NOTA RESEARCH NOTE
Maria Auxiliadora Monteiro Villar 1 | Residência médica em pediatria: no campo de prática
Medical residence in pediatrics: in the field of practice |
1 Departamento de Cirurgia Pediátrica, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Rui Barbosa 716, 4o andar, Prédio da Assistência, Rio de Janeiro, RJ 22250-020, Brasil. | Abstract The study focuses on how specificity of pediatric practice at the Fernandes Figueira Institute, Oswaldo Cruz Foundation, contributes to the development of clinical reasoning, the ability to detect evolution in serious illness, and the capacity to use diagnostic and therapeutic techniques. Data were collected using a thematic interview and analyzed by a semiotic model. The results showed a common view of medicine as both science and art, the doctor-patient relationship as legitimating medical knowledge, pediatrics as having its own peculiarities (thus being defined as a medical specialty), and a severity postulate that hinders the development of clinical reasoning and thus the ability to detect evolution in serious illness.
Resumo O estudo objetivou identificar em que medida a especificidade do campo de prática do Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, contribui para que os médicos residentes em pediatria desenvolvam seu raciocínio clínico, o feeling de gravidade e o domínio de técnicas diagnóstico-terapêuticas. Os dados foram coletados mediante entrevistas temáticas e analisados tendo por base o modelo indiciário. Os resultados apontam para a visão da medicina como ciência e como arte; para o encontro médico-paciente enquanto instância de legitimidade do saber médico; para o conteúdo específico do saber pediátrico como especialidade e para um postulado de gravidade que dificulta a construção do raciocínio clínico e, conseqüentemente, do feeling de gravidade. |
Introdução
A residência é uma modalidade de ensino de pós-graduação para profissionais médicos com a finalidade de especialização. Reconhecida pela categoria como a melhor forma de adquirir conhecimentos, habilidades e experiência numa determinada área do saber, é considerada modelar à formação do especialista. Enfatizando a educação sob a forma de treinamento em serviço, privilegia a aprendizagem pela prática supervisionada, buscando adestrar e capacitar o profissional para o exercício de uma especialidade. Esta característica a torna um sistema híbrido ensino/trabalho, no qual o aprendizado e a prestação de serviço se fazem simultaneamente.
O objeto desse artigo foi a aprendizagem da prática médica durante a residência em pediatria no Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/FIOCRUZ), instituição hospitalar que presta assistência terciária. Esta instituição vem apresentando uma crescente complexidade, unindo tecnologia de ponta a especialidades médicas tais como genética humana e neurocirurgia, inclusive contando com três centros de tratamento intensivo: o pediátrico, o neonatal e o neonatal cirúrgico. Estas mudanças na estrutura institucional acarretaram, paralelamente, alterações no perfil da população atendida, levando à discussão, sobretudo entre os preceptores e os próprios residentes, acerca da possibilidade de se formarem pediatras "generalistas" diante deste progressivo intrincamento da demanda e dos progressos técnicos.
Foi o objetivo geral dessa pesquisa identificar em que medida a singularidade do campo de prática do IFF formatou a maneira como os residentes vivenciaram suas experiências clínicas, desenvolveram o raciocínio clínico e o feeling de gravidade.
No que tange ao caminho percorrido pela investigação, o princípio metódico que o mapeou foi o de dar voz aos próprios residentes para que retratassem a sua experiência de aprendizagem na residência médica em pediatria do IFF.
O trabalho de campo foi realizado durante seis meses e procurou abarcar as experiências vivificadas num período de dois anos. Foram entrevistados os ex-residentes que haviam acabado de concluir a residência e aqueles que se encontravam cumprindo o segundo ano do programa, perfazendo um total de dezoito depoentes.
Foram realizadas entrevistas sob a forma de depoimentos temáticos (Camargo, 1981), compreendendo quatro eixos de questionamento: o primeiro referente à percepção da medicina pelos entrevistados; o segundo abordando principalmente o raciocínio clínico; o terceiro abrangendo a experiência - a praxis - no contexto do IFF; e, finalmente, o quarto articulado às expectativas em relação à residência médica de um modo geral.
Entendendo a residência médica como uma forma de aprendizado com características particulares e admitindo que o IFF oferece um campo peculiar, no qual a tecnologia e o padrão de enfermidades graves e/ou crônicas apresentam-se como dominantes, partiu-se para a análise do verbalizado pelos entrevistados acerca dos temas que lhes foram propostos para a reflexão. Para arrolar estes temas procedeu-se, numa primeira etapa, à revisão de material bibliográfico correlato às dimensões de construção do saber médico; do delineamento da racionalidade da medicina ocidental contemporânea; ao desenvolvimento do conhecimento em pediatria e às proposições sobre educação médica, notadamente, aquelas relativas ao conteúdo específico da residência médica em pediatria.
A análise do material produzido pelas entrevistas inspirou-se num modelo de conhecimento descrito por Carlo Ginzburg (1990) que, segundo ele, emergiu silenciosamente no âmbito das ciências humanas no século XIX e foi elaborado por Morelli, um médico apaixonado pela pintura que objetivava distinguir as obras de arte originais de suas cópias. Este modelo propunha que ao invés de se atentar para o óbvio, devia-se buscar os refugos, as pistas infinitesimais, os detalhes, enfim: as particularidades que traíam o inconsciente, pois estas constituíam-se em signos involuntários capazes de referendar a autenticidade da obra. Curiosamente, conforme o autor prova, este modelo é o agenciado também por Arthur Conan Doyle, médico e escritor, enquanto o utilizado por seu personagem Sherlock Holmes em suas investigações e por Freud, também médico e inventor da técnica psicanalítica, que faz referência explícita a Morrelli no seu ensaio sobre o Moisés de Michelangelo, publicado em 1914, em que afirma que aquele médico especialista em arte havia apresentado um método estreitamente aparentado à psicanálise. Por serem todos os entrevistados médicos e diante do triunvirato médico apresentado por Ginzburg (1990), além da demonstração que este autor produz do desenvolvimento da medicina enquanto fundamentada neste modelo de conhecimento, decidiu-se por basear o estudo em tal proposição.
A técnica aplicada à leitura do discurso compreendeu quatro etapas. Na primeira, realizada no próprio momento da entrevista, buscaram-se as percepções-chave claramente veiculadas pela fala, como também os indícios/sinais produtores de sentido tais como: o cenário físico, as reticências, os silêncios, os espantos, os modos de interação entre entrevistador e entrevistado, o gestual, as ênfases... Tais indícios foram registrados em notas de campo que posteriormente foram agrupadas num diário. Na segunda, correspondente ao momento da transcrição, considerou-se o observado anteriormente e atentou-se mais sistematicamente para as caracterizações comuns. Na terceira, empreendida sobre o material transcrito literalmente, checaram-se os tropos do discurso que, fundamentados no mesmo sistema de signos, pudessem ser utilizados para a produção de sentidos diferenciados e, também, procuraram-se as variações e exceções às categorias comuns que já haviam sido detectadas. Na quarta leitura, finalmente, procedeu-se ao entrecruzamento vertical e horizontal dentre cada entrevista e entre todas elas.
Processada a análise, patenteou-se que em torno dos quatro eixos temáticos propostos para discussão, os entrevistados elaboraram como questões centrais às suas experiências: a visão da medicina como composta de duas partes - ciência e arte; o encontro médico-paciente enquanto a instância de legitimação do saber médico; o conteúdo específico do campo da pediatria como uma especialidade; e, por fim, a existência, dentro da especificidade institucional, de um postulado de gravidade que dificultaria a construção do raciocínio clínico.
As duas partes/faces
Nas entrevistas, a medicina foi definida como composta de duas partes, tal como, para fazer uso de uma metáfora bem corriqueira, as duas faces de uma mesma moeda. A primeira face/parte foi caracterizada como ciência e a segunda como arte. Entre as duas, e muito como sinônimo da segunda, encontrou-se também a qualificação de "sacerdócio", que de certa forma simbolizaria a relação médico-paciente como se verá adiante.
Nas palavras de dois residentes: "Medicina é um misto de ciência, sacerdócio e arte" e "Para mim difere. [Tem] a parte clínica e a parte científica". Nota-se que houve, portanto, dois níveis de adequação do discurso, um de legitimação social da medicina como ciência e outro, operacional, da medicina como arte. Se aqui usou-se a metáfora das duas faces da mesma moeda para "traduzir" a visão dos entrevistados, Castiel (1999) utiliza metaforicamente a imagem mitológica de Janus para explicar porque os textos médicos definem a medicina como ciência, mesmo diante da "perceptível incerteza de sua prática". Para o autor, uma delas, a que se auto-intitula científica, procura estabelecer relações estáveis entre fenômenos, que podem ser dotados de caráter geral mediante leis imutáveis, tendo como premissas a precisão e a capacidade de replicação; a outra, a da sabedoria prática, é uma maneira de atuar no mundo, trazendo embutida a necessidade de lidar com particularidades impossíveis de serem transformadas em leis gerais.
Fazendo uso de uma metáfora em cima de outra, pode-se afirmar que para os entrevistados, a face "coroa" da moeda referiu-se à ciência e o entendimento que dela fizeram é o mesmo da face "científica" de Janus, tingida por concepções que se articulam ao passado remoto.
Após o século XVII, que os historiadores costumam assinalar como a época do nascimento da ciência "moderna", tendo como próceres Kepler, Galileu, Descartes, Boyle, Sydenham, Leibniz e Newton, o mundo ocidental assumiu que a ciência seria a única capaz de produzir a verdade, postulando fazer-se necessário uma teoria geral baseada em proposições de observação verificáveis, dentro da qual a relação entre o particular e o geral é a de uma conseqüência necessária. A medicina ocidental, até o final do século XIX e primórdios do século XX, construiu seu objeto - a doença - com base nesse modelo que, para usar outras palavras, poder-se-ia denominar de "paradigma mecanicista", "paradigma newtoniano", "paradigma galileano" e/ou "paradigma positivista".
Embora a medicina atual, dentro de uma concepção epistemológica de ciência, refute os princípios de neutralidade e o empiricismo que propugna por um real imutável a ser desvelado pela razão pura e pelo "verificacionismo indutivista", o trabalho de campo apontou que a herança de traços arcaicos desta caracterização positivista de ciência fez-se presente no âmbito dos residentes entrevistados.
Disciplinas pilares do saber médico, tais como a fisiopatologia, a anatomia patológica, a genética molecular, entre outras, evidentemente foram consideradas como representantes do saber médico na sua vertente de ciência e/ou teoria das doenças, mas o cunho positivista que subjazeu à visão do lado científico da medicina remeteu-se indiscutivelmente à noção de que a ciência descobre uma verdade já dada. Quando há mudança de teorias acerca de uma enfermidade, não é pelo caráter conjetural, especulativo, hipotético do conhecimento, mas porque a ciência conseguiu arrancar mais um véu, descortinando melhor o que já está dado ou algo que de súbito é "naturalmente" produzido.
A dupla categorização presente em todas as entrevistas refletiu a constatação geral de uma fronteira bem delimitada entre teoria e prática, e a dificuldade residiria no tráfego que tem que se processar entre elas. Foi a reverberação do ditado "a teoria na prática é outra" o que se ouviu quando se atentou às significações produzidas pelo grupo entrevistado. Todos foram unânimes em identificar o estudo da medicina como eminentemente científico, e a qualidade de ciência como dada por uma teoria da doença e pelas pesquisas na área biomédica; entretanto, ficaram cautelosos em afirmar que a parte clínica, o lado da "cara" da moeda, é também científica. "A gente tem seis anos de teoria e muitas coisas que não se interligam" e "A prática dá essa diferença do caráter individual; de que cada caso é um caso" foram formas de se expressar que referendaram posições de diversos autores que se debruçam sobre a medicina. Para uns, como Ginzburg (1990), não lhe negando o estatuto de ciência, ela se enquadra no grupo de disciplinas que chama de "indiciárias", não passível de ser contida nos critérios de cientificidade deduzíveis do que denomina de paradigma galileano, pois tem "por objeto casos, situações e documentos individuais, enquanto individuais, e justamente por isso alcançam resultados que têm uma margem ineliminável de casualidade" (Ginzburg, 1990: 156); para outros, como Hunter (1991), ela definitivamente não é uma ciência, porém uma atividade racional que se utiliza da ciência, situando-se entre diversos níveis disciplinares e sendo fundamentalmente interpretativa.
O discurso do lado "coroa", na verdade, espelhou a maneira pela qual tradicionalmente o saber médico, dentro da formação universitária, vem ainda sendo sistematizado, isto é, transmitido como algo pronto, não havendo esclarecimento quanto aos processos teórico-metodológicos envolvidos na sua construção, tornando-o homogêneo, objetivado e generalizante, fazendo-o universal e atemporal. Essa forma de saber, representado na teoria da doença, passa a ser "natural", aistórico, acrítico e entroniza a doença como uma "entidade" mórbida dotada de essência vital própria. O conhecimento médico, acumulado e disseminado desse modo, assume um sentido teleológico, ou seja: se explica não só por aquilo que materialmente contém, mas também por sua razão final, o propósito pelo qual existe e foi criado por algo que o transcende.
Essa face, nos discursos analisados, não envolveu nenhuma reflexão epistemológica. Mas a falta desta última, em termos de educação médica, acaba, conforme as entrevistas apontaram, forjando uma lacuna que repercute na atuação profissional, uma vez que tanto pode dar margem a uma maior licenciosidade na invasão para fins de diagnose e terapêutica, quanto alimentar a hegemonia da voz biomédica e a usual assimetria médico-paciente.
O discurso referente à face "cara" enfatizou a prática como dependente da experiência e da vivência, configurando a clínica como um trabalho artesanal, individual. É valendo-se dela que surgiu o componente da ação, da atuação do médico propriamente dita. A medicina situou-se, nesse momento, bem na linha da fronteira que delimitava teoria e prática, e os entrevistados verbalizaram a valorização do empírico, do concreto na figura do doente. O foco dos depoimentos passou a ser o médico experimentando com o paciente individualizado.
Todo o grupo de residentes entrevistados referiu que durante a graduação o doente está muito distante. É idealizado à imagem do livro texto, porque o empírico são as doenças, estudadas pelas várias disciplinas que as definem. Já a residência médica, eminentemente prática, oferece o doente como objeto de estudo. A clínica, ainda que se utilizando de uma série de fenômenos comparáveis - a grade nosológica - para identificar a enfermidade específica de cada doente, tem sempre uma abordagem individualizada, isto é, a leitura do caso individual. O movimento que se experimenta, então, é inverso ao que ocorreu na faculdade. Agora hão que se obter os dados do paciente (o concreto), a partir daí reportar-se ao conhecimento acumulado (a teoria) e então retornar-se ao doente enquanto indivíduo particularizado. Este retorno, porém, foi visto como intermediado pela experiência, vivência e bom-senso, consubstanciando o que conceituam como a face arte da medicina. E para exercer bem esta arte é que a residência médica tem sentido.
Para Camargo Jr. (1997), referendando os achados de Castoldi (1996), essa dupla face ciência e arte evidencia uma polaridade entre duas modalidades de funcionamento, com uma tensão permanente e sem disfarces entre elas: por um lado, a exaltação do estudo, do saber, da objetividade e, por outro, a tônica na experiência, na sensibilidade, no afeto. Contudo, se a referência à arte reflete a necessidade de relativizar o papel das teorias médico-científicas na função terapêutica, ao mesmo tempo pode servir de justificativa para qualquer atitude sob a ótica da sensatez. Há, nesta postura, o risco, comum a qualquer ação terapêutica, de se gerarem novas maneiras de controle disciplinar, via medicalização, já que o aconselhamento não sendo uma atividade sistematizada, treinada e desenvolvida como a semiologia, por exemplo, pode muitas vezes se transformar em algum tipo de terapia moral (Camargo Jr., 1997).
O indiscutível foi que, em torno das duas partes/faces, se estabeleceu, por parte dos entrevistados, uma visão de medicina em acordo com os escritos tradicionais sobre semiologia médica, tal como o de Romeiro (1980:2) que afirma: "A medicina é na realidade uma atividade profissional que engloba ciência e arte, fundamentadas respectivamente em conhecimento técnico diferenciado e em profundo respeito pelo ser humano como pessoa".
A metáfora do xamã
O conjunto dos entrevistados considerou a prática médica como um sacerdócio, o que põe em cena, de imediato, uma outra metáfora, aquela do xamã. O paralelo é claro: os xamãs arrogam a si o dom de resolver os sofrimentos humanos e crêem serem altruístas, concebendo-se como se sacrificando a serviço da coletividade. Os médicos residentes que fizeram parte deste estudo, tais como eles, percebem-se predestinados a uma missão. Imbuídos dessa convicção, pretendem empenhar-se em resolver o padecimento acarretado pelo adoecer de seus pacientes, mesmo quando este é causado por moléstias que não se enquadram na teoria das doenças. A colocação de um deles que asseverou que "para ser médico você tem que ter um certo dom (...) ter a vontade de se doar" foi representativa da visão geral.
Nas situações em que não se encontra um substrato fisiológico determinante e/ou explicativo da enfermidade, a prática médica é bem menos eficaz que a xamanística, visto que o contexto no qual se encontra inserida difere bastante desta e, principalmente, porque por sua própria constituição não possui os elementos do complexo xamanítico, conforme foram muito bem definidos por Lévi-Strauss (1985).
Uma leitura indiciária mais apurada, porém, mostrou que o sacerdócio, para os residentes, dota-se de significado mais pela vertente do domínio do que pela do altruísmo. O sacerdócio não está propriamente definido por uma profissão de fé no ofício de curar, mas sim enquanto reconhecimento da posição hegemônica que o médico ocupa no campo da saúde e da doença e que é legitimada por ser ele quem detém, na cultura ocidental, o conhecimento científico sobre os corpos individuais objetivados por suas enfermidades. E é imerso neste conhecimento que se escuda e encontra guarita para melhor lidar com a dimensão singular do adoecimento humano, oferecendo ao paciente não a indiferença e a impessoalidade, mas a objetividade necessária ao exercício eficaz da profissão.
Ainda que as regras de cientificidade da medicina ocidental tentem romper com a tradição da cura mágica, esta tradição arcaica permanece, pelo menos no nível do não pensado. A afirmação encontrada em todas as entrevistas de que as palavras do médico, por vezes e por si só, têm efeito na resolução do problema do paciente, corrobora essa assertiva. Esse postulado foi ainda mais enfatizado quando o padecimento do paciente foi creditado à ordem do psíquico. Sublinhou-se, assim, a introjeção de um dos traços da racionalidade médica ocidental: a divisão entre sofrimento mental e orgânico. Nos casos em que há evidências de uma base orgânica, os passos estão definidos: anamnese, exame físico, diagnóstico e tratamento; naqueles em que há a ausência de evidências desse tipo a resolução do problema reside numa boa relação médico-paciente. Tudo se passa como se fosse magia. Como asseverou um dos entrevistados: "pelo menos 80% dos problemas que nós consideramos psíquicos são resolvidos numa boa relação médico-paciente".
A concepção xamanística não deixa de ser reforçada pela própria Organização Mundial de Saúde, quando determina que a função do médico é propiciar o bem-estar "biopsicossocial" de seus pacientes. É claro que o tratamento e a cura para determinadas doenças podem trazer o bem-estar, mas alcançá-lo claramente envolve inúmeros outros fatores econômicos, políticos, sociais, culturais... que escapam ao âmbito exclusivo da medicina. Ignorar tais fatores induz a um tipo de reducionismo que pode levar, por um lado, à banalização do sofrimento, porque o homogeneiza, ordena, simplifica e, por outro, a contribuir para uma medicalização ampliada da sociedade, pois o transforma sempre em sintoma duma enfermidade a ser combatida com as armas fornecidas pelo arsenal tecnobiocientífico.
Também embutida na relação médico-paciente fez-se presente nas entrevistas uma questão bastante pragmática, que diz respeito ao despertar e manutenção do sentimento de confiança. Esta, em todos os entrevistados, manifestou-se como conquistada pelo canal da empatia, tendo um propósito claro: obter mais dados para melhor diagnosticar e também garantir o cumprimento da terapêutica prescrita. No caso, o binômio "confiança/empatia" não é simplesmente uma questão de delicadeza, porém uma necessidade para que se torne possível o ato médico, tal como é preciso a fé inabalável na palavra do xamã para que sua ação se inscreva no seio comunitário e a ele sirva.
Além do mais, despertar a confiança do paciente é, por sua vez, uma maneira de mensurar a própria competência profissional. Todos os entrevistados demonstraram não ter dúvidas de que, durante a residência, essa medida da competência do trabalho médico é um dos fatores que permite adquirir progressivamente segurança e conquistar autonomia. A ponderação geral, tomando as palavras de um deles para fins de exemplificação, foi que o paciente "pode entender e confiar muito em você, se você resolver o problema". E uma das residentes sintetizou muito bem quem é a régua e quem é o compasso nesse processo de medição, quando afirmou que sempre busca "uma segurança do paciente com relação a mim como médica".
Esse processo de conquista e aquisição de confiança, entretanto, encontra alguns empecilhos, tendo em vista, por um lado, a especificidade da prática pediátrica e, por outro, o sistema em que ela se dá, isto é, dentro de uma instituição pública com as peculiaridades do IFF.
No que se refere à prática pediátrica esta tende a seguir o modelo atividade-passividade proposto por Parsons (Adam & Herzlich, 1994), uma vez que a criança não é responsável por si. O paciente é, nesse caso, passivo no que diz respeito à tomada de decisão. Quanto às especificidades institucionais do IFF, os enfermos internados na pediatria, via de regra, são portadores de alguma doença de base, o que faz com que o potencial de morbidade seja alto. O hospital atualmente dispõe de poucos leitos pediátricos, além disso uma parte considerável deles é ocupada por doentes advindos da Unidade de Pacientes Graves (UPG). Também existem aqueles cujo estado requer cuidados intensivos e monitorização contínua pelo médico, mas que permanecem na enfermaria por apresentarem moléstias tão restritivas das normas vitais que é contra-indicada sua transferência para a Unidade de Tratamento Intensivo.
Nessa situação, a teoria médica encontra plena possibilidade de aplicação, ensejando uma maior amplitude da objetivação. As condições dos doentes graves fazem com que os residentes adquiram prática no seu manuseio; porém, a assistência prestada no ambulatório traz insegurança porque grande parte das crianças ali atendidas apresentam doença crônica, mas procuram o ambulatório devido a intercorrências agudas tais como: pneumonia comunitária, otite, gastroenterite etc. No dizer de um dos entrevistados, sintetizando bem o problema: "Eu acho mais fácil trabalhar com medicina intensiva ou com pacientes internados. É infinitamente mais fácil do que lidar com o ambulatório. Hoje eu tenho até insegurança em relação ao ambulatório".
Apesar desses entraves o residente adquire segurança, porque há outros caminhos. O tempo, o contato cotidiano com os doentes trazendo maior desembaraço, a introjeção do discurso médico oficial cientificamente legitimado e a aquisição do domínio tecnológico estão entre eles. Em resumo, observa-se que paulatinamente a postura profissional se instaura e o domínio do conhecimento científico modulando a relação médico-paciente, permite ao primeiro a ascendência do saber sobre as doenças e também, mediante o reconhecimento explícito do segundo, a segurança e a confiança na sua competência.
Mas, mesmo assim a metáfora do xamã permanece, articulada à face/parte "cara", ou seja, a do artífice que consciente de seu dom tem como principal referência de vida executar com arte o seu ofício.
Tornar-se pediatra
O conjunto dos entrevistados considerou a pediatria como uma especialidade porque, segundo eles, sendo a faculdade eminentemente teórica é muito difícil tornar-se pediatra apenas com o curso de graduação.
A pediatria, embora mais tarde que outras áreas do saber médico (Seidler, 1974), incorporou os achados da anatomia patológica, direcionando e aprofundando seu conhecimento para regiões orgânicas cada vez mais circunscritas e abordando o corpo humano nos seus diversos aparelhos e sistemas, propiciando o surgimento de várias especialidades, conforme se acumulavam os saberes sobre cada um deles. Pelo mesmo motivo, recursos tecnológicos avançados foram sendo progressivamente utilizados. Hoje a especialidade pediátrica abrange um campo extenso e multifacetado, com uma ampla sistematização de conhecimentos sobre as enfermidades, explicadas segundo a ótica de variadas disciplinas e dominando uma ampla reserva tecnológica.
A residência médica, com razão, foi vista por todos os residentes entrevistados como um meio de aprofundar tais conhecimentos e como uma oportunidade de treinamento que os capacite para o exercício clínico. Por isso mostraram-se ansiosos por treinamento prático, visto como propiciador do domínio de técnicas avançadas, reivindicando também a ampliação do saber teórico, só que agora dirigido especificamente para a teoria das doenças no âmbito da pediatria.
A ampliação teórica, tomando-se por base a prática, é um dos fatores que tornam a residência médica um campo frutífero ao desenvolvimento da experiência clínica. Quinze dos residentes entrevistados opinaram que a teoria deveria ser apresentada de forma semelhante àquela da faculdade, isto é, com base em um caso teórico discutir todas as hipóteses diagnósticas, mesmo as mais improváveis, sendo programados, junto com o professor/preceptor, os caminhos para descartar ou não, pelos dados semiológicos e de exames complementares, algumas dessas hipóteses.
Outra preocupação de caráter geral que emergiu das entrevistas foi a falta de espaço para o exercício em puericultura, que se baseia numa outra linha de construção do saber pediátrico não originário do conhecimento biomédico em senso estrito. A higiene infantil, dentro da qual se insere o discurso puericultor, segue um conjunto de preceitos educativos e moralizantes presentes desde sua origem (Donzelot, 1986), embora tenha também incorporado conceitos do conhecimento biomédico objetivando uma abordagem predominantemente preventiva.
Os depoimentos coletados revelaram o acorde com o postulado que a higiene infantil carreia: o do papel do pediatra na orientação materna/paterna nos cuidados sobretudo, com o lactente. Neles se manifestou verbal e claramente que os residentes entrevistados acreditam na importância dos conselhos profissionais para o correto crescimento e desenvolvimento da criança, reverberando a idealização do apoio médico-científico como imprescindível para os pais criarem bem seus filhos. Como diz um deles: "Os pais nem sempre sabem entender muito bem o que a criança está querendo demonstrar. Nós temos que orientar esses pais desde o início". No entanto, não é descabido aventar a hipótese de que, na prática, o "olhar" com o qual o pediatra observa a criança permanece sendo o que busca contrapor o normal ao patológico, priorizando detectar o prenúncio de problemas orgânicos, de desvios das normas vitais, em suma: o "olhar" perscrutador e vigilante dos primeiros sinais do patogênico. O sentido é bem aquele verbalizado por um dos entrevistados: "Puericultura qualquer um faz. Mas o principal objetivo do acompanhamento puericultor é o de desfrutar o que ele pode dar ao médico: a detecção mais rápida de qualquer problema".
Além do conhecimento das práticas de puericultura propriamente ditas, surgiram indícios de outros motivos que levaram os residentes a desejarem receber maior treinamento prático em higiene infantil. Se existe a consciência da oportunidade de percepção de sinais e/ou sintomas de doenças em fase bem precoce, por vezes, até antes que os familiares deles se apercebam, também há o fato de que esse tipo de acompanhamento permite aprimorar o traquejo no trato com os pais e/ou responsáveis, fora de situações-limite, favorecendo outrossim, como coletivamente apontado, um maior contato com os usuários enquanto auxiliar à apreensão/compreensão das visões sobre adoecimento formatadas pelo saber popular. "Se você sentar para conversar com uma mãe dessas, você aprende bastante; aprende até mesmo muito do que você vai passar para outras mães", é uma assertiva que exemplifica as concepções unanimemente veiculadas.
Fez-se também presente toda uma discussão acerca da crescente sofisticação tecnológica de alto custo, à disposição do pediatra, como um fator inviabilizador da universalização da cobertura assistencial, fato já levantado em estudos como o de Chaves & Rosa (1990). De forma correlata, enfatizou-se sobremaneira a premência em valorizar os cuidados primários em saúde, por intermédio de pediatras generalistas, mormente em países como o Brasil.
A VIII Conferência Mundial de Saúde de 1986 ampliou o conceito de saúde que desde então ficou significando bem-estar físico e mental. A partir daí, inúmeros profissionais passaram a questionar o modelo biomédico, alegando que este não abrange o homem em sua totalidade, sendo, portanto, incapaz de atingir o objetivo proposto. E tal totalidade foi traduzida na corrente expressão "biopsicossocial". Há um conjunto de experiências e ações pediátricas de custo elevado, envolvendo recursos tecnológicos de ponta que está imbricado à discussão sobre o modelo médico vigente enquanto produtor de uma visão biologicista e fragmentada da criança. A esta convicção opõe-se aquela que propõe poder haver a percepção da criança como um ser "integral" dentro de seu contexto "biopsicossocial". As proposições ligadas à higiene infantil articulam-se à última posição, tendo como proposta básica a promoção da saúde e a prevenção das doenças, inclusive, como meio a um dispêndio menor de recursos e redução de procedimentos invasivos e potencialmente iatrogênicos. Estas questões foram apontadas como fundamentais pelos residentes. Todos demonstraram ansiedade tanto em dominar a tecnologia médica de ponta e aprofundar os conhecimentos mais recentes da pediatria, quanto em abordar a criança na sua completude.
O acesso ao ser humano completo acaba sendo expresso, em todos os depoimentos, via uma retórica que poderia ser qualificada de romântica e nostálgica, na qual a pretendida abordagem holística confunde-se com a postura xamanística. Evidencia-se um discurso saudosista da medicina que posicionava o médico mais próximo ao paciente e partícipe direto do círculo familiar, freqüentemente sendo chamado a qualquer hora e com sua vida voltada quase exclusivamente para a medicina (Porter, 1997). As palavras que se seguem simbolizam bem o sentimento de todos: "Para mim tem muito daquela coisa antiga da dedicação. Antigamente víamos muito mais médicos que viviam para a medicina".
Ocorre que, ao mesmo tempo em que um hospital terciário como o IFF atende às expectativas no que se refere à aquisição de habilidades mais refinadas e à familiarização com os equipamentos mais avançados, distancia, de certa maneira, das atividades específicas aos cuidados primários em saúde.
O aprendizado não tem como escapar desta realidade, decorrendo daí toda uma abordagem particular da criança. Há, primeiro, o desestímulo diante de normas vitais tão restritas e em segundo, a facilidade de acesso a tecnologias de ponta para a investigação diagnóstica. O receio das complicações freqüentemente associadas às doenças crônicas, mesmo quando o motivo da demanda médica são intercorrências comuns, induz a utilização de recursos invasivos com vistas a obter uma maior margem de segurança na condução de cada caso. A problemática da iatrogenia se instaura, mas sobredeterminada pelo perfil da demanda.
O feeling de gravidade
Chama a atenção, no relato dos entrevistados, logo que iniciam a residência, o enorme impacto que sofreram causado pela visão dos doentes internados nas enfermarias do IFF.
Para os hospitais terciários, com efeito, são encaminhados os casos mais graves, marcados por enfermidades crônicas, porque nesses hospitais é que se encontram os recursos demandados por esse tipo de clientela. Entretanto, tal situação alcança maiores proporções no IFF, porque este conta com subespecialidades que caracteristicamente lidam, na maioria das vezes, com enfermos portadores de moléstias crônicas, altamente restritivas e sujeitas a sérias complicações, ocupando os poucos leitos da enfermaria pediátrica. Tais enfermos têm normas vitais de tal modo reduzidas que não toleram a menor infidelidade do meio (Canguilhem, 1990).
À primeira impressão, os residentes têm, angústia à parte, a oportunidade de perceber e lidar com o doente altamente comprometido, podendo exercitar um raciocínio clínico mais elaborado e, necessariamente, rápido. Era de se esperar que o treinamento em qualquer hospital que possua inúmeros recursos para a diagnose e cuja demanda, em sua maior parte, repousa em pacientes com enfermidades raras de prognóstico ruim - quase sempre necessitando de condutas imediatas por parte do médico assistente - fornecesse um campo propício à evolução do feeling de gravidade.
Todavia, as características do IFF, tendo em vista o perfil da demanda e o escasso número de leitos, o que não permite absorver usuários com outros tipos de doença, enseja uma normalização na abordagem dos mesmos. Estes, por serem pouco tolerantes, em função da cronicidade de seus males às alterações do meio, despertam a falta de segurança, em que pese o fato do lidar cotidianamente com eles. Nesse sentido, pode-se dizer que a freqüência de atendimento a casos graves conduz a uma postura intensivista, independente do espaço hospitalar de atuação, que poderá se introjetar no residente, nele permanecendo mesmo após o término de seu treinamento. O pensamento do grupo poderia ser sintetizado pelo que foi dito por um deles: "Eu vou ter que sair daqui tendo em mente que não é todo mundo que vai precisar de antibiótico de última geração. Eu tenho esse medo. Não sei se eu vou saber como proceder".
A realidade rotineira do IFF gera um posicionamento que transforma o eixo semiológico - o da clínica propriamente dita - num coadjuvante aos outros eixos de construção - morfológico e explicativo - que equanimemente ao primeiro, constituem, segundo Camargo Jr. (1993), o arcabouço genérico do que na formulação científica da medicina comporiam as três dimensões para a construção do objeto doença.
A conduta terapêutica, perante a interiorização dessa rotina pautada na gravidade, mais do que se relacionar à indicação procedente, passa a ser articulada à utilização dos medicamentos de desenvolvimento recente e aos exames complementares de toda espécie. É como se os exames complementares e a existência de procedimentos uniformemente prescritos funcionassem como um "seguro médico", eximindo a responsabilidade perante complicações futuras e garantindo a diminuição da margem de erro. A posição do grupo poderia ser sintetizada pelas duas falas que se seguem: "Aqui nós utilizamos demais exames complementares. Nós esquecemos da clínica e 'tacamos' exames complementares" e "Eu acho que se você interpretar assim, a sua margem de erro é menor: se tudo for grave, o que não for, tudo bem".
A freqüência de pacientes com doenças crônicas sujeitas a complicações gera um postulado de que todos são graves ou serão graves. A gravidade penetra como um dogma no pensamento dos profissionais acarretando a padronização de condutas. Assim, como disse um deles: "Nós lidamos muito com a medicina intensiva. O raciocínio clínico é o raciocínio da UPG. É muito claro: você vê o paciente na enfermaria como o paciente crítico".
No que se refere ao manuseio, a experiência adquirida é enorme, uma vez que, diante do grande número de doentes graves, os residentes familiarizam-se com a conduta requerida pelas condições de emergência, aperfeiçoando suas habilidades psicomotoras necessárias ao treinamento médico, capazes de equipá-los com aquilo que no jargão dos profissionais da medicina se convencionou chamar de "boa mão" para executar os procedimentos necessários, por exemplo, diante da iminência de uma parada cárdio-respiratória.
O problema é que o acesso à tecnologia e aos equipamentos médicos sofisticados, tornado também uma norma, acaba por restringir o campo de experiência pela perda da capacidade de discriminar. O uso obrigatório e sistematizado de todos esses recursos, em função do postulado de que todos os doentes são graves e da singularidade da clientela, influi no desenvolvimento de um feeling de gravidade que, em linhas gerais, trata-se de um patrimônio cognitivo ganho na vivência do dia a dia, em que se aprende a captar pistas tênues, que possam indicar a evolução da doença.
O que se pretende dizer é que diante desse processo, por um lado, paulatinamente perde-se a noção de estágios diferenciados de gravidade, instituindo-se a padronização de condutas e, por outro, essa perda de capacidade discriminatória na imputação do grau de gravidade pode ditar um procedimento mais invasivo, o que, conseqüentemente, leva à não-utilização pertinente e eficiente dos recursos existentes.
A institucionalização do postulado de gravidade leva o residente a sentir uma espécie de opressão decorrente, segundo eles, do cerceamento da autonomia imposta pelo staff - ressaltadas personalidades particularizadas - que não admite questionamento acerca das condutas traçadas. A hegemonia do saber médico faz-se sentir no interior do próprio campo. O staff compõe o corpo de preceptores necessários e preconizados como essenciais à formação do bom especialista. Porém, o que os residentes não conseguem estabelecer é que a especificidade do campo de prática do IFF também se faz sentir ao staff, gerando a mesma angústia perante a gravidade, acrescida do peso da responsabilidade de ter de lidar com ela de forma competente e eficaz. A geração do postulado de gravidade corresponderia, assim, à necessidade de responder a questões que a vida/vivência rotineira no ambiente hospitalar coloca.
Mais do que negar ou justificar a existência do postulado de gravidade, contudo, o producente seria pensar, de maneira conjunta, sobre o processo de sua construção, o porquê de ele existir e sua procedência em termos assistenciais, assim como tornar possível utilizar a singularidade do doente para refletir sobre a conduta a ser traçada. Trata-se de dar margem à discussão das alteridades nas semelhanças, sem abrir mão da incontestável eficácia do que disciplinas-chave da construção dinâmica do saber biomédico, tais como a fisiopatologia, a anatomia-patológia e a epidemiologia clínica, por exemplo, têm a dizer sobre as doenças e os doentes.
Recapitulando
Na residência médica, durante o treinamento em serviço e da aprendizagem pela prática supervisionada, a medicina passa a ser definida enquanto compreendendo duas partes/faces: a ciência e a arte de exercer bem um ofício. O contato com o doente individualizado faz emergir, no dizer dos dezoito residentes entrevistados, a face "arte" correlata à assertiva do "dom" inato em exercê-la.
Se um dos desdobramentos da concepção de "dom" é o perigo de se poder passar a acreditar que tudo é permitido, pois a arte depende exclusivamente do artista, o outro é a ilusão de conseguir resolver o sofrimento dos pacientes, mesmo quando suas enfermidades não se inserem na teoria das doenças, mantendo uma tradição xamanística que retroalimenta a visão da medicina como um sacerdócio.
A residência médica agencia diversas formas de interação médico-paciente. Embora inserido em contextos diferenciados, o encontro entre os dois foi sempre definido como a instância do despertar da segurança na própria capacidade e da autonomia, qualificadas pela confiança que o paciente deposita no médico. A especificidade do campo de prática no IFF, entretanto, foi apontada como ingerindo nessa conquista da segurança/autonomia, já que, conforme o grupo de depoentes asseverou, na maioria das vezes eles não vêem o resultado do seu trabalho, quer pelo alto grau de comprometimento dos doentes internados, quer pela restrita possibilidade de seguimento na puericultura ou no ambulatório.
Todos são unânimes em afirmar que com relação ao domínio das técnicas manuais necessárias ao especialista, as oportunidades de aprendizado são inúmeras. Todavia, no referente ao atendimento primário, a realidade vivificada não corresponde às expectativas. É bem verdade que crianças que comparecem ao ambulatório geral de pediatria, muitas vezes para lá vão por intercorrências agudas, de sorte que moléstias mais simples como gastroenterites, otites, verminoses, dentre outras, também se fazem presentes. Mas, como são portadores de doenças crônicas e/ou de base, a postura dos profissionais que as atendem, sejam residentes ou não, via de regra tende a valorizar essas e não aquelas que foram o motivo da consulta. A insegurança se instaura e o medo de complicações advindas das condições subjacentes às intercorrências acarreta o excesso de investigação laboratorial.
As características do campo de prática, aliadas aos recursos tecnológicos sofisticados disponíveis à diagnose e à terapêutica, conduziam à espera de condições propícias à elaboração do raciocínio clínico ligado à capacidade de tomada decisão. Para os residentes entrevistados, contudo, a complexidade dos quadros clínicos que assistem foge ao padrão daqueles descritos nos livros-texto de pediatria, ensejando a percepção de que a tomada de decisão depende de um raciocínio detalhado, individualizado ao caso, com amplo conhecimento dos substratos fisiopatológicos que permitam montar hipóteses diagnósticas.
Por sua vez, a freqüência das oportunidades de contato com pacientes graves, quase sempre demandando condutas imediatas por parte do médico, também levava a se pressupor o desenvolvimento de um raciocínio clínico e um feeling de gravidade apuradamente mais discriminatórios e ágeis. A pesquisa empreendida, porém, mostrou que a infra-estrutura oferecida não basta e que, inclusive, para além da racionalidade médica, existem outros fatores que afetam a experiência na residência médica em pediatria no IFF, colocando em evidência a diferença entre manusear o doente grave e avaliar os indícios de gravidade que se prenunciam. Diante da especificidade do IFF, a aquisição do feeling de gravidade esbarra no a priori do postulado de que ali "todos os doentes são graves". Por sua vez, o saber estritamente biomédico sofre um embate, porque nunca se sabe a reposta do paciente ao ato médico, quer porque é grave e a probabilidade de insucesso terapêutico é grande, quer pelas opções de condutas previamente delimitadas pela gravidade instituída e institucionalizada.
De alguma maneira, entretanto, as dificuldades acabam sendo superadas na prática profissional pós residência. O aprendizado do ofício de terapeuta - como qualquer outro - é tarefa contínua e pendente do tempo e do espaço de atuação. Afinal, não há como fazer atalhos para uma experiência de vida.
Referências
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Recebido em 5 de março de 1999
Versão final reapresentada em 19 de março de 2001
Aprovado em 29 de abril de 2001