ARTIGO ARTICLE
Jane Galvão 1 | A política brasileira de distribuição e produção de medicamentos anti-retrovirais: privilégio ou um direito?
Brazilian policy for the distribution and production of antiretroviral drugs: a privilege or a right? |
1 School of Public Health, University of California. 140 Earl Warren Hall, Berkeley, CA 94720-7360, U.S.A. jgalvao@uclink.berkeley.edu | Abstract This article focuses on the Brazilian National AIDS Program and its policy of distributing and producing antiretroviral drugs, emphasizing links between local decisions and global HIV/AIDS policies. Emphasizing recent developments in the Brazilian and international scenario with regard to access to treatment for people with HIV/AIDS, the article highlights the participation by the pharmaceutical industry, governments, civil society, and UN agencies in establishing responses to the pandemic. The author concludes by identifying transnational activism as a key response to both the power of pharmaceutical corporations and the law of the market (including patent laws), thus fostering global solidarity for people with HIV/AIDS.
Resumo Este artigo apresenta algumas considerações sobre o Programa Brasileiro de AIDS, no que diz respeito à distribuição e produção de medicamentos anti-retrovirais, enfatizando as conexões entre as decisões locais com as políticas globais de respostas frente à pandemia de HIV/ AIDS. Destacando os mais recentes desdobramentos no cenário brasileiro e internacional, no tocante a acesso a medicamentos para pessoas com HIV/AIDS, o artigo ressalta a participação da indústria farmacêutica, de governos, da sociedade civil e de organismos do sistema das Nações Unidas no estabelecimento de respostas frente à pandemia. O artigo conclui apontando o ativismo transnacional como uma das respostas ao enfrentamento do poder das grandes corporações farmacêuticas e das leis de mercado - incluindo aí a lei de patentes - impulsionando, desta forma, uma solidariedade global para as pessoas com HIV/AIDS. |
Introdução
Este texto apresenta uma abordagem preliminar sobre a política de medicamentos anti-retrovirais (ARVs) no Brasil, e busca reunir alguns dos dados disponíveis sobre a questão - basicamente provenientes da Coordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS (CNDST/AIDS), Ministério da Saúde (MS). Neste sentido, este texto também visa analisar a resposta brasileira frente à epidemia de HIV/ AIDS, oferecendo uma contribuição para o debate sobre as respostas que levam a formas distintas de gerenciamento dessa epidemia.
O acesso gratuito e universal para o tratamento em HIV/AIDS
Uma das facetas mais conhecidas do programa brasileiro de AIDS é a distribuição gratuita, e universal, de ARVs para o tratamento do HIV/ AIDS na rede pública de saúde. Tal distribuição é totalmente subsidiada pelo Tesouro Nacional, ou seja, faz parte do orçamento do MS. Mas, ao lado da distribuição, vem ganhando importância a produção nacional de medicamentos, que é apresentada como uma estratégia fundamental para a manutenção do programa de distribuição (MS, 2001a). Sobretudo a produção local dos ARVs deu destaque internacional à forma como o Brasil está enfrentando a epidemia (OXFAM, 2001; Rosenberg, 2001).
A ressalva acima, sobre quem está arcando com os custos do tratamento, é em virtude dos empréstimos do Banco Mundial ao Brasil - que beneficiam o programa nacional de AIDS - mas tais empréstimos não são para a compra de medicamentos anti-HIV. Os componentes do Acordo de Empréstimo incluem, basicamente, prevenção, vigilância epidemiológica e desenvolvimento institucional. O primeiro empréstimo, iniciado em 1993 e finalizado em 1998, foi da ordem de 160 milhões de dólares que, somado à contrapartida nacional de 90 milhões de dólares, totalizou 250 milhões de dólares. O segundo empréstimo, para o período de 1998 a 2002, está distribuído entre o Banco Mundial, 165 milhões de dólares, e a contrapartida nacional, de 135 milhões de dólares, totalizando 300 milhões de dólares.
Em 1988, foi iniciada no Brasil, na rede pública de saúde, de uma forma classificada como "tímida" em publicação da CNDST/AIDS, a distribuição de medicamentos para infecções oportunistas em pacientes com AIDS e, em 1991, começou a ser oferecida a terapia anti-retroviral (MS, 1999a). Mas somente a partir de 1996 - após a XI Conferência Internacional de AIDS, realizada em Vancouver, Canadá, onde a terapia tripla, popularmente conhecida como "coquetel", foi apresentada - é que a questão tomou a dimensão que conhecemos hoje. No Brasil, a Lei no 9.313, de 13 de novembro de 1996 - de autoria do Senador José Sarney e assinada pelo Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso - tornou obrigatória a distribuição de medicamentos anti-HIV pelo sistema público de saúde (MS, 1999a).
A distribuição de medicamentos para AIDS, além do aspecto financeiro, possui aspectos logísticos e estratégicos que em um país, com a dimensão do Brasil, não podem ser minimizados. Cumpre destacar, que a existência de uma rede básica de serviços - apesar de todas as dificuldades - estruturada para oferecer atenção à saúde de toda população brasileira, de forma gratuita, universal, integral e descentralizada (Sistema Único de Saúde - SUS), a capacitação de recursos humanos do SUS em diagnóstico e assistência em HIV/AIDS e o fortalecimento dos laboratórios públicos, foram elementos fundamentais para a implementação de uma rede de distribuição de medicamentos anti-HIV. Também importante é o estabelecimento de critérios para a administração dos ARVs e, no caso brasileiro, comitês assessores auxiliaram o programa nacional de AIDS na elaboração de recomendações para o tratamento de adultos/adolescentes, incluindo gestantes e crianças.
Pelos pontos destacados, no caso brasileiro, o acesso aos medicamentos não pode estar desvinculado da existência de uma rede de serviços, incluindo exames laboratoriais e de profissionais capazes de diagnosticar, tratar e acolher o paciente de maneira adequada, o que possibilita que o medicamento seja dispensado de forma correta e segura. Igualmente importante é o paciente se sentir apoiado pelo profissional e pelo serviço de saúde que freqüenta. Estes dois últimos pontos, segundo a experiência brasileira, são fundamentais para a adesão ao tratamento.
Com um número total de notificações de 210.452 casos de AIDS (sendo que aproximadamente 50% já foram a óbito) acumulados de 1980 até março de 2001 - 155.792 masculinos (74%) e 54.660 (26%) femininos (MS, 2001b) - a previsão é que em torno de noventa e oito mil pessoas estão recebendo a terapia anti-retroviral no país (MS, 2001c), sendo que marcadores laboratoriais e clínicos determinam o ingresso do paciente no tratamento. Com relação aos custos, informações disponíveis mencionam que a produção nacional de medicamentos conseguiu baixar o custo anual de um paciente, com tratamento com ARV, de US$ 4,860, em 1997, para US$ 2,530, em 2001 (MS, 2001c).
No caso brasileiro, para a distribuição dos medicamentos contra a AIDS, vigora, até o momento, a regulamentação estabelecida "em agosto de 1998, sobre a divisão de gastos entre as diferentes esferas do governo, e que atribuiu à União a aquisição dos anti-retrovirais e a estados e municípios a aquisição de medicamentos necessários ao tratamento de manifestações associadas à AIDS" (MS, 1999b:38-39). Na evolução dos custos do MS com os ARVs temos os seguintes números: 1996, 34 milhões de dólares; 1997, 224 milhões de dólares; 1998, 305 milhões de dólares; 1999, 336 milhões de dólares; 2000, 303 milhões de dólares e para o ano de 2001, os gastos estão estimados em 422 milhões de dólares (MS, 2001c). Em relação ao orçamento do MS, os gastos com os anti-retrovirais corresponderam a: 0,2% em 1996; 1,2% em 1997; 1,8% em 1998; 3,2% em 1999; 2,9% em 2000 e está estimado em 2,9% para o ano de 2001 (MS, 2001c).
O custo, junto com questões como adesão e possíveis falhas no tratamento - tendo como uma das conseqüências mais discutidas o aparecimento de cepas de vírus mais resistentes - são os principais argumentos dos que são contra que os países chamados "em desenvolvimento" aloquem recursos financeiros para a compra de medicamentos, sobretudo os ARVs. A recomendação, vinda de organismos como o Banco Mundial, tem sido que tais países invistam mais em prevenção do que em tratamento (World Bank, 1997). Ao mesmo tempo, recentes acontecimentos, como a Sessão Especial em HIV/AIDS da Organização das Nações Unidas (ONU), que aconteceu em junho de 2001, em Nova York (UN, 2001), e dados que revelam que 90% do número de pessoas infectadas estão em países em desenvolvimento, estão levando a que tal recomendação esteja sendo repensada (UN, 2001).
Mas cumpre destacar, que a questão de como tornar disponível os ARVs nos países africanos tem sido motivo de análises e, não somente por parte de organismos como o Banco Mundial. Pesquisadores apontam a anarquia que, eventualmente, poderia ocorrer em países africanos dependendo da forma de distribuição dos medicamentos (Horton, 2000). Outros reconhecem as dificuldades, mas buscam modelos que possam tornar factível a distribuição (Harries et al., 2001).
No caso brasileiro, há pelo menos, dois argumentos para a manutenção da gratuidade e universalidade do tratamento: o impacto da terapia anti-retroviral nas mortes das pessoas com HIV/AIDS e nos custos do tratamento. Por exemplo, foi observada com a administração dos ARVs, uma redução de aproximadamente 54% do número de óbitos por AIDS no Município de São Paulo e de 73% no do Rio de Janeiro, no período de 1995-2000 (MS, 2001c). Com relação à redução dos custos das internações hospitalares e diminuição dos custos com o tratamento das infecções oportunistas, a estimativa de economia é da ordem de 677 milhões de dólares para o período 1997-2000 (MS, 2001c).
A produção nacional de medicamentos e a interseção com as políticas globais de AIDS
No que diz respeito à produção nacional, em 1999, 47% dos ARVs que corresponderam a 19% dos gastos, foram adquiridos de empresas nacionais (92.5% de laboratórios estatais e 7.5% de privados) e 53% dos ARVs que correspondem a 81% dos gastos, foram adquiridos de companhias multinacionais. Já no ano 2000, 56%, correspondendo a 41% dos gastos, foram para indústria nacional e 44%, que corresponderam a 59% dos gastos, para companhias farmacêuticas internacionais (MS, 2001c). No momento, o Brasil estaria produzindo sete dos 13 ARVs usados no tratamento de pessoas com HIV/AIDS no país (MS, 2001c). A política nacional de medicamentos anti-HIV também visa à transferência para outros países de tecnologia em produção, compra centralizada e logística (armazenamento e distribuição) de medicamentos. No momento, segundo o MS, dada a limitação da capacidade de produção nacional, não tem prioridade a adoção de estratégias de venda para o mercado externo, "no entanto, pode-se avaliar a possibilidade de suprir necessidades pontuais de países parceiros para a aquisição de medicamentos anti-retrovirais" (MS, 2000a:2).
Como parte do cenário no enfrentamento da pandemia de HIV/AIDS, um dos setores que vêm ganhando importância é a indústria farmacêutica. O acesso aos ARVs remete aos custos que, por sua vez, remete à produção dos medicamentos, à indústria farmacêutica e à lei de patentes, na sua interseção com as prioridades nacionais e os interesses transnacionais. Em destaque desde o início de 2001, a política brasileira de ARVs tem apresentado aspectos inovadores não somente por garantir a distribuição gratuita e universal dos medicamentos, mas também, por estimular a produção nacional de ARVs, assim como por posições contundentes no tocante à possibilidade da quebra das patentes - ou seja, o licenciamento compulsório - de alguns medicamentos. Um dos argumentos do Brasil para o licenciamento compulsório menciona, por exemplo, os custos exorbitantes cobrados pelas companhias farmacêuticas internacionais, o que poderia comprometer a continuidade do programa brasileiro de AIDS na garantia do tratamento das pessoas com HIV/AIDS (MS, 2001a; OXFAM, 2001). Em fevereiro de 2001, a questão de patentes ganhou as manchetes com notícias sendo veiculadas na mídia mencionando a possibilidade do Brasil quebrar as patentes dos medicamentos Nelfinavir, fabricado pela Roche, e Efavirenz, fabricado pela Merck, caso os laboratórios não reduzissem os preços (Paraguassú, 2001). Após intensas negociações, o MS conseguiu a redução de cerca de 60% no preço do Efavirenz.
Ainda em fevereiro de 2001, os Estados Unidos entraram com um pedido na Organização Mundial do Comércio (OMC) contra o Brasil questionando "o inciso 1 do parágrafo 1o do artigo 68 da lei brasileira de propriedade industrial, que permite o licenciamento compulsório de patente se o seu detentor '...exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico...' (...). O Artigo 68 determina que somente poderá ser concedida a licença compulsória a um produtor local após o prazo de 3 anos da data de registro do produto. No processo (...) movido contra o Brasil, o Governo norte-americano argumenta que este Artigo da lei brasileira estaria violando os artigos 27.1 e 28.1 do Acordo de TRIPS - acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual, firmado pelo Brasil no âmbito da OMC" (MS, 2001a). Documentos sobre o tema podem ser encontrados na página da CNDST/AIDS <http: //www.aids.gov.br>, na seção Política Brasileira para a Garantia do Acesso Universal aos Medicamentos para AIDS. Para uma visão geral sobre questões relativas a patentes ver Macedo & Barbosa (2000), OXFAM (2001) e UNAIDS/WHO (2000a).
O resultado do painel da OMC, que surpreendeu a quase todos, foi a retirada da queixa, em junho, pelos Estados Unidos (Ashraf, 2001; Crossete, 2001). Mas cumpre destacar, que a lei de propriedade industrial brasileira, de 1996, foi resultado da nova legislação internacional sobre a questão e que, apesar de todas as ameaças do MS, até o momento que o caso brasileiro foi levado a julgamento na OMC nenhuma patente de ARVs havia sido violada.
Mas a disputa na OMC revelou, mais do que tudo, aspectos importantes no que diz respeito aos preços dos medicamentos produzidos pelas grandes companhias farmacêuticas, e não somente os preços dos medicamentos para a AIDS, colocando, como há muito tempo não se via, uma questão de saúde pública no centro do debate mundial.
A participação local da sociedade civil e o ativismo transnacional
No caso brasileiro, se a decisão de realizar a distribuição dos medicamentos pode ser vista pelo ângulo técnico-político, para a sua manutenção tem sido fundamental a mobilização da sociedade civil.
Em 1999, por questões de desvalorização cambial, a compra de medicamentos para AIDS e outras doenças quase foi suspensa, mas uma mobilização em caráter nacional, das organizações da sociedade civil com atividades em HIV/AIDS foi importante para garantir a liberação dos recursos financeiros necessários para a manutenção da compra internacional dos medicamentos. Em 8 de setembro de 1999, as entidades fizeram passeata nas ruas de diversas cidades brasileiras. Esta foi a principal estratégia, mas também mensagens foram enviadas para diversas autoridades brasileiras solicitando a liberação dos recursos.
Em novembro de 2000, a compra de medicamentos voltou a ficar comprometida pela possibilidade de falta de verba para o MS (Paraguassú, 2000). Mais uma vez, os grupos comunitários se mobilizaram e os recursos foram liberados. Uma das estratégias foi pedir que pessoas e entidades enviassem o maior número possível de e-mails para o Ministro da Fazenda, Pedro Malan. Ao destacar a mobilização da sociedade civil, não quero afirmar que os recursos foram liberados somente porque as organizações reivindicaram. Mas, não apenas no caso brasileiro, cumpre ressaltar a importância do movimento social organizado como um componente, da maior relevância, na implementação, ampliação e manutenção das respostas em HIV/AIDS.
Nesse sentido, uma das lições da resposta global frente à pandemia de HIV/AIDS é a mobilização e a participação da sociedade civil como parte fundamental das respostas nacionais e internacionais (Galvão, 2000). No Brasil, além da participação da sociedade civil, também ocorre o envolvimento das pessoas com HIV/ AIDS que desde o final da década de 80 - seguindo uma tendência internacional - criaram organizações e espaços que deram corpo e voz às reivindicações das pessoas soropositivas. Ao mesmo tempo, no caso brasileiro, a participação dessas organizações em instâncias de controle social, como o Conselho Nacional de Saúde e a Comissão Nacional de AIDS, além de entidades estaduais e municipais e a criação de fóruns de organizações não-governamentais sobre AIDS (ONG/AIDS) e de redes de pessoas com HIV/AIDS, em muito tem contribuído para a manutenção e expansão dos direitos das pessoas vivendo com HIV/AIDS no Brasil, assim como para a continuidade da resposta governamental para a epidemia.
É possível apontar que se na década de 80 foi de extrema importância a mobilização da sociedade civil para forçar os governos a implantarem iniciativas de prevenção, desde meados da década de 90, está sendo cada vez mais premente o envolvimento da sociedade civil organizada e das pessoas com HIV/AIDS em ações relativas a acesso a medicamentos anti-HIV. Mas, mais recentemente, à luta do acesso ao tratamento anti-retroviral foi somada uma nova área, que impulsionou o que é possível denominar de ativismo transnacional: patentes (Stolberg, 2001). No século XXI, ativistas de todo o mundo clamando por justiça global e soberania nacional para a produção local de medicamentos - o que, na prática, poderia implicar na quebra de patentes dos medicamentos - fazem com que a pandemia de HIV/AIDS seja recolocada em um lugar de onde ela nunca saiu e que é marcado pela injustiça, desigualdade e opressão social.
Como exemplo da mobilização comunitária transnacional, pode ser citado o dia 5 de março de 2001, declarado "Dia Global de Ação", data em que, em diferentes cidades ao redor do mundo, ativistas fizeram manifestações não somente sobre acesso a medicamentos, mas também, no que diz respeito a patentes. Um dos motivos para a manifestação foi o julgamento, que aconteceria na África do Sul, onde 39 companhias farmacêuticas moviam uma ação na Suprema Corte contra o Governo sul-africano pela possibilidade da quebra de patentes para a produção local de ARVs e a compra de medicamentos, a preços mais baixos, de outros países. Dada a pressão exercida, sobretudo por ativistas de ONGs, e campanhas desencadeadas por organizações como OXFAM (The Oxford Committee for Famine Relief) e Médicos sem Fronteiras, o julgamento marcado para março, foi adiado para abril. No dia 19 de abril de 2001, as 39 companhias farmacêuticas, em uma decisão considerada inédita, decidiram interromper o processo judicial que moviam contra o governo da África do Sul (Baleta, 2001).
Lucro x vida
Com um total global de casos estimados de pessoas com HIV/AIDS de 36.1 milhões, sendo que 5,3 milhões de novos casos no ano 2000 (UNAIDS/WHO, 2000b), começando a ser tratada pela ONU na esfera dos assuntos de segurança mundial, a pandemia de HIV/AIDS entra no século XXI, sem uma solução que consiga equacionar justiça social e direitos humanos com as leis de mercado e os interesses transnacionais e está relacionada, cada vez mais, com pobreza e sendo apontada como fator de desestabilidade para alguns países, sobretudo os africanos. Como exemplo das implicações é possível citar a 4.172a Reunião do Conselho de Segurança da ONU, realizada em 17 de julho de 2000, onde foi adotada a Resolução 1.308/2000, que coloca a AIDS como uma questão de segurança global (UN, 2000).
Ao mesmo tempo, esforços são feitos mas ainda não são suficientes para lançar estratégias eficazes de prevenção e tratamento para os países africanos, por exemplo, e em países como o Brasil é uma incógnita até quando será possível manter o equilíbrio entre direitos sociais e o que, muitas vezes, é classificado como privilégio. Este último ponto, tanto diz respeito ao programa de distribuição dos ARVs que, apesar de ganhar cada vez mais legitimidade, fica algumas vezes, internamente ameaçado - como aconteceu em 1999 e voltou a ocorrer em novembro de 2000 - quanto à disputa com a indústria farmacêutica, no que diz respeito a preços, sobretudo considerando o aparecimento de novos medicamentos.
O que quero destacar é que o curso da epidemia está sendo, cada vez mais, determinado por questões de mercado, como muito claramente ilustra o confronto de governos e ativistas com a indústria farmacêutica. Mas não podemos esquecer que o mercado sempre esteve presente na pandemia de HIV/AIDS, vide a disputa pela paternidade da descoberta do HIV, na década de 80, entre Robert Gallo (Instituto Nacional do Câncer, Estados Unidos) e Luc Montagnier (Instituto Pasteur, França). Tal disputa - que estava relacionada à comercialização do teste - foi resolvida através de um acordo, assinado em Washington DC, Estados Unidos, em 1987, entre o presidente norte-americano Ronald Reagan e o primeiro-ministro francês Jacques Chirac e determinou que os lucros da produção e comercialização dos testes seriam distribuídos entre franceses e norte-americanos.
Mas, recentes acontecimentos sinalizam que alguma coisa está mudando. A 57a Sessão da Comissão de Direitos Humanos da ONU, que ocorreu em Genebra, aprovou em 23 de abril de 2001, com 52 votos a favor, nenhum contra e uma abstenção dos Estados Unidos, a Resolução, proposta pelo Brasil, intitulada Acesso a Medicamentos no Contexto de Pandemias como o HIV/AIDS. Com a aprovação de tal resolução, que não tem caráter de lei, a Comissão reconhece o acesso a medicamentos como elemento fundamental para a realização do direito humano à saúde (MS, 2001d).
Ao mesmo tempo, a questão de acesso aos medicamentos anti-HIV mostra um mundo onde as escolhas e o empoderamento individual - apesar de importantes - contam muito pouco. No que diz respeito aos ARVs, as evidências indicam, por um lado, a relevância da participação da comunidade no seu sentido mais amplo e, por outro lado, que ou as pessoas com HIV/AIDS têm acesso aos medicamentos ou morrem.
Essas são algumas das escolhas e desafios que a pandemia de HIV/AIDS coloca no século XXI, sendo que o poder das empresas transnacionais, como a indústria farmacêutica, requer a formulação de novas estratégias e o estabelecimento de novas parcerias. Nesse sentido, o comprometimento de governos, da sociedade civil organizada, do setor privado e das agências de fomento e cooperação internacional na elaboração de respostas coordenadas frente à pandemia de HIV/AIDS, mais do que uma necessidade é uma imposição. Mas, mais do que tudo, o que está em jogo são novos modelos de gerenciamento da epidemia, tanto local quanto globalmente. Tal aspecto pode ser observado tanto na reflexão sobre os empréstimos destinados aos países que estão sendo duramente atingidos pela epidemia de HIV/AIDS (Anonymous, 2001), quanto nas análises que mostram a necessidade de realocar mais recursos financeiros para prevenção e tratamento (Attaran & Sachs, 2001). Modelos de gerenciamento da epidemia que desconhecem o fator humano e se atrelam somente aos lucros - como ocorrem em alguns empréstimos e nas grandes corporações farmacêuticas (OXFAM, 2001) - podem não favorecer à implantação de políticas públicas de saúde que, no caso de uma pandemia como a de HIV/AIDS, está dizimando populações inteiras.
No que diz respeito ao Brasil, o que pode ser destacado é que a resposta nacional para a epidemia - aqui incluindo tanto o governo quanto a sociedade civil - na questão de acesso a medicamentos anti-HIV tem demonstrado que é possível mesclar decisões financeiras e garantia dos direitos individuais e coletivos, no enfrentamento de uma questão de saúde pública. Como diferentes análises mencionam, a pandemia de HIV/AIDS é uma questão de saúde pública e revela, cada vez mais, a conexão e sinergia com pobreza e desenvolvimento (Bastos & Szwarcwald, 2000; Farmer, 1999; Kalichman, 1994; Parker & Camargo, 2000; Souza, 2000; UNAIDS/World Bank, 2001). No caso brasileiro, mesmo a pauperização - junto com a feminização e a interiorização - sendo reconhecida pelo Programa Brasileiro de AIDS como tendência da epidemia (MS, 2000b) ainda precisa, como destacam alguns autores, da elaboração de referênciais conceituais que permitam avançar tanto em pesquisa quanto em formas de ação (Bastos & Szwarcwald, 2000; Parker & Camargo, 2000). Ao mesmo tempo, como evidente nos aspectos relacionados a acesso aos medicamentos anti-retrovirais, o atual quadro da pandemia aponta para as desigualdades impostas pelas políticas globais de gerenciamento dos bens econômicos.
Agradecimentos
Agradeço a leitura do texto e as sugestões de Carlos Passarelli e Juan Carlos de la Concepción Raxach (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS - ABIA); Daniel Hoffman (Departament of Anthropology, University of California, Berkeley - UC Berkeley); Francisco Inácio Bastos (Fundação Oswaldo Cruz); e Marco Antônio de Ávila Vitória (Coordenação Nacional de DST/AIDS - CNDST/AIDS). Flávio Guilherme de Souza Pontes (CNDST/AIDS) e Aline Moreira Lopes (ABIA) pelo envio de matérias jornalísticas relativas ao tema. Agradeço o apoio da Fogarty International AIDS Training Program (UC Berkeley), Grant Number 1-D43-TW00003, agradecimento que estendo à Arthur Reingold, Diane Hinkly, Juanita Cook e Susan Meyer (School of Public Health, UC Berkeley).
Referências
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Recebido em 24 de maio de 2001
Versão final reapresentada em 31 de agosto de 2001
Aprovado em 22 de outubro de 2001