DEBATE DEBATE
Gil Sevalho 1 | Tempos históricos, tempos físicos, tempos epidemiológicos: prováveis contribuições de Fernand Braudel e Ilya Prigogine ao pensamento epidemiológico Historical times, physical times, epidemiological times: probable contributions of Fernand Braudel and Ilya Prigogine to epidemiological thinking
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1 Departamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Olegário Maciel 2360, 7o andar, Belo Horizonte, MG 30180-112, Brasil.
| Resumo O texto é uma abordagem acerca do tempo enquanto categoria científica para a epidemiologia. A partir do aforismo tempo-lugar-pessoa, o tempo é apontado como elemento pouco pensado pela epidemiologia, embora esteja presente em vários dos seus conceitos. No entanto, o tema tem sido objeto de reflexão importante na movimentação recente de várias disciplinas, tais como a história, a geografia, a biologia e a física, e deve por isto representar para a epidemiologia um ponto de vista interessante, tanto no que concerne ao diálogo interdisciplinar quanto ao estabelecimento de um olhar crítico voltado para a própria disciplina. Com o objetivo de argumentar a respeito destes aspectos, apresenta-se o tempo histórico de Fernand Braudel e o tempo físico de Ilya Prigogine, construções teóricas que serão comparadas com um provável tempo epidemiológico. Ao final, usando a questão das infecções emergentes como exemplo, faz-se considerações sobre a aparente inadequação epistemológica do tempo epidemiológico para reconhecer e lidar com os aspectos sociais e históricos envolvidos na complexidade do adoecer humano coletivo. Palavras-chave Epidemiologia; Tempo; Interdisciplinaridade Abstract The text is an approach on time as a scientific category in epidemiology. Considering the aphorism time-place-person, time is pointed out as an element with little theoretical concern, despite its presence in main epidemiological concepts. While a topic connected to important changes in other disciplines, such as history, geography, biology and physics, time represents an interesting point of view to the interdisciplinary dialogue and its relevance for a critical knowledge in epidemiology. To argue about this idea, the historical and physical time constructions of Fernand Braudel and Ilya Prigogine are presented. These time theoretical constructions are compared with a probable epidemiological time. Finally, using the emerging infectious diseases as an example, some considerations are made about an apparent epistemological inadequacy of the epidemiological time to recognize the social and historical aspects involved in the complexity of the disease expressions in human populations. |
Introdução
Há alguns anos interrogo-me sobre o aforismo epidemiológico tempo-lugar-pessoa, que pode ser lido como tempo-espaço-população em uma perspectiva mais complexa. Minha curiosidade repousa exatamente na ausência de discussões específicas concernentes à categoria tempo em epidemiologia.
Na ambientação crítica dos epidemiologistas latino-americanos, o elemento população do aforismo tem sido objeto comum de debates em virtude do próprio caráter coletivo e social da disciplina, e o espaço foi recentemente revestido no discurso epidemiológico de novo sentido (Silva, 1985; Sabroza et al., 1992) mediante os aportes originados das transformações ocorridas na geografia (Moraes, 1993). No entanto, mesmo neste contexto, o elemento tempo parece não ser objeto de curiosidade da disciplina. Pelo menos no que diz respeito à formulação de discussões específicas e abordagens aprofundadas.
É interessante apontar esta aparente falta de preocupação com o tema, quando se percebe como alguns conceitos clássicos da disciplina são suportados fundamentalmente pela perspectiva do tempo. Conceitos como sazonalidade e tendência secular das doenças, por exemplo, são delineadas exatamente em função do tempo. Além disso, a classificação tradicional dos estudos epidemiológicos em transversais, caso-controle e coorte ancora-se no tempo, do mesmo modo que a distinção básica entre endemia e epidemia, como apontam Sournia & Ruffie (1985:181), "faz inserir o parâmetro tempo na história da saúde dos homens".
Certamente, todos estes conceitos envolvem contextualizações de representações de espaço e de tempo, embora este último apareça como elemento silencioso, desde que não é contemplado com uma atenção capaz de propiciar suporte teórico específico aprofundado, possibilitando dessa maneira, inclusive, uma análise crítica da própria epidemiologia.
Tudo se passa como se o tempo sempre existisse e disso os epidemiologistas nunca tenham duvidado, sem que, de fato, a epidemiologia necessitasse discuti-lo, abordá-lo ou, num sentido mais extremo e exato, considerá-lo. A epidemiologia parece não refletir acerca das representações que faz do tempo.
Por outro lado, a ciência, como um todo, se revigora com as perspectivas e experiências interdisciplinares, sendo que, nestas mobilizações, o tempo tem sido objeto bastante freqüente. Novos olhares, que admitem o espaço como produto social historicamente construído (Santos, 1990), têm transformado a geografia, ao passo que diferentes perspectivas do tempo como as discussões sobre as relações entre o "acontecimento", o "evento", e a "longa duração", entre mudança e permanência (Nora, 1988; Vovelle, 1990; Braudel, 1992) movimentam uma "história nova". Além disso, a dinâmica temporal evolutiva da biologia surge como objeto de discussão (Gould & Eldredge, 1977) e a irreversibilidade, a flecha do tempo, revela-se tema fundamental presente nos debates da física contemporânea (Prigogine & Stengers, 1984).
O tempo, portanto, pode representar para a epidemiologia um elemento importante no trânsito interdisciplinar, possibilitando melhor entendimento do adoecer humano coletivo.
Assim, o propósito deste texto é, a partir do ponto de vista do tempo, olhar a história e a física e, depois, retornar à epidemiologia com o intuito de informar a disciplina quanto a estes outros tempos, tecendo comparações e apontando possíveis contribuições em relação ao pensamento epidemiológico.
O tempo histórico de Fernand Braudel
No âmbito da história, a pretensão aqui é apresentar as reflexões acerca do tempo postas em marcha pela história nova francesa, alimentadas por autores que se movimentado-se em torno da revista Annales D'Histoire Économique et Sociale, fundada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch. A chamada Escola dos Annales convém que seja dito não representou um bloco monolítico de pensamento, mas, em um movimento que se internacionalizou, promoveu profundas transformações na ciência da história. No entender de Burke (1991), os pontos gerais comuns desse deslocamento seriam: a orientação para uma história-problema em substituição à tradicional narrativa de acontecimentos, bem como a interdisciplinaridade e a busca da história de todas as atividades humanas.
O tempo, no que concerne à dinâmica das mudanças e permanências sociais, é o objeto da história por excelência, sendo que, na percepção de Reis (1994a), se a história nova francesa pretende ser chamada de nouvelle, é porque apresenta uma concepção diferente do tempo histórico ao enfatizar principalmente a longa duração, o tempo longo. Neste aspecto, o personagem fundamental é o grande historiador de uma segunda fase dos Annales, nos anos 1950 e 60, Fernand Braudel, com sua dialética da duração.
As transformações do tempo histórico promovidas pela nouvelle histoire centram-se na forma de perceber a relação entre a mudança o evento e a permanência o tempo longo. Contrapondo-se à história tradicional, por demais entregue ao evento, os historiadores da nova história mergulharam na estrutura, na longa duração, onde estão os seres humanos comuns, anônimos, em seu cotidiano. Perceberam aqueles que é na escuridão da profundidade, até então pouco visitada, que se encontra a lentidão da cultura, a resistência dos hábitos e valores, os movimentos repetitivos, por vezes inconscientes, característicos da luta humana contra os obstáculos sociais e naturais. Neste sentido, a perspectiva dos Annales significou também o surgimento de personagens antes desprezados, esquecidos e desconhecidos, como as mulheres, os pobres, os marginais; novos temas de investigação emergiram da profundidade, tais como os sentidos, os sonhos, os costumes, as mentalidades; inéditas formas de abordar os temas passaram a utilizar novas fontes documentais, de modo que os elementos produzidos involuntariamente tornaram-se fontes prioritárias, e a história passou a não se esgotar mais nos documentos oficiais, em uma história do Estado produzida intencionalmente, na qual os historiadores tradicionais só percebiam os eventos, os acontecimentos rápidos, e deles só retiravam vultos, heróis e datas. O evento, a mudança, para ser percebido, deve emergir da permanência, do tempo longo, das prisões da longa duração, para usar uma expressão de Braudel. Construir uma dialética da duração, em que a estrutura, a conjuntura e o evento, ou seja, os tempos longo, médio e curto sejam apreciados e distinguidos, é o projeto de Fernand Braudel, em torno do qual esta discussão está centrada.
O tempo histórico de Braudel é próximo do estruturalismo das ciências sociais, mas, diferentemente deste, não negligencia o evento, como explica José Carlos Reis em seu livro Nouvelle histoire e tempo histórico as contribuições de Febvre, Bloch e Braudel (Reis, 1994a). A dialética da duração de Braudel consiste em, na perseguição ao tempo coletivo, ultrapassar o indivíduo e o evento sem negá-los, já que os integra em uma realidade mais complexa. As estruturas são elementos da longa duração, lentos, aparentemente imóveis, contínuos, permanentes; sustentam as oscilações cíclicas do tempo médio e exercem sobre os eventos uma contenção. O tempo médio é constituído pelas conjunturas, ciclos e interciclos que podem potencializar-se ou anular-se reciprocamente, dando uma impressão de imobilidade que o olhar do tempo longo vai esclarecer, permitindo a visualização do curso irreversível do tempo histórico. É esta perspectiva que vai possibilitar a explicação do evento, do tempo curto, que, junto com os tempos longo e médio, compõe a dialética da duração.
A dialética da duração de Braudel é, portanto, um tempo composto, fundamentalmente coletivo, que não tem a duração do indivíduo, mas sim a de décadas, séculos. Em sua complexidade e interdisciplinaridade, admite a coexistência de velocidades e orientações diferentes, permitindo, assim, a visualização da multiplicidade, dos tempos plurais que conformam os ritmos dos grupos sociais ao movimentarem suas vidas.
Para Braudel (1992:43, 49), a importância da dialética da duração está na percepção da pluralidade do tempo social, na "oposição viva, íntima, repetida indefinidamente entre o instante e o tempo lento a escoar-se". A base deste tempo dialético é a estrutura, uma arquitetura, articulação, "uma realidade que o tempo utiliza mal e veicula mui longamente".
Reis (1994a), ao discutir a contribuição de Braudel para o tempo histórico, analisa principalmente duas de suas grandes obras: La Mediterranée et le monde méditerranéen à l'époque de Phillipe II primeira edição de 1949 e segunda de 1966 (Braudel, 1984) e Civilisation matérielle, economie et capitalisme, de 1979 (Braudel, 1996).
Em O Mediterrâneo ..., Reis (1994a) esclarece, o primeiro volume é o da longa duração e está posicionado sob o signo da geografia humana. Examina as repetições, a história lenta, quase imóvel, que traduz as relações dos seres humanos com o meio natural que os cerca. Os costumes, os hábitos, a sobrevivência vinculam-se ao clima, à paisagem. "Se a história tradicional se interessava somente pelas crises destes movimentos lentos, Braudel quer se interessar pelas lentas preparações destas crises e pelas intermináveis conseqüências que as sucedem" (Reis, 1994a:77). O segundo volume de O Mediterrâneo ... está marcado pelas ciências sociais, a sociologia, a economia, a demografia, a antropologia, e seu objeto é o homem social em suas relações societárias nos sensos político e econômico não no tempo longo por excelência, mas nas conjunturas do tempo médio, no limbo entre mudança e permanência. Já o terceiro volume é o livro do tempo curto, dos eventos que cercam a vida de um vulto: Felipe II. É o exemplar da história tradicional, que, no entanto, não pode ser isolado do contexto da obra, só sendo compreendido adequadamente quando inserido na dialética da duração.
Para Reis (1994a:79), um dos aspectos centrais da obra de Braudel é o conceito de ritmo e isto pode ser visto em O Mediterrâneo ... . No tempo longo existem os ritmos diferenciados da vida na planície, no deserto, no mar, nas ilhas, e, dentro de cada um destes, há outros ritmos de vidas particulares. Braudel quer mostrá-los em "suas singularidades e evitando o estereótipo. Há uma vida montanhesa, mas os montanheses não são sempre os mesmos. Há uma vida na planície, mas há vidas diferentes na planície". Estes ritmos locais e regionais marcados pela espacialização geográfica no primeiro volume da obra, combinam-se aos ritmos sociais dos grupos de indivíduos percebidos no segundo volume, e esta combinação vai possibilitar a visualização dos eventos do tempo curto do terceiro volume. Braudel pretende fazer estes ritmos convergirem na unidade histórica do Mediterrâneo do século XVI através da construção de um tempo econômico-social-demográfico-cultural em que as divergências não devem ser suprimidas, mas identificadas.
Esta perspectiva também é seguida em Civilização material ..., onde Braudel relaciona três níveis. A "civilização material", o nível quase imóvel da economia informal, da produção cotidiana e das trocas de auto-subsistência, em que predominam os fatos pequenos e repetitivos, onde "semeia-se como sempre, trabalha-se como sempre, navega-se como sempre" (Reis, 1994a:106). Acima deste plano, e a ele ligado dialeticamente, emerge o tempo médio do mundo do "mercado", no qual as realidades são mais conscientes e as trocas, reguladas pela concorrência. O terceiro nível, o do "capitalismo", é um nível transnacional, mundial, regularizado pelo monopólio, conformando um mundo de iniciados com saberes e poderes inacessíveis ao homem comum, onde as trocas são fundadas mais em uma relação de força do que sobre as necessidades. É assim que Braudel constrói sua dialética da duração, relacionando estrutura, conjuntura e evento. Enquanto em O Mediterrâneo ... o tempo curto foi quase eliminado, em Civilização material ..., o evento, o capitalismo, domina os níveis da longa e média duração e se constitui no tempo do mundo que invadirá todos os interiores.
Braudel (1987:19-20) visualiza estrutura, conjuntura e evento como camadas cuja espessura vai se modificando com o correr da história. No entanto, o tempo longo, "o reino do habitual, do rotineiro (...) invade o conjunto da vida dos homens, difunde-se nela como a sombra da tarde enche uma paisagem".
Reis (1994a) percebe que na obra de Braudel estão envolvidos três tipos de tempo: a reconstrução, ou seja, a organização do material do conhecimento, a concepção do autor e o tempo vivido da realidade. Braudel inclui, portanto, em sua dialética da duração, o tempo real e o tempo reconstruído; o tempo reconstruído e a visão geral da história do historiador, "e tanto no tempo real quanto no reconstruído, as relações de exclusão e inclusão das dimensões longa, média e curta das durações" (Reis, 1994a: 82). Desse modo é que percebe e identifica descontinuidades e assimetrias na continuidade do tempo longo e obtém um resultado complexo, não-linear, não-determinista, onde as coletividades movimentam a história.
O fundamental para Braudel (1992) é a aplicação de um modelo que compreenda a multiplicidade das durações. Qualquer objeto de investigação deverá ser situado nesta dialética da duração, sendo envolvido pelo historiador em uma rede de tempos diferenciados, de modo a não ser reduzido nem à longa, nem à média, nem à curta duração (Reis, 1994a).
A pesquisa, diz Braudel (1992:68), "deve ser sempre conduzida, da realidade social ao modelo, depois deste àquela, e assim por diante, por uma seqüência de retoques, de viagens pacientemente renovadas".
Quanto à utilização de suas reflexões sobre o tempo por outras disciplinas, Braudel (1992: 44), num artigo clássico a respeito da "longa duração" publicado originalmente em 1958, é justamente quem prescreve:
"talvez, de nossa parte, tenhamos alguma coisa a lhes dar. Das experiências e tentativas recentes da história, desprende-se consciente ou não, aceita ou não uma noção cada vez mais precisa da multiplicidade do tempo e do valor excepcional do tempo longo. Esta última noção, mais que a própria história a história das cem faces deveria interessar às ciências sociais, nossas vizinhas".
O tempo físico de Ilya Prigogine
Algumas descobertas recentes têm revelado um tempo físico irreversível, o que contraria a dinâmica clássica e sua reversibilidade do tempo. Neste aspecto, uma das perspectivas mais interessantes é a do físico-químico belga, de origem russa, Ilya Prigogine, com a proposta de uma "termodinâmica generalizada" inspirada em suas contribuições para a compreensão das estruturas dissipativas que lhe valeram o Prêmio Nobel de Química de 1977.
Segundo Prigogine (1988), a ciência herdou do século XIX duas concepções fundamentais, porém aparentemente paradoxais: a visão mecanicista, determinista e reversível, baseada em negação do tempo, e a visão termodinâmica, fundamentada no crescimento da entropia, que conduz à morte térmica irremediável. No século XX surgiram a mecânica quântica e a relatividade, mas nenhuma destas rompeu com a intemporalidade da física clássica.
A termodinâmica surgiu no século XIX, envolvendo em seu contexto o aparecimento das máquinas térmicas que movimentaram a revolução industrial, suportadas na constatação de que "a combustão liberta calor, e o calor pode provocar uma variação de volume, quer dizer, pode provocar um efeito mecânico" (Prigogine & Stengers, 1984:83).
Em 1847, Joule denominou de conversão as transformações de ordem qualitativa envolvidas neste processo que resultava em um efeito mecânico e que representam "a conexão entre a química, a ciência do calor, a eletricidade, o magnetismo e a biologia" (Prigogine & Stengers, 1984:87). Joule também definiu um equivalente geral das transformações físico-químicas que possibilita o meio de medir a grandeza conservada quantitativamente nestas transformações, posteriormente chamada de energia. É uma função de estado, uma grandeza física que se conserva nas transformações sofridas pelos sistemas físicos, químicos e biológicos, a qual, no entender de Prigogine & Stengers (1984:88), a partir de então vai "ser colocada na base do que podemos chamar de ciência do complexo, e vai constituir o fio condutor que permitirá explorar de maneira coerente a multiplicidade dos processos naturais".
No entanto, como explicam Prigogine & Stengers (1984), o processo era pensado em termos da relação em que o trabalho produzido era dependente do grau de perfeição do funcionamento das máquinas, ou seja, a questão se resumia ao rendimento ideal que poderia ser prejudicado por atritos e fricções do mecanismo, mas jamais por perda inerente ao processo de transformação da matéria. Mesmo porque a idéia de conservação que rege a ciência dos séculos XVIII e XIX somente admite a diferença pela substituição de outra diferença, nunca pela eliminação. Em relação ao movimento, essa ciência admite que apenas é possível transformá-lo e transferi-lo aos outros corpos, concepção que também orientou a termodinâmica de Sadi Carnot quando, em 1824, enunciou o princípio da conservação de energia, o primeiro princípio da termodinâmica.
Quanto à termodinâmica clássica, Prigogine & Stengers (1984) esclarecem que a conservação de energia é condição de todos os sistemas, efetuando-se as trocas apenas de forma fechada e reversível; neste sentido, é justamente a perspectiva das perdas que introduz na física a irreversibilidade e a flecha do tempo. No entanto, se o conceito de irreversibilidade descreve "um mundo que queima como uma fornalha, sem recuperação concebível" (Prigogine & Stengers, 1984:91), a energia, embora conservando-se, precisa dissipar-se, ou seja, diante da condição de conservação expressa no primeiro princípio, a perda só poderia ser considerada com a revelação de uma nova função de estado, a entropia.
Conceituada por Clausius em 1865, a entropia está ligada às trocas caloríficas entre os sistemas físicos que são construções espaciais abstratas e o meio exterior chamado mundo exterior e faz parte do segundo princípio da termodinâmica. Mantendo-se a idéia da conservação da energia enunciada no primeiro princípio, torna-se possível fazer variar um estado através da entropia. As trocas com o meio produzem no interior do sistema transformações irreversíveis responsáveis pela queda de rendimento observada no ciclo de Carnot, a qual não é explicada sem a idéia de entropia.
Matematicamente, conforme explicam Prigogine & Stengers (1984), sendo S a entropia, temos dS=deS+diS, onde deS descreve o fluxo de entropia entre o sistema e o meio, e diS, a entropia produzida no interior do sistema, ou seja, as transformações irreversíveis mencionadas. Por definição, diS terá sempre valor positivo ou nulo e deS poderá ter valor negativo, nulo ou positivo, dependendo dos sistemas serem isolados, fechados ou abertos, sendo estes últimos aqueles que trocam matéria e energia com o mundo exterior. Desta forma, em um sistema isolado que não troca matéria nem energia com o exterior o fluxo de entropia é nulo, só subsistindo o termo de produção de entropia, diS, de modo que a entropia apenas pode aumentar ou permanecer constante.
Desta forma, "para todo o sistema isolado, o futuro é a direção na qual a entropia aumenta" (Prigogine & Stengers, 1984:96), o que traduziria uma evolução espontânea do sistema e a existência física de uma flecha do tempo. Tem-se, assim, o segundo princípio da termodinâmica: todo o sistema evolui para a entropia máxima, um estado de equilíbrio onde nenhuma reversibilidade será possível. A morte térmica. Situação de equilíbrio que funciona como verdadeiro atrator dos estados de não-equilíbrio. Um estado atrator correspondente à máxima desordem do sistema, ao equilíbrio e à máxima entropia.
Embora tais postulações fossem possíveis ao nível de uma física macroscópica, tornava-se necessário trabalhá-las ao nível microscópico, o que foi feito por Boltzmann ao introduzir a probabilidade na física, ainda no século XIX. O Princípio da Ordem de Boltzmann parte da hipotética existência de um sistema composto por um número N de elementos colocados em uma caixa dividida em dois compartimentos. Para conhecer a probabilidade de ter N1 elementos num compartimento e N2=N-N1 no outro, recorre-se à teoria das probabilidades. Considerando-se P o número de repartições que fará chegar a N1=N2=N/2, obtém-se um valor de P tanto maior quanto menor a diferença entre N1 e N2, e o maior valor de P quando N1=N2=N/2. Além do que, quanto maior for N, maior será o número de repartições assimétricas, ou seja, será cada vez maior o "esquecimento" em relação ao estado inicial, à "dissimetria inicial" (Prigogine & Stengers, 1984: 100). Ao ser atingido o equilíbrio no caso dos sistemas microscópicos, os afastamentos desse estado serão cada vez menos possíveis e a distribuição dos elementos do sistema flutuará em volta do estado atrator, que é o do equilíbrio.
A partir desta perspectiva, que continua considerando um sistema isolado, o Princípio da Ordem de Boltzmann foi generalizado para os sistemas fechados e abertos, revelando-se capaz de "compreender a singularidade dos estados atrativos que são estudados pela termodinâmica do equilíbrio" (Prigogine & Stengers, 1984:100). Desta forma, Boltzmann foi o primeiro a mostrar que podia interpretar o crescimento irreversível da entropia como medida da desordem molecular.
Uma questão, no entanto, a termodinâmica do equilíbrio não resolvia: diante do conhecimento até aqui exposto, como explicar os organismos vivos que parecem não evoluir para um estado de equilíbrio, desordem e entropia máxima? É neste sentido que Prigogine (1972) observa que toda a discussão sobre a posição da biologia com relação às ciências físicas conduz cedo ou tarde ao problema da situação dos sistemas vivos em relação às grandes leis de organização da física. Quanto a isto, segundo Prigogine, a maioria dos biólogos atualmente insiste em que o teorema do crescimento da entropia seria aplicável, no caso da vida, ao conjunto sistema vivo-meio ambiente. Neste âmbito, os sistemas vivos seriam considerados sistemas abertos trocando energia com o meio, de tal forma que o crescimento da entropia valeria não para os sistemas vivos tomados isoladamente, em cujo interior a entropia diminuiria em favor de uma organização cada vez maior, mas para a totalidade do conjunto. Por conseguinte, o Princípio da Ordem de Boltzmann também seria adequado à situação.
Mas Prigogine & Stengers (1984:102) argumentam que tal perspectiva não é correta, pois, quando consideramos uma célula ou uma cidade, percebemos que estes sistemas, além de serem abertos, vivem da sua abertura. "Alimentam-se do fluxo de matéria e energia que vem do mundo exterior. Está excluído que uma cidade, ou uma célula viva, evolua para uma compensação mútua, um equilíbrio entre os fluxos que entram e saem". A cidade e a célula morrerão se isoladas do seu meio, pois são uma espécie de "encarnação" dos fluxos que transformam continuamente.
Prigogine (1972) explica que as teorias da termodinâmica, da evolução biológica e sociológica foram formuladas à mesma época, embora contrariamente à idéia termodinâmica de evolução para a desordem máxima e o equilíbrio no estado de entropia máxima, as idéias de evolução em biologia e sociologia estão associadas a uma organização crescente, a uma ordem, portanto, e à formação de estruturas mais e mais complexas. Desta forma, Prigogine não julga adequada aos organismos vivos a termodinâmica do equilíbrio enquanto modelo de explicação. Para ele, a perspectiva correta no que diz respeito à explicação da vida estaria compreendida dentro de uma "termodinâmica da vida" e consistiria na consideração de sistemas abertos que contam com reservatórios externos de matéria e energia suficientemente grandes para suportarem um estado permanente de não-equilíbrio. Assim é que encontraremos associação entre os sistemas vivos e as estruturas dissipativas da física.
Enquanto o Princípio da Ordem de Boltzmann que descreve o segundo princípio da termodinâmica mostra-se adequado aos estados de equilíbrio, não o é para as estruturas dissipativas, que estão associadas a um princípio de ordem diferente, o da ordem por flutuação. As estruturas dissipativas são estados instáveis, porém contínuos, que oscilam em torno do estado atrator de equilíbrio. Compreendidas no âmbito de uma termodinâmica do não-equilíbrio, tais estruturas representam, no entender de Prigogine, uma perspectiva adequada à explicação dos sistemas vivos e sua orientação para a ordem e o não-equilíbrio.
Para Goldbeter (1988), a alternância dos dias e das noites, as mudanças de clima e as estações dão ritmo ao escoamento irreversível do tempo. Os seres vivos conformam ritmos biológicos em consonância com as variações periódicas do meio. A vida humana, por exemplo, não se poderia manter sem os ritmos que governam a respiração, as atividades dos neurônios e do coração. Os processos químicos e de transporte biológico envolvidos na vida, tais como as reações enzimáticas e o transporte de íons através de membranas, parecem obedecer também a certa ordem por flutuação, a qual impõe instabilidade, um estado de não-equilíbrio permanente, que sobrevive oscilando em torno do estado atrator de equilíbrio. Além disso, relações biológicas ao nível macroscópico devem também funcionar segundo o tipo de ordem descrito, tal como os sistemas predador-presa em que o crescimento ou a diminuição da população de presas precede sempre os movimentos iguais e correspondentes na população de predadores.
No entender de Prigogine (1972; 1988), esta forma de ver as coisas que compreende uma flecha do tempo, uma irreversibilidade propiciaria o entendimento da ordem biológica orientada para uma complexidade cada vez maior e para a amplificação de inovações. Neste contexto não-linear de uma termodinâmica do não-equilíbrio seriam aceitáveis os fenômenos de auto-organização, a associação intercelular e a formação de organismos superiores que se produzem longe do equilíbrio.
As descobertas experimentais da instabilidade das partículas elementares, das estruturas de não-equilíbrio e da evolução do universo, que marcaram a física a partir dos anos 1950, apontaram "a necessidade de ultrapassar a negação do tempo irreversível que constitui a herança legada pela física clássica à relatividade e à mecânica quântica" (Prigogine & Stengers, 1990:16).
Prigogine (1988:5, 7) acredita que o tempo precedeu a criação do universo, e que o big-bang, além de não ser uma singularidade, não significa o começo do tempo, mas sim "instabilidade", "mudança de fase" de um processo que se desenvolve em escala maior. "O universo tal como nós o vemos é então o resultado de uma transformação irreversível, e provém de um 'outro' estado físico". Para ele, o nascimento do nosso tempo não é o nascimento do tempo. Nesta concepção, a vida seria resultado de flutuações e o tempo sempre preexistirá a estas flutuações potenciais. A vida se formaria a cada momento em que as circunstâncias planetárias se apresentassem favoráveis, do mesmo modo que o universo se formará cada vez em que as circunstâncias astro-físicas se mostrem propícias. Mas o tempo não é ontológico, não é retorno nem eterno retorno, é irreversibilidade e evolução.
Para Prigogine & Stengers (1984:97), "as transformações reversíveis pertencem à ciência clássica, no sentido de que elas definem a possibilidade de agir sobre o sistema, de controlá-lo (...) neste quadro a irreversibilidade é definida negativamente, e só aparece como uma evolução 'incontrolada' que se produz cada vez que o sistema escapa do equilíbrio". Assim, a termodinâmica contemporânea, a do não-equilíbrio, veio contrapor-se ao determinismo da ciência clássica. Neste último contexto, a irreversibilidade é que está implicada nos modernos representativos do comportamento dinâmico, e os sistemas reversíveis só são compreendidos como casos limites particulares (Prigogine & Stengers, 1990).
Ver as coisas desta forma não é simples, segundo Prigogine (1988); exige mesmo profunda mudança de consciência. Se antes a analogia da desordem era o não-equilíbrio a turbulência e a da ordem era o equilíbrio o cristal , a termodinâmica mostra hoje que a desordem acompanha o equilíbrio e a ordem o não-equilíbrio.
Prigogine (1988) conta que sempre lhe inquietaram duas afirmações de inspiradores seus. A do filósofo Henri Bergson de que "o tempo é invenção ou não é absolutamente nada", e a do bioquímico Jacques Monod de que "a velha aliança rompeu-se; o homem sabe finalmente que está só na imensidão indiferente do universo de que emergiu por acaso". Refletindo acerca destas frases, Prigogine tem-se dedicado, por um lado, a mostrar que o tempo existe, não é ilusão, e, por outro, a fazer uma ciência que reúna o ser humano e a natureza em nova aliança.
Talvez seja no tempo irreversível, complexo, não determinista, e por que não supor? em uma ordem por flutuação, que Prigogine (1988:14, 19) vê "convergência" entre a física de hoje e a história nova, ao "reler (...) alguns textos de Marc Bloch", um dos fundadores dos Annales. Prigogine está certo de que "o tempo é construção" e admite a necessidade de uma visão globalizante implicada na conservação do planeta para a construção do futuro. É desse modo que sua "termodinâmica generalizada" está fundamentada na complexidade que envolve e liga tudo, os seres humanos, a natureza, a sociedade.
Epidemiologia e tempo
Segundo Reis (1994b:66), não há unanimidade nas definições ou noções de tempo produzidas pela ciência. Para o autor, "os tempos parecem emergir uns dos outros, tanto na realidade quanto no conhecimento".
Tanto na realidade quanto no conhecimento, o tempo é apreendido de tal maneira que, ao imaginá-lo, o fazemos segundo metáforas de natureza e substância, forma, direção e orientação, construindo a partir disso uma idéia do tempo.
No âmbito do conhecimento, Reis (1994b) percebe três tempos principais: "o tempo da física", "o tempo da filosofia", e, talvez, "o tempo da história", um "terceiro tempo". As perspectivas de objetividade e subjetividade marcarão as diferenças entre o tempo da física e o da filosofia, os dois tempos fundamentais do conhecimento.
O tempo da física, explica Reis (1994b:65, 66), é objetivo por excelência. Trata-se do tempo exterior, dos movimentos numeráveis da natureza, que naturaliza o evento e o transforma em movimento. Conseqüentemente, é quantificável e "reversível". Considera-se aqui que esta preferência pela reversibilidade diz respeito ao contexto da física da relatividade de Einstein e não ao tempo da física da termodinâmica de Prigogine, apresentado neste texto, que tem como característica fundamental a irreversibilidade e também não é desconhecido por Reis.
Já o tempo da filosofia, conforme expõe Reis (1994b), é subjetivo, interior. Forjado a partir das mudanças vividas da consciência, da sua incomensurabilidade, é por isto qualitativo e preferencialmente irreversível.
Desta forma, as dimensões de anterioridade, posterioridade e simultaneidade são próprias do tempo da física, do seu projeto de causalidade matemática, bem como as de futuro, passado e presente caracterizam o tempo da filosofia, do tempo vivido. O tempo da história, um possível terceiro tempo, seria justamente aquele que ligaria natureza e consciência, que faria uma ponte entre a física e a filosofia ao considerar e reconhecer em sua composição a objetividade e a subjetividade.
A epidemiologia em sua intenção de contar "doentes em populações" (Almeida Filho, 1989:16, 17; 1992:50) e medir a ocorrência das doenças necessitava, para aparecer, das medidas estatísticas e da taxonomia da clínica, pois a contagem precisa de uma classificação anterior.
O despontar das classificações das doenças pode ser assinalado nos anos 1600, desde os trabalhos de inspiração botânica de Thomas Sydenham. A clínica médica, com sua taxonomia baseada em sintomas, sinais e localizações anatômicas, nasceu como aponta Foucault (1977) dentro dos hospitais franceses já transformados em recursos terapêuticos pelos revolucionários da passagem do século XVIII para o XIX. A estatística, por sua vez, surgiu no declínio da Idade Média, durante a formação dos estados nacionais, da necessidade de contar trabalhadores e soldados para medir a riqueza destas nações, em uma época na qual tanto o sucesso nas guerras quanto a produção dependiam do número de pessoas envolvidas e não das máquinas de produção e de guerra.
Assim, embora vestígios da formação da epidemiologia possam ser percebidos desde a medicina grega hipocrática dos séculos IV e V A.C. conforme é o caso dos conceitos de endemia e epidemia, esboçados no texto Ares, Águas, Lugares como doenças que habitam ou visitam um lugar esse domínio do conhecimento surgiu, enquanto ciência, no século XIX. Contando com bases históricas fundamentais também na medicina social dos anos 1800, apresenta as características de uma disciplina do coletivo (Ayres, 1993).
Para estudar a questão da saúde/doença em populações humanas, como aponta Almeida Filho (1989:19, 20), o "raciocínio epidemiológico" acompanha a ciência moderna e "traduz a lógica causal em termos probabilísticos (...) adotando e desenvolvendo o método observacional aplicado à pesquisa em populações" (grifos no original). Desse modo, segundo o autor, o termo "observacional" caracteriza a estratégia comparativa da disciplina e o termo "probabilístico", sua disposição quantitativa.
Na busca desta relação causal, a epidemiologia procura associações estatísticas entre os possíveis fatores determinantes e a ocorrência de doenças em populações humanas. Determinantes que podem estar entre as características individuais dos membros das populações estudadas, como sexo e idade, em particularidades sócio-econômicas, como renda e profissão, peculiaridades geográficas relacionadas às formas de ocupação do espaço e outras ligadas à cultura, aos hábitos e comportamentos.
Em linguagem estatística, o objetivo da disciplina é investigar comparativamente a distribuição destes fatores na população, identificando também os indivíduos doentes. As associações estatísticas encontradas entre os fatores apresentados e a ocorrência de doenças alicerçarão uma provável determinação desta ocorrência, orientando, a partir disso, a aplicação de medidas para controlá-la.
Assim fundamentada, a epidemiologia, adotando linguagem matemática, procurou alinhar-se no caminho das ciências duras, de bases experimentais e estatísticas. Neste alinhamento, tornou-se por demais conhecida a perspectiva positivista da disciplina.
Em ciência, para Stengers (1990:84), "é sabido, e doravante mesmo os epistemólogos o sabem, que não há fato sem linguagem interpretativa (...)". Tal constatação, que anuncia a participação do observador na condução do experimento, pressupõe a associação íntima entre conceitos e operadores com o fim de fazer do fato algo cientificamente aceitável. Segundo a autora, o essencial, portanto, será "fazer falar" objetos e sujeitos, de modo que seu "testemunho" possa ser legitimado pela comunidade científica, à qual é socialmente outorgado o poder político para tal reconhecimento.
Neste sentido, afirma Stengers (1990:85, 93), "nas ciências experimentais o trabalho de criar uma testemunha (fidedigna acréscimo meu), de fazer falar um fato, é sempre um trabalho de purificação e controle". E, "quando o operador remete sempre a uma abstração controle e purificação o conceito corresponde a uma operação concreta de captura e redefinição do mundo da qual depende a significação do operador".
Diante destas considerações de Stengers (1990) torna-se possível admitir que, ao operar seus conceitos, a epidemiologia o faça na contextualização do seu projeto científico positivista, ou seja, que sua movimentação científica requeira para esta operacionalização um tempo também positivista. Tal deve ser o modo pelo qual a epidemiologia faz falar seu objeto, "doentes em populações" (Almeida Filho, 1989: 16, 17; 1992:50). É preciso que se perceba, então, que uma das características fundamentais do positivismo é o isolamento do objeto, a sua exteriorização e purificação.
Como esclarece Reis (1994b:88, 89, 90), o tempo positivista é modelado pela física e foi o que aproximou o tempo da história daquele da física mediante a adoção do positivismo pelas ciências sociais no século XIX, possibilitando o surgimento de uma "física social". Trata-se, segundo o autor citado, de um tempo evolutivo e irreversível, cujo propósito é "situar eventos singulares e irrepetíveis no tempo-calendário (...) dar homogeneidade, linearidade e continuidade a estes eventos irreversíveis e descontínuos, inserindo-os nos números do calendário e atribuindo-lhes uma sucessiva necessária, pois numérica e baseada nos conceitos de causa e conseqüência (...)" (grifos no original).
O positivismo, em seu projeto empiricista e homogeneizador, "sublinha decididamente o como e evita responder ao que, ao porque e ao para que" (grifos no original) (Mora, 1991:314).
Quer controlar os eventos, por si sós únicos e irrepetíveis, eliminando a perspectiva de mudança neles contida. Quer afastar o terror dos eventos, o seu conflitante potencial de mudança.
O tempo da epidemiologia se caracteriza, por conseguinte, como tempo quantitativo: objetivo e exterior. Não é o tempo vivido e, em vez de passado-presente-futuro, envolve dimensões de anterioridade-simultaneidade-posterioridade.
Interessa, portanto, refletir acerca do propósito da epidemiologia de, através do entendimento do adoecer coletivo humano, controlá-lo. Esta pretensão de controle é um dos elementos fundamentais da disciplina, pois, como esclarece Almeida Filho (1992:71), ao contrário da clínica, cujo objetivo mais próximo é a intervenção sobre a doença do indivíduo, a epidemiologia tem como "compromisso fundamental (...) a produção de conhecimento em si" referente a "padrões de distribuição da ocorrência em massa de doenças em populações". Justamente nesta perspectiva de antes conhecer para, desse modo, controlar, é que se insere a intenção de prever, sendo o ato de prever, em sentido mais amplo, elemento fundamental do projeto científico moderno como um todo.
Segundo Barbosa (1992:76, 77), quando o racionalismo científico foi erigido à posição de "único paradigma possível" da modernidade e foi suspensa a validade dos saberes estéticos, religiosos e "até mesmo políticos", o ato de prever passou a constituir o projeto da ciência moderna de domínio sobre a natureza. Para o autor citado "toda previsão estrutura-se no interior da experiência do devir do mundo", em cuja essência está a ameaça constante do convívio com o inesperado e o inédito. Desta forma, "para salvar-se, torna-se imperioso afastar as ameaças do devir, e para tal é necessário controlá-lo, submetê-lo ao império da lei e então dominá-lo".
Em relação ao tempo da epidemiologia parece ocorrer que, em sua objetividade e exterioridade, captura elementos descolados da realidade, unicamente por sua simultaneidade, sem que esta captura implique necessariamente em qualquer relação social entre os elementos ou fenômenos. O tempo do conhecimento epidemiológico trabalha com os fatos de modo a artificializá-los, separá-los das pessoas, amputá-los de sua historicidade e submetê-los estatisticamente. Dessa maneira, controla os eventos, eliminando a sucessão e a ameaça de mudança.
Por conseguinte, sempre será difícil para a epidemiologia perceber as relações sociais profundas, as inter-relações humanas emaranhadas no tecido social. No tempo do conhecimento epidemiológico, os tempos históricos e sociais não são compreendidos. Como assinala Goldberg (1990:98), "ao se considerar os indivíduos como unidades estatísticas independentes, ignora-se completamente a existência das relações sociais nas quais as representações, os comportamentos, os saberes e os modos de vida são produzidos".
No entender de Goldberg (1990:98, 99), "a análise estatística opera um corte no tempo e apresenta uma imagem, em um momento dado, das situações de risco ou dos comportamentos sanitários de uma população, sem apreender sua historicidade". Conseqüentemente, os movimentos diferentes e contraditórios dos grupos sociais não são visualizados em sua complexidade. Uma complexidade da qual participam também outras coisas e outros seres, pois, afinal e é curioso que nem sempre isto seja percebido a realidade não se faz só de seres humanos. Estes outros seres e coisas que nos cercam é que permitem o sentido e orientação à vida. Compõem nossas ações, revelam nossos caminhos e dão concretude ao nosso tempo.
Assim, este corte no tempo, de que fala Goldberg, parece não eliminar somente a possibilidade de visualização das interações humanas, mas também das interações dos agrupamentos humanos com estes outros seres e coisas do meio. Capturando valores no momento, na simultaneidade, descolando-os da realidade complexa, o tempo epidemiológico pode fazer perceber, de modo equivocado, relações diretas de variáveis que se religam inversamente ou mesmo associar variáveis que de fato não têm ligação entre si. Em outras palavras, esta captura na simultaneidade pode associar doenças a fatores determinantes que verdadeiramente não o são, reconhecendo, algumas vezes, causalidades erradas.
Um indício de que o tempo do conhecimento epidemiológico desconhece estas interações sociais e naturais complexas e que pode, portanto, incorrer nos erros mencionados, deve ser buscado em uma observação de Skrabanek no artigo denominado The poverty of epidemiology (Skrabanek, 1992). O autor examinou os resumos dos trabalhos apresentados em uma reunião científica de epidemiologistas realizada nos Estados Unidos, em 1990, e observou que, aparentemente, qualquer combinação entre exposição e doença se prestou para que os participantes do encontro calculassem riscos relativos, odds ratios e riscos proporcionais, sem que levassem em conta razões de implausibilidade biológica ou elaborassem hipóteses que suportassem as associações pretendidas.
Considerados estes fatos, é possível admitir que a socialização das coisas, que não parece ser primordial para o tempo epidemiológico, deve ser, então, procurada fora da disciplina, em outros tempos de diferentes áreas do conhecimento, com a finalidade de complementar as análises epidemiológicas, dar-lhes maior abrangência e consistência. De tal modo que, a partir do reconhecimento e aceitação destes outros tempos de diversas disciplinas, a epidemiologia opere melhor o seu objeto, doentes em populações, e seja alçada ao nível de complexidade perseguido pela ciência atual.
No que diz respeito à dialética da duração o tempo histórico de Fernand Braudel alguns aspectos relativos à visualização da cultura podem servir para comparações interessantes com a epidemiologia. Foi a antropologia, com as reconstruções de cenários a partir de vestígios arqueológicos, sua percepção das peculiaridades sociais dos grupos humanos e da lentidão da cultura, que inspirou a história nova em seu mergulho na longa duração do tempo em busca das explicações do evento. Deve ser considerado que justamente a cultura tem sido reconhecida como conceito de difícil operação para a epidemiologia, por envolver elementos de difícil quantificação (Helman, 1994). Certas questões, tais como o descolamento cultural observado quando do desenvolvimento de programas de controle de doenças em sociedades tradicionais e que tem sido apontado como das causas principais de alguns insucessos destas ações (Uchôa & Vidal, 1994), possivelmente resultam da inadequação do tempo epidemiológico positivista em lidar com estas situações do tempo longo. Isto parece indicar também que temporalidades sociais distintas percebidas pela dialética da duração da história, não o são pelo tempo epidemiológico.
A possibilidade de observar epidemias-eventos emergirem da profundidade da longa duração do tempo e serem explicadas pela combinação estrutura-conjuntura-evento representa, sem dúvida, perspectiva interessante para o conhecimento do adoecer das coletividades humanas. Da mesma forma, os perfis de saúde das populações imbricados no tecido social poderão ser melhor compreendidos se examinados sob a dialética da duração, um tempo coletivo, irreversível, complexo, não-determinista, que abriga e reconhece temporalidades múltiplas. Tal enfoque também deve significar um contexto do tempo do conhecimento capaz de permitir a formulação de previsões mais adequadas à realidade.
Já no que se refere ao tempo físico da termodinâmica generalizada de Ilya Prigogine e suas contribuições potenciais à epidemiologia, é preciso considerar a aceitação das influências das ciências humanas, declarada pelo físico-químico belga (Prigogine & Stengers, 1984; Prigogine, 1988; 1990). A tenacidade de Prigogine em defesa da irreversibilidade do tempo físico veio justamente da sua estranheza ante o fato da evolução biológica, da sociologia e da história apontarem para um tempo irreversível, enquanto a física de Einstein se orientava para a reversibilidade e para uma idéia de eternidade que situava a física em uma intemporalidade. É neste sentido que Prigogine (1988) fala da "redescoberta da tempo" por parte da física, quando trata da existência da flecha do tempo, da certeza a respeito da irreversibilidade a que o conduziram suas investigações no campo da termodinâmica.
De certa maneira, Prigogine pretende humanizar a física. Retirá-la da posição avessa em relação aos rumos percebidos da história e aproximá-la das ciências humanas. É neste contexto que explica a vida como ordem que tende para o não-equilíbrio, como instabilidade que prevalece à custa das trocas de nutrientes que mantém com o mundo exterior. Os sistemas vivos se auto-organizam, amplificam inovações e, por conseguinte, caminham em complexidade crescente. É uma ordem por flutuação, que oscila, mas não é frágil, porque depende também de uma consciência humana de futuro.
Prigogine sabe e declara que o tempo é construído. Em sua termodinâmica generalizada constrói um tempo físico-químico e lhe atribui as características de não-linearidade e não-determinismo. É um tempo dos elementos, das coisas, dos outros seres biológicos, mas também é tempo humano. O próprio envelhecimento humano diz da irreversibilidade do tempo (Prigogine & Stengers, 1984). O nascimento do tempo, para Prigogine, transcende o universo, mas o tempo é irreversível, porque a biologia ciência da vida e a história ciência do tempo social humano mostraram-lhe esta irreversibilidade.
Para a ciência clássica, sustentam Prigogine & Stengers (1984:7, 22), "o microscópico é simples" e a natureza é um autômato, regida por leis que descrevem o mundo segundo trajetórias deterministas e reversíveis, e diante da qual o ser humano é estranho, está só "num mundo mudo e estúpido". Mas, perguntam Prigogine & Stengers, como é possível distinguir um cientista moderno de uma bactéria que também interroga o mundo e não cessa de colocar à prova a decifração dos sinais químicos que a orientam? Na perspectiva de Prigogine, a natureza não é um autômato, pois interroga o cientista a todo momento e, muitas vezes, o desmente.
Assim, a introdução do conceito de irreversibilidade e da noção de instabilidade refletem um contexto no qual a ciência se abre ao mundo em que se desenvolve. "O tempo hoje reencontrado é também o tempo que não fala mais de solidão, mas sim da aliança do homem com a natureza que ele descreve" (Prigogine & Stengers, 1984:15).
No que concerne à epidemiologia, portanto, compreender o tempo físico irreversível de Prigogine, onde a vida é ordem e não-equilíbrio, implica adentrar na complexidade que liga as sociedades humanas à natureza. Dito de outra forma, significa investigar o fenômeno do adoecer das coletividades humanas, entendendo-o segundo pressupostos não-deterministas, pelos quais o evento enfocado possa ser admitido e percebido como participante de uma realidade em constante transformação, em uma relação dinâmica de interdependência entre o cultural, o histórico, o social e o biológico.
Como explicam Schramm & Castiel (1992: 380, 381), a idéia de complexidade se alastrou das ciências biológicas, humanas e sociais para as ciências duras como a física. Este olhar da complexidade confere "à própria natureza uma dimensão essencialmente histórica, vinculada à flecha do tempo (...) a bifurcações, a rupturas de simetria, ao acaso" (grifos no original). Trata-se de uma visão que admite os sistemas vivos vinculando-se na troca de matéria, energia e informação com o ambiente, sendo tais trocas "máximas nos sistemas dinâmicos, como as sociedades humanas, que são tipos de sistemas dentre os mais complexos". As sociedades humanas lidam com o desenvolvimento de projetos e satisfação de desejos, gerando incessantemente novos vínculos com o ambiente, diminuindo, portanto, a capacidade de controle e previsão sobre o conjunto sistema-ambiente.
No estudo do adoecer coletivo humano, termos como determinação, causalidade, exposição, risco, suscetibilidade ou mesmo endemia e epidemia talvez percam seu significado original, sendo substituídos por outros, ou porventura desapareçam quando considerados fora da linearidade e da simplicidade da ciência clássica, quando enquadrados em outras construções do tempo, como as da dialética da duração de Braudel e da termodinâmica generalizada de Prigogine, só visualizadas no âmbito da interdisciplinaridade.
Finalizando: o caso das "infecções emergentes"
Ao final serão aventadas questões relacionadas às chamadas infecções emergentes, problema que tem preocupado extremamente não só os epidemiologistas. Trata-se de abordagem muito breve à vista da riqueza e da transcendência do assunto, servindo apenas para compor a argumentação tecida até aqui. Apenas serão pinçados alguns pontos centrais para reforçar o objetivo principal deste texto, qual seja, o de demonstrar a importância do ponto de vista do tempo para o pensamento epidemiológico.
Para Morse (1995:12) as "infecções emergentes" podem ser definidas como aquelas que só recentemente surgiram ou que já existiam, mas "rapidamente aumentam sua incidência ou extensão geográfica". O autor sugere que, de modo "operacional", estas infecções podem ser vistas como um "processo de duas fases: 1) introdução de um agente infeccioso em uma nova população de hospedeiros (se o patógeno é originado do meio, possivelmente em outras espécies, ou como uma variante de uma infecção humana já existente), seguido de 2) estabelecimento e disseminação adicional na nova população de hospedeiros".
Já a ocorrência das infecções emergentes tem sido atribuída a fatores demográficos, comportamentais, tecnológico-industriais, relativos ao desenvolvimento agrícola e uso da terra, a deslocamentos populacionais, como viagens de lazer e comércio, transportes de cargas e alimentos, capacidade de adaptação e mutação bacteriana, além de falência das medidas de saúde pública (Lederberg et al., 1992).
É notório que estes fatores responsáveis pelas infecções emergentes, esta causalidade apresentada, implica uma visão epidemiológica que contempla desde elementos da ordem biológica até os históricos, culturais, políticos, econômicos e sociais. Uma visão que pode ser melhor identificada quando Wilson (1994:4) afirma que o entendimento da emergência de doenças requer a visualização do organismo e do meio, do ecossistema e da sociedade, para o que "uma perspectiva global é essencial".
Deve ser visto, no entanto, que este posicionamento, ao menos no que diz respeito à epidemiologia norte-americana, traduz nova disposição em relação ao conhecimento do adoecer coletivo humano, que parece vir acompanhado também de certa perplexidade diante das infecções emergentes. Assim, Levins (1994a:406) sustenta que a consideração do problema das infecções emergentes "deve principiar pela rejeição do modelo da transição epidemiológica (...) que suporta a crença no declínio das doenças infecciosas e em sua substituição por outros problemas médicos". Segundo o mesmo autor (Levins, 1994b:xvii), a frustração diante da persistência das infecções "forçou uma nova consciência" de que as doenças nascem e caem, desenvolvem-se e espalham-se incessantemente, e que, por isto "temos que nos preparar para um amanhã mais complexo". Ressalte-se que a transição epidemiológica, embora discutida e criticada por alguns autores (Barreto et al., 1993; Possas & Marques, 1994), é figura epidemiológica que até recentemente gozava de ampla aceitação pela maioria dos epidemiologistas.
Para Wilson (1994:1, 11), esta nova realidade "desafia a nossa confiança no poder da ciência e da tecnologia para controlar a natureza", o que conduz a perguntas como:
"O processo de emergência (de doenças infecciosas acréscimo meu) está relacionado ao de adaptação de uma espécie à presença de outra, sendo, por exemplo, coabitação estável, ou, ao contrário, uma conseqüência da remoção de prévios competidores ou predadores? A emergência de doenças é justamente o fim visível do espectro do processo contínuo de adaptação e evolução? Há limitações fundamentais nos conceitos de causalidade que dificultam os esforços para detectar e acompanhar novas doenças? Como compreender a complexidade dos sistemas que influenciam a presença, abundância e distribuição das espécies?".
Bastante estimulante é ver o surgimento deste tipo de questionamento no âmbito da epidemiologia norte-americana, pois entre os epidemiologistas latino-americanos e brasileiros há já algum tempo são construídas abordagens sociais e críticas que discutem os rumos da disciplina. Mais interessante ainda é ver tais questionamentos colocados a partir, justamente, das doenças infecciosas, berço por excelência da disciplina.
Parece, então, que com o problema das infecções emergentes, emerge também a necessidade de rever o conhecimento epidemiológico, pois, obviamente, os elementos para responder a estas perguntas residem na complexidade e envolvem desde a ordem epistemológica propriamente dita até o reconhecimento e utilização de conceitos e noções de diversas disciplinas. Certamente em relação a este estado de coisas, Garrett (1995:22) sugere, para o entendimento e enfrentamento das infecções emergentes, "um novo paradigma para encarar a doença (...) que permita uma relação não-linear entre o Homo sapiens e o mundo microbiano dentro e fora do seu corpo".
O surgimento da AIDS, da infecção pelo vírus Ebola e o retorno da cólera, entre inúmeros acontecimentos, requerem novas formas da ciência interrogar a natureza e compreender o mundo. A preservação da vida humana no planeta exige uma convivência respeitosa com a natureza e não a pretensão de conquista e domínio. Deveríamos, como pensa Thomas (1990), aprender com nossos ancestrais microbianos os hábitos através dos quais estabeleceram normas e regulamentos de intervivência, conseguindo assim sua longevidade.
Diante do que foi apresentado, seria interessante refletir sobre a utilidade do ponto de vista do tempo para o pensamento epidemiológico, ou seja, para a compreensão do fenômeno do adoecer humano coletivo. Com certeza, a dialética da duração de Fernand Braudel viabilizaria, entre outras coisas, a melhor avaliação do modelo de transição epidemiológica. Em outra perspectiva, a percepção da dinâmica dos sistemas vivos como a do sistema predador-presa em sua relação com as doenças, por exemplo caso fosse considerada sob a ótica do tempo da termodinâmica generalizada de Ilya Prigogine, possibilitaria à epidemiologia um trajeto investigativo, reflexivo e operacional mais adequado à realidade. Nestes termos, estaríamos nos movimentando segundo o que Almeida Filho (1990:339, 340) chamou de "um novo paradigma epidemiológico", o da complexidade, que tenta lidar com "processos de determinação não-linear", "processos sensíveis à condição inicial" e "sistemas dinâmicos" que se alteram a cada momento. No entanto, é bom esclarecer, um paradigma novo envolve imprescindíveis mudanças na concepção de ciência do pesquisador, na forma como percebe a relação ser humano-natureza.
O conhecimento humano, apesar das resistências e bloqueios, historicamente sempre viveu às custas de trocas, transportes, metáforas de conceitos, noções e idéias entre as diversas áreas do saber. Sempre precisou disto para alimentar-se e crescer. Neste contexto foi considerado aqui o ponto de vista do tempo para a epidemiologia, pois, como afirma Souza Santos (1995:47), na perspectiva da interdisciplinaridade e da complexidade, "os temas são galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros".
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