ARTIGO ARTICLE

 

Suely Ferreira Deslandes 1
Eduardo Alves Mendonça 1

Waleska Teixeira Caiaffa 2

Denise Doneda 3


As concepções de risco e de prevenção segundo a ótica dos usuários de drogas injetáveis

 

The concepts of risk and prevention from the perspective of injecting drug users

1 Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Rui Barbosa 716, 4o andar, Rio de Janeiro, RJ 22250-020, Brasil. desland@iff.fiocruz.br eamendonca@uol.com.br
2
Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Alfredo Balena 190, 10o andar, Belo Horizonte, MG 30130-100, Brasil.
wcaiaffa@medicina.ufmg.br
3
Coordenação Nacional de DST/AIDS, Ministério da Saúde. Esplanada dos Ministérios, bloco G, sobreloja, Brasília, DF 70058-900, Brasil.
doneda@aids.gov.br

 

Abstract This paper provides an exploratory analysis, using a qualitative approach, to perceptions by injecting drug users (IDUs) on: (a) risks associated with injecting practices; (b) risks of HIV/AIDS; and (c) prevention of HIV/AIDS. The study was conducted in five harm reduction programs in Brazil (the AjUDE-Brasil Project). Forty semi-structured interviews were carried out. The study focuses on the concept of "risk". IDUs were mainly concerned over becoming ill and exposure to overdose and violence. IDUs dealt with individual problems in very specific ways in order to minimize them. They admitted that they were well informed about HIV/AIDS but lacked knowledge on reinfection and other bloodborne diseases. IDUs intended to follow guidelines established by health campaigns, but their addiction usually made it difficult. IDUs also suggested alternative harm reduction strategies and displayed a peculiar reading of concepts concerning sharing their injecting paraphernalia.
Key words
HIV; Adquired Immunodeficiency Syndrome; Street Drugs

 

Resumo O presente estudo objetivou analisar, em caráter exploratório e segundo uma abordagem qualitativa, a ótica dos usuários de drogas injetáveis (UDI) sobre: (a) riscos associados à prática injetável; (b) riscos frente ao HIV/AIDS; (c) prevenção diante do HIV/AIDS. O estudo foi feito em cinco cidades que possuíam o Projeto de Redução de Danos (Projeto AjUDE-Brasil). Foram realizadas quarenta entrevistas semi-estruturadas. O conceito de "risco" foi a categoria chave deste trabalho. Os UDI apontam que os principais riscos que correm são os de "pegar doenças", a "overdose" e a violência. Articulam estratégias para lidar com esses riscos ou minimizá-los. Revelam alto nível de informação geral sobre HIV/AIDS, mas pouco conhecimento sobre reinfecção e outras doenças transmitidas pelo sangue. Os UDI tentam seguir as recomendações das campanhas de saúde; porém, enfrentam as dificuldades impostas pelas práticas de adição. Sugerem estratégias alternativas e demonstram uma leitura particular do conceito de "compartilhamento".
Palavras-chave HIV; Sindrome de Imunodeficiência Adquirida; Drogas Ilícitas

 

 

Introdução

 

No Brasil, dos 190.949 casos de AIDS notificados ao Ministério da Saúde (MS) no período de 1980 a 3 de junho 2000, 18,6% foram entre usuários de drogas injetáveis. A transmissão por intermédio do contato com o sangue foi responsável por 39.740 casos dos quais 89,6% estão relacionados ao uso de injetáveis (CNDST/ AIDS, 2000). Se tomarmos os últimos anos, com a expressiva melhoria da qualidade dos bancos de sangue do país, podemos notar a inversão das subcategorias. Em 1984, a transmissão sangüínea do HIV em hemofílicos e em indivíduos que receberam transfusão de sangue e hemoderivados correspondia a 62% dos casos de AIDS por esse tipo de transmissão e o uso compartilhado de injetáveis a 37%. Em 1999/2000, o uso compartilhado de injetáveis constituía 99% das ocorrências por transmissão sangüínea (Dhalia et al., 2000). Tais dados indicam a necessidade de fortalecer e avaliar as iniciativas de prevenção direcionadas a esses sujeitos.

Os estudos qualitativos sobre o conjunto de crenças, valores, estilos de vida e visões de mundo dos usuários de drogas injetáveis (UDI) têm sido apontados, mundialmente, como fundamentais para melhor compreender estes grupos e, conseqüentemente, possuem um caráter estratégico para a prevenção. Contudo, no Brasil, ainda são poucas as iniciativas neste sentido (Bastos, 1993).

O presente estudo objetivou conhecer, em caráter exploratório e segundo uma abordagem qualitativa, a compreensão dos usuários de drogas injetáveis sobre: (a) riscos associados à prática injetável; (b) riscos frente ao HIV/ AIDS; (c) prevenção para HIV/AIDS.

 

 

O conceito de "risco" segundo uma perspectiva etnográfica

 

Hayes (1992) alerta que o conceito de risco é um campo acadêmico que não tem fronteiras definidas, sendo comuns as lacunas de coerência conceitual nas distintas produções sobre a temática. Como observa o autor, a linguagem utilizada para definir tal conceito precisa ser hermeneuticamente analisada.

Introduzido como noção no século XVII, o risco podia designar, numa lógica de jogo, a probabilidade de um evento ocorrer, combinado à magnitude das perdas e ganhos que isso poderia acarretar. Atualmente, o conceito de risco é fortemente associado a resultados negativos. Assim, essa conotação cria um campo problemático para a noção de "correr risco", excluindo qualquer reconhecimento dos benefícios (reais ou percebidos).

Outro problema detectado por vários autores é a definição de risco centrada na "escolha individual". Como Hayes analisa, o modelo de prevenção declarado no American Journal of Health Promotion (1986, apud Hayes, 1992) é um exemplo emblemático, definindo a promoção em saúde como a ciência e a arte de ajudar pessoas a modificar seu estilo de vida e mudar em direção a um estado ótimo de saúde.

O "paradigma individual" se tornou hegemônico na pesquisa e em campanhas sobre comportamentos de risco. A racionalidade individual é a unidade sobre a qual se construiu toda uma trajetória de estudos e de orientação para a prevenção. Segundo esta lógica, o indivíduo devidamente informado (ênfase no aspecto cognitivo) será capaz de escolher, entre muitas opções de ações, aquela que não lhe trará danos (ênfase na teoria da escolha racional).

As influências dessa lógica racionalista, cuja inspiração iluminista se mostra evidente, autoriza a denominar de irracional (ou irresponsável) a todos os "desvios" entre o "conhecer" e o "bem agir". A ação designada por Weber (1992) como "ação racional relativa a fins" seria o tipo ideal deste enfoque : "(...) Age de modo racional com relação a fins aquele que orienta a sua ação conforme o fim, meios e conseqüências implicadas nela e nisso avalia racionalmente os meios relativamente aos fins, os fins com relação às conseqüências implicadas e os diferentes fins possíveis entre si" (Weber, 1992:418).

Almeida Filho (2000) explora o conceito de risco nos campos discursivos do senso comum, da epidemiologia e da clínica. Para o autor, na esfera cotidiana o risco se apresenta como experiência pessoal e socialmente compartilhada. A epidemiologia toma o risco como seu conceito operacional fundamental; todavia, situa-o para além do sujeito, localizando-o no âmbito das coletividades humanas. Nesse campo, polissemias podem ser observadas quando se lê o risco como possibilidade/probabilidade de perigo/ameaça à saúde/integridade dos sujeitos no tempo e no espaço. A clínica vai operar o conceito de risco como instrumento para a redução de incertezas na tomada de decisões, visando minimizar os elementos subjetivos do "raciocínio clínico". Nessa migração do conceito, a clínica (e em boa medida a epidemiologia clínica) aplicará o risco ao individual. Nesse sentido, pressupõe-se que os membros individuais apresentariam a média dos atributos de uma dada população (para risco e fatores de risco). Almeida Filho (2000) observa que pertencer a um "grupo de risco" teria o mesmo significado que um sinal clínico, aplicando-se então "um conceito sobre um corpo ou sobre um sujeito". Assim, cria-se uma "terapêutica de riscos", objetivando a prevenção dos riscos individuais. Essas amplas inconsistências, conformadas nos discursos científicos, influenciariam sobremaneira o imaginário social.

Castiel (1996) também afirma que a epidemiologia aderiu à teoria de escolha racional, ou seja, diante de vários cursos de ação, o indivíduo tomaria aquele que lhe traria mais vantagens. A grosso modo, o doente seria alguém que não administrou bem os riscos existentes. "O conhecimento, ou melhor, a consciência do risco, é vista como elemento crucial em qualquer política dirigida à AIDS. Pois, vale repetir, em tese: uma vez conhecendo as formas de transmissão do HIV, trata-se de uma questão de controle racional evitar ser atingido pelo vírus. A adesão a este ideário serve, além do mais, para distinguir os indivíduos considerados responsáveis dos não responsáveis" (Crawford, apud Castiel, 1996:87).

No campo da AIDS, "risco" e "comportamento de risco" são conceitos-chave. A transmissão do HIV numa população não se dá aleatoriamente, mas está sujeita às variações dos modos de interação e crenças de diferentes grupos populacionais. Como afirma Rhodes (1997), enquanto há poucos comportamentos capazes de transmitir o HIV, existem, em contrapartida, diversos fatores que determinam como e se estes comportamentos de risco ocorrerão.

O que muitos autores (Bloor et al., 1993; Connors, 1992; Rhodes & Quirk, 1998) defendem é que a vivência do risco e mesmo a sua percepção não se restringem ao universo individual. Ao contrário, o comportamento de risco é percebido e negociado na rede de relações sociais. Os comportamentos de risco são, em última instância, fruto das interações sociais e é neste campo que as estratégias de prevenção deveriam atuar.

A importância do conhecimento qualitativo das redes de relações e vivências que favoreceriam "comportamentos de risco" é reconhecida na última década no meio científico e para as políticas de prevenção (McCoy et al., 1997; Power et al., 1996).

O "conhecimento em profundidade" ou as "descrições densas" dos modos de viver e da visão de mundo de grupos sociais ou mesmo de segmentos da população (jovens, mulheres) passam a ser considerados importantes tanto para a análise dos modos de disseminação da epidemia da AIDS quanto para a pesquisa epidemiológica.

As Ciências Sociais têm, desde os anos 70, com os estudos pioneiros de Agar (1973), produzido pesquisas de base qualitativa sobre o universo da drogadição e drogadição injetável. Com a emergência da epidemia da AIDS, o enfoque passa a privilegiar a relação dos UDI e os variados aspectos que permeiam as "redes de compartilhamento", sejam as "redes sociais", sejam as "redes de uso", contribuindo de forma valiosa para a criação de iniciativas de vanguarda na saúde pública, como, por exemplo, os diferentes Projetos de Redução de Danos (PRD) que hoje atuam em vários países.

Contudo, como denunciam Schiller et al. (1994), a análise qualitativa dos modos de vida e dos valores dos UDI não pode se restringir a uma reificação que os retrate completamente apartados da sociedade. A experiência acumulada, no período inicial da epidemia, ensina que a identificação cultural dos então denominados "grupos de risco" (homossexuais, profissionais do sexo e UDI) serviu mais para delimitá-los como subculturas "exóticas". Faz-se necessário que se reafirme a perspectiva etnográfica que identifique as particularidades da vivência social da drogadição injetável (o seu ethos) e que se articule a interpretação aos valores, preconceitos e interações vigentes na sociedade.

 

 

Metodologia

 

A metodologia de base deste estudo foi a análise qualitativa, conforme o escopo da antropologia médica. Algumas balizas nortearam o trabalho: (a) a organização dos sujeitos e o potencial explicativo sobre os fatos que constituem o ambiente físico e social (Alves & Rabelo, 1995); (b) o distanciamento e reapropriações do saber popular em relação ao saber científico (Adam & Herzlich, 2001); (c) a presença de uma cultura própria e seus modelos de pensamento em cada contexto social (Carrara, 1994).

Este estudo possui, no entanto, um caráter ainda exploratório (dada à escassez de estudos qualitativos brasileiros sobre o universo dos UDI).

Os limites da análise referem-se também ao próprio desenho da metodologia qualitativa e à prática científica das ciências sociais. Por exemplo: (a) elege um determinado escopo teórico como marco orientador, o que conduz às análises que valorizam determinados aspectos da realidade em detrimento de outros (limites teóricos); (b) impossibilita uma generalização direta ao universo macro, sendo necessárias mediações e comparações; (c) atribui uma demarcada relevância aos processos interpretativos na relação pesquisador/sujeitos pesquisados, o que exige uma contínua vigilância epistemológica; (d) torna inadequada a predição do comportamento futuro da realidade estudada com base na simples análise de variáveis, uma vez que diz respeito à ação histórica dos sujeitos, permitindo apenas a avaliação de prováveis cenários de permanência e/ou transformação/mudança destas relações (Deslauriers, 1987; Patton, 1988).

O universo desta pesquisa compreendeu os UDI atendidos pelos seguintes projetos: PRD Porto Alegre; PRD Itajaí; PRD São Paulo; PRD São José do Rio Preto; PRD Sorocaba, integrantes do Projeto AjUDE-Brasil, 1998 (Caiaffa, 2001). As idades dos usuários entrevistados variaram de 18 a 45 anos. O tempo de uso de injetável entre estes indivíduos oscilou de 2 a 30 anos. Dos entrevistados, 11 eram homens e nove mulheres. Para cada entrevistado foram aplicadas duas sessões de entrevistas (1a e 2a fases), totalizando quarenta entrevistas.

As entrevistas semi-estruturadas foram aplicadas, durante o ano de 1998, pelos técnicos e/ou redutores de cada PRD, devidamente treinados. Os entrevistados já conheciam os entrevistadores (seja por serem clientes do PRD, seja por conviverem na mesma rede de sociabilidade), o que facilitou o trabalho, evitando assim muitos problemas na "entrada em campo".

Os entrevistados foram identificados simplesmente pelo sexo e cidade de origem. Assim teremos as seguintes identificações: São Paulo (SP), Sorocaba (SO), São José do Rio Preto (SJ), Porto Alegre (POA), Itajaí (IT). Dessa forma, "SO masculino" designa uma entrevista feita em Sorocaba com um usuário do sexo masculino.

As entrevistas foram organizadas e classificadas de acordo com eixos temáticos definidos nos instrumentos. Todo o material discursivo foi codificado e trabalhado consoante a valorização dos núcleos de sentido, seguindo as técnicas de abordagem descritas por Bardin (1979). As etapas de "leitura flutuante"; definição de unidades de registro e recorte; definição de núcleos de sentido; identificação das categorias empíricas; elaboração de hipóteses inferenciais e análise interpretativa compuseram o processo de análise.

Ao final da análise, o relatório parcial foi apresentado às equipes dos PRD. Este processo possibilitou incorporar comentários, críticas e sugestões dos indivíduos que estão refletindo teórica e praticamente a questão do UDI, contribuindo para que os "pares competentes" discutissem a análise.

A pesquisa obedeceu às orientações e normativas éticas da Resolução 196/96 (CNS, 1996), tendo sido aprovada pelo comitê de ética da Universidade Federal de Minas Gerais.

 

 

Resultados/discussão

 

  A percepção de risco e sua administração pelos UDI

 

"A eternidade não existe. Não existe nada eterno. Só em estória de quadrinhos. Eterno só a cidade de He-Man e She-Rá. Cidade de Etérnia" (IT feminino).

Como se revela na fala da entrevistada, correr riscos faz parte da vida e de sua finitude. O conceito de risco também distingue as fronteiras e demarcações das experiências culturais de indivíduos e grupos. Estudo de Connors (1992) discute, por exemplo, como determinadas práticas, reconhecidas pelo saber científico como de alto risco para contrair HIV, podem ser interpretadas, culturalmente, como capazes de reduzir outros riscos. Em seu estudo, compartilhar seringas era entendido pelos UDI como capaz de reduzir os riscos de ser preso por portar seringas, de estar sozinho e sofrer uma overdose e mesmo de ser rejeitado pelos parceiros.

Discutir a percepção de risco dos usuários de drogas injetáveis é trazer à tona um campo complexo de interpretações que articula e mistura tanto suas vivências cotidianas como os discursos dirigidos a este grupo. Por um lado, os riscos que expressam suas vivências são relatos ricos e recheados de exemplos vivenciados, por outro lado, os riscos identificados pela incorporação de determinados discursos (especialmente das "falas de saúde") revelam imprecisão de informação e incerteza sobre seu conteúdo. As campanhas de prevenção ao HIV pelo uso de injetáveis conformam um discurso que é reinterpretado e assimilado pelos UDI na sua representação de riscos. Muitas vezes, tais informações e orientações são reproduzidas com lacunas de compreensão.

Entretanto, uma vez perguntados se esses riscos poderiam ser reduzidos pelo próprio usuário, a absoluta maioria enunciou alguma estratégia de enfrentá-los. Naturalmente, não significa que essas estratégias de redução de risco sejam efetivamente praticadas ou mesmo eficazes. Contudo, havia aquelas, especialmente voltadas para o risco da violência, que realmente pareciam ser executadas pelo usuário. Como qualquer indivíduo numa determinada relação social, o UDI traça racionalmente (e culturalmente) escolhas, estratégias e táticas de sobrevivência pessoal e cultural.

A seguir apresentamos os principais riscos identificados pelos UDI e as maneiras que esses sujeitos buscam administrá-los.

a)"Pegar uma doença" foi um risco freqüentemente citado pelo grupo. As "doenças" encabeçaram a lista de riscos, especialmente a "AIDS", as "outras doenças" e as "doenças do pulmão" (pneumonia e tuberculose). Há que se ressalvar a ocorrência inevitável de uma interação entre entrevistado e entrevistador (alguém identificado como de um projeto de saúde, particularmente de prevenção às DST/ AIDS), o que sempre proporciona uma certa influência no que "deve ser respondido" ou pelo menos mencionado (Becker, 1993).

Se a AIDS foi citada regularmente, as outras doenças transmissíveis pelo sangue constituíram uma incógnita para os entrevistados, que revelaram muita insegurança nesse tipo de identificação. Alguns relatos arriscaram nomear prováveis doenças, evidenciando confusão com outros mecanismos de transmissão e contágio. Apenas um depoimento citou a hepatite como doença possível de ser transmitida pelo uso compartilhado de seringas. "É a AIDS. São muitas coisas que podem nem ser AIDS, pode até ser um sangue ruim, como pode ter diabetes, que é transmissível. Muitas outras coisas aí que vem através do sangue que a gente nem sabe" (POA masculino).

Muito presente neste imaginário do "pegar doenças" é o perigo que constitui o uso de águas reconhecidas como impróprias para a diluição da droga. A "água contaminada" possui uma visibilidade e concretude que afeta o UDI numa dimensão mais imediata que a "abstração" do universo microscópico da "bactéria" e do "vírus". A utilização de águas de torneiras, rios, poças e até esgotos foram citadas como perigos para a saúde do usuário.

Num sentido mais difuso, ligado ao imaginário da "fraqueza corporal", a própria prática de uso de injetáveis (ou mediada pelas suas "conseqüências", como falta de apetite, não dormir bem etc.) tornaria os usuários debilitados e sujeitos a "pegarem doenças".

Ao apontar como reduzir os riscos de "pegar doenças", quase todos os relatos centraram-se no tema "não compartilhar seringas", revelando o domínio dos conteúdos das campanhas de prevenção às DST/AIDS. As táticas preventivas iam desde "cada um usar a sua seringa" até as mais elaboradas como queimar as seringas usadas para evitar "flagrantes" e afastar a tentação de reutilizá-las.

b) "Overdose". Esse risco foi diretamente associado à qualidade e pureza da droga e não a uma suposta quantidade excessiva ou falta de controle em seu uso. A droga consumida possui um determinado padrão de impureza ("batizada") que é reconhecido e manejado pelo usuário, configurando uma quantidade considerada certa a ser consumida e capaz de ser eficiente para dar a "viagem". O perigo estaria em utilizar, por desconhecimento, a mesma medida para uma remessa de droga mais "pura". Este debate revela o conhecimento adquirido pelos usuários mais experientes na medição e controle da quantidade ingerida e, em contrapartida, na falta de controle sobre a qualidade da droga consumida, fator de difícil manejo, já que depende da lógica de mercado do narcotráfico.

"Tu nunca consegue pegar um produto puro, né? Agora se tu pegar um produto puro, a chance de tu morrer é de 80%" (IT masculino).

Reduzir os riscos de uma overdose é visto pelo grupo como difícil, pois não é possível saber a variação da qualidade da droga. Alguns depoimentos mencionaram que quem injeta sozinho corre o perigo de sofrer uma overdose porque não teria ninguém para ajudar. Alguns acham que este risco é pequeno, visto que, se os traficantes deixassem de "batizar" a droga, os lucros diminuiriam. Um dos depoimentos chegou a frisar que o usuário precisa estabelecer um vínculo com o traficante para estar informado sobre a qualidade e os tipos de misturas feitas na droga.

c) "Riscos da violência". O terceiro núcleo de sentido se remete à violência, seja de policiais, seja entre usuários. Nestes relatos, ricos de exemplos e de experiências, fica patente o cotidiano de violência sofrido. Como diz uma entrevistada, "a droga é contra a sociedade e a sociedade é contra a droga", evidenciando as metáforas sociais de "guerra contra as drogas" e os mecanismos repressivos violentamente empregados.

A agressão policial foi constantemente citada nas entrevistas, mas em alguns dos relatos masculinos evidenciou-se uma possibilidade de negociar o "flagrante" mediante propinas.

"A polícia é vendida. Esse mês que passou, em março, eu fui pego também. Eu não subornei eles, eu tinha 50 reais na carteira, eles ficaram com os meus 50 reais e não me levaram preso" (IT masculino).

A disputa pela distribuição da dose, a prioridade na fila de uso e os efeitos persecutórios são fatores que podem gerar agressões de extrema gravidade entre os usuários.

"Já aconteceu isso comigo, de eu achar que o cara estava querendo tomar mais do que eu e eu que tinha colocado mais dinheiro para comprar para tomar o baque e ele pegar e engatilhar o revólver e dar um tiro em mim. Eu levei um tiro e fiquei internada, em coma durante cinco dias(...)" (SO feminino).

Os riscos da violência poderiam ser reduzidos, conforme os relatos, por alguns "comportamentos de evitação": evitar chamar a atenção na comunidade sobre sua prática de drogadição, não ofendendo a moral pública (o que poderia acarretar em denúncias à polícia); evitar locais visíveis, movimentados ou públicos, resguardando-se de possíveis batidas policiais; e saber distinguir até onde confiar e como conviver com o traficante.

Percebeu-se, assim como no estudo de Connors (1992), uma avaliação hierarquizada dos riscos que um usuário de injetável correria. A ordem de prioridades é, ao mesmo tempo, singular, pois evidencia o que pode afetar (ou já afetou) este indivíduo e também grupal (riscos já vividos ou identificados como potenciais). Isso também revela um quadro de relevâncias destes usuários que valoriza determinados riscos em relação a outros (Deslandes & Mendonça, 2001).

A lógica de estabelecer uma hierarquia não correspondeu, obrigatoriamente, a uma gradação entre maior ou menor risco em si. Um risco de maior gravidade poderia ser visto como menor, talvez mediado por um cálculo de menor probabilidade de sua ocorrência.

"(Após relatar que se jogou de um carro em movimento para fugir de um traficante, tendo que ficar um bom tempo agachada atrás de um muro). Entrevistador: E você ainda diz que não tinha risco? Mas isso aí é coisinha assim" (IT feminino).

Embora prevalecesse uma lógica hierárquica, esta não substituiu por completo uma "visão complexa", capaz de apontar os muitos riscos relacionados ao consumo de drogas injetáveis em nossa sociedade, como sintetizou o entrevistado (IT masculino): "(Riscos?) Ih, mas são inúmeros. Tanto com a tua saúde quanto socialmente (...) Esses riscos biológicos e sociais..."

 

 

A percepção de risco para contrair HIV

 

A condição de usuário de drogas injetáveis demarca uma percepção que valoriza, em quase todos os depoimentos, o compartilhamento de seringas como o principal risco para contrair o HIV. Provavelmente essa ênfase não se daria entre outros grupos (não UDI). Os riscos de transmissão sexual foram também enunciados. Ambos os riscos foram citados na absoluta maioria dos relatos. Este grupo também demonstrou um conhecimento mais específico dos modos de transmissão. A maioria dos riscos mencionados era devidamente adjetivada como compartilhar "seringas contaminadas" e "transar sem preservativo".

Porém, a transmissão pela "seringa contaminada" é considerada pelos entrevistados como mais "rápida" que a transmissão sexual, pois o vírus "entraria direto" no sangue:

"Às vezes, no sexo, até na transa, na hora não chega a se contaminar de uma vez só. Na seringa não tem como escapar porque vai direto ali" (POA feminino).

A própria experiência pessoal de contágio pode funcionar como exemplo a ser citado, criando uma certa hierarquia como o "mais arriscado". Por exemplo, a transmissão sexual foi percebida como "tão arriscada quanto" o compartilhamento de seringas quando o parceiro sexual foi o elo de transmissão.

Entre os entrevistados não foi mencionada a preocupação com uma nova infecção pelo HIV. Aqueles usuários já portadores acreditam que, para si, o cuidado seria inútil e os benefícios em adotar práticas preventivas seriam somente para seus parceiros.

"Que eu já tenho o troço, eu sei que tenho, então eu não me preocupo mais em pegar, mas em passar para as pessoas" (POA masculino).

O risco de um portador infectar conscientemente seus parceiros foi citado com bastante regularidade, povoando o imaginário e as vivências deste grupo. Por outro lado, o preconceito, o medo de discriminação e até mesmo uma opção individual levam certos usuários que se sabem portadores do HIV a não divulgarem tal informação com seus eventuais parceiros sexuais.

"Quando eu vou sair com as pessoas eu não vou falar que tenho AIDS porque eu sou discriminado por uma mulher ou até um homossexual" (SJ masculino).

Uma vez indagados se existiria alguma prática sexual mais arriscada para contrair o HIV, apenas dois relatos afirmaram que uma vez sem preservativos qualquer prática sexual poderia oferecer riscos. Em contrapartida, pode-se perceber uma intensa associação da prática anal a um perigo maior dentre quaisquer outros. O ânus constitui um tabu e a prática anal é mesmo considerada "não natural" ou uma "anormalidade". Esse discurso há muito povoa o imaginário sexual brasileiro (Parker, 1993). O ânus estaria associado às impurezas e "sujeira", ambiente propício à multiplicação de males.

"O anal é pior. É uma coisa nojenta. (...) Todo vírus, ele cresce mais onde tem impureza. Ele desenvolve mais" (IT feminino).

Outros depoimentos apontaram dúvidas sobre o nível de risco que a saliva e o sexo oral poderiam representar. Acreditam que caso representem risco, as campanhas estariam se omitindo quanto ao assunto.

Um outro núcleo enfatizou não o tipo de prática sexual mas "as condições do encontro amoroso" como potencialmente arriscados. Encontros apressados, em lugares públicos e sujeitos à interrupção, inviabilizariam maiores cuidados preventivos.

 

 

A percepção sobre prevenção

 

Com a preocupação de apreender a percepção dos UDI sobre prevenção e evitar a mera reprodução de informações, optou-se por adotar a estratégia de pedir aos entrevistados que pensassem num conselho que dariam a um amigo para ele se prevenir do HIV.

Usar o preservativo foi um "conselho" referido pela quase totalidade dos relatos. Haveria também que se tomar algumas "precauções", sobretudo numa atitude defensiva contra as mulheres, pois elas usariam recursos de sedução e beleza, desviando ou enfraquecendo a intenção de adotar uma postura preventiva. Se por um lado, o grupo entrevistado era em sua maioria de homens, o que naturalmente nos relatos heterossexuais o foco seria o "perigo" do parceiro do sexo oposto, por outro, nos relatos femininos também se observou semelhante perspectiva.

"Às vezes você vê uma mulher muito linda aparentemente, mas por dentro ela tem AIDS. (...) Quem tem não vai falar" (SJ feminino).

Assim, "ter a parceira certa" (POA masculino) como a opção para não contrair o HIV ou pelo menos não se "deixar levar" pela aparência complementam o sentido atribuído à fala normativa de "usar sempre o preservativo".

Como era de se esperar, os "conselhos" relacionados às informações contidas em orientações e campanhas voltadas ao não-compartilhamento de seringas foram freqüentes. Percebeu-se neste contexto, uma carga maior de ambigüidade. "Usar seringa limpa" não quer dizer, necessariamente, não compartilhá-la posteriormente e nem mesmo saber desinfetá-la adequadamente.

"Não pegar seringa suja de ninguém" ou "ter a sua seringa" também pode contemplar que o UDI não use a de ninguém mas alguém use a dele, como se evidenciou numa entrevista :

"Eu procuro não emprestar as minhas agulhas, não deixar ninguém pegar, mas não adianta. Eles vêem. Quando falta aparelho, vêem onde eu guardo e vão lá e pegam. Tomam e botam no mesmo lugar" (POA masculino).

Uma das usuárias deu o "conselho" de estocar uma grande quantidade de seringas para evitar, num momento de escassez e de necessidade de uso, o recurso de usar compartilhadamente a seringa. Essa prática foi relatada em várias entrevistas.

Power et al. (1996) citam vários estudos que comprovam que os UDI desenvolvem estratégias para evitar os riscos associados com o uso injetável: fazer estoques de seringas, escondê-las de outros UDI, reutilizar a seringa um número limitado de vezes, personalizar as seringas, selecionar os parceiros com quem vai compartilhar. Tais estudos revelam uma prática que busca, dentro dos limites e fronteiras da interpretação destes indivíduos, reduzir danos e administrar riscos.

Poucos relatos foram precisos quanto ao não-compartilhamento, como o de SO masculino que diz: "falaria para ele não compartilhar a seringa. (...) usou e jogou fora".

Adotando uma estratégia de provocação, o entrevistador perguntava ao UDI quais dos "conselhos" ele considerava o mais difícil de cumprir. A grande maioria apontou o uso do preservativo como o mais difícil, quer porque "diminui o prazer", quer pelo "efeito da droga" que diminui o discernimento do indivíduo.

Se o uso limpo/não compartilhado de seringas não foi citado como o "conselho" mais difícil ele, então, seria facilmente cumprido? Nada possibilita tal afirmação. O que se notou é que tal recomendação é de fato observada pelos UDI, mas de forma assistemática, sendo influenciada por diversos fatores, conforme será discutido adiante.

 

 

Não compartilhar: o dilema entre a razão e a fissura

 

O termo compartilhar é bastante polissêmico dado que envolve práticas bem diversas. É reconhecido mais comumente como o uso coletivo de seringas e agulhas. O compartilhamento também se apresenta, como Grund et al. (1991, 1996) relacionam em seus estudos, como o uso em parceria de materiais (seringas, agulhas, filtros, potes de diluição etc.) que são mediadores do compartilhamento de drogas (syringe-mediated drug sharing). Trata-se do compartilhamento indireto, isto é, quando um UDI prepara a dose, coloca a substância em sua seringa e vai distribuindo certas quantidades (a que cada outro UDI tem direito pelo tanto que contribuiu na compra da droga) entre as seringas dos demais parceiros. As variadas técnicas de partilha da droga (frontloading, reversed frontloading, backloading etc.) também envolvem contato com sangue e microorganismos entre as seringas e potes de diluição, constituindo riscos consideráveis.

Esses autores lembram que o compartilhamento, na subcultura das drogas, realiza um importante papel de coesão do grupo de usuários. O grupo compartilha as drogas e outras necessidades, proporcionando suporte emocional e material. O compartilhamento não funciona somente para a satisfação da dependência mas também reforça a rede de ajuda mútua, solidariedade e trocas econômicas.

Fernandez (1994), um dos poucos brasileiros a estudar a questão do compartilhamento pelo o prisma da antropologia, afirma que o uso comunitário de agulhas e seringas pode funcionar como um "pacto de sangue", consolidando entre os UDI uma partilha de cumplicidade, intimidade, camaradagem e confiança. Isto constitui o que o autor denomina de relações de "communitas". Fernandez reconhece ainda certas motivações circunstanciais para o compartilhamento como a escassez ou entupimento da seringa.

Nesta pesquisa, pôde-se verificar que os entrevistados detêm uma apreensão cognitiva da informação sobre o não compartilhamento. Quase todos apontaram o não compartilhamento (em suas distintas interpretações e ambigüidades) como medida importante de prevenção. Alguns depoimentos são enfáticos, inclusive, em dizer que hoje o nível de informação disponível é tanto que "só usa quem quer", pois há ciência dos riscos. Contudo, no acervo das entrevistas, fica patente que são muitos os fatores que contribuem para a existência de uma lacuna entre a escolha racional e as necessidades, desejos e demandas individuais e do grupo.

O principal núcleo de atribuição de sentido a esse hiato entre informação/adoção de comportamento preventivo foi o campo de vivências que pode ser traduzido semanticamente por "fissura". O termo fissura foi constantemente citado por todos os depoimentos, constituindo também uma categoria central de explicação desta temática. A "fissura" seria a necessidade extrema e urgente em injetar-se. Esta necessidade diz de uma real dependência orgânica à droga. Assim, como define a palavra (que em latim significa fenda ou racha), a apreensão racional sobre quaisquer informações é cindida. De um lado a compreensão proveniente das informações dos riscos, de outro a necessidade suprema, a compulsão em injetar-se. Numa situação de escassez de seringas, as velhas, usadas, sujas e enferrujadas poderão ser utilizadas.

"É muito difícil para uma pessoa. Porque na hora, ali na loucura ali você não quer nem saber se tem ou se o cara não tem (HIV). Está instigado para tomar um pico ali, vai pegar a seringa do cara. Isso não tem como evitar(...)" (SJ masculino).

Enunciar a "fissura" também constitui uma "fala de afirmação" de um ethos de grupo: estar na fissura, sair para arrumar a droga, obter dinheiro para comprar ou "inteirar a dose", procurar os parceiros e as seringas, descobrir local apropriado, preparar a dose e tomá-la. Este é um ciclo de atividades que consome boa parte do tempo do UDI e de seu grupo de uso.

A "solidariedade ante à fissura" seria outro elemento significativo nessas interações. Há um forte sentido de reciprocidade diante dessa situação tão cotidiana aos UDI. Não ter os "aparelhos" para aplicar a dose é um sofrimento compartilhado por todos e não ajudar o parceiro nesta situação (seja dando-lhe uma seringa nova ou usada) é visto pelo grupo como atitude egoísta. Reconhecer a "fissura" do outro hoje é ter, provavelmente, a sua "fissura" reconhecida amanhã, reforçando os laços de reciprocidade em dar-receber-retribuir. Não se trata, necessariamente, de uma atitude altruísta, mas de regra de convivência.

A "segunda dose" também foi mencionada em alguns depoimentos como um marco depois do qual o discernimento se esvaeceria e a "doideira" incapacitaria adotar regras de não-compartilhamento.

Cabe ressalvar que o que se denomina de "compartilhar" pode envolver, na vivência dos UDI, múltiplas possibilidades entre o dar, receber, emprestar e retribuir seringas, agulhas, materiais de diluição e a dose da droga. Alguém que empreste ou dê algum destes itens pode não se perceber como "compartilhando" porque é o "outro" que compartilhou. Cabe indagar se existiria aí certa visão que associa posturas "passivas", "ativas" ou "interativas" como determinantes do auto reconhecimento das práticas de compartilhamento.

Quais fatores poderiam ser favoráveis ao não compartilhar os equipamentos de injeção?

Como o estudo de Power et al. (1996) mostrou, o fato dos UDI não acatarem as regras enunciadas pelas campanhas e orientações para a prevenção não significa dizer que não disponham e exercitem estratégias de lidar com os riscos.

Schiller et al. (1994) alertam que as pesquisas iniciais sobre compartilhamento enfatizavam os aspectos simbólicos de confiança nos parceiros, reafirmando os vínculos do grupo. Atualmente os estudos enfocam também o papel das contingências práticas do uso (a ilegalidade de portar seringas, a escassez e o custo das seringas) a fim de se analisar a questão. Portanto, a farta disponibilidade e a gratuidade do material (seringas e agulhas, principalmente) são vistos como elementos que podem impedir o compartilhamento. A dificuldade em obter tais equipamentos foi constantemente demarcada no conjunto das nossas entrevistas. Certos funcionários de farmácias, por discriminação aos UDI, recusam-se a vender as seringas e agulhas. Outra questão é a lógica do investimento dos recursos disponíveis. Como a possibilidade de obter dinheiro para comprar a dose geralmente se torna inversamente proporcional à intensidade e constância de uso, o dinheiro, uma vez obtido, será gasto na dose. O material para a injeção deverá, então, ser "descolado", a saber, obtido por outros meios (achado, ganho, emprestado, reutilizado).

A distribuição gratuita e farta de kits, seringas e agulhas pelo PRD é apontada de forma quase unânime como uma contribuição muito grande para o não-compartilhamento.

Cada usuário usar sua própria seringa, sem compartilhá-la é visto, inclusive, como situação ideal. Além de "evitar doenças" possibilitaria uma maior agilidade na sessão de uso, dispensando ficar esperando "chegar sua vez", garantindo que todos teriam acesso mais rápido à droga. Cabe, certamente, atentar para o compartilhamento de outros materiais empregados na diluição e divisão da dose.

"(...)Tem gente que não liga para emprestar. Mas a maioria gosta (de ter a sua seringa). E ainda tem o problema de esperar, estar na pilha, esperando a vez" (SJ feminino).

O reforço do conteúdo informativo sobre prevenção também foi apontado como elemento coadjuvante necessário à mudança de comportamento. Informação dada no "momento certo", ou seja, quando o UDI "estiver de cara" (sem estar sob o efeito da droga). Contudo, como se percebeu nas entrelinhas das narrativas, a informação deve estar acompanhada de um vínculo afetivo entre "aconselhador" e UDI. A informação deve ser percebida como uma prova de que alguém "se importa" com ele e não como mero repasse de preceitos normativos.

 

 

Conclusões

 

A percepção de risco dos UDI constitui um complexo de interpretações que articula, sinergicamente, tanto suas vivências cotidianas quanto os discursos dirigidos a este grupo (as "falas" dos programas de saúde).

Os entrevistados neste estudo possuem conhecimento sobre transmissão do HIV. Entretanto, ainda se mostra frágil a informação sobre o problema da reinfecção, seja por lacuna de conhecimento seja por uma noção arraigada de que não faz sentido prevenção quando o indivíduo já é portador. Essa questão precisaria ser trabalhada nas orientações dos PRD.

A questão do compartilhamento, eixo estratégico de ação para a Redução de Danos, revela aspectos polêmicos. A informação sobre o compartilhamento é de domínio do grupo, mas aí se observa o hiato entre a razão/conhecimento/informação e o desejo/necessidade/ compulsão imposta pela dependência. Situam a si mesmos como divididos, "fissurados" entre um bem saber e o bem agir. Numa situação de escassez, muitos são solidários com a dor física que o outro sente pela "fissura" da droga ou simplesmente porque confiam em que amanhã alguém saberá retribuir. O compartilhamento revela-se também como prática que alicerça um subcultura, como forma de ajuda mútua que, indiretamente, promove equilíbrio emocional no duro cotidiano do drogadito.

Novas frentes de investigação mereceriam ser abertas, buscando aprofundar as práticas e concepções dos UDI sobre a idéia de compartilhamento. Como se organiza a lógica de reciprocidade nesse grupo? Não se restringe ao dar-receber-retribuir entre pares mas ainda incorpora o pegar emprestado, o pegar à força, o roubar, o achar no lixo, entre outros. Numa lógica de grupo, que regras de "etiqueta" e sociabilidade permitem dizer "não" ao compartilhamento? E quando é constrangedor fazê-lo?

Há também notícias alvissareiras. Neste estudo, revelou-se uma grande aceitação dos UDI às ações do PRD.

Percebe-se que houve um aumento da preocupação com a qualidade e limpeza da água usada para a diluição da droga. Assim como é muito bem-vinda a idéia chave de cada um ter e usar a sua própria seringa: (1) porque agiliza a sessão de uso (não é preciso esperar a seringa de ninguém/porque entope menos a seringa); (2) porque é mais "limpo", evitando "doenças" especialmente a AIDS; (3) por motivos econômicos (o dinheiro, geralmente escasso, pode ser empregado de outra forma); (4) por segurança (o UDI não precisa sair à procura dos "equipamentos"). O desafio então é promover o reforço da solidariedade entre os UDI por outros meios, diversos ao compartilhamento de materiais de aplicação e de diluição das drogas.

Também é muito bem aceita a orientação recebida, talvez por ser uma demonstração que excepcionalmente a sociedade e o Estado (por meio de um órgão de saúde) se fazem presentes positivamente em suas vidas. Sobremodo porque há uma interlocução face a face, que traz informação encompassada de afeto. Como nos ensina um entrevistado, falando de si e dos seus: "Porque o caminho da gente é outro. O caminho da gente é o caminho do coração. É na veia direto. Não tem intermediário" (SJ masculino).

 

 

Agradecimentos

 

Esta investigação faz parte de um estudo ampliado (Projeto AjUDE-Brasil), financiado pela Coordenação Nacional de DST e AIDS, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e com a Fundação Oswaldo Cruz.

 

 

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Recebido em 12 de janeiro de 2001
Versão final reapresentada em 19 de junho de 2001
Aprovado em 3 de setembro de 2001

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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