Resumo
A aderência dos pacientes ao tratamento em hemodiálise é importante para o sucesso do tratamento, mas há carência de instrumentos de avaliação validados para o Brasil. Esta pesquisa visou à adaptação transcultural para o Brasil das escalas Renal Adherence Behaviour Questionnaire (RABQ) e Renal Adherence Attitudes Questionnaire (RAAQ), que avaliam os comportamentos e atitudes de aderência. Esses instrumentos foram submetidos aos procedimentos de adaptação transcultural: tradução, retradução, avaliação por comissão de especialistas e estudo piloto. Foram feitas modificações na redação dos itens e no formato de aplicação, que deve ser em entrevista face a face. Não foi necessário alterar as alternativas de respostas. As versões brasileiras das escalas RABQ e RAAQ apresentam equivalência semântica e cultural com as versões originais e foram redigidas de forma a facilitar sua compreensão pela população-alvo. As duas escalas necessitam ser submetidas a estudos de validade e fidedignidade para serem utilizadas.
Adesão à Medicação; Diálise Renal; Questionários
Abstract
Treatment adherence in hemodialysis is important for guaranteeing better results for patients, but Brazil still lacks validated assessment tools for this purpose. The current study aimed to perform a cross-cultural adaptation of the Renal Adherence Behaviour Questionnaire (RABQ) and the Renal Adherence Attitudes Questionnaire (RAAQ). The two questionnaires were submitted to the following cross-cultural adaptation procedures: translation, back-translation, expert panel review, and pilot study. Changes were made in the items’ wording and application, which requires a face-to-face interview. It was not necessary to change the choices of answers. The Brazilian versions of the RABQ and RAAQ showed semantic and cultural equivalence to the original versions and are easy for the target population to understand. The two scales still require validity and reliability studies before use in the field.
Medication Adherence; Renal Dialysis; Questionnaires
Resumen
La adherencia de los pacientes al tratamiento en hemodiálisis es fundamental para un tratamiento exitoso, pero hay una falta de instrumentos de evaluación validados para Brasil. Esta investigación tuvo como objetivo realizar la adaptación transcultural para Brasil de las escalas: Renal Adherencia Behaviour Questionnaire (RABQ) y Renal Adherence Attitudes Questionnaire (RAAQ), que evalúan los comportamientos y actitudes de adherencia. Estos instrumentos fueron sometidos a procedimientos de adaptación transcultural: traducción, retrotraducción, revisión por una comisión de expertos y estudio piloto. Se realizaron cambios en la redacción de los artículos y el formato de aplicaciones, que deben ser mediante entrevista. No fue necesario modificar las opciones de respuesta. Las versiones brasileñas de las escalas tienen equivalencia semántica y cultural con las versiones originales y se redactaron para facilitar su comprensión por parte de la población y de los pacientes. Las dos escalas deben ser objeto de estudios de validez y fiabilidad para su uso.
Cumplimiento de la Medicación; Diálisis Renal; Cuestionarios
Introdução
A doença renal crônica é considerada um grande problema de saúde pública, causando elevadas taxas de morbidade e mortalidade. Em 2012, o Brasil possuía 696 centros de diálise cadastrados no país e 97.586 pacientes em diálise distribuídos por todos os estados 11. Sesso R, Lopes AA, Thomé FS, Lugon JR, Watanabe Y, Santos DR. Relatório do censo brasileiro de diálise crônica de 2012. J Bras Nefrol 2014; 36:48-5..
A doença renal crônica é caracterizada pela presença de lesão renal ou diminuição da função dos rins por três meses ou mais 22. National Kidney Foundation. K/DOQI clinical practice guidelines for chronic kidney disease: evaluation, classification, and stratification. Am J Kidney Dis 2002; 39(2 Suppl 1):S1-266.. O tratamento hemodialítico requer aderência medicamentosa, dietética, hídrica e de assiduidade às sessões de diálise33. Riella MC. Princípios de nefrologia e distúrbios hidroeletrolíticos. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan; 2003.. A falta de aderência ao tratamento pode ser a causa do insucesso das propostas terapêuticas, colaborando para o aumento da morbidade e da mortalidade 44. Green CA. What can patient health education coordinators learn from ten years of compliance research? Patient Educ Couns 1987; 10:167-74..
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os provedores e o sistema de saúde precisam desenvolver meios de avaliar a aderência e os seus fatores associados, objetivando melhorar as intervenções terapêuticas 55. Word Health Organization. Adherence to long term therapies: evidence for action. Geneva: World Health Organization; 2003.. Dessa forma, um dos instrumentos para avaliar a aderência ao tratamento em hemodiálise, com qualidades psicométricas adequadas, citado na literatura internacional, consiste nas escalas desenvolvidas por Rushe & McGee 66. Rushe H, McGee HM. Assessing adherence to dietary recommendations for hemodialysis patients: the Renal Adherence Attitudes Questionnaire (RAAQ) and the Renal Adherence Behaviour Questionnaire (RABQ). J Psychosom Res 1998; 45:149-57.denominadasRenal Adherence Attitudes Questionnaire (RAAQ) e Renal Adherence Behaviour Questionnaire (RABQ).
No Brasil, há uma carência de escalas de medida para avaliar especificamente a aderência ao tratamento em hemodiálise. O objetivo do presente trabalho foi fazer a adaptação transcultural das escalas RAAQ e RABQ para o Brasil.
Método
Seleção da amostra
Foi selecionada uma amostra de conveniência de 21 pacientes com doença renal crônica em uma clínica de hemodiálise. Os critérios de inclusão foram: ter diagnóstico confirmado de doença renal crônica, estar em tratamento há mais de um ano e ter idade igual ou superior a 18 anos. O tamanho da amostra é compatível com estudos que visam testar a facilidade de compreensão dos itens pela população-alvo 77. Guillemin F, Bombardier C, Beaton D. Cross-cultural adaptation of health-related quality of life measures: literature review and proposed guidelines. J Clin Epidemiol 1993; 46:1417-32.. Não houve necessidade de excluir qualquer paciente.
Instrumentos de medida
A escala RAAQ possui 26 itens que avaliam as atitudes dos pacientes em relação ao tratamento mediante uma estrutura de quatro fatores: (1) atitudes frente às restrições sociais; (2) atitudes em relação ao bem-estar; (3) atitudes em relação ao autocuidado e suporte familiar; e (4) aceitação. As opções de resposta variam entre concordo totalmente e discordo totalmente. A maior pontuação na escala está associada a uma atitude mais positiva em relação às restrições alimentares e hídricas.
A escala RABQ possui 25 itens que avaliam o comportamento dos pacientes frente às restrições de potássio, fósforo, sódio e líquido e à tomada de medicamento mediante uma estrutura de cinco fatores: (1) aderência às restrições de líquidos; (2) aderência às restrições de potássio e fósforo; (3) aderência ao autocuidado; (4) aderência nos momentos de dificuldade; e (5) aderência em relação à ingestão de sódio. As opções de resposta variam entre nunca e sempre. Os maiores escores nessa escala indicam maior frequência de comportamentos de aderência.
Procedimento de adaptação transcultural
Após a autorização dos autores das escalas, o projeto foi submetido e aprovado pela Comissão de Ética da Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ (protocolo no 005/2012). Foram realizados os procedimentos descritos abaixo, recomendados pela literatura internacional da área 77. Guillemin F, Bombardier C, Beaton D. Cross-cultural adaptation of health-related quality of life measures: literature review and proposed guidelines. J Clin Epidemiol 1993; 46:1417-32.,88. Beaton DE, Bombardier CMD, Guillemin FMD, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine (Phila Pa 1976) 2000; 25:3186-91..
a) Tradução: esta etapa consistiu na realização independente de duas traduções dos instrumentos originais por duas pessoas bilíngues, cuja língua materna era o português (T1 e T2).
b) Retradução: as duas traduções foram retraduzidas para o inglês, resultando em duas retraduções (R1 e R2). Essas retraduções foram feitas, de forma independente, por duas outras pessoas bilíngues cuja língua materna era o inglês.
c) Análise por comissão de especialistas: as versões das escalas foram analisadas por uma comissão de especialistas, composta por um especialista em linguística e duas psicólogas. Foi realizada uma comparação entre as versões brasileiras e as originais, visando identificar possíveis imprecisões e realizar as suas correções, de forma a garantir a equivalência semântica das versões em português, em relação à escala original. Foram feitas também modificações na redação dos itens, objetivando adaptá-los à cultura brasileira. Foram feitas duas avaliações: a primeira (A1) se referiu à porcentagem de concordância entre os significados das versões traduzidas e originais. A segunda avaliação (A2) indicou o grau de alteração observado (pouco alterado, inalterado, muito alterado e completamente alterado). Foi obtida, nesta fase, uma versão preliminar das duas escalas.
A versão preliminar foi submetida à apreciação de uma comissão composta por profissionais de saúde de uma clínica de hemodiálise. As sugestões desses profissionais foram submetidas à comissão de especialistas que deliberou sobre sua pertinência.
d) Estudo piloto: esta etapa consistiu na avaliação da compreensão e aplicabilidade das escalas junto à população-alvo. Foi utilizada a Técnica de Sondagem (“probe technique”), na qual se solicita que os respondentes expliquem o que entenderam de cada item e sugiram modificações, quando necessário 77. Guillemin F, Bombardier C, Beaton D. Cross-cultural adaptation of health-related quality of life measures: literature review and proposed guidelines. J Clin Epidemiol 1993; 46:1417-32.. Obteve-se assim a versão final das duas escalas adaptadas para o contexto brasileiro.
Resultados
Descrição da amostra
Os participantes tinham a média de idade de 53 anos, sendo a maioria do sexo feminino (52,4%), casado (81%), com 4 a 8 anos de escolaridade (66,7%) e renda entre 1 a 2 salários mínimos (61,9%). A maioria (76,2%) estava em hemodiálise por cinco anos ou mais. O diagnóstico de base mais frequente, representado por pouco mais de um terço, foi a nefroesclerose hipertensiva (38,09%).
Resultados da adaptação transcultural
A Tabela 1 apresenta os resultados da adaptação transcultural das duas escalas. A primeira coluna de cada escala apresenta os itens da versão original em inglês e a segunda coluna, a versão final em português, após as modificações realizadas pela comissão de especialistas, com base na análise das traduções e retraduções, nas sugestões dadas pelos profissionais de saúde da clínica de hemodiálise e nas informações obtidas após o estudo piloto com a população-alvo.
Resultados do processo de adaptação transcultural das escalas Renal Adherence Attitudes Questionnaire (RAAQ) e Renal Adherence Behaviour Questionnaire (RABQ).
Para a escala RAAQ, 24 dos 26 itens obtiveram percentual de concordância entre as versões acima de 90%, na avaliação A1. Para a avaliação A2, a maioria (20 itens) foi classificada como pouco alterados ou inalterados; três itens foram pouco alterados, completamente alterados e muito alterados, respectivamente, e o restante (3 itens) não obteve nenhuma alteração. As alternativas de resposta tiveram 100% de concordância, resultando em: concordo totalmente, concordo, indeciso, discordo, discordo totalmente.
Para a escala RABQ, 23 dos 25 itens obtiveram porcentagens acima de 88% de concordância entre as versões, na avaliação A1. Foram também considerados, em sua maioria (90%), como pouco alterados ou inalterados, na avaliação A2. As alternativas de resposta obtiveram alto nível de concordância, resultando nos termos: nunca, raramente, às vezes, frequentemente e sempre.
Os resultados do estudo piloto indicaram que os itens das duas escalas foram de fácil compreensão para os pacientes. Apenas sete itens da escala RAAQ e seis da escala RABQ necessitaram de pequenas modificações. Não foi necessário alterar as alternativas de respostas. A comissão de especialistas sugeriu uma mudança no formato de aplicação das escalas, de autorrelato para a aplicação em entrevista face a face.
Discussão
Este estudo permitiu realizar a adaptação transcultural para o Brasil das escalas RAAQ e RABQ de avaliação da aderência ao tratamento em hemodiálise. A fase de análise das versões das escalas pela comissão de especialistas possibilitou corrigir imprecisões nas traduções e ajustar a redação dos itens ao contexto cultural brasileiro. As sugestões dos profissionais da clínica de hemodiálise e o estudo piloto colaboraram para a obtenção de escalas adaptadas à população-alvo de pacientes de qualquer nível de escolaridade, conforme recomendação de Pasquali99. Pasquali L. Princípios de elaboração de escalas psicológicas. In: Gorenstein C, Andrade LHSG, Zuardi AW, organizadores. Escalas de avaliação clínica em psiquiatria e psicofarmacologia. São Paulo: Editora Lemos; 2000. p. 15-21.. A técnica de sondagem foi essencial para evitar dificuldades de compreensão dos itens que podem afetar a fidedignidade das escalas 77. Guillemin F, Bombardier C, Beaton D. Cross-cultural adaptation of health-related quality of life measures: literature review and proposed guidelines. J Clin Epidemiol 1993; 46:1417-32..
Os procedimentos de adaptação transcultural adotados serviram para garantir a equivalência semântica e cultural das versões brasileiras em relação às escalas originais, conforme recomendações de Guillemin et al. 77. Guillemin F, Bombardier C, Beaton D. Cross-cultural adaptation of health-related quality of life measures: literature review and proposed guidelines. J Clin Epidemiol 1993; 46:1417-32. e Beaton et al. 88. Beaton DE, Bombardier CMD, Guillemin FMD, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine (Phila Pa 1976) 2000; 25:3186-91..
O modo de aplicação das escalas, em formato de entrevista face a face e não autoadministradas é considerado mais adequado para a população-alvo com baixa escolaridade 99. Pasquali L. Princípios de elaboração de escalas psicológicas. In: Gorenstein C, Andrade LHSG, Zuardi AW, organizadores. Escalas de avaliação clínica em psiquiatria e psicofarmacologia. São Paulo: Editora Lemos; 2000. p. 15-21., tendo em vista a sua dificuldade de leitura e compreensão das questões e de marcação de opções de resposta, que poderiam invalidar os dados. Quanto à probabilidade de respostas falsas, as duas formas podem igualmente sofrer influência do desejo social. O uso da técnica de sondagem em entrevistas de coleta de dados pode controlar tal viés. A amostra estudada, nesta pesquisa, apresentou características sociodemográficas e clínicas semelhantes às dos estudos de validação das escalas originais 66. Rushe H, McGee HM. Assessing adherence to dietary recommendations for hemodialysis patients: the Renal Adherence Attitudes Questionnaire (RAAQ) and the Renal Adherence Behaviour Questionnaire (RABQ). J Psychosom Res 1998; 45:149-57., e da população de pacientes que usualmente fazem tratamento em hemodiálise no contexto brasileiro 11. Sesso R, Lopes AA, Thomé FS, Lugon JR, Watanabe Y, Santos DR. Relatório do censo brasileiro de diálise crônica de 2012. J Bras Nefrol 2014; 36:48-5..
Espera-se que essas escalas possam ser úteis, no contexto clínico de hemodiálise, para a elaboração de planos terapêuticos individualizados e, no contexto da pesquisa, para a avaliação dos fatores determinantes da não aderência. Todavia, estudos futuros deverão avaliar as qualidades psicométricas de validade e fidedignidade das escalas, para que elas possam ser utilizadas no contexto brasileiro.
Referências
- 1Sesso R, Lopes AA, Thomé FS, Lugon JR, Watanabe Y, Santos DR. Relatório do censo brasileiro de diálise crônica de 2012. J Bras Nefrol 2014; 36:48-5.
- 2National Kidney Foundation. K/DOQI clinical practice guidelines for chronic kidney disease: evaluation, classification, and stratification. Am J Kidney Dis 2002; 39(2 Suppl 1):S1-266.
- 3Riella MC. Princípios de nefrologia e distúrbios hidroeletrolíticos. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan; 2003.
- 4Green CA. What can patient health education coordinators learn from ten years of compliance research? Patient Educ Couns 1987; 10:167-74.
- 5Word Health Organization. Adherence to long term therapies: evidence for action. Geneva: World Health Organization; 2003.
- 6Rushe H, McGee HM. Assessing adherence to dietary recommendations for hemodialysis patients: the Renal Adherence Attitudes Questionnaire (RAAQ) and the Renal Adherence Behaviour Questionnaire (RABQ). J Psychosom Res 1998; 45:149-57.
- 7Guillemin F, Bombardier C, Beaton D. Cross-cultural adaptation of health-related quality of life measures: literature review and proposed guidelines. J Clin Epidemiol 1993; 46:1417-32.
- 8Beaton DE, Bombardier CMD, Guillemin FMD, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine (Phila Pa 1976) 2000; 25:3186-91.
- 9Pasquali L. Princípios de elaboração de escalas psicológicas. In: Gorenstein C, Andrade LHSG, Zuardi AW, organizadores. Escalas de avaliação clínica em psiquiatria e psicofarmacologia. São Paulo: Editora Lemos; 2000. p. 15-21.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Out 2015
Histórico
- Recebido
25 Jun 2014 - Revisado
29 Maio 2015 - Aceito
27 Ago 2015