Resumo
No passado, os agentes da indústria alimentícia tentaram atrasar e enfraquecer os esforços de saúde pública para promoção de dietas adequadas e saudáveis no Brasil. O presente estudo tem como objetivo identificar as estratégias políticas utilizadas pelos agentes da indústria alimentícia no Brasil. Realizamos uma análise documental das informações disponíveis ao público, bem como entrevistas com 18 informantes-chave em saúde pública e nutrição. A coleta e análise de dados foi realizada entre outubro de 2018 e janeiro de 2019. No Brasil, os agentes da indústria alimentícia interagiram com organizações de saúde, comunidades e com a mídia. Difundiram informações sobre nutrição e atividade física em eventos científicos e escolas. A indústria alimentícia também apresentava aliados dentro do governo e fazia lobby junto a altos funcionários. Por fim, os agentes da indústria alimentícia intimidaram alguns profissionais da saúde pública, inclusive com ameaças de litígio, o que teve o efeito de silenciá-los. Essas estratégias foram facilitadas por argumentos como o papel crucial desempenhado pela indústria de alimentos na economia e seu apoio aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas. Responsabilidade pessoal, moderação e educação foram citadas como soluções para a epidemia de obesidade, e houve pouca discussão sobre a problemática mais ampla de dietas inadequadas e insalutares. Os agentes da indústria alimentícia no Brasil utilizaram uma gama diversificada de estratégias políticas com o potencial de influenciar negativamente as políticas públicas, mas também a pesquisa e a prática no país. Conhecer essas estratégias é um primeiro passo essencial e, em resposta, é crucial desenvolver mecanismos robustos para lidar com a influência indevida das corporações.
Palavras-chave:
Indústria Alimentícia; Política Pública; Ética Profissional
Fundamentos
As doenças não transmissíveis (DNT), que representam a principal causa de mortalidade no mundo, poderiam ser prevenidas e controladas pela introdução de políticas públicas de saúde nos países 11. World Health Organization. WHO Global Non Communicable Diseases Action Plan 2013-2020. Geneva: World Health Organization; 2013.. No Brasil, houve propostas para restringir a publicidade de alimentos não saudáveis para crianças, aumentar a tributação sobre bebidas açucaradas e implementar uma rotulagem nutricional frontal em produtos alimentícios, como forma de limitar o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, principal fator de risco para o desenvolvimento de DNT 22. Monteiro CA, Cannon G. The impact of transnational "big food" companies on the South: a view from Brazil. PLoS Med 2012; 9:e1001252.,33. Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Strategic action plan to tackle noncommunicable diseases (NCD) in Brazil 2011-2022. Brasília: Ministério da Sáude; 2011. (Série B. Textos Básicos de Saúde).. Com uma população de 209 milhões de pessoas 44. World Bank. Country profile. Brazil. https://databank.worldbank.org/views/reports/reportwidget.aspx?Report_Name=CountryProfile&Id=b450fd57&tbar=y&dd=y&inf=n&zm=n (accessed on 05/Mar/2020).
https://databank.worldbank.org/views/rep... , o Brasil é um enorme mercado para tais produtos, e essas políticas representam uma ameaça para as vendas da indústria alimentícia. No passado, agentes da indústria alimentícia tentaram atrasar e enfraquecer os esforços de saúde pública na promoção de dietas adequadas e saudáveis. Como exemplo, pressionaram o governo contra a introdução de restrições à publicidade de produtos insalutares, proposta pela agência reguladora da saúde brasileira, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) 55. Baird MF. O lobby na regulação da publicidade de alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Revista de Sociologia e Política 2016; 24:67-91.,66. Henriques P, Dias PC, Burlandy L. A regulamentação da propaganda de alimentos no Brasil: convergências e conflitos de interesses. Cad Saúde Pública 2014; 30:1219-28.. Em contraponto, os agentes da indústria alimentícia defenderam a adoção da autorregulamentação 66. Henriques P, Dias PC, Burlandy L. A regulamentação da propaganda de alimentos no Brasil: convergências e conflitos de interesses. Cad Saúde Pública 2014; 30:1219-28.,77. Monteiro CA, Gomes FS, Cannon G. The snack attack. Am J Public Health 2010; 100:975-81..
Essas tentativas de influenciar as políticas públicas de saúde são referidas como “atividade política corporativa” (APC) na literatura 88. Hillman AJ, Keim GD, Schuler D. Corporate political activity: a review and research agenda. J Manage 2004; 30:837-57.,99. Ulucanlar S, Fooks GJ, Gilmore AB. The policy dystopia model: an interpretive analysis of tobacco industry political activity. PLoS Med 2016; 13:e1002125. e, para a indústria alimentícia, compreendem cinco estratégias 1010. Mialon M, Julia C, Hercberg S. The policy dystopia model adapted to the food industry: the example of the Nutri-Score saga in France. World Nutr 2018; 9:109-20.: gestão de coalizão; gestão de informação; envolvimento direto e influência nas políticas; estratégias legais; e estratégias discursivas (Quadro 1).
Marco conceitual para categorizar a atividade política corporativa da indústria alimentícia (adaptado de Ulucanlar et al. 99. Ulucanlar S, Fooks GJ, Gilmore AB. The policy dystopia model: an interpretive analysis of tobacco industry political activity. PLoS Med 2016; 13:e1002125. e Mialon et al. 1010. Mialon M, Julia C, Hercberg S. The policy dystopia model adapted to the food industry: the example of the Nutri-Score saga in France. World Nutr 2018; 9:109-20.).
A identificação dessas estratégias é um passo crucial para informar as autoridades governamentais, profissionais de saúde pública e outros stakeholders sobre a influência negativa que a indústria poderia exercer em seus países. Dada a inexistência de um mapeamento abrangente das diferentes estratégias de APC da indústria alimentícia no Brasil, o objetivo do presente estudo foi identificar essas práticas políticas.
Métodos
A coleta e análise de dados foram realizadas entre outubro de 2018 e janeiro de 2019. A análise dos dados foi revisada em janeiro-fevereiro de 2020. Realizamos uma análise documental, triangulada com entrevistas. É importante notar que, embora a análise de documentos tivesse um cronograma específico para a publicação do material coletado, nossos entrevistados abordaram informações que poderiam ter acontecido a qualquer momento em suas carreiras.
Análise INFORMAS
Seguimos o protocolo de pesquisa da INFORMAS (International Network for Food and Obesity/Non-communicable Diseases Research, Monitoring and Action Support. https://www.informas.org/) para identificar a APC da indústria alimentícia no Brasil, fazendo uso de informações disponíveis ao público (i.e.: passo 3 do módulo do setor privado da INFORMAS) 1111. Mialon M, Swinburn B, Sacks G. A proposed approach to systematically identify and monitor the corporate political activity of the food industry with respect to public health using publicly available information. Obes Rev 2015; 16:519-30.. Os principais agentes da indústria alimentícia no Brasil foram identificados por meio de um estudo piloto em curso sobre a APC da indústria alimentícia na América Latina 1212. Mialon M, Gomes FS. Public health and the ultra-processed food and drink products industry: corporate political activity of major transnationals in Latin America and the Caribbean. Public Health Nutr 2019; 22:1898-908. e da consulta a especialistas em nutrição em saúde pública no país. Incluímos os membros da Aliança Internacional de Alimentos e Bebidas, que abrangem os maiores agentes globais da indústria em termos de quotas de mercado. Também contemplamos associações comerciais e dois grupos financiados pela indústria alimentícia, abarcando nomes como: Coca-Cola; Danone; Ferrero; General Mills; Grupo Bimbo; Kellogg’s; Mars; McDonald’s; Mondelez; Nestlé; PepsiCo; Unilever; Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas (ABIR); Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA); Instituto Internacional de Ciências da Vida (ILSI Brasil); Conselho Brasileiro de Informação (BRAFIC).
No Material Suplementar (S1. http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/suppl-e00085220-s1_3637.pdf), apresentamos uma lista das fontes de informação consultadas para este estudo.
Tendo como base informações obtidas por meio de um estudo piloto em curso 1212. Mialon M, Gomes FS. Public health and the ultra-processed food and drink products industry: corporate political activity of major transnationals in Latin America and the Caribbean. Public Health Nutr 2019; 22:1898-908., restringimos nossas pesquisas ao âmbito federal e às informações publicadas nesses websites durante o período de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2018. Informações duplicadas encontradas em diferentes fontes de informação foram coletadas apenas uma vez. Os dados estão disponíveis no Material Suplementar (S2. http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/suppl-e00085220-s2_5153.pdf).
Entrevistas
O primeiro autor conduziu entrevistas semiestruturadas com dezoito indivíduos, incluindo uma entrevista em grupo com dois indivíduos e uma entrevista de acompanhamento. Entrevistamos um ex-membro da indústria alimentícia (n = 1) e indivíduos do Poder Executivo do governo (n = 5), Poder Legislativo do governo (n = 3), da sociedade civil (n = 4), do meio acadêmico (n = 4) e da mídia (n = 1). A amostragem foi intencional (n = 9) e os potenciais entrevistados foram identificados pelas suas declarações públicas sobre o papel das práticas políticas da indústria alimentícia no Brasil e no exterior, e foram primeiramente abordados por e-mail. Também utilizamos o método de amostragem bola de neve para o recrutamento de participantes (n = 9). Um indivíduo recusou-se a participar devido a limitações de tempo e dois indivíduos indicaram outra pessoa para ser entrevistada no lugar deles. Dada a sensibilidade do nosso tópico e as atuais ameaças enfrentadas por outros pesquisadores e organizações da sociedade civil que denunciam as práticas da indústria alimentícia no Brasil e na América Latina, decidimos não abordar agentes da indústria para este estudo.
No dia da entrevista, os participantes assinaram um formulário de consentimento no qual concordaram com a gravação digital da entrevista, cuja transcrição poderiam revisar. Todas as entrevistas foram realizadas pessoalmente, em local selecionado pelos participantes, e duraram em média uma hora. Não colocamos restrições nos agentes do setor cujas estratégias de APC foram discutidas, nem no prazo durante o qual essas estratégias de APC foram utilizadas. Conduzimos entrevistas até a saturação dos dados. As gravações digitais das entrevistas foram transcritas literalmente por profissionais contratados.
Análise dos dados
Tanto para a análise das informações disponíveis publicamente como para as entrevistas, usamos uma abordagem dedutiva na análise dos dados, na qual o primeiro autor identificou informações relevantes nos websites citados acima e nas entrevistas, usando um modelo atual para classificar as práticas de APC descritas no Quadro 1. Todos os dados estavam em português ou inglês e foram gerenciados no Microsoft Word e Excel (https://products.office.com/). O segundo autor revisou 10% da codificação, e o consenso foi alcançado (mas não medido) após discussão entre os autores. Ao longo da análise dos dados, aperfeiçoamos o livro de código apresentado no Quadro 1, em um processo iterativo, como indicado em itálico no quadro.
Relatório
Em nossa seção de resultados utilizamos exemplos ilustrativos, como textos de documentos analisados e citações de participantes de entrevistas. Utilizamos como referência um código iniciado com a letra A, que remete a exemplos específicos da análise do documento (Material Suplementar. S2. http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/suppl-e00085220-s2_5153.pdf). As citações das entrevistas, quando necessário, foram traduzidas do português para o inglês pelo primeiro autor. Removemos das transcrições todas as informações que poderiam identificar nossos entrevistados e utilizamos pronomes femininos para citá-los. Nas citações, o texto entre parênteses é um adendo nosso para esclarecimento, quando necessário. O relatório sobre a influência específica da indústria na política de rotulagem nutricional frontal é o tema de um artigo separado. O comitê de ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Brasil, aprovou nosso estudo (projeto número 07944118.7.0000.5421).
Resultados
Seguindo o protocolo INFORMAS, encontramos 304 exemplos de práticas de APC perpetradas pela indústria alimentícia no Brasil: 194 exemplos de estratégias instrumentais e 113 exemplos de estratégias discursivas (categorias não mutuamente exclusivas). Alguns desses exemplos também foram discutidos por nossos entrevistados, que também compartilharam exemplos adicionais. Em termos de agentes da indústria, a maioria dos exemplos encontrados em informações disponíveis ao público envolviam a Coca-Cola (n = 58), empresa que também foi regularmente citada por nossos entrevistados, assim como a Nestlé e o McDonald’s, o que pode significar que eles são os agentes mais ativos em termos de APC e/ou têm mais recursos do que outros agentes para as práticas de APC. Contudo, nenhuma conclusão deve ser retirada desses dados, pois eles também podem significar que outros agentes não são transparentes em seu uso de APC - e não necessariamente que prescindam dessas práticas.
No Quadro 2, usando o enquadramento de APC como um fio condutor, relatamos um estudo de caso específico da filial local do ILSI. Nos últimos anos, o ILSI tem sido criticado a nível global por alegar ser um instituto de pesquisa independente, ao mesmo tempo em que serve aos interesses de seus financiadores, grandes multinacionais de alimentos, em vez de servir aos interesses de saúde pública 1313. Steele S, Ruskin G, Sarcevic L, McKee M, Stuckler D. Are industry-funded charities promoting "advocacy-led studies" or "evidence-based science"?: a case study of the International Life Sciences Institute. Global Health 2019; 15:36.,1414. Corporate Europe Observatory. The International Life Science Institute, a corporate lobby group. Brussels: Corporate Europe Observatory; 2012.,1515. Greenhalgh S. Soda industry influence on obesity science and policy in China. J Public Health Policy 2019; 40:5-16.. O ILSI Brasil é apoiado pela Coca-Cola (A97), Danone (A162), General Mills (A165), Kellogg’s (A180), entre outros.
Gestão de coalizão
Por meio da estratégia de gestão da coalizão, os agentes da indústria alimentícia tentam construir relações com terceiros, tais como organizações de saúde, comunidades e mídia. Em algumas ocasiões, os agentes da indústria alimentícia também tentam intimidar seus oponentes. Encontramos evidências dessas práticas no Brasil, conforme descrito a seguir.
Interações com terceiros
Encontramos exemplos do envolvimento de agentes da indústria alimentícia em diversas iniciativas de saúde, entre outras, em todo o país (Quadro 3).
Exemplos de iniciativas e instituições apoiadas por atores da indústria de alimentos no Brasil (não exaustivo).
No Brasil, os agentes da indústria alimentícia apoiaram eventos artísticos, educação nutricional, iniciativas de atividade física e prevenção do câncer infantil. Encontramos muitos detalhes sobre as atividades do Instituto Ronald McDonald. Um médico, por exemplo, afirmou que o Instituto “desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da oncologia pediátrica no Brasil e é hoje a principal agência financiadora do desenvolvimento dessa especialidade no país” (A200). O Instituto organizou vários eventos todos os anos, como uma solenidade com os principais líderes de opinião e o McDia Feliz, no qual os fundos gerados com a venda de hambúrgueres eram arrecadados para iniciativas comunitárias, em parceria com o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Fabricantes de alimentos também doavam alguns de seus produtos. Um participante descreveu uma ocasião em que alimentos que não eram considerados suficientemente bons (mas seguros) para consumo eram vendidos a municípios brasileiros para alimentar “aqueles que não têm nada para comer”, pois “custa mais descartá-los corretamente do que doá-los” (entrevista, ex-funcionário da indústria alimentícia).
Além dessas interações com comunidades e organizações de saúde, um participante observou que a mídia está ligada à indústria alimentícia por meio das receitas geradas pela propaganda de produtos alimentícios em jornais, por exemplo (entrevista, membro do governo). Além disso, um ex-funcionário da indústria alimentícia explicou que os departamentos de marketing das empresas alimentícias (e de outras indústrias) às vezes convidam jornalistas para suas sedes para falar de suas experiências pessoais, a fim de construir relações com esses terceiros: “são jornalistas que trabalham para as principais empresas de mídia no Brasil, e por isso você cria esses canais de diálogo que serão utilizados mais tarde, com certeza” (entrevista, ex-funcionários da indústria alimentícia). Nossos entrevistados observaram que poderia ser difícil para os profissionais da saúde pública obter informações, publicadas em jornais nacionais, sobre a segurança dos produtos alimentícios, por exemplo, talvez devido a essas relações entre a indústria e a mídia (entrevista, membro do governo).
Fragmentação e desestabilização da oposição
Encontramos casos em que os agentes da indústria alimentícia desacreditaram os profissionais da saúde pública, vistos como adversários da indústria alimentícia e/ou de seus produtos. Dois de nossos entrevistados, trabalhando na saúde pública, nos disseram que essas ameaças e intimidações conseguiram silenciá-los com sucesso.
“Eu me lembro das ameaças [a um alto funcionário], e elas sempre fazem [aquela pessoa entender que] poderiam fazê-la ser demitida do Ministério da Saúde” (entrevista, membro do governo).
Gestão da informação
A indústria alimentícia no Brasil também influenciou a ciência e as informações divulgadas sobre nutrição. Nomeadamente, os agentes da indústria alimentícia ampliaram a informação favorável aos seus produtos, ou que favorecia a imagem de suas empresas. Vários agentes da indústria alimentícia participaram de eventos científicos em todo o país. O Instituto Nestlé de Nutrição patrocinou congressos pediátricos no Brasil (A266-7). O McDonald’s, por meio de seu Instituto e em parceria com o Ministério da Saúde, organizou um fórum sobre políticas públicas para oncologia pediátrica (A217). Essa rede fast-food também patrocinou outros eventos científicos sobre o tema, no Brasil e no exterior, eventos esses nos quais participou e apresentou informações (A217). Mondelez e Nestlé participaram do XXII Congresso Brasileiro de Nutrição (A236, A268).
Além disso, os agentes da indústria alimentícia desenvolveram no Brasil iniciativas educacionais, especialmente aquelas destinadas às crianças nas escolas. A Nestlé tem dois programas de nutrição e atividade física (A254, A256, A262-4), incluindo um que funciona há mais de vinte anos no país (A262). A Unilever tem outro programa de nutrição, em parceria com a Latinmed (uma empresa de marketing e comunicação) e o Instituto do Coração (A303). Nossos entrevistados também mencionaram a existência desses programas nas escolas, em “parceria com a Secretaria de Educação. (...) Entretanto, o problema é que havia o [logotipo da empresa] em vários lugares (...). E havia um programa de recompensa para os professores” (entrevista, membro da sociedade civil).
Influência na política pública de saúde e uso de ações legais
O principal objetivo de qualquer estratégia de APC é, em última instância, garantir um ambiente político favorável para as empresas alimentícias. No Brasil, os agentes da indústria alimentícia estavam de fato influenciando diretamente a política de saúde pública. A Coca-Cola identificou a possível regulamentação de seus produtos como um dos principais riscos para seus negócios: “Impostos e mudanças na regulamentação nas regiões onde operamos poderiam afetar nossos negócios” (A123), pois “podem reduzir a demanda pelos nossos produtos, o que poderia afetar negativamente nossa lucratividade” (A146).
Acesso indireto
Uma técnica bem conhecida de influência nas políticas públicas é o lobbying, que acontece com frequência no Brasil. Foi descrita por um entrevistado como “uma performance diária, cotidiana, junto a pessoas técnicas, políticos (...) com um interesse único e exclusivo no lucro financeiro (...). Eles também exercem pressão sobre o poder executivo” (entrevista, membro do governo).
As relações pessoais entre membros do governo e representantes da indústria, muitas vezes pertencentes à mesma classe social e oriundos da capital Brasília, podem ser um fator que facilita o lobby no Brasil:
“Em Brasília, [o lobby] é tão comum (...). As pessoas se conhecem desde jovens, por isso as relações públicas e privadas são confusas. (...) Porque grande parte das pessoas envolvidas nesses debates, nessas relações governamentais, ou mesmo no governo, nasceram em Brasília (...) e foram amigas desde crianças” (ex-funcionário da indústria alimentícia).
Parece que um pequeno grupo de agentes da indústria, composto pela ABIA, ABIR e Confederação Nacional da Indústria (CNI), assim como grandes transnacionais como Nestlé e Coca-Cola, entre outras, está envolvido com lobby no Brasil (entrevistas, membro da sociedade civil e membro do governo). Em 2018, a ABIR organizou em Brasília um seminário sobre bebidas açucaradas, evento que contou com a presença de representantes do Ministério da Agricultura, da ANVISA e da Instituto de Tecnologia de Alimentos (ITAL) (A61). Além disso, nesse mesmo ano, o Ministério da Saúde se reuniu com representantes de diferentes empresas e associações comerciais, incluindo ABIA, ABIR e Coca-Cola, em pelo menos quatro ocasiões (A6-8, A52-4). Nesse mesmo ano, a ABIA e a Coca-Cola, em reuniões separadas e conjuntas, reuniram-se com a Secretaria de Governo da Presidência da República (A12, A122) e com o diretor da ANVISA (A11-2, A116, A118). No final do ano, o ILSI também visitou o diretor da ANVISA para apresentar as atividades do Instituto e discutir um “relatório do acordo de cooperação técnica e operacional com a ANVISA” (A169).
Além disso, as atividades filantrópicas das corporações no Brasil foram utilizadas diretamente para interagir com as autoridades governamentais. Dois representantes do Instituto Ronald McDonald, por exemplo, visitaram o Vice-Secretário de Saúde “a fim de alinhar as estratégias do Instituto com a política nacional de prevenção e controle do câncer” (A206).
Outra forma de influência indireta na política é a cooptação de formuladores de políticas, na qual os membros do governo representam os interesses da indústria. Foi o que aconteceu, por exemplo, durante a elaboração do Projeto de Lei sobre as restrições a publicidade para crianças, quando “um dos relatores (...) era proprietário de uma distribuidora da Coca-Cola em Brasília” (entrevista, sociedade civil). Em 2018, o governo propôs a redução dos incentivos fiscais aos produtores de bebidas açucaradas na Zona Franca econômica de Manaus, na Amazônia. Nesse caso, os membros do governo tinham laços pessoais com a indústria e defenderam sua posição, contra qualquer corte nos incentivos fiscais. Especificamente, um senador e proprietário de uma empresa de distribuição de bebidas açucaradas utilizou sua posição para influenciar as decisões do governo. Eles coordenaram uma reunião entre o “Ministro da Economia e o presidente da Coca-Cola América Latina” em 2008, quando “o governo discutia uma mudança no modelo tributário” e depois, em 2018, trabalhando “para revogar o decreto [sobre a redução dos incentivos fiscais]. Os senadores que apresentaram o projeto para revogar o decreto eram todos da Amazônia (...). Todos eles têm vínculos financeiros com a Coca-Cola e a Pepsi. Todos eles” (entrevista, jornalista).
Incentivos
Também encontramos evidências da oferta de incentivos pelos agentes da indústria alimentícia aos formuladores de políticas. Embora a corrupção esteja além do escopo de nosso estudo, a infame operação de 2014, a Lava Jato, na qual foram identificados membros do governo brasileiro envolvidos em casos de corrupção, foi mencionada por nossos entrevistados como um evento crítico na história política do Brasil 1616. Procuradoria Geral da República. Caso Lava Jato. http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/lava-jato (accessed on 05/Mar/2020).
http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/lava-... . Um entrevistado explicou que alguns agentes da indústria alimentícia estavam envolvidos nesses casos e que algumas empresas “têm um fundo para defender ex-executivos que eventualmente pudessem ter problemas com a justiça por enviarem incentivos não oficiais a [terceiros]” (entrevista, ex-funcionários da indústria alimentícia).
A Lava Jato trouxe algumas reformas para o Brasil, como as atuais restrições às doações políticas, por exemplo (entrevista, membro da sociedade civil). Entretanto, os agentes da indústria alimentícia às vezes oferecem incentivos de menor valor aos formuladores de políticas, tais como viagens ao exterior, vinho e telefones celulares (entrevistas, membros do governo e ex-formuladores de políticas). Contudo, há restrições estabelecidas para o recebimento de presentes de empresas por funcionários do governo (entrevista, membro do governo). Nossos entrevistados explicaram que o lobby frequentemente acontece fora do Congresso, por meio de eventos pagos pela indústria, tais como jantares em restaurantes ou coquetéis privados (entrevista, membro do governo). Um entrevistado descreveu um evento organizado através da Câmara de Comércio, com a participação do diretor da ANVISA, e observou que, quando as discussões não são registradas e não são feitas de modo transparente, por exemplo, tais eventos poderiam interferir no processo democrático, ao contrário do que ocorre em reuniões formais na ANVISA (entrevista, ex-funcionários da indústria alimentícia).
Agentes na tomada de decisões do governo
Os agentes da indústria alimentícia estavam diretamente envolvidos na tomada de decisões governamentais no Brasil. Eles defendiam a corregulamentação (por meio, por exemplo, de parcerias público-privadas) e a autorregulamentação. No Brasil, várias empresas alimentícias tinham acordos voluntários de restrição à publicidade para crianças (A142, A157, A165, A185, A208, A244, A252, A298). Os agentes da indústria alimentícia também promoveram esforços voluntários na reformulação de produtos alimentícios (A30, A142, A247, A252, A281-2, A299-301). Desde 2008, a ABIA tem parceria com o Ministério da Saúde para reduzir as gorduras trans em produtos alimentares (A37). Como a indústria alegou ter tido sucesso com a redução das gorduras trans, o Ministério assinou outra parceria para a redução do sódio (entrevista, membro do governo). Durante a coleta de dados, em 2018, foi assinado um novo acordo para reduzir a adição de açúcar. Durante o desenvolvimento do acordo, ao longo de um período de 18 meses, os agentes da indústria alimentícia se reuniram com o Ministério da Saúde em seis ocasiões (A36). O lançamento do acordo foi promovido on-line tanto pela indústria alimentícia (A36) quanto pelo Ministério da Saúde (A16, A34, A64, A84-5). Alguns de nossos participantes criticaram esses acordos, que poderiam funcionar como uma “agenda de controle de danos”, em vez de realmente melhorar o ambiente alimentar (entrevista, membro do governo). Além disso, um entrevistado sugeriu que o Ministério da Saúde, no caso de reformulação, depende da boa vontade da indústria e “nunca dirá que não está funcionando, porque eles fazem parte disso (...) - porque, se não funciona, seria como dizer que o Ministério da Saúde falhou” (entrevista, membro do governo). A autorregulamentação foi explicitamente citada pela indústria alimentícia como um argumento contra a legislação obrigatória, por exemplo, no caso da tributação de alimentos insalutares ou de restrições à publicidade para crianças (entrevista, sociedade civil).
“Nós formamos uma parceria sem precedentes entre a indústria de alimentos e bebidas e o Ministério da Saúde para reduzir o açúcar nos produtos até 2022. Investimos no esporte, na inovação, em diretrizes de marketing responsável para crianças. O imposto não cria saúde” (ABIR, A63)
Ações judiciais
Outra estratégia da indústria alimentícia no Brasil foi o uso de ações legais para contestar as políticas de saúde pública, denominadas “ativismo judicial” (entrevista, membro do governo). Essas ações foram utilizadas, por exemplo, para impedir a introdução de uma política de marketing para crianças (entrevistas, membro do governo e pesquisador).
“A indústria alimentícia fez uso de uma ação legal para impedir que o governo introduzisse a legislação. Sim, a legislação foi formulada, publicada, mas não implementada, porque eles foram à Justiça e conseguiram que a legislação fosse suspensa” (entrevista, pesquisador).
Os agentes da indústria alimentícia também fizeram uso da ameaça de ação legal como meio de silenciar seus opositores membros da saúde pública no Brasil (entrevista, membro da sociedade civil), uma prática diretamente relacionada à estratégia de fragmentação e desestabilização da oposição descrita anteriormente.
“Qualquer coisa que você faça que possa criticar [a marca deles], eles (ameaçam processar) (...). E se você não parar [suas críticas], eles vão processá-lo, e os processos são caros no Brasil, e tendem a levar algum tempo para avançar. Portanto, geralmente, [os críticos] preferem parar de criticar” (entrevista, ex-funcionário da indústria alimentícia).
Estratégias discursivas
Impactos sobre a economia e a sociedade
No Brasil, os agentes da indústria alimentícia utilizaram argumentos econômicos para se apresentarem como stakeholders importantes no país. A ABIA alegou que a indústria alimentícia gera 10% do PIB e 1,6 milhões de empregos (A22-3). A ABIR explicou que seus membros pagavam R$ 10 milhões por ano em impostos no Brasil (A70-1). A ABIR utilizou argumentos semelhantes para mostrar sua importante contribuição à Zona Franca da Amazônia (A68) e alegou que a Zona Franca econômica “tornou-se em grande parte responsável pela proteção da floresta amazônica” (A68). Nossos entrevistados observaram que esses argumentos econômicos são frequentemente utilizados pela indústria alimentícia:
“Eles estão sempre destacando essa questão. Todas as apresentações em PowerPoint que fazem aqui no Congresso Nacional dizem que ‘nosso setor gera tantos empregos (...), a economia gira em torno dele, se houver uma mudança na legislação, a cidade se transformará em uma cidade fantasma e tal’” (entrevista, membro do governo).
Os agentes da indústria alimentícia alegaram que as políticas públicas de saúde levariam à perda de lucros e empregos na indústria e a impactos negativos diretos na economia do país. Esse foi o argumento contra uma proposta de redução dos incentivos fiscais aos produtores de bebidas açucaradas na Zona Franca de Manaus, que iria “impactar profundamente o setor” de bebidas (ABIR, A66), “afetar o desenvolvimento econômico da região amazônica (...) e afetar diretamente as populações que dependem da produção de insumos nativos, como o guaraná e o açaí. Também afeta a luta contra o desmatamento e o turismo regional” (ABIR, A68). Esses argumentos também foram utilizados nas discussões sobre as restrições à publicidade para crianças (entrevista, sociedade civil).
Enquadrar o debate
Os agentes da indústria alimentícia no Brasil apresentaram-se como parte da solução para a prevenção e controle da obesidade (ABIR, A75). A Coca-Cola, Nestlé e Unilever, entre outras, fizeram parte da filial brasileira do Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável e utilizaram os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ODS), incluindo a ODS 17, que se concentra na parceria, para justificar suas interações com terceiros (A131, A246).
Em seu discurso sobre nutrição, os agentes da indústria alimentícia no Brasil se concentraram principalmente na obesidade, enquanto ignoravam em grande parte a problemática da dieta saudável e adequada. Em vez de se deter nessa questão, a indústria se concentrou na responsabilidade pessoal e parental, na necessidade de mais atividade física e na importância da moderação, educação e dietas balanceadas (A79, A115, A145). Novamente, esses foram os argumentos lançados ao se tentar influenciar as políticas públicas no país.
“Você vê os mesmos argumentos nas audiências públicas, nas apresentações deles, em documentos que eles deixam para assessores e assistentes de deputados e senadores. E no final, eles sempre sugerem soluções como educação, dieta balanceada, autorregulamentação. É incrível. (...) Eu não sabia que eles usariam as mesmas expressões [em outros países]” (entrevista, sociedade civil).
Como discutido anteriormente, encontramos evidências de que a corregulação e a autorregulação, em vez de políticas mandatórias, eram o modo preferido pela indústria alimentícia para apresentar essas soluções.
Discussão
Os agentes da indústria alimentícia no Brasil utilizaram uma gama diversificada de estratégias de APC, que, individual e coletivamente, têm o potencial de influenciar negativamente as políticas públicas, mas também a pesquisa e a prática no país. Construíram relações com comunidades, organizações de saúde e com a mídia e tentaram moldar a base de evidências em nutrição, ao participar em eventos científicos ou interagir com profissionais da nutrição, por exemplo. Esse ponto foi discutido por Canella et al. 1717. Canella DS, Martins APB, Silva HFR, Passanha A, Lourenço BH. Food and beverage industries' participation in health scientific events: considerations on conflicts of interest. Rev Panam Salud Pública 2015; 38:339-43., em um artigo publicado em 2015. Pereira et al. 1818. Pereira TN, Nascimento FA, Bandoni DH. Conflito de interesses na formação e prática do nutricionista: regulamentar é preciso. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:3833-44., também relataram a influência da indústria alimentícia na formação de profissionais da nutrição. Alguns de nossos participantes observaram a promoção de marcas específicas de produtos parenterais durante eventos de treinamento, por exemplo, nos quais essas interações com comunidades e profissionais poderiam se tornar oportunidades de marketing 77. Monteiro CA, Gomes FS, Cannon G. The snack attack. Am J Public Health 2010; 100:975-81.,1919. Freedhoff Y, Hebert PC. Partnerships between health organizations and the food industry risk derailing public health nutrition. Can Med Assoc J 2011; 183:291-2.. Essas interações com terceiros e os esforços para influenciar a ciência podem comprometer a integridade e a credibilidade das instituições públicas e dos profissionais de saúde, através da associação com produtores de alimentos, em especial aqueles produtores de ultraprocessados 2020. Marks JH. The perils of partnership: Industry influence, institutional integrity, and public health. New York: Oxford University Press; 2019.. Essas interações também podem promover a agenda da indústria, comprometendo ao mesmo tempo a agenda da saúde pública 2121. Panjwani C, Caraher M. The public health responsibility deal: brokering a deal for public health, but on whose terms? Health Policy 2014; 114:163-73.. Há necessidade de uma análise maior dessas iniciativas, principalmente quando são direcionadas às crianças e outras populações vulneráveis.
Além disso, os agentes da indústria alimentícia tinham acesso indireto aos formuladores de políticas e forneciam incentivos financeiros aos funcionários do governo. A indústria, quando confrontada com a regulamentação potencial de seus produtos e atividades, defendeu a corregulamentação e a autorregulamentação ao invés de políticas mandatórias. No caso da indústria de alimentos, as diversas lacunas na co e autorregulamentação e, principalmente, a sua ineficácia na promoção da saúde da população, foram discutidas em outros locais 2222. Clark H, Coll-Seck AM, Banerjee A, Peterson S, Dalglish SL, Ameratunga S, et al. A future for the world's children? A WHO-UNICEF-Lancet Commission. Lancet 2020; 395:605-58.,2323. Ronit K, Jensen JD. Obesity and industry self-regulation of food and beverage marketing: a literature review. Eur J Clin Nutr 2014; 68:753-9.,2424. Kunkel D, Castonguay J, Wright PJ, McKinley CJ. Solution or smokescreen? Evaluating industry self-regulation of televised food marketing to children. Communication Law and Policy 2014; 19:263-92.. Além dos esforços na tentativa de influenciar as políticas, os agentes da indústria alimentícia ameaçaram silenciar profissionais da saúde pública que defendiam restrições à publicidade de produtos insalutares, ou que se posicionavam contra as práticas das corporações.
Por fim, os agentes da indústria alimentícia utilizaram estratégias discursivas, concentrando-se, por exemplo, na sua importância econômica no país e no papel positivo que podem desempenhar na sociedade. Esses argumentos poderiam servir para afastar a responsabilidade dos produtos insalutares na epidemia de DNT, assegurando ao mesmo tempo um lugar para a indústria alimentícia no quadro de políticas 2525. Nestle M. Soda politics: taking on big soda (and winning). New York: Oxford University Press; 2015.,2626. Nixon L, Mejia P, Cheyne A, Wilking C, Dorfman L, Daynard R. "We're part of the solution': evolution of the food and beverage industry's framing of obesity concerns between 2000 and 2012. Am J Public Health 2015; 105:2228-36..
Nossos resultados são semelhantes às evidências existentes de APC da indústria alimentícia em outros países, nos quais todas as práticas de APC também foram observadas 1212. Mialon M, Gomes FS. Public health and the ultra-processed food and drink products industry: corporate political activity of major transnationals in Latin America and the Caribbean. Public Health Nutr 2019; 22:1898-908.,2727. Mialon M, Mialon J. Analysis of corporate political activity strategies of the food industry: evidence from France. Public Health Nutr 2018; 21:3407-21.,2828. Jaichuen N, Phulkerd S, Certthkrikul N, Sacks G, Tangcharoensathien V. Corporate political activity of major food companies in Thailand: an assessment and policy recommendations. Global Health 2018; 14:115.. Por exemplo, na Costa Rica, Equador, Guatemala e Uruguai, os agentes da indústria alimentícia fizeram lobby junto aos funcionários do governo 1212. Mialon M, Gomes FS. Public health and the ultra-processed food and drink products industry: corporate political activity of major transnationals in Latin America and the Caribbean. Public Health Nutr 2019; 22:1898-908.. No Equador, a Nestlé também tem programas de educação para escolas 1212. Mialon M, Gomes FS. Public health and the ultra-processed food and drink products industry: corporate political activity of major transnationals in Latin America and the Caribbean. Public Health Nutr 2019; 22:1898-908.. Na França, a Fundação Ronald McDonald construiu relações com profissionais de saúde e era considerada como um parceiro de saúde confiável pelos médicos 2727. Mialon M, Mialon J. Analysis of corporate political activity strategies of the food industry: evidence from France. Public Health Nutr 2018; 21:3407-21.. Isso poderia ser explicado pelo fato de que vários dos agentes incluídos no nosso estudo são transnacionais, ou pertencem a organizações internacionais, tais como o ILSI e o Conselho Internacional de Informação Alimentar (IFIC). Há três diferenças notáveis no Brasil em comparação com outros países onde a APC da indústria alimentícia foi analisada até o momento. Primeiro, as relações pessoais entre formuladores de políticas e representantes da indústria - por pertencerem à mesma classe social, e pelo fato de muitos serem de Brasília - podem explicar a influência política exercida no Congresso e no Poder Executivo. Em segundo lugar, os agentes da indústria alimentícia citaram explicitamente a ODS, particularmente a ODS 17, como um argumento para a colaboração com outros stakeholders na nutrição. Assim, os padrões internacionais têm impacto direto na formação do discurso da indústria a nível nacional. Em terceiro lugar, no Brasil, o discurso segundo o qual a indústria se apresenta como parte da solução está em contradição direta com suas ameaças aos defensores da saúde pública e suas tentativas de influenciar a política de saúde pública no país.
Nosso estudo tem limitações. Em primeiro lugar, este não foi um mapeamento exaustivo de todas as práticas políticas da indústria. Estudos futuros poderiam enfocar outros períodos no tempo e outros agentes, como aqueles que influenciam as políticas a nível estadual. Nossos entrevistados observaram que a problemática da dieta adequada e saudável no Brasil está muito alinhada com a questão de terras, comunidades indígenas e famílias; eles discutiram as práticas políticas da indústria do agronegócio, particularmente os grandes agricultores e a indústria de pesticidas. Esses setores estavam além do âmbito do nosso projeto, assim como os agentes que contribuíram para o uso de uma ou outra prática de APC e a eficácia com que essas práticas influenciam as políticas públicas.
No Brasil, existe uma coalizão de indivíduos no governo, na sociedade civil e no meio acadêmico 22. Monteiro CA, Cannon G. The impact of transnational "big food" companies on the South: a view from Brazil. PLoS Med 2012; 9:e1001252., precursores devido aos seus esforços na defesa e promoção de dietas adequadas e saudáveis do Brasil e por abordarem a influência indevida das corporações. Pesquisadores do Brasil começaram a denunciar a influência negativa das corporações da indústria alimentícia sobre os países de baixa e média renda há uma década 22. Monteiro CA, Cannon G. The impact of transnational "big food" companies on the South: a view from Brazil. PLoS Med 2012; 9:e1001252.,77. Monteiro CA, Gomes FS, Cannon G. The snack attack. Am J Public Health 2010; 100:975-81.. Entretanto, nossos entrevistados observaram que, nos últimos anos, esses esforços têm sido ameaçados. Eles sentiram que, mais do que nunca, esses espaços públicos precisam ser protegidos (entrevista, pesquisador acadêmico). Ao proporcionar conhecimento das práticas políticas da indústria alimentícia, o presente estudo contribui para esse objetivo. Essas práticas interferem na implementação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) 2929. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. e principalmente nos esforços para: promover dietas adequadas e saudáveis, construir uma força de trabalho de profissionais de nutrição independentes, regulamentar produtos alimentícios insalutares e conduzir pesquisas independentes sobre alimentação e nutrição. Identificar e monitorar as práticas políticas das corporações é um passo crucial para proteger a política pública de saúde, mas, em última instância, devem ser criados mecanismos para fazer face a essas práticas e administrá-las. No Brasil, alguns desses mecanismos já existem, com a publicação da pauta dos formuladores de políticas e as restrições às doações políticas, como explicado no presente artigo. Mais esforços são necessários, por exemplo, para evitar a influência indevida da indústria alimentícia durante a fase de desenvolvimento de políticas públicas de saúde.
Conclusão
No Brasil, os agentes da indústria alimentícia utilizaram uma ampla gama de estratégias instrumentais, tais como interações com terceiros, divulgação de informações sobre nutrição e atividade física, e lobby junto a altos funcionários. Também intimidaram os profissionais de saúde pública, inclusive através de ameaças de litígio, o que teve o efeito de silenciá-los. Todas essas práticas instrumentais foram apoiadas e favorecidas por argumentos como o do papel crucial desempenhado pela indústria alimentícia na economia e o seu apoio aos ODS. Responsabilidade pessoal, moderação e educação, por exemplo, foram citadas como soluções para a epidemia de obesidade, e houve pouca discussão sobre a problemática mais ampla de dietas inadequadas e insalutares. É crucial que os profissionais de saúde pública, os formuladores de políticas e o público aprendam sobre essas práticas e, em resposta, desenvolvam e implementem mecanismos robustos para lidar com a influência indevida das corporações.
Agradecimentos
Os autores agradecem a seus entrevistados pelo envolvimento neste estudo. Também agradecem à Dra. Marita Hennessy, por ter lido uma versão revisada deste manuscrito. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP; subsídio número 2017/24744-0), pelo apoio financeiro.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Fev 2022 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
27 Abr 2020 - Revisado
13 Jul 2020 - Aceito
04 Set 2020