DEBATE DEBATE
João Cláudio Lara Fernandes Posto de Saúde da Associação dos Moradores e Amigos do Bairro Barcellos Favela da Rocinha - Rio de Janeiro, Brasil. | Debate sobre el articulo de Briceño-León Debate on the paper by Briceño-León |
O texto se inscreve no campo das ações de saúde "compreensivas", em contraposição ao conceito de práticas "seletivas". Estas últimas são caracterizadas por sua verticalidade e especificidade, e pelo fato de serem decididas e planejadas externamente às comunidades envolvidas (Rifkin & Walt, 1986). Este modelo ainda predomina na área das políticas públicas de saúde, consubstanciando nos diversos programas sanitários existentes.
Entre as conseqüências negativas destas ações verticais destacadas pelo autor, duas merecem ser realçadas: a primeira delas refere-se ao aspecto ético, na medida em que elas negam um papel propositivo aos usuários, mostrando-se, assim, inadequadas e defasadas em relação aos acordos éticos atuais, que valorizam o sujeito e a cidadania enquanto instâncias fundamentais da vida social. A segunda, de cunho mais pragmático, refere-se à falta de sustentação dessas ações, que geralmente sobrevivem apenas em função das motivações externas, e da verba disponível.
Como alternativa, é proposta então uma atitude mais horizontalizada e compreensiva no estabelecimento de políticas sanitárias, convidando-se os diversos atores envolvidos a sentarem à mesma mesa de discussão, negociação e planejamento. Devo deixar claro, antes de mais nada, meu alinhamento a esta tendência, que me parece mais consistente em relação aos valores de promoção da saúde e desenvolvimento social, embora, concordando com o autor, reconheça a utilidade de ações seletivas em situações específicas, como as epidemias. Como contribuição ao debate, gostaria de destacar dois aspectos desta proposta que me parecem bastante importantes para um aprofundamento, ainda que, aqui, só possa indicá-los.
Em primeiro lugar, considero que as diferenças entre estes dois modelos de políticas sanitárias não se reduzem a sistemas de governo mais ou menos autoritários, como o autor propõe (pág. 6). Se assim fosse, esta questão estaria restrita a países historicamente submetidos ao autoritarismo, e não é isto o que ocorre, como podemos observar em projetos como o de Laredo, nos Estados Unidos, ou North Karelia, na Finlândia (MacAlister et al., 1991), entre outros, que embora apresentados como compreensivos, possuíam um nítido perfil vertical. Parece-nos, antes, que esta discussão refere-se aos próprios padrões de intervenção do estado, e situa, como base ideológica à proposição de políticas verticais, o modelo do wellfare state. Neste sentido, o debate ganha uma dimensão muito mais ampla, que transcende a área de saúde e pode ser resumida na antiga questão: como conciliar a democracia com planejamento? De fato, se levarmos em conta o postulado de Briceño-León: "Nadie puede cuidar la salud de otro, si éste no quiere hacerlo por si mismo", teremos que admitir que o planejamento de ações de saúde estará na dependência de variáveis de difícil previsão, como o desejo de cuidar da saúde, as quais problematizam e ameaçam este mesmo planejamento. Ocorre que poder planejar é uma demanda do estado wellfariano, e é uma demanda de poder. Daí que não se pode discutir a participação comunitária sem avaliar as relações políticas existentes na sociedade e, em particular, entre os atores envolvidos nos projetos. Não é por acaso que a discussão proposta pelo autor acontece no mesmo momento em que se promovem mudanças profundas no relacionamento entre o estado e a sociedade civil, esta última reivindicando uma maior participação na definição das políticas públicas. Minha opinião é de que ela traduz, na área da saúde, esta conjuntura mais geral de transformações, que apontam para a definição de um novo papel do cidadão na construção de seu bem-estar.
Existe, portanto, uma tensão entre uma proposição participativa e a tendência de controle do estado em relação às políticas públicas. A segunda questão que gostaria de indicar refere-se a um outro tipo de controle fortemente presente no campo sanitário, que é o método científico. De fato, os programas verticalizados de saúde têm uma lógica interna que se compatibiliza com o conhecimento científico, ao menos na sua versão mais positivista, o qual, através do equacionamento de variáveis é crucial para a confirmação das hipóteses subjacentes aos projetos e a obtenção dos resultados previstos, a partir de um método definido. Assim, a terceira tese de Briceño-León, que postula a existência de dois conhecimentos igualmente válidos, da população e dos técnicos externos, na identificação de problemas e soluções para a melhoria de suas condições de saúde, introduz um referencial não-científico a este processo, que tende a criar impasses em relação à sua efetiva forma de desenvolvimento e controle metodológico. Também neste caso, estamos, em última instância, diante de um problema político, na medida em que a hegemonia do saber científico significa um poder diferenciado para seus detentores. E é disto que precisaremos abrir mão, para dar conseqüência ao pensamento do autor, apesar de toda dor epistemológica e limitação política que isto possa causar.
MACALISTER, A. L.; PUSKA, P.; ORLANDI, M.; BYE, L. L. & ZBYLOT, P. L., 1991. Behaviour modification: principles and illustrations. in: Oxford Textbooks of Public Health, 2nd. ed., vol. 3. Oxford: Oxford University Press.
RIFKIN, S. B. & WALT, G., 1986. Why health improves: defining the issues concerning 'comprehensive primary health care' and 'selective primary health care'. Social Science and Medicine, 23:559-556.