ARTIGO ARTICLE

 

Antonio José Ledo Alves da Cunha 1

Manejo de infecções respiratórias agudas em crianças: avaliação em unidades de saúde do Rio de Janeiro

 

Case management of acute respiratory infections: evaluation in Rio de Janeiro health care facilities

1 Departamento de Pediatria, Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Brigadeiro Trompowsky s/n, Rio de Janeiro, RJ 21941-590, Brasil. acunha@hucff.ufrj.br  

Abstract The goal of this article was to assess quality of case management for acute respiratory infection (ARI) in children and to detect barriers to proper management. A cross-sectional approach was used with a representative sample of primary and out-patient health care facilities under the Rio de Janeiro Municipal Health Department. Physicians were observed while attending children under five years of age with ARI, and the children were then evaluated according to standard criteria, and the results compared. Physicians were interviewed and health care facilities evaluated for availability of antibiotics. We studied 29 facilities (two hospitals, 20 health centers, and seven health posts), interviewed 46 physicians, and observed 267 children. Sensitivity of the classification used to detect pneumonia was 21.8 (95% CI: 9.3-40.4), specificity was 77.3 (95% CI: 70.3-82.4), and accuracy was 70.6 (95% CI: 64.7-75.5). Antibiotics were prescribed unnecessarily for 8.9% of ARI cases. Standard antibiotics were available in all the health care facilities. We conclude that quality of ARI case management in children can be improved substantially, especially with more training and supervision and better organization of services.
Key words
Respiratory Tract Infections; Child Health; Health Services; Medical Assistance

 

Resumo O objetivo deste estudo foi avaliar a qualidade do manejo de casos de infecções respiratórias agudas (IRA) em crianças e identificar possíveis barreiras na atenção prestada. Utilizou-se desenho transversal em amostra representativa de unidades de saúde primárias e ambulatoriais do setor público no Rio de Janeiro. Médicos foram observados atendendo menores de cinco anos com IRA. Em seguida, as crianças foram avaliadas com a utilização de normas padronizadas e os resultados comparados. Foram entrevistados os médicos e avaliados os serviços quanto à disponibilidade de medicamentos. Estudaram-se 29 unidades: 2 hospitais, 20 centros e 7 postos de saúde; observaram-se 267 crianças e entrevistaram-se 46 médicos. A sensibilidade da classificação utilizada pelos médicos para detectar pneumonia foi de 21,8 (IC 95%: 9,3-40,4), a especificidade 77,3 (IC 95%: 70,3-82,4) e a acurácia de 70,6 (IC 95%: 64,7-75,5). Em 8,9% dos casos de IRA antibióticos foram prescritos inapropriadamente. Havia disponibilidade de antibióticos padronizados em todas as unidades. Concluiu-se que a qualidade do manejo da criança com IRA pode ser aprimorada, em especial para os casos mais graves, sendo necessário reforçar a capacitação, a supervisão e a organização da atenção e dos serviços.
Palavras-chave
Infecções Respiratórias; Saúde Infantil; Serviços de Saúde; Assistência Médica

 

 

Introdução

 

As infecções respiratórias agudas (IRA) são ainda uma das principais causas de morbidade e mortalidade na infância. A cada ano, estima-se que aproximadamente 15 milhões de crianças morram no mundo antes dos cinco anos de idade, um terço devido às IRA (Antuñano, 1997; Garenne et al., 1992), sendo a pneumonia a maioria dessas infecções. Dessas mortes, 98% ocorrem em países em desenvolvimento, onde a gravidade da doença é maior (Denny & Loda, 1986; Graham, 1991). Além disso, as IRA são responsáveis por 30 a 60% das consultas ambulatoriais e importante causa de hospitalização na infância (Graham, 1991; Pio et al., 1984), em alguns locais a principal, responsável por 6,7 a 10,2% das internações (Chatkin et al., 1987; Victora et al., 1988). No Brasil, a pneumonia foi a principal causa de mortalidade em menores de cinco anos entre 1985 e 1990, responsável por 772 mortes por cada 100.000 nascidos vivos, taxa muito maior do que a observada, por exemplo, nos Estados Unidos no mesmo período, que foi de 14,8 mortes por 100.000 nascidos vivos (Antuñano, 1997). Essa situação reveste-se de especial gravidade, pois muitas dessas mortes ocorrem no domicílio (Chatkin & Molinari, 1997).

Em resposta a esta situação, o Ministério da Saúde (MS) iniciou em 1984, com apoio da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS), ações para o controle das IRA como parte integrante do Programa de Assistência Integral à Saúde da Criança - PAISC (MS, 1984). Os objetivos eram: reduzir a mortalidade, em especial por pneumonia; reduzir o número de casos graves e de complicações das infecções de vias respiratórias superiores e inferiores; e, diminuir o uso inadequado de antibióticos e outros medicamentos (Pio et al., 1984). As ações enfatizavam: a capacitação dos profissionais de saúde no manejo padronizado de casos de IRA; a organização dos serviços, incluindo o abastecimento regular de antibióticos e suprimentos nas unidades de saúde; e a educação aos responsáveis e à comunidade.

Para possibilitar o adequado planejamento em saúde, ações e programas necessitam de avaliação periódica, que no caso do controle das IRA, tem sido conduzida em alguns locais (Chatkin & Aché, 1997; Oliveira, 1997; Vidal, 1996). Em 1996, o Mistério da Saúde, com o apoio da OPAS/OMS, conduziu uma investigação para avaliar as ações de controle das IRA em seis capitais brasileiras (Cunha et al., 1998). Parte dos resultados desta avaliação realizada na Cidade do Rio de Janeiro são descritos neste artigo. Os objetivos da investigação foram: avaliar o manejo de casos de IRA em crianças atendidas em unidades de saúde, comparando com o manejo padronizado; detectar problemas nessas unidades que pudessem impedir práticas adequadas de atenção às crianças com IRA; e, estimar alguns dos indicadores relacionados às IRA, propostos pela OPAS e selecionados pelo PAISC do MS.

 

 

Metodologia

 

Realizou-se um estudo transversal em uma amostra representativa de unidades de saúde da rede pública municipal da Cidade do Rio de Janeiro. Aquelas que prestassem atenção primária e atendimento ambulatorial eram elegíveis. As unidades foram selecionadas aleatoriamente utilizando-se a técnica de amostragem por conglomerados, levando-se em conta o número médio de atendimentos ambulatoriais prestados a crianças menores de cinco anos. Foi estimado que essa amostra deveria incluir trinta unidades de saúde, de modo que permitisse medir os indicadores, propostos pela OPAS e de interesse do MS, com limite de confiança de 10%. Detalhes da técnica de amostragem utilizada podem ser encontrados em outra publicação (OPAS, 1996).

Para o cálculo dos indicadores, estudaram-se crianças menores de cinco anos com IRA e profissionais de saúde das unidades selecionadas. Foram considerados casos de IRA crianças com queixa de tosse ou dificuldade para respirar nos últimos 15 dias e foram classificados segundo o critério utilizado pelo MS e OPAS em: (a) doença muito grave ou pneumonia grave, (b) pneumonia e (c) não é pneumonia (MS, 1984).

Em cada unidade de saúde observou-se o manejo de casos de IRA pelos médicos. Era solicitado a estes que descrevessem, em voz alta, o que estavam procurando, e seus resultados. Ao fim de cada observação, a criança com IRA era re-examinada em local separado, segundo as Normas de Assistência e Controle das IRA do MS, e entrevistava-se o responsável. Ao final de todos os atendimentos, entrevistavam-se o profissional de saúde e o responsável pela unidade de saúde o qual fornecia informações sobre tipos de medicamentos e quantidades disponíveis.

A coleta de dados foi realizada nos meses de maio a setembro de 1996, em um período em que se esperava uma maior prevalência de casos de pneumonia. O tempo médio de coleta em cada unidade foi de duas semanas. A equipe de campo foi composta de oito entrevistadoras, quatro médicas e quatro enfermeiras, com conhecimentos prévios das normas padronizadas de Assistência e Controle das IRA. Os entrevistadores iam em duplas, uma médica e uma enfermeira, para cada unidade de saúde. A enfermeira observava a consulta e o médico da equipe examinava a criança (padrão-ouro), após esta ter sido consultada com o médico da unidade. As duplas foram selecionadas aleatoriamente e não foi permitido aos componentes coletar dados na sua unidade de lotação.

Antes da coleta de dados, conduziu-se um estudo piloto em duas unidades de saúde não selecionadas para a investigação, que teve como objetivos testar os formulários e o processo de coleta em condições reais, detectar e solucionar problemas. Neste período os entrevistadores foram capacitados e avaliou-se a confiabilidade, comparando-se as respostas dos entrevistadores com uma norma padrão (coordenador da pesquisa) e entre eles mesmos, sendo calculadas as percentagens das atividades realizadas corretamente. Procedeu-se à fase de coleta quando a confiabilidade foi igual ou superior a 90%.

Os dados foram processados em folhas de tabulação padronizadas e posteriormente consolidados, sendo então calculados os indicadores propostos pela OPAS/OMS (OPAS, 1996). Calcularam-se também a sensibilidade, especificidade, valores preditivos positivo e negativo, e a acurácia (Fletcher et al., 1996) da classificação de diagnóstico das IRA, utilizada na rotina dos serviços, para detecção de pneumonia (doença muito grave ou pneumonia grave + pneumonia) e os respectivos intervalos de confiança (Fleiss, 1981). A metodologia utilizada na investigação foi baseada no Manual para Pesquisa em Unidades de Saúde - Manejo de Casos de Infecções Respiratórias Agudas, elaborado pela OPAS/OMS (OPAS, 1996).

Aos pais ou responsáveis e aos profissionais de saúde foi solicitada autorização verbal para participação na investigação, tendo sido esta aprovada pelo MS e pela Secretaria Municipal de Saúde.

 

 

Resultados

 

Foram elegíveis para o estudo todas as unidades da Secretaria Municipal de Saúde. Em função da regionalização, estas unidades eram responsáveis pela maior parte dos atendimentos de crianças menores de cinco anos no Rio de Janeiro.

Foram avaliadas 29 unidades, sendo dois hospitais (7,0%), vinte centros de saúde (69,0%) e sete postos de saúde (24,0%). Uma unidade de saúde, selecionada na amostra, não fez parte da investigação, pois encontrava-se fechada para reformas. Em relação à cobertura, as unidades selecionadas representavam, respectivamente: 33,3% dos hospitais; 58,0% dos centros de saúde e 18,4% dos postos de saúde existentes. Foram entrevistados 263 pais ou responsáveis e observadas 267 crianças. A faixa etária predominante foi de 1-4 anos com reduzido percentual de menores de dois meses (Tabela 1). Foram entrevistados 46 médicos responsáveis pelos atendimentos às crianças. Somente um profissional de saúde se recusou a participar do estudo enquanto todos os responsáveis solicitados concordaram.

 

 

Do total de crianças observadas, quatro (1,5%) foram classificadas pelo entrevistador (padrão-ouro) como doença muito grave ou pneumonia grave; 28 (10,5%) como pneumonia e 234 (88,0%) como não é pneumonia, e um caso não foi possível examinar e classificar, totalizando assim 267 casos. O número e percentual de casos corretamente classificados pelos médicos da rede foram: um (25,0%) para doença muito grave ou pneumonia grave; seis (21,4%) para pneumonia e 181 (77,4%) para casos classificados como não é pneumonia (Tabela 2). Na maioria das vezes os médicos da rede não utilizavam esta terminologia, com exceção para "pneumonia". Portanto, o diagnóstico médico foi adaptado pelo entrevistador para estas classificações.

 

 

A sensibilidade, especificidade, valores preditivos positivo e negativo, e a acurácia da classificação diagnóstica dos casos de IRA, utilizadas pelos médicos da rede na rotina dos serviços, para detecção de pneumonia são apresentados na Tabela 2. Utilizou-se como padrão de referência (padrão-ouro) a classificação padronizada, que é preconizada pelo MS e aplicada pelos avaliadores.

Do total de casos de pneumonia (pneumonia grave + pneumonia), cinco (17,8%) receberam atenção padronizada, que incluía classificação correta + tratamento com antibiótico padronizado + aconselhamento/orientação domiciliar (Tabela 3). Observou-se que 156 (59,3%) responsáveis de crianças classificadas como não é pneumonia receberam orientação em cuidados domiciliares (Tabela 3). O percentual de casos de IRA para os quais não estavam indicados antibióticos, segundo as normas do MS, mas que foram prescritos foi de 8,9%. Grande parte dos antibióticos prescritos eram aqueles recomendados pelas normas do MS, sendo o cotrimoxazol (sulfametozazol + trimetoprin) o quimioterápico mais prescrito (35,3%), seguido da amoxicilina (26,5%) e ampicilina (14,7%). Em relação às instruções sobre a prescrição de antibióticos para casa, todos os médicos da rede explicaram as doses para os pais ou responsáveis. O mesmo não se verificou com respeito à orientação para retornar em dois dias (32,4%), quando o retorno era indicado, e quanto à demonstração da primeira dose do medicamento prescrito, que não foi realizada por nenhum médico. Entre os casos de IRA, 60,9% receberam tratamento padronizado para não é pneumonia, 25,0% para pneumonia e para doença muito grave ou pneumonia grave nenhuma criança.

 

 

Dos 46 médicos entrevistados, 47,8% haviam sido capacitados no tratamento padronizado das IRA em cursos que incluíram prática clínica (Tabela 3). Verificou-se, com base na entrevista e segundo as normas do MS, que somente 26,1% dos médicos da rede conheciam os sinais de perigo para IRA, e que 23,9% identificaram corretamente tiragem e 21,7% respiração rápida.

Das unidades de saúde avaliadas, 23 (79,3%) ofereciam tratamento padronizado para casos de IRA e contavam com pelo menos um profissional de saúde capacitado (Tabela 3). Em todas as unidades havia disponibilidade de antibióticos. As maiores dificuldades para a atenção de crianças com IRA, atribuídas pelos médicos, foram agrupadas segundo estivessem relacionadas ao atendimento às crianças (18,8%), ao sistema de referência e contra-referência (17,0%), aos medicamentos (6,2%), à atuação dos familiares (9,4%), e à capacitação e supervisão (2,7%). As queixas específicas dos médicos, em cada um desses grupos, se encontram descritas na Tabela 4.

 

 

Os indicadores selecionados pelo PAISC do MS foram calculados com base nos dados acima e são descritos e apresentados na Tabela 3.

 

 

Discussão

 

Os resultados desta investigação sugerem que a qualidade da atenção à criança com IRA, em unidades de pacientes externos da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, possa ser aprimorada, em especial para os casos mais graves. A possibilidade de aprimoramento não parece estar relacionada à falta de médicos ou de antibióticos, mas sim à necessidade de mais capacitação e supervisão dos profissionais que atendem crianças com IRA, assim como a uma melhor organização desta atenção.

Todas as crianças que participaram da investigação foram atendidas por médico, sugerindo que, ao menos em unidades municipais, os médicos sejam os principais responsáveis pelo atendimento de crianças. Este achado também sugere haver possibilidade de organizar melhor a assistência à criança com IRA com participação de outros profissionais. Por exemplo, poderia ser implantado um sistema de triagem em que crianças com quadros mais graves fossem atendidas com mais rapidez e de maneira diferenciada. Alem disso, outros profissionais poderiam participar do atendimento de crianças com IRA. No caso de enfermeiros, por exemplo, por se tratar de um programa de saúde que inclui tratamento padronizado, não haveria impedimento legal para esta prática.

A maioria dos casos classificados, tanto pelos médicos da rede, como pelos investigadores, foi de IRA de baixa gravidade, achado este esperado, pois estas são as mais freqüentes (Graham, 1991). Encontrou-se porém um numero reduzido de casos de IRA de maior gravidade, o que pode ser explicado, em parte, por terem sido estudadas somente unidades ambulatoriais de nível primário (Centros e Postos de Saúde), para onde estes casos não devem em geral ser levados. Entretanto, quando a criança doente não entra no sistema de saúde por intermédio do nível primário de atenção, pode ocorrer sobrecarga nos níveis secundário e terciário, se estes casos não forem compatíveis com o nível de atenção requerido. Esta situação pode ocorrer devido a vários fatores, incluindo por exemplo: o horário restrito de atendimento nas unidades primárias, em comparação com as unidades de emergência que funcionam 24h; a limitada disponibilidade dos responsáveis para levarem a criança doente à consulta em horário de trabalho; a percepção por parte dos responsáveis de que haja uma maior resolutividade nos serviços de emergência para casos agudos. É possível, contudo, que melhorando a qualidade da atenção à criança com IRA nas unidades primárias, enfatizando-se o componente de aconselhamento, este problema diminua.

A sensibilidade da classificação utilizada para detectar pneumonia, utilizada pelos médicos da rede na rotina dos serviços, foi muito baixa, sugerindo que muitos casos dessa afecção possam não estar sendo captados pelo sistema de saúde. Essa observação é de grande importância, uma vez que a pneumonia é uma das mais freqüentes causas de mortalidade em menores de cinco anos. Este achado pode ter ocorrido em parte porque um dos sinais utilizados para a classificação padronizada dos casos de IRA - a freqüência respiratória - foi um procedimento utilizado poucas vezes pelos médicos da rede. Por sua vez, a especificidade desta mesma classificação utilizada pelos médicos da rede foi satisfatória, indicando ser esta de utilidade para detectar os casos que não são pneumonia e supostamente menos graves. O valor preditvo positivo também foi baixo. Porém, como este depende da prevalência da doença, pode sofrer variações de acordo com as variações da prevalência da pneumonia nos serviços. A acurácia da classificação, embora satisfatória, se encontra muito influenciada pela alta especificidade. Como a pneumonia é uma doença potencialmente grave e com tratamento em geral disponível e efetivo, deve-se buscar utilizar classificações que tenham alta sensibilidade, visando a sua detecção ampla e precoce, o que pode ser conseguido com a capacitação dos profissionais de saúde.

Quanto ao tratamento, um percentual reduzido de casos de IRA (17,8%) foi tratado segundo as normas preconizadas pelo MS (Tabela 3). Além disso, o percentual de todos os casos de pneumonia (doença muito grave ou pneumonia grave + pneumonia) que recebeu atenção padronizada (classificação + tratamento padronizado) também foi reduzido (15,6%). Esse achado é de especial importância por ser a pneumonia a principal responsável pela morte de crianças com IRA e uma importante causa de mortalidade em crianças menores de cinco anos em geral (Garenne et al., 1992).

Somente 47% dos médicos entrevistados alegaram ter sido capacitados segundo as normas do MS; porém, independente da capacitação, os achados mostram existir um amplo espaço para aprimorar a qualidade da atenção à criança com IRA. Este aprimoramento poderia se dar, por exemplo, com reforço na capacitação dos profissionais no atendimento padronizado e com incremento da supervisão. A padronização visa a melhorar a qualidade da atenção, pela identificação e pelo tratamento apropriados aos casos mais graves, diminuindo assim o risco de morte.

Dois terços dos pais ou responsáveis receberam orientação em assistência domiciliar, mostrando que ainda há possibilidade de melhorar esta prática. Mas se constatou que somente um terço foi orientado para retornar em dois dias nos casos para os quais havia indicação. Este achado também sugere a necessidade de se reforçar a capacitação dos profissionais de saúde, em especial a dos médicos por serem os maiores responsáveis pela atenção à criança enferma, na orientação e aconselhamento dos pais ou responsáveis durante a consulta. A adequada orientação busca ajudar os pais a identificarem corretamente a necessidade de atenção da criança com IRA e a buscarem atendimento nas unidades apropriadas, contribuindo assim para a organização dos serviços de saúde.

O percentual de casos de IRA para os quais antibióticos foram prescritos inapropriadamente foi relativamente baixo (8,9%), semelhante a outros locais mais desenvolvidos (Arnold et al., 1999). É possível que esse achado seja conseqüência de outras ações de saúde não diretamente relacionadas às ações de controle das IRA. Também é possível que os profissionais tenham melhorado suas práticas em função de estarem sendo observados. Observou-se ainda que grande parte dos antibióticos prescritos eram aqueles preconizados pelas normas do MS. Isso pode ter ocorrido, em parte, porque os mesmos antibióticos estavam disponíveis nas unidades de saúde. Ainda com relação à prescrição, notou-se que a maioria das vezes a dose do antibiótico era explicada aos pais ou responsáveis, mas, somente em poucas ocasiões, a primeira dose era demonstrada. Este achado está de acordo com o preconizado nas normas de manejo de casos de IRA do MS. Atualmente, no entanto, as normas preconizam a demonstração da primeira dose como parte do aconselhamento aos responsáveis.

Os achados acima sugerem ser necessário reforçar a capacitação dos médicos e a supervisão periódica. Hoje, as ações de controle das IRA encontram-se incorporadas à estratégia de "Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância" (AIDPI), proposta pela OPAS/OMS e adotada pelo MS como estratégia para contribuir com a redução da mortalidade infantil e melhorar o desenvolvimento da criança (Gove et al., 1997). A estratégia AIDPI representa uma prioridade para melhorar o estado de saúde e a esperança de vida das crianças e prioriza o manejo padronizado da criança doente, o reconhecimento dos sinais e sintomas que as mães devem observar para uma pronta consulta nas unidades de saúde e a organização dos serviços, incluindo a supervisão.

A maioria das unidades contava com antibióticos para tratar adequadamente os casos de IRA, não sendo este portanto um problema na qualidade da atenção. Entretanto, segundo os médicos entrevistados, parecem existir deficiências na atenção relacionadas com as unidades de saúde e a organização da assistência, como por exemplo o sistema de referência e contra-referência de pacientes. Os médicos também citaram como deficiência a falta de antibióticos nas unidades, fato este não observado. Este achado indica que parte dos médicos desconhece os recursos existentes nas unidades em que trabalham. O reforço na supervisão poderia diminuir este problema.

A análise dos indicadores estimados indica existir amplo espaço para melhorar a atenção à criança com IRA, em especial para aquelas com maior gravidade. Entretanto, a presente investigação apresenta limitações que devem ser consideradas. O processo de amostragem permitiu obter uma amostra representativa apenas das unidades municipais de saúde. Assim, não é possível inferir os resultados para todas as unidades de saúde do Rio de Janeiro, como, por exemplo, as privadas e as na época sob a gerência da Secretaria Estadual de Saúde. É preciso também considerar que erros sistemáticos podem ter ocorrido no processo de avaliação dos médicos. Como estes foram avaliados, em parte, por observação, mesmo tendo havido treinamento prévio dos investigadores, existe a possibilidade de erros do tipo viés de informação terem ocorrido neste processo. Também é possível que os médicos tenham melhorado a sua prática, por estarem sendo observados, fazendo então com que os resultados tenham sido subestimados. Acreditamos que estas limitações não tenham afetado as tendências indicadas pelos resultados.

Concluindo, este estudo evidenciou existir espaço para melhorar a atenção às crianças com IRA, nas unidades municipais de saúde da Cidade do Rio de Janeiro. Com base nos achados, recomenda-se que se reforce a capacitação dos médicos, incluindo prática clínica, que se busquem estratégias e mecanismos para melhorar e organizar a assistência nas unidades, incluindo a participação de outros profissionais, e, que se reforce a supervisão rotineira dos profissionais com ênfase no manejo de casos de IRA. A estratégia AIDPI pode vir a contribuir com essas recomendações, visto que contempla todos esses aspectos.

 

 

Agradecimentos

 

O autor agradece o financiamento ao Ministério da Saúde/Brasil e à Organização Pan-Americana da Saúde; à Cristiane Pessoa da Cunha, Francisca Torres, Claudia Orfaliais, Simone Diniz, Monteiro Pereira, Ana Cristina de Menezes Bonfim, Fabiana da Costa Valle, Erica Duarte de Oliveira e Zelina Maria da Rocha Caldeira pela coleta de dados; à Anice Fontenele e a João Amaral pela colaboração no manuscrito.

 

 

Referências

 

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Recebido em 15 de setembro de 2000
Versão final reapresentada em 3 de abril de 2001
Aprovado em 4 de junho de 2001

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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