cada campo e refletem a diversidade de enfoques. Lamentavelmente, como é especialmente clara na terceira categoria, reproduzem implicitamente um dos problemas de intercomunicação entre áreas: um apêgo excessivo à complexidade verbal nas ciências sociais. Parece que estou revendo uma experiência minha quando, como antropólogo, passei uma leitura em "metodologias qualitativas" para pós-graduandos em medicina tropical, pediatria e neuropsiquiatria, e no dia da discussão percebi que circulava entre eles um "texto de nonsense" produzido por um deles com o uso dos termos encontrados na leitura. Encontrar pontos convergentes no diálogo entre profissionais de diversas formações é um desafio constante. Mesmo assim, excluindo esta designação de categoria e alguns trechos em outras partes do livro, é importante frisar que o conjunto de textos tem a qualidade de "legibilidade interprofissional" que, sem comprometer a qualidade das análises antropo-sociais, as torna acessíveis a profissionais de saúde.

O próprio título do livro "Saúde e Doença" cabe como luva para a sua finalidade didática, pois a discussão do significado destes dois termos é quase sempre primeiro na lista de demandas veículadas da área da saúde para a de ciências sociais. Aproveitando o comentário feito pelos organizadores, do meu ponto de vista, concordo que a existência de "lacunas teóricas" é inevitável num campo tão vasto quanto este, e não constitue problema para o livro. A evidente força das discussões sobre os conceitos de saúde e doença e sobre o significado atribuído às práticas de saúde reflete a escolha de ênfase do próprio campo de antropologia. Num eventual segundo volume (ou segunda edição ampliada) me parece que há espaço para trabalhos em várias áreas, entre as quais daria destaque às das relações entre médicos e pacientes; a discussão do aprendizado profissional na área de saúde; e a organização social, econômica e política dos serviços de saúde e de suas instituições (postos, hospitais, consultórios, etc.). Estes temas estão presentes nos artigos na coletânea, mas não constituem o enfoque principal de nenhum trabalho especifico. Também, vale a pena lembrar que a antropologia pode contribuir para a caracterização social e demográfico das condições de saúde de amplos setores da populações, bem como para a discussão de aspectos culturais e sociais de vastos números de doenças específicas.

Os dois artigos iniciais, para "situar o leitor no campo" cumprem muito bem o seu papel. O artigo de Canesqui apresenta a produção acadêmica sobre antropologia e saúde na última década, e se torna, desde já, uma leitura obrigatória para quem quer entender a história recente (e não tão recente) deste campo internacional e nacionalmente, e para quem quer saber os temas destacados no Brasil. Só podemos esperar que estas "notas preliminares", (não tão preliminares) continuem dando frutos com as pesquisas bibliográficas da autora. Carrara toma como ponto de partida a própria organização do Primeiro Encontro Nacional de Antropologia Médica para traçar algumas considerações sobre o método na análise antropológica da doença, dando ênfase ao processo de "desnaturalização" das categorias nosológicas e ao papel de construcionismo neste processo. Relaciona isto com as tradições da Escola Sociológica Francesa. Na próxima edição do livro, convém aos organizadores anexar o programa do Primeiro Encontro ao qual Carrera refere no texto (e do qual foram retirados todos os textos)!

O conjunto de trabalhos sobre religiosidade popular e saúde, doença e cura inclui três artigos muito ricos. Rabelo demonstra as profundas diferenças na compreensão do que é que se entende como "cura" e como chegar a ela através de uma comparação dos projetos de cura de centros espíritos, igrejas pentecostais e terreiros de jaré na Chapada Diamantina. O estudo sobre cura no catolicismo popular, feito por Minayo, trata das romarias para a imagem milagrosa de Cristo Crucificado de Porto das Caixas, e documenta as características sociais diversas, as motivações e as concepções de cura dos romeiros. Na sua discussão da pajelança cabocla na Amazônia Maués explora a vinculação da medicina popular com o holismo e mostra como esta prática se distancia da tradição individualista corrente na medicina oriental.

Os três artigos sobre saúde mental, "nervos", e problemas psicossociais contêm uma denúncia implícita muito eloqüente sobre as falhas de comunicação entre os profissionais de saúde e os doentes, seja pela identificação dos próprios códigos usados para conceber o campo (Duarte), seja pelas dificuldades deste profissionais interpretarem os modelos cognitivos usados pelos seus pacientes e as suas ligações extremamente significativas aos processos sociais e diálogos formados na atuação cotidiana de redes de relações sociais (Alves), seja no reconhecimento e tratamento divergentes que o médico, a procura de sinais, e o doente, vivendo sintomas, fazem da sua aflição. No conjunto destes três textos percebe-se que a compartamentalização excessiva do conhecimento promovido na formação e atuação médica requer esforços bem dirigidos para ser superada em benefício do paciente.

A terceira categoria sobre "relações dialéticas entre sujeito-objeto", contém trabalhos sobre gênero e saúde, nos quais a questão da condição da mulher forma um dos fios unificadores mais importantes. Motta-Maués apresenta uma bem ordenada classificação do ciclo biológico feminino coletada numa comunidade amazônica, mas cuja generalização para o resto do país em muitos aspectos, será facilmente constatada pelos que têm familiaridade com o conhecimento popular brasileiro. Ela também argumenta de uma forma convincente que, no seu discurso e na sua prática, as mulheres percebem a se mesmas com "ambíguas, transitantes, perigosas, ameaçadoras da ordem", e "incorporam e atualizam a imagem negativa e diminuída que o espelho social reflete" (p. 124). Leal também, num excelente ensaio construído em torno de diversas fontes de dados do sul do país, trabalha com conceitos populares relativos a sangue e sémen, fertilidade e práticas contraceptivas para jogar sobre um problema bem concreto: porque fracassam os programas de planejamento familiar, e porque as mulheres procuram esterilização cirúrgica. É uma pena que as notas no texto não vêm acompanhadas por referências bibliográficas completas no final do texto (aliás o único texto com este lapso). Adorno, Castro, Faria e Zioni usam a técnica de grupos de discussão com "usuários do Programa de Saúde do Trabalhador" para examinar as "lesões por esforços repetidos", uma doença profissional cada vez mais recorrente na atualidade, cujas vítimas principais são mulheres. O relato sobre discussões demonstra que a doença dificulta não somente o exercíco da profissão, mas também a realização das tarefas cotidianas e a estabilidade psicossocial das vítimas. Demonstra a necessidade de estudar e agir de uma forma que integra as esferas de trabalho, do sindicato e do atendimento médico na identificação e tratamento dos processos de trabalho e das doenças para prevenir a degradação dos trabalhadores.

Os últimos dois trabalhos sobre farmacêuticos e médicos (Queiroz) e sobre terapeutas corporais no Rio de Janeiro (Russo) são excelentes sobre os processos sociais que agem nos sistemas de cura alternativos, inclusive, no primeiro artigo, identificando influências nas práticas diferenciadas da recituação de medicamentos por farmacêuticos, médicos particulares, e médicos de serviços públicos, e no segundo, investigando a interrelação entre a origem social e as escolhas profissionais dos terapeutas que ocupam espaços alternativos às práticas mais estritamente médicas. Mostra alguns fundamentos do ideário místico, naturalista e bio-energético que permeia esta atividades.

A sensação quando termina de ler esta coletânea é de pena, porque não há ainda mais artigos para ler. Os organizadores estão de parabéns. Que venha o Segundo Encontro Nacional de Antropologia Médica!

 

R. Parry Scott
Departamento de Ciências Sociais
Universidade Federal de Pernambuco

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br