DEBATE DEBATE
Everardo Duarte Nunes Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina, Universidade Estadual de Campinas, Brasil. | Debate sobre o artigo de Gil Sevalho Debate on the paper by Gil Sevalho
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Adauto Novaes (1992), ao escrever a Introdução ao conjunto de textos apresentados originalmente no ciclo de conferências sobre "Tempo e História Caminhos da memória, trilhas do futuro", faz uma série de perguntas que parecem fundamentais para iniciar os comentários sobre o trabalho de Gil Sevalho.
Pergunta Novaes:
"O que é a experiência do tempo? Pode uma cultura falar do tempo sem recorrer às diversas formas de elaborar suas tradições e de narrar a história? Como pensar a história a partir de uma tradição que trabalha com a idéia de tempo absoluto, sem conexão com as diferentes dimensões sociais, políticas e intelectuais, e que procura identificar a sociedade a uma única experiência temporal? Como pensar, enfim, a natureza do contemporâneo: tempo fragmentado, tempo deslocado, tempo modelado, tempo repetitivo veloz volátil, tempo sem memória?"
Se os contextos da discussão do ciclo de conferências e o da proposta de Sevalho são diferentes visto que no primeiro caso tratava-se de relacionar o tempo às questões de "o que é a modernidade", "o que é liberdade", "o que é humano", e no segundo, ao "tempo epidemiológico" há, no entanto, pontos comuns. O principal é o de superar a visão que tem no tempo presente sua única referência. Como diz Novaes (1992), "...narrar a história de um povo a partir apenas do tempo presente, tempo fragmentado, direcionado, 'instante fugidio tido como único tempo real' " (Chauí, 1992, apud Novaes, 1992) é negar a articulação de épocas e situações diferentes, o simultâneo, o tempo da história e o pensamento do tempo.
Também Bosi (1992), em seu magistral O tempo e os Tempos, facilita-nos essa difícil incursão ao sintetizar um aspecto básico sobre o tema: "A cronologia, que reparte e mede a aventura da vida e da História em unidades seriadas, é insatisfatória para penetrar e compreender as esferas simultâneas da assistência social".
Se não bastassem as inúmeras referências e análises de Sevalho, as citações acima confirmam a necessidade de que os campos constituintes da Saúde Coletiva revisitem a dimensão temporal, em especial aqueles que têm como ponto nuclear para seus estudos a perspectiva do tempo. Está nesse caso a Epidemiologia. Mas não é de qualquer tempo que Sevalho trata em seu artigo. No estudo em questão, são o tempo histórico e o tempo físico os balizadores das suas preocupações.
Acerca do tempo, Fernand Braudel concebe uma dialética da duração em que a estrutura, a conjuntura e o evento demarcados pelo tempo longo, médio e curto, respectivamente possam ser capturados. Isto é apontado no texto de forma precisa e ilustrado com os próprios exemplos de Braudel. É o tempo social construindo o caminhar dos homens, demarcando gerações, criando ritmos que regulam suas vidas, seus trabalhos e suas linguagens.
Mas, como aponta Goldbeter na citação de Sevalho, os seres vivos e a vida humana não se poderiam manter sem os ritmos das atividades fisiológicas do corpo, como também, segundo Prigogine, o tempo existe, ou melhor, preexiste à criação do universo. Mas quantos tempos! Tempo social, tempo biológico, tempo físico, tempo cósmico, tempo mental. Para a finitude do homem, a infinitude do tempo. Tempo dentro do Tempo. Tempos individuais e tempos coletivos, ambos históricos, mas com dimensões diferentes. Tempos objetivos e tempos subjetivos.
Foi dito acima que certas disciplinas deveriam revisitar a categoria tempo, pois esta é nuclear para o entendimento dos seus objetos. Porém, rigorosamente, não há disciplina que deixe de trabalhar com o tempo as naturais, as humanas, as matemáticas, as filosóficas. Permanecendo no plano dos tempos sociais, parece-me que se poderá avançar em alguns pontos não abordados pelo autor e que servirão para o projeto de uma epidemiologia capaz de ultrapassar o "tempo positivista", ou, como escreve Sevalho, que vá além dos limites de uma perspectiva que "Capturando valores no momento, na simultaneidade, deslocando-os da realidade complexa, o tempo epidemiológico pode fazer perceber equivocadamente relações diretas de variáveis que se relacionam inversamente ou mesmo associar variáveis que de fato não têm relação entre si".
Em O espectro do tempo social, Gurvitch (1964) apresenta um encaminhamento sobre o tempo social no qual formações sociais particulares estão associadas com um sentido específico de tempo. Recorde-se que esta idéia já havia sido desenvolvida por Durkhein no clássico Formas elementares da vida religiosa, quando assinalou que o "fundamento da categoria tempo é o ritmo da vida social". Não se trata de detalhar toda a proposta de Gurvitch, que engloba oito tipos de tempos sociais aos quais correspondem níveis, formas e formações sociais, mas salientar que com essa classificação, conforme analisa Harvey (1992), é possível pensar que "cada relação social contém seu próprio tipo de tempo". Assim, ele pode ser: permanente, ilusório, errático, cíclico, retardado, alternado, à frente de si mesmo (acelerado), explosivo.
Combinando alguns elementos da tipologia de Gurvitch ao esquema de Braudel, talvez seja possível construir uma ordenação aos estudos epidemiológicos na dimensão sócio-histórica em três grandes áreas: Epidemiologia Estrutural (para a longa duração); Epidemiologia Conjuntural (para a média duração); Epidemiologia dos Eventos (para a curta duração). Sem dúvida, a dimensão tempo tal como a dimensão espaço pode ser elemento chave para aproximar a epidemiologia dessa abordagem, o que a colocaria como campo sem limites, fato apontado por Naomar Almeida Filho, porém, que não se esgotem em meras descrições os eventos por ela estudados (em suas diversas dimensões temporais), mas sejam interpretados. Para isso, é imprescindível recorrer ao discurso histórico não como imagem especular do conjunto de eventos que afirma simplesmente descrever, mas como "um sistema de signos" (White, 1994). Somente este possibilita compreender a trágica realidade do adoecer humano tanto no plano do indivíduo quanto no do coletivo.
BOSI, A., 1992. O tempo e os tempos. In: Tempo e História (A. Novaes, org.) pp. 19-32. São Paulo: Companhia das Letras.
GURVITCH, 1964. The Spectrum of Social Time. Dordrecht.
HARVEY, D. 1992. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola.
NOVAES, A., 1992. Sobre tempo e história. In: Tempo e História (A. Novaes, org.) pp. 9-18. São Paulo: Companhia das Letras.
WHITE, H., 1994. Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura. São Paulo: Edusp.