RESENHAS BOOK REVIEWS
Pamela SiegelI; Nelson Filice de BarrosII
IUniversidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. pam@mpcnet.com.br
IIUniversidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. nelfel@uol.com.br
RELIGIÃO, PSICOPATOLOGIA & SAÚDE MENTAL. Dalgalarrondo P. Porto Alegre: Artmed; 2008. 288 p.
ISBN: 978-85-3631-082-4
Religião e Saúde Mental: objetos únicose múltiplos
Começamos esta resenha parafraseando as últimas palavras do autor, que termina o livro com o reconhecimento dos limites e da reiterada e perplexa percepção da imensa complexidade e riqueza da religião, saúde, sofrimento e transtorno mental, como objetos de investigação. Por isso, Dalgalarrondo declara já nas páginas iniciais que "não é obviamente objetivo deste livro revisar de modo minimamente completo a evolução do pensamento analítico e crítico sobre a religião no Ocidente". No entanto, o livro tem 288 páginas, divididas em duas partes: a primeira, Religião, Psicopatologia e Saúde Mental: Do Coletivo ao Individual, do Fenômeno Sociocultural à Experiência Psicopatológica contém a introdução e seis capítulos; a segunda, Um Balanço entre Teoria e Investigação Empírica no Campo 'Saúde Mental e Religião' na Contemporaneidade, apresenta três capítulos e a conclusão.
Na Introdução, também considerada primeiro capítulo, o autor apresenta definições sobre o fenômeno religioso e explora as diferenças entre espiritualidade e religiosidade. Inclusive delimitando contextos e grupos associados a um e outro campo de prática, encerrando-a com a declaração de que o foco do livro ficará circunscrito ao complexo religião-religiosidade.
No segundo capítulo, há detalhada análise dos elementos da constituição do campo de estudos da religião, construído pelo pensamento antropológico, sociológico e psicológico da religião. Ao longo de quase 50 páginas, são apresentados conceitos e matrizes teóricas que garantem uma aproximação em profundidade das ideias dos "formadores do campo teórico".
Muito úteis são os quadros do capítulo três, que elencam livros seminais da Psicologia da Religião europeia e as principais revistas científicas dessa área. Além disso, compõe o capítulo relações entre a religiosidade e grupos etários, gênero, sexualidade, experiência religiosa, personalidade, identidade e noção de pessoa. Em seguida, o autor explora as matrizes religiosas brasileiras constituindo o capítulo quarto e nele resume a história da religiosidade brasileira, mencionando: Companhia de Jesus, Santas Casas da Misericórdia, Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros, origem histórica das igrejas evangélicas, pentecostais, neopentecostais, espíritas kardecistas, religiões afro-brasileiras e dos chamados sem-religião; encerrando com reflexões sobre escritos de Carlos Rodrigues Brandão e Peter Fry.
No capítulo quinto, descreve o vínculo entre psicopatologia e religião, reconstituindo a história da psiquiatria, com passagens da Idade Média e Renascença. Sínteses das informações são apresentadas em duas interessantes tabelas que ilustram a frequência de delírios religiosos em pessoas com esquizofrenia e listam as diferenças entre as experiências espirituais e os sintomas psicopatológicos. O autor encerra o capítulo tecendo breves e importantes comentários sobre: fanatismo religioso, possessão, mediunidade e experiência de quase-morte.
No capítulo seis, Dalgalarrondo apresenta pesquisas epidemiológicas sobre saúde mental e religião e discute problemas metodológicos, como: viés de publicação e ethos das pessoas religiosas. As pesquisas relacionam religião com uso de álcool/drogas, depressão, suicídio, outros transtornos mentais e esquizofrenia. Há também, estudos sobre religião e bem-estar, qualidade de vida, importância da rede de apoio e o coping religioso, bem como aspectos negativos da religião sobre a saúde mental. O capítulo é encerrado com uma síntese e um alerta, respectivamente, de que há maior número de evidências positivas que negativas da relação entre religião e saúde, e que se engana quem pensa que religião é uma variável universal, com as mesmas implicações para pessoas de diferentes denominações, países, classes sociais e grupos subculturais.
No capítulo sete, o autor explora a tradição brasileira de estudos religiosos sobre religião e saúde mental. Em um item denominado Estudos Contemporâneos, o autor apresenta análises de trabalhos de importantes autores contemporâneos e finaliza afirmando que "As pesquisas sobre saúde mental, psicopatologia e religião no Brasil, entretanto, ainda não alcançaram o nível de maturidade condizente com a importância da religiosidade nessa população".
A Parte II do livro começa com o capítulo oito, composto de reflexões sobre estudos empíricos sobre saúde, transtorno mental e religião, realizados pelo grupo de pesquisa coordenado pelo autor nos últimos 15 anos. Discutem-se limitações metodológicas; a potência de estudos quantitativos e qualitativos; e os resultados de estudos empíricos do grupo sobre o uso de álcool/drogas e religião e a dimensão religiosa na psicopatologia.
O capítulo nono trata da complexidade da religião na sociedade contemporânea como objeto de estudo científico. Nele, o autor se solta e aprofunda as reflexões sobre "como entender o religioso e as formas de sofrimento nesta contemporaneidade intensamente fugidia, na qual as formas de sociabilidade, os valores, os modos de organização do trabalho, os símbolos culturais, a subjetividade, tudo enfim, muda muito rápido e radicalmente".
No décimo capítulo, a religião é analisada como um sistema privilegiado de constituição de sentido e ressignificação do sofrimento, sobretudo, entre o espírito e a letra que orientam a hermenêutica. Assim, constrói-se a abordagem da religião como sistema cultural e delineia-se a religiosidade no Brasil como uma ferramenta para lidar com os sofrimentos cotidianos. Dalgalarrondo ilustra a importância da religiosidade na sociedade brasileira recuperando a seguinte narrativa:
"Por isso, seu moço, é que eu digo: todas as religiões são boas, mas cada uma pra uma ocasião. Para quem não tem problema na vida, a melhor religião é a católica; a gente se pega com os santos, vai à igreja quando quer e ninguém incomoda a gente. Pra quem está em dificuldade financeira, a melhor religião é a dos crentes, porque eles ajudam a gente como irmãos; só que não pode beber, fumar, dançar nem nada. Agora, pra quem sofre de dor de cabeça, a melhor religião é a dos espíritas; ela é exigente, não se pode faltar às sessões, mas cura mesmo. Se Deus quiser, quando eu ficar curado de tudo, eu volto pro catolicismo".
Por fim, nas conclusões ou capítulo décimo primeiro, o autor pergunta-se mais uma vez "afinal, a religião faz bem ou faz mal à saúde mental?". Responde concluindo, com um quadro comparativo de itens positivos e negativos da religião sobre a saúde mental, que a religião pode abrigar a contradição, proporcionando, às vezes ao mesmo tempo, libertação e aprisionamento.
Este livro é uma contribuição importantíssima para os estudos de interface entre Saúde Mental, Ciências Sociais e Saúde Coletiva, por aprofundar múltiplos aspectos da religiosidade e saúde mental. Cobre detalhadamente a pesquisa sobre religião-religiosidade-saúde e tangencia a espiritualidade mística, como anunciou. Por isso, ficamos na torcida para que o autor e seu grupo se interessem, também, pelos Novos Movimentos Religiosos 1 e os grupos New Age, para tirá-los da invisibilidade e explicar seu alcance na sociedade brasileira.
1. Guerriero S. Novos movimentos religiosos, o quadro brasileiro. São Paulo: Paulinas; 2006.