ARTIGO ARTICLE
Leticia Legay Vermelho 1,2 | Mulheres com Aids: desvendando histórias de risco Women with AIDS: disclosing risk stories
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1 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro. C. P. 68004, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ 21944-590, Brasil. 2 Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro. C. P. 68037, Av. Brigadeiro Trompowsky s/no, 5o andar, Ala Sul, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ 21944-590, Brasil. 3 Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias/ Hospital Universitário Clementino Fraga Filho. C. P. 68037, Av. Brigadeiro Trompowsky s/no, 5o andar, Ala Sul, Rio de Janeiro, RJ 21941-590, Brasil.
| Abstract This study approaches the social and cultural profile concerning risk for HIV infection in women, describing some epidemiological variables and disclosing reports of risk situations, the meaning of living with AIDS, and support received. A semi-structured questionnaire was used to interview 25 women from the University Hospital of the Federal University of Rio de Janeiro, prior to the availability of multi-drug treatment. The majority reported limited schooling, were housewives or engaged in under-skilled occupations, and had family incomes lower than average for users of this public teaching hospital. The view of AIDS as "someone else's disease" was prevalent, and STDs were perceived as male infections, although several women reported episodes of STDs prior to HIV. They had received their diagnosis and initial medical care only after their partners' and/or children's illness or death. The study points to preventive strategies reinforcing these silent women's bargaining power, acting on men as potential active participants in reproductive health programs that incorporate STD/AIDS issues. Key words Women's Health; HIV; Acquired Immunodeficiency Syndrome Resumo Esta pesquisa procurou conhecer o perfil social e cultural relacionado a risco de infecção pelo HIV em mulheres, descrevendo algumas variáveis epidemiológicas e revelando relatos de risco, o significado de sua vivência com AIDS e assistência recebida. Através de um questionário semi-estruturado, entrevistou-se 25 mulheres internadas no Hospital Universitário da UFRJ, no período anterior à disponibilização das drogas combinadas. A maioria referiu baixa escolaridade, ocupações de baixa qualificação ou eram donas de casa, sendo sua renda familiar, em alguns casos, pior que a média dos usuários deste hospital. A representação predominante sobre risco associava a Aids a uma "doença do outro" e DSTs eram percebidas como infecções masculinas, embora várias relatassem episódios destas, anteriormente ao HIV. Elas tiveram seu diagnóstico/tratamento só após o adoecimento ou morte do companheiro e ou filho. O estudo sugere estratégias preventivas que, prioritariamente, reforçam o poder de negociação sexual destas mulheres silenciosas e atuam sobre os homens, como participantes potencialmente ativos nos programas de saúde reprodutiva, os quais incorporam a questão DST/AIDS. |
Introdução
Os indicadores epidemiológicos mostram que, no Brasil, o padrão de transmissão sexual da Aids vem mudando. O aumento do número de casos entre os heterossexuais fez-se acompanhar de uma expressiva inserção das mulheres no quadro epidemiológico, constatada na redução da razão por sexo, que passou de 23 homens para cada mulher com Aids em 1984, para 3:1, no período 1996/97 (Castilho & Chequer, 1997). Assim, conseqüentemente, são atingidas também cada vez mais crianças. Embora a maioria dos casos de Aids ainda estejam relacionados à transmissão homo/bissexual, a infecção pelo HIV está aumentando rapidamente entre os casos de transmissão heterossexual e/ou uso de drogas injetáveis, conforme já era previsto (MS, 1993). A cada ano, à medida em que esta proporção aumenta, em diversas partes do mundo, o sexo mais atingido é o feminino (Berer, 1993). A epidemia de HIV/Aids no Brasil não está, definitivamente, restrita a grupos específicos, classificados segundo sua opção sexual ou o envolvimento com o uso de drogas, estando sua potencialidade de expansão fora de controle. As mulheres, até finais da década de 80, ainda não haviam adquirido 'visibilidade' no contexto da expansão da epidemia. Até então, a Aids era uma doença de homossexuais masculinos, de usuários de drogas injetáveis, dos hemofílicos/transfundidos e, no máximo, de suas parceiras sexuais. Quando a comunidade científica reclassificou um enorme contingente de mulheres categorizadas na rubrica 'outros', as manchetes de jornais, no mundo inteiro, estamparam notícias alarmantes: "mulheres estão em risco para a Aids!". De lá por volta de 1990 para cá, muitos equívocos foram e continuam a ser cometidos: a maior parte dos programas educativos para as mulheres têm sido direcionados para as trabalhadoras sexuais, vistas como os 'reservatórios de HIV' que ameaçam a humanidade (Carovano, 1991). A recente preocupação com as mulheres em idade reprodutiva vem ocorrendo muito mais em função dos filhos infectados que estas estão gerando ou podem gerar. Assim, as mulheres comuns, as donas de casa, mães de famílias e, especialmente as pobres, que têm pouco ou nenhum acesso às informações e serviços, estão sendo negligenciadas ou abordadas somente em seus momentos de reprodução (quando grávidas). Além disso, essas mulheres são vistas pelo sistema de saúde como assexuadas ou como tendo sua sexualidade associada à reprodução (Carovano, 1991).
Toda essa discussão remete para a compreensão dos papéis de gênero, que determinam os papéis sociais de homens e mulheres. A vulnerabilidade feminina ao HIV e as possibilidades que as mulheres têm, hoje, de se protegerem, remetem, necessariamente, para essas questões. Afinal, o preservativo é masculino e depende da concordância dos homens para sua adoção. Além deste não fazer parte da cultura contraceptiva brasileira, os homens, via de regra, não gostam de métodos de barreira, por acreditarem que estes atrapalham seu prazer sexual. Além disso, a sugestão do uso de preservativo, especialmente em parcerias estáveis, pode trazer conseqüências imprevisíveis, pois significa, implícita ou explicitamente, um questionamento da fidelidade e da confiança mútuos. As dificuldades aumentam se o casal é pobre e tem filhos, o que determina uma maior dependência econômica e social da mulher, inversamente proporcional ao seu poder de negociar suas decisões sexuais e outras (O'Leary & Cheney, 1993).
Assim, tratar da questão da Aids, sua possível prevenção, os suportes social e de saúde oferecidos, depende da análise da diversidade dos aspectos culturais e simbólicos das sociedades onde a epidemia se dissemina. Em nossa realidade, pode-se verificar que, mesmo na população masculina homossexual, na qual foram detectadas as maiores taxas da síndrome até agora, as mudanças registradas predominaram nos grupos de maior escolaridade. A prevenção está, portanto, relacionada aos níveis educacionais e sócio-econômicos, embora não exclusivamente. Outro dado de nossa realidade é que a Aids afetou todas as classes sociais, mas não igualmente. Aqueles grupos mais atingidos em determinado momento podem não ser os mesmos após certo período de tempo (Berer, 1993). A infecção pelo HIV continuará atingindo as classes sociais de maior renda, expandindo-se, porém, cada vez mais amplamente entre os indivíduos mais pobres. Dentre esses, as mulheres ocupam lugar de destaque: entre os pobres, são elas as que menos condições têm de mudar as situações que as colocam em risco para a vida em geral. Este fenômeno vem sendo denominado de feminização da pobreza, que pode ser constatado e analisado através de indicadores sociais e econômicos (O'Leary & Cheney, 1993).
A resposta social à Aids é reconhecidamente de rejeição, através do pânico e do preconceito. Embora o debate sobre o tema já esteja amplamente difundido pelos meios de comunicação, o que se observa nos serviços de saúde é a desinformação e o despreparo de seus profissionais para lidar com o problema. Este fato, associado à crise existente no setor, agrava a situação (Carovano, 1991; Goldstein, 1992; Ramos, 1992; Simões Barbosa; 1993).
A infecção das mulheres e seu adoecimento têm uma perspectiva dramática, estando muitas vezes associados à responsabilidade dos cuidados e mesmo dos destinos de um parceiro e/ou de seus possíveis filhos infectados. É histórico em nosso país que a assistência à saúde da mulher é postergada, sendo o diagnóstico e a assistência mais tardios, a avaliação inadequada, pouca pesquisa dirigida, entre outras questões (Galvão & Parker, 1996). No caso da infecção pelo HIV/Aids, essa situação torna-se ainda mais grave, pois muitas mulheres estão sendo diagnosticadas tardiamente, ou mesmo não diagnosticadas, sendo que, atualmente, quanto mais precoce o tratamento, maior a sobrevida e a qualidade de vida dos portadores. Além disso, poucos recursos têm sido dirigidos às pesquisas clínicas e terapêuticas voltadas especificamente para as mulheres. Algumas autoras levantam a suspeita que tais pesquisas encarecem seus custos devido ao potencial risco fetal e, portanto, não interessam aos laboratórios financiadores (The Act Up/New York, 1990).
Por outro lado, a maioria das mulheres cabe lembrar que entre as que têm acesso a serviços de pré-natal ainda está sendo diagnosticada para o HIV quando grávidas. Além de correrem o risco de transmitir o vírus para seus filhos, ainda têm que cuidar do parceiro, às vezes já doente, embora muitas vezes sejam abandonadas por eles.
Enfim, os dados desta pesquisa revelam uma situação que é, no mínimo, trágica e que requer medidas urgentes de enfrentamento, sob risco de vivermos aqui uma tragédia semelhante à que se passa em alguns países africanos, onde a população homens, mulheres e crianças está sendo dizimada pela Aids e onde já existe uma geração de crianças as que escaparam órfãs. O mais trágico ainda é que isto ocorre no mesmo momento em que o acesso às drogas combinadas já permite sobrevida muito maior, o que divide os doentes de Aids em dois grupos: os da cura potencial, isto é, os que tem acesso aos serviços e medicamentos; e os que não têm, com grande chance de estarem condenados a morrer precocemente.
Questões do comportamento sexual associados ao fato da infecção da mulher pelo homem ser biologicamente mais provável que o oposto, além dos homens terem em geral mais parceiros sexuais que as mulheres, são citados como fatores que tornam a mulher mais vulnerável. Vale lembrar que a vulnerabilidade não se dá somente no aspecto da maior viabilidade de transmissão, mas também nos momentos subsequentes, através de diagnóstico e assistência mais tardios, encurtando, muitas vezes, o tempo e a qualidade de sua vida. Através das hipóteses que serão testadas neste estudo, pretende-se atingir os aspectos mais gerais destes possíveis padrões, não somente da transmissão, como também da vivência das mulheres com HIV/Aids.
Objetivo
Conhecer a história de risco para a infecção pelo HIV/Aids e a experiência com a soropositividade entre mulheres, visando fortalecer/ contribuir para as estratégias preventivas e para o aperfeiçoamento dos serviços voltados para a saúde da mulher no âmbito da epidemia de HIV/Aids.
Metodologia
A abordagem qualitativa aqui proposta pretende atingir e tornar explícitos os significados do comportamento social do ponto de vista dos indivíduos e da coletividade, enquanto uma representação. Isto se justifica na medida em que a ação humana é a expressão de uma consciência resultante de motivações historicamente determinadas. O estudo qualitativo pretende apreender a totalidade coletada, visando, em última instância, atingir o conhecimento de um fenômeno histórico que é significativo em sua singularidade. Assim, pretende-se compreender as estruturas e os significados dos comportamentos sociais que se expressam nos sujeitos concretos, através da linguagem do senso comum (Minayo, 1992).
Desenho do estudo
As entrevistas
Foram entrevistadas vinte e cinco mulheres, com diferentes patologias associadas à Aids, responsáveis por sua internação na enfermaria de Aids do Hospital Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (HUCFF UFRJ). O critério para o número de entrevistas foi a repetição dos temas. Foi construída uma ficha de identificação, que traçou o perfil epidemiológico e social de cada entrevistada. O roteiro abordou os seguintes temas: história de risco, o contexto social, familiar e conjugal de mulheres com Aids, além do suporte assistencial por elas recebido. Utilizou-se um roteiro semi-estruturado, com perguntas abertas e fechadas, aplicado pela entrevistadora de campo. A adesão à pesquisa foi voluntária e foram garantidos o anonimato e o sigilo.
As variáveis de identificação e os temas
Para se traçar o perfil sócio-epidemiológico e a história de risco para a infecção pelo HIV, considerou-se as seguintes informações: idade, renda individual e familiar, nível de escolaridade, profissão/ocupação (situação atual e passada), acesso a serviços de saúde (tipo de trajetória) e resolutividade da assistência, momento do diagnóstico, via de transmissão, parceria, uso de preservativo, situação dos parceiros e da prole, suporte social, familiar e ocupacional, representação de gênero, vivência e convivência com as drogas, autonomia, relação entre mundo público e privado, informação e representação sobre HIV/Aids.
Através das informações coletadas, buscou-se uma aproximação com o universo de vida de mulheres com Aids, reconstituindo-se sua história de risco para o HIV, sua vivência com a Aids e convivência com os serviços de saúde. Entendemos que estes temas, ou seja, as representações que as mulheres têm de si, de seu mundo, do suporte social e dos serviços de saúde prestados, são essenciais para melhor compreendermos como se situam frente à Aids, que condições de negociação são possíveis para a prevenção e, mesmo, para o recebimento adequado da assistência necessária. Levamos em consideração, também, que o recebimento dos suportes necessários para a assistência à Aids passam pelas relações de poder, que aqui são representadas pelos profissionais de saúde e pelas suas instituições, assim como a questão da prevenção passa, necessariamente, pela negociação sexual.
Na construção do roteiro, formularam-se perguntas o mais próximo possível da linguagem coloquial utilizada nas entrevistas.
Análise
Os temas foram analisados e interpretados com base tanto no conjunto quanto nas individualidades, buscando-se contextualizar a história sócio-cultural das entrevistadas, através do postulado de que a linguagem é histórica e se expressa no cotidiano, havendo uma relação indissociável entre linguagem e ação (práxis), sendo a intersubjetividade o núcleo orientador da ação e vice-versa (Minayo, 1992).
Foram adotados também dois conceitos básicos para a pesquisa: o da representação social da Aids, na medida em que esta questão é determinante para a percepção sobre risco, e o conceito de gênero, na medida em que se tem como referência parte da vivência social da mulher com a família, sua sexualidade e parceria, seu trabalho e seu mundo.
A categoria da Representação Social vem sendo amplamente utilizada no campo da saúde como expressão da necessidade de se compreender a totalidade do fenômeno saúde/ doença e a relação entre seus determinantes sociais e individuais. Ela se refere a um sistema de valores, noções e práticas que dão aos indivíduos a possibilidade de orientação no mundo social e material (Goulart, 1992), isto é, a comunicação intergrupal e a decodificarão de sua história individual e grupal. Para Minayo (1992:174), as representações sociais, por serem "ao mesmo tempo ilusórias, contraditórias e verdadeiras", podem ser consideradas "matéria-prima para a análise do social e também para a ação pedagógico-política de transformação, pois retratam a realidade".
Quanto à categoria de gênero, ela é utilizada na análise do discurso das mulheres sobre a sua vivência, sendo gênero definido como a construção social e histórica da relação entre os sexos.
A análise de gênero postula que o lugar de submissão da mulher ao longo da história tem causas históricas e sociais definidas e, portanto, é possível e desejável um processo de "libertação" que a situe num nível de igualdade ao homem em todos os planos da vida (Treichler, 1988; Ramos, 1992).
No caso da saúde como um todo, e em particular da Aids, vemos emergir as inúmeras facetas desta "submissão". Assim, na interlocução com os Serviços de Saúde e Instituições/ Empresas de Pesquisa, evidencia-se o desprestígio das questões femininas através de diagnósticos mais tardios e pela pouca ou ausente pesquisa dirigida às suas necessidades. Vem sendo relatado por inúmeros autores (Treichler, 1988; Xavier et al., 1989), que as mulheres foram gradativamente desapropriadas do saber sobre seu corpo (discurso biomédico, visão higienista, teoria malthusiana, discurso ideológico da libertação feminina, pregação religiosa). Para estes autores, o desconhecimento não seria desinformação, mas, sim, controle, pois elas desconhecem o que possuem. Assim, o corpo da mulher, a reprodução, a sexualidade sempre foram cercados de regras e proibições.
Quanto à interlocução com o parceiro, a regulação da fertilidade é fato mais que debatido e sempre polêmico, sendo tema que nos interessa pelas suas íntimas relações com a prevenção da transmissão do HIV. Sua prática foi quase sempre essencialmente privada e definida por interesses individuais ou de grupo familiar.
O condom ou o preservativo é provavelmente o mais antigo método anticoncepcional conhecido. Com o tempo, foram surgindo novas tecnologias e sendo incorporadas práticas contraceptivas na vida familiar, sem que fossem levados em consideração seus danos sobre a saúde da mulher. Pílulas e DIUs isolaram os antigos métodos, entre os quais os preservativos. Mesmo quando os efeitos indesejáveis da pílula se fizeram sentir nos anos 70, não se conseguiu persuadir os homens a aceitarem as responsabilidades de dividirem as decisões sobre a anticoncepção (Simões Barbosa, 1993). Tenta-se hoje, a partir das necessidades de se prevenir a Aids, resgatar o uso do condom, após longo tempo e enorme esforço de convencimento de homens e mulheres sobre os benefícios de outros métodos (Xavier et al., 1989; Simões Barbosa, 1993).
E este é hoje o panorama social e o espaço afetivo com que se deparam as campanhas sobre sexo seguro.
Este trabalho se propõe a levantar algumas questões relevantes para as estratégias de prevenção da transmissão do HIV, considerando que a mulher tem aí um papel indiscutível, que ainda não foi suficientemente desvendado.
Resultados
1) Perfil sócio-epidemiológico
A distribuição das idades mostrou que seus limites se achavam entre 20 e 69 anos, sendo que 45% tinha entre 30 a 39 anos. Eram mulheres que, em sua maioria, estavam em estágios avançados da doença, com diferentes patologias associadas (as entrevistas foram realizadas em 1995, quando as terapias anti-retrovirais combinadas ainda não estavam disponíveis). Algumas relataram uma via crucis pelos serviços de saúde para obter tratamento adequado e hospitalização, geralmente já apresentando sintomas da doença, o que tornava o processo penoso. Poucas tiveram uma referência assistencial adequada, o que indica que as mulheres estão sendo diagnosticadas e tratadas tardiamente. Esse dado não é novo em relação à saúde da mulher, mas, no caso da Aids, a sobrevida diminui e a qualidade de vida é pior.
A grande maioria das mulheres (75%), à semelhança da clientela habitual do Hospital Universitário (HU), exibiu nível de escolaridade baixo e somente 8% atingiu nível superior (cabe registrar que embora o perfil do HU seja similar, o Programa de Aids, especificamente, recebia uma clientela um pouco diversificada, principalmente no período em que estas entrevistas ocorreram). Suas atividades ocupacionais, antes do surgimento dos sintomas, se constituíam de uma miscelânea de atividades de nível elementar, tais como serviços domésticos, atendente de enfermagem, digitadora, balconista, pipoqueira, cozinheira e biscateira. Havia duas de nível técnico, uma detetive e uma esteticista, e, ainda, uma dona de lanchonete. As restantes eram donas de casa.
Após o aparecimento de sintomas, apenas 30% das mulheres que trabalhavam fora de casa retornaram às atividades do mercado de trabalho formal. Ou porque não tivessem condições físicas/psíquicas, mas, sobretudo, por não receberem qualquer tipo de apoio para sua reintegração. Seu nível de renda, que era de 2 a 3 salários mínimos (70%), declinou após a doença.
2) Análise qualitativa História de caso
Tema 1: Contaminação e Parceria
A maioria das entrevistadas (72%) se referiu unicamente à via sexual como responsável pela transmissão. Uma mulher relatou ser usuária de drogas injetáveis e outra responsabilizou a transfusão de sangue como responsável pela sua contaminação. 30% de todas as mulheres havia apresentado DST previamente, sendo, em dois dos casos, a hepatite B.
Em relação à parceria, na ocasião das entrevistas, a maioria mantinha parceria fixa ou eram viúvas. A visão equivocada e preconceituosa que associa a transmissão da Aids às mulheres "promíscuas", às prostitutas e usuárias de drogas, já foi desmistificada anteriormente (Koifman, 1991; Guimarães, 1994). Dois terços de seus parceiros eram HIV positivos, doentes ou falecidos de Aids.
Sobre a história da transmissão, os parceiros, em nenhum caso, haviam assumido a responsabilidade pela contaminação da companheira, assim como não assumiam a revelação da bissexualidade ou uso de drogas injetáveis perante suas mulheres. O mundo masculino era invisível para elas, como se fora dos muros familiares tudo fosse válido, enquanto não revelado (exemplo caso 1). Assim como seus parceiros, as mulheres viúvas com um novo parceiro também não assumiam perante estes estarem contaminadas. A lei do silêncio se mantinha. A diferença era que elas se preocupavam em não colocá-los sob risco. Havia uma que pedia ao marido para utilizar a camisinha durante as relações sexuais alegando estar com leucemia.
Parte importante destas mulheres (75%) desconhecia as atividades sexuais extraconjugais dos companheiros, e, embora desconfiassem, nunca ousavam inquiri-los. Relatavam medo das atitudes dos companheiros, inclusive de serem abandonadas. Apenas uma declarou desconfiar das atividades bissexuais do companheiro e outra informou que ele era usuário de drogas.
Caso 1 A paciente L. H. C. R. tem 37 anos e trabalhava como acompanhante de pessoas que necessitavam de serviço de apoio. L. H. C. R. descobriu ser portadora do vírus após o nascimento de sua terceira filha. Ainda recém-nascida, a criança apresentou problemas pulmonares que não foram resolvidos com a terapia normal. Por este motivo foi realizado o teste sorológico, sendo o resultado positivo. Diante do quadro, o teste foi realizado também no pai e na mãe da criança, tendo ambos resultados positivos
L. H. C. R. foi infectada pelo marido, que era sabidamente bissexual, além de manter relações extraconjugais com outras mulheres. A própria paciente relata que, nos dias em que não estava disposta a manter relações sexuais com o marido, dizia que ele saísse para "dar umas voltinhas". Quando perguntada se sabia dos riscos que corria ao aceitar esta situação, ela respondeu que achava que a Aids era "uma doença das pessoas da televisão".
Quando perguntadas se sabiam do risco e se haviam tentado evitá-lo, cerca de 25% declarou que sabia e não tentou evitar. Cinco delas assumiram que sabiam e aceitavam que seus parceiros tivessem outras mulheres e eram bastante indulgentes quanto a esta conduta, considerando o fato até mesmo necessário. Sugeriam em alguns momentos, por não terem desejo de terem relações sexuais com eles, que fossem dar "umas voltas".
As outras mulheres seriam como elas, "limpas e saudáveis", e algumas até mesmo moradoras da própria vizinhança.
Contradiziam-se, entretanto, quando perguntadas sobre doenças venéreas anteriores, consideradas por elas "doença de homem". Não sabiam explicar como haviam sido contaminadas ou, então, achavam que "mulher era assim mesmo, pegava estas coisas fácil". Um sentimento de fatalidade, de aceitação. Nos serviços de saúde nunca haviam sido alertadas para os riscos das DSTs.
Quanto à esta questão, vemos que as mulheres se recusam a tomar conhecimento da vida sexual de seus parceiros fora do lar, pois se julgam incapazes de mudar a situação, e, como já foi dito, abordar tal questão pode colocar em risco o casamento e, às vezes, a sobrevivência. A "virilidade" do homem, que deve chegar ao casamento munido de "experiência", é colocada em contraposição à fragilidade da mulher, mesmo em uma sociedade que já reconhece a necessidade da participação financeira desta dentro da família, embora estimule sua dependência emocional.
Persiste também o conceito de que "o corpo feminino tem o caráter doentio, sujo pela menstruação, modificações hormonais, parto, etc." (Xavier et al., 1989:210).
No geral, esta era a história destas mulheres. Entretanto, o companheirismo masculino também esteve presente. Ele foi relatado principalmente por uma das mulheres, uma usuária de drogas cujo parceiro, extremamente dedicado, não estava contaminado.
Tema 2: Conhecimento sobre a doença e percepção sobre risco
Quanto ao conhecimento sobre a doença, 18 (72%) se referiram à transmissão sexual por um vírus e a contaminação através do sangue, demonstrando conhecimento sobre a doença. Duas delas não sabiam o que tinham e desconheciam o que era a Aids e o HIV. A maioria das entrevistadas declarou nunca ter tido orientação através dos serviços de saúde sobre doenças relacionadas à transmissão sexual. Apenas duas haviam assistido palestras sobre Aids, afirmando que necessitavam de muito mais informações. Na ocasião, não haviam conseguido associar o risco do contágio com sua própria condição.
Perguntadas sobre seu conhecimento de outras doenças venéreas, só houve referência de "qual? ... a gonorréia?". Quanto ao fato de havê-las contraído, 30% delas ou suspeitaram, relataram algum tipo de corrimento ou mesmo tinham um diagnóstico dado pelo médico, mas não sabiam dizer o nome. Quando o médico orientou quanto ao tratamento do casal, elas haviam relatado aos maridos, que nunca aceitavam "encompridar aquele assunto...". "E eu fiquei super encabulada, aborrecida mesmo, achei que ele tinha pegado outra na rua, mas não tive coragem de perguntar, depois fui esquecendo, deixando para lá..."
Quanto às diferenças entre as doenças venéreas, como, por exemplo, as hepatites, à exceção de duas mulheres, a maioria se referiu aquelas que já surgiram, segundo elas, em sua comunidade, isto é, a hepatite transmitida através da contaminação da água por dejetos humanos. A maioria não sabe diferenciar uma doença venérea de outra.
Isto demonstra como os serviços de saúde estavam, na ocasião em que estas mulheres deles necessitaram, despreparados para lidar com a epidemia, já que, evidentemente, elas já relatavam condições que as colocavam em uma situação de vulnerabilidade ao HIV.
Em sua grande maioria, como dito acima, elas não haviam percebido estar sob risco, antes de serem contaminadas. A maior parte não se protegia; apenas duas relataram que conscientemente buscaram um método de prevenção através do uso de preservativos. Entre elas estava a que era toxicômana e cujo parceiro não se contaminou. É interessante citar que as mulheres que relataram saber dos riscos e conhecer a doença o sabiam porque já haviam tido contato com esta através de seus parceiros doentes, ou de um diagnóstico positivo para seus filhos, e não por haverem recebido informações através de órgãos de saúde ou meios de comunicação. Algumas só vieram a se submeter ao teste, vindo a saber de sua soropositividade, após a doença/morte do companheiro ou de seus bebês 20% delas tem/tiveram filhos sabidamente soropositivos. Situação como esta foi relatada pela paciente L. H. C. R. (caso 1), que só veio a tomar consciência de sua situação de portadora quando sua filha, já doente, foi diagnosticada. A partir daí, investigou-se a condição dos pais, que eram ambos positivos. Outras ainda só passaram a saber da doença através de seu próprio adoecimento.
Duas das entrevistadas declararam já terem tido vontade de fazer o teste para detecção dos anticorpos contra o HIV, como pode ser deduzido pela fala de uma delas: "Eu já tive até vontade de fazer um teste porque achava que meu marido tinha mulher na rua, ...eu nunca sabia o que ele fazia lá fora, e ele nunca dava satisfação..."
Caso 2 M. C. A. tem 65 anos, sempre foi dona de casa e há quinze anos tem um companheiro fixo. Descobriu ser portadora após o adoecimento do companheiro. Ele era HIV positivo e faleceu logo após seu diagnóstico. A paciente afirma que seu companheiro era heterossexual, mantendo muitos relacionamentos extraconjugais. M. C. A. também nunca se preocupou com os riscos que poderiam lhe acontecer, pois as mulheres com quem seu companheiro se relacionava eram "mulheres direitas como ela", e seu marido era um homem "forte e limpo".
Através da fala de M. C. A. (caso 2) sobre as possíveis parceiras de seu companheiro, como "mulheres direitas como ela", pode-se perceber a persistência do conceito moral e da dependência emocional e econômica das mulheres.
Assim, a Aids não era cogitada porque elas não seriam passíveis de contaminação. Duas fizeram referência velada a contato com "prostitutas", porém ele "nunca quis falar sobre o assunto e fez ameaças". Ela passou a desconhecer o fato, pois o que faria?
A negação parece ser o caminho escolhido pelas poucas mulheres que percebem estar sob algum risco. Aquelas que sabem que os companheiros são infiéis, os reconhecem como "mulherengos" e falam de sua "virilidade", "homem forte e limpo" (caso 2). A questão da bissexualidade nem uma vez foi mencionada. Uma colocou também "eu achava que se tivesse que acontecer comigo, ia acontecer, não tinha o que fazer", demonstrando que conhecia a situação, mas em seu contexto de vida, só restava a aceitação. Esta submissão à fatalidade parece ser uma constante nos relatos destas mulheres.
Tema 3: A representação da Aids
Algumas mulheres representavam a Aids como "doença de artistas da TV", por isso nunca tiveram receio de que pudesse vir a atingí-las, persistindo, portanto, o estereótipo da doença exótica e distante.
É o caso, por exemplo, de L. H. C. R. (caso 1), que já trabalhara como acompanhante de doente, conhecia a doença, sabia dos riscos, mas nunca pensou em evitá-los, porque, para ela, Aids era "a doença do Cazuza" e não atingia mulheres como ela, "pessoas comuns". Conclui-se que algumas destas mulheres representam a Aids "como doença do outro", o que impede a percepção do próprio risco.
Entretanto, mesmo entre aquelas que reconhecem a Aids como doença que poderia atingir indiscriminadamente qualquer pessoa, isto não significa que elas passaram a se perceber como estando sob risco.
A Aids como a "provação de Deus" surge na fala de D. O. F. (caso 3), discurso corroborado também por representantes da igreja católica, que ainda persiste.
Caso 3 D. O. F., 52 anos, 5 filhos, esteticista. Divorciada há 16 anos, acredita que contraiu a doença durante uma cirurgia plástica, onde recebeu transfusão sangüínea. D. O. F. é muito religiosa, é da Igreja Batista desde criança. Considera que a doença é "uma provação de Deus" e que Ele será misericordioso com ela e irá curá-la, como já o fez com muitas pessoas que ela conhece e que tinham Aids também.
Além da informação superficial, incompleta ou contraditória que estas mulheres expressaram, predominaram os mecanismos de negação, o que se explica, evidentemente, por estarem em uma situação que causou e ainda causa tanto medo.
Também é importante que se considere que as dificuldades para que as mulheres de baixa renda compreendam o que significa a Aids pode relacionar-se com a distância do discurso biomédico (tecnicista), o desconhecimento do próprio corpo e as representações de saúde/ doença prevalecentes nas camadas populares (religiosas, místicas, conformistas) (Simões Barbosa, 1993).
Se o corpo feminino quase sempre foi referido como potencialmente patológico, contaminado, fonte de doenças, é muito provável que o papel de "causador do contágio" seja imputado às próprias mulheres, como no caso dos relatos sobre as explicações/justificativas para as doenças venéreas prévias. Infelizmente, a fala sobre esta temática foi de tal forma velada, que será mais correto tratar esta inferência como suposição.
Entretanto, é evidente a necessidade de se considerar e associar informação, representações sobre a síndrome, percepção de risco e história de vida com seus possíveis mecanismos de proteção, para se caminhar em direção a programas de prevenção realmente conscientes.
Tema 4: O diagnóstico
Uma outra questão abordada foi o diagnóstico. É importante ressaltar que as entrevistadas eram mulheres, em sua grande maioria, em estágios avançados da doença, diagnosticadas em momentos em que Aids era sinônimo de desconhecimento, preconceito, negação e medo. E embora alguns destes elementos ainda estejam arraigados dentro do contexto sócio-cultural de nossa sociedade, já existem mecanismos de pressão social a combatê-los permanentemente. Quando estas entrevistas foram realizadas, estávamos no início da utilização da terapêutica com AZT. Outras drogas mais potentes, que estão hoje disponíveis, eram ainda desconhecidas.
A descoberta da condição de portadora ocorreu quase sempre em função do surgimento dos sintomas do companheiro ou do filho, por ocasião da morte de um deles ou, então, no momento da manifestação de seus próprios sintomas. Elas haviam visitado diversos serviços anteriormente, sem que o diagnóstico correto fosse feito. Além do mais, elas tinham que cuidar de seus companheiros e, em um dos casos, também de um filho HIV positivo, o que dificultava a busca de cuidados para si própria. O pior prognóstico para as mulheres já foi relatado por diferentes autores (O'Leary & Cheney, 1993; Galvão & Parker, 1996; Lopes, 1997). Entretanto, segundo alguns deles, não existem diferenças biológicas, nem mesmo relacionadas à reprodução, que justifiquem tais diferenças, o que fortalece a hipótese do diagnóstico mais tardio e/ou ausência de assistência médica adequada.
As entrevistadas, relataram que ao receber o diagnóstico ficaram deprimidas ou desoladas; "desmiolada", como expressou uma delas. Aquelas cujos companheiros já apresentavam a doença, haviam entendido imediatamente seu significado. Elas já enfrentavam momentos extremamente penosos cuidando do companheiro. Portanto, receberam a doença com tristeza e apatia. A este quadro, em alguns casos, se somava o impacto pela forma grosseira e desumana da informação sobre o diagnóstico, como foi o caso de A. V. G. A. (caso 4), que escutou a seguinte frase: "Você tem Aids, não sabia? Agora ela vai explodir, você vai morrer e pronto", ou ainda de O. C. A., que recebeu a informação por telegrama.
Caso 4 A. V. G. A. é uma paciente de 33 anos, doméstica, sabidamente portadora do vírus há quatro anos. Um dos momentos de sua entrevista que nos choca é quando ela conta a forma como lhe foi dado o diagnóstico. Ela diz ter ouvido "estas palavras de sua médica": "Você tem Aids, não sabia? Agora ela vai explodir, você vai morrer e pronto". Foi casada por um ano e meio, estando separada há onze anos. Durante este período teve quatro parceiros, sendo que o último era HIV positivo. Ela relata nunca ter usado preservativos, pois acha que estes são feitos para evitar filhos. Quando indagada sobre a Aids, ela nos responde que considerava a doença como sendo uma doença de artista e que nunca chegaria a atingí-la. No momento não tem mais vida sexual ativa, se afastou do emprego, pois sofria muitos preconceitos no condomínio do prédio onde trabalhava, e estava muito nervosa, descontando em todos a decepção e a tristeza que sentia.
Tema 5: Preconceito e suporte social
Quanto a preconceitos em relação ao fato de terem Aids, elas não conseguiam interpretar seu significado, tal sua dependência e submissão. Entretanto, como relata A. V. G. A. (caso 4), "se afastou do emprego, pois sofria muitos preconceitos no condomínio do prédio onde trabalhava, e estava muito nervosa, descontando em todos a decepção e a tristeza que sentia".
No momento das entrevistas, elas já se encontravam sob completa dependência familiar, cujo apoio estava presente através da mãe, irmã, tia ou mesmo vizinha. As maiores queixas se davam em relação à carência financeira, que as privava de quase tudo, principalmente remédios e alimentação adequada, o que tornava a hospitalização praticamente sinônimo de sobrevivência.
Apesar de tudo, com exceção de V. R. B., de 34 anos, que relatou querer morrer o quanto antes, pois não suportava mais a discriminação, todas verbalizaram querer viver e aproveitar o tempo que tinham. Entretanto, sua imagem traduzia outro tipo de sentimento mulheres tristes, apagadas, tentando se esconder do mundo, apáticas, desmotivadas, envergonhadas de sua condição e com medo do futuro, principalmente da solidão. Sua atitude era de marginalização, não procurando ajuda de terapeutas, grupos de apoio e mesmo de familiares.
M. C. S., de 56 anos, por exemplo, só aceitou ir morar com sua filha caso tivesse um quarto isolado para ela, com medo de contaminar alguém, o que demonstra a informação ou percepção distorcida sobre as formas de transmissão. Entretanto, as mulheres, cujos parceiros haviam adoecido antes delas, haviam dado apoio incondicional a eles, que ia até sua morte, mesmo quando haviam "se sentido enganadas".
Geralmente, estas mulheres haviam abandonam o emprego ou por falta de apoio para sua reabilitação, ou por excluírem a si próprias. Após o diagnóstico, apenas 30% das mulheres que participavam do mercado de trabalho retornaram a ele. Além disto, se limitaram a revelar seu diagnóstico apenas à família ou a alguns membros desta. M. C. S. diz não ter contado a ninguém, até que não fosse mais possível esconder, pois tudo o que ela queria era não ver ninguém sofrendo por ela. Isto, com toda certeza, determinou a perda de um tempo extremamente importante em termos de terapêutica e de preservação de sua vida.
O. C. A., 36 anos, por outro lado, não contou ao seu marido por medo de perdê-lo. Disse a ele que a doença que tinha era leucemia. Apenas a filha e a mãe conhecem o verdadeiro diagnóstico. Já A. V. G. A. (caso 4) tentou contar à família, mas percebeu que eles não queriam saber, pareciam querer ignorar a realidade. Outras experimentaram situações constrangedoras, atitudes impregnadas de preconceitos, ao revelarem o diagnóstico, o que as fez buscarem o isolamento.
Tema 6: Sexo seguro e negociação sexual
As entrevistadas, em sua maioria (72%), associam a segurança no sexo à prevenção de doenças. Entretanto, o uso de preservativos como instrumento para prevenção das doenças sexualmente transmissíveis é desconhecido para a maioria destas mulheres. Apenas 10% referiu o uso do condom e, mesmo assim, após o conhecimento da doença.
A única exceção relatada foi a de M. N. P. R. (caso 5), que, sendo toxicômana, sempre se preocupou em não contaminar o parceiro. Segundo ela, "toda minha família, inclusive meu marido, sempre se mobilizou para que eu superasse o vício, porém, todas as tentativas foram sem sucesso". Este foi o único caso em que o poder de partilhar sobre a proteção do parceiro e utilizar adequadamente o preservativo ficou evidenciado. A proteção familiar e o sentimento de preservação do parceiro está presente. Infelizmente, no primeiro caso não foi suficiente.
Caso 5 M. N. P. R. é uma mulher de 47 anos, nunca trabalhou fora de casa e é toxicômana (drogas intravenosas) desde os dezessete anos. A paciente é casada há treze anos. Ela relata que toda sua família, inclusive o marido, sempre se mobilizou para que ela superasse o vício, porém, todas as tentativas foram sem sucesso.
Por conhecer os riscos, a paciente realizava testes sorológicos para a detecção do HIV a cada seis meses, até que, há cinco anos, deu resultado positivo. Seu companheiro não está infectado, pois ambos eram conscientes dos riscos que corriam e sempre usaram preservativos.
Para a maioria, a camisinha era apenas um meio de evitar a gravidez. Não gostavam do método por ser "incômodo e nem sempre conveniente", como sugere M. F. G., 37 anos, "...tirar o prazer e os homens detestarem".
Quando questionadas mais detalhadamente sobre o motivo porque elas não gostavam deste método, respondiam "porque o parceiro não gostava". Além do mais, cabia ao homem decidir sobre sua utilização, "afinal, era coisa de homem".
O preservativo é ainda um sinônimo de desconfiança no relacionamento, e para se demonstrar que uma relação é séria, ou então que existe amor na relação, não se deve usá-lo, pois isto seria o mesmo que acusar o parceiro de infidelidade, como foi observado em alguns relatos.
As poucas que desconfiavam estar sob risco relatavam desinformação ou completa impotência quanto à negociação do uso do preservativo. Mesmo quando estas mulheres tinham consciência da necessidade de práticas de saúde mais sensatas, elas não conseguiam colocá-las em execução, nem tirar proveito de seu esclarecimento. O nível de comunicação sobre sexualidade e sua prática se resumem a papéis definidos socialmente e que devem ser aceitos sem questionamento, sendo, portanto, nunca discutidos e definidos individualmente.
Quanto à questão da bissexualidade, é reconhecido o preconceito e a discriminação que cercam a homossexualidade, o que dificulta a prática do sexo seguro dentro do casamento.
Dependência emocional, além de econômica, determinando comportamentos submissos estavam presentes, mesmo nas mulheres com níveis de escolaridade mais elevados ou ocupações mais bem remuneradas, como pode ser interpretado pela fala de V. H. R., 30 anos, "mas, ...ele às vezes é tão carinhoso".
Conclusões
A vulnerabilidade das mulheres diante do HIV, que é evidenciado pelo atual perfil de casos da epidemia, traz a baila também a fragilidade dos mecanismos para sua proteção, causada pelas enormes limitações das mulheres no espaço de suas relações pessoais, sua inferioridade econômica e social.
Questões estas tão bem traduzidas pelo saudoso Jonathan Mann (do Programa Global de Aids da OMS): "É necessário que o diálogo promova a ampliação da consciência e da discussão sobre os papéis de gênero, sobre as dimensões sociais e econômicas do que significa a insistência no uso do preservativo, ou de simplesmente dizer 'não' " (Mann, 1992, apud O'Leary & Cheney, 1993).
Nesta pesquisa, as mulheres entrevistadas eram majoritariamente pobres, desinformadas e sem poder de barganha, o que, de alguma maneira, aproxima o observado do conceito já amplamente divulgado da "feminização da pobreza" (O'Leary & Cheney, 1993).
Percepção de risco e práticas de prevenção não fizeram parte da vida destas mulheres nos períodos anteriores à infecção pelo HIV. Mesmo para as que tinham recebido algum tipo de informação sobre a epidemia ou levantavam dúvidas sobre as práticas sexuais ou utilização de drogas por seus companheiros, a percepção sobre a transmissão, a partir do imaginário construído sobre a epidemia como doença de artista, gay ou do "outro", distorcia a avaliação correta sobre a sua situação de risco.
Os cuidados com a saúde não são uma rotina para essas mulheres, mas uma questão de ocasião ou oportunidade. A obtenção de assistência médica significou para inúmeras não serem abandonadas à sua própria sorte, o que significaria, provavelmente, a morte precoce. Uma parte das mulheres estudadas já havia passado pela experiência de acompanhar seu parceiro com Aids até perdê-lo e tinham quase sempre muito medo de serem abandonadas. A assistência recebida vinha da família ou amigos que também eram, geralmente, muito carentes.
Não são mulheres organizadas, não tem acesso à informação ou às discussões sobre seus problemas. A disseminação da Aids nas camadas mais pobres da população já era uma realidade quando se analisavam os casos entre homossexuais. O estereótipo do gay de nível superior, com acesso a informações e organizado, não correspondeu à evolução da epidemia. A "pauperização" da Aids acompanhou as mudanças no padrão de transmissão sexual.
Estes elementos levam à conclusão de que a epidemia de Aids, além de estar reconhecidamente ampliando rapidamente seu potencial de disseminação através do padrão de transmissão heterossexual, não apresenta mecanismos visíveis de controle.
Portanto, há que se criar tanto no nível do poder público quanto no da sociedade civil estratégias preventivas/educativas voltadas para esse segmento da população feminina, levando em conta suas especificidades de gênero e necessidades.
Devem fazer parte destas estratégias:
1) Priorizar os programas de prevenção para as mulheres em idade reprodutiva, especialmente para as pertencentes aos segmentos de baixa renda da população.
2) Levar em consideração as questões de gênero, visando fortalecer as mulheres em seu poder de negociação, em especial, o sexual.
3) Incorporar a questão DST/Aids ao Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM).
4) Desenvolver projetos que apontem mecanismos de envolvimento dos homens com as responsabilidades sobre a saúde reprodutiva, aí incluída a questão DST/Aids.
5) Promover a investigação clínico-terapêutica e de meios de prevenção dirigidos às mulheres (preservativo feminino, desenvolvimentos de novos microbicidas, etc.)
Agradecimentos
Os autores agradecem à Fundação para o Apoio e Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e à Fundação Universitária José Bonifácio (FUJB) pelo apoio dado à pesquisa. Agradecem também às alunas Heloísa Helena Nunes Silveira e Ana Cristina Maia Souza do Programa de Iniciação Científica (PINC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro pela sua participação.
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