Medidas regulatórias de proteção da alimentação adequada e saudável no Brasil: uma análise de 20 anos

Medidas regulatorias de protección para una alimentación adecuada y saludable en Brasil: 20 años de análisis

Tatiane Nunes Pereira Fabio da Silva Gomes Camila Maranha Paes de Carvalho Ana Paula Bortoletto Martins Ana Clara da Fonseca Leitão Duran Bruna Kulik Hassan Joana Indjaian Cruz Laís Amaral Mais Mariana de Araujo Ferraz Mélissa Mialon Paula Johns Luisete Moraes Bandeira Sobre os autores

Resumos

Medidas regulatórias estão entre as estratégias de promoção da alimentação adequada e saudável preconizadas pela Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN). Embora outras ações de promoção da alimentação adequada e saudável tenham avançado no Brasil, essas medidas progridem lentamente. O objetivo do trabalho é identificar e descrever fatores relacionados ao desenvolvimento e à implementação das principais medidas regulatórias de proteção da alimentação adequada e saudável no Brasil nos últimos 20 anos. É um estudo qualitativo documental que avaliou algumas medidas regulatórias de proteção à alimentação adequada e saudável federais, propostas ou em discussão, entre 1999 e 2020. São elas: regulação da publicidade de alimentos; regulação da comercialização de alimentos no ambiente escolar; implantação da rotulagem nutricional frontal obrigatória de alimentos; e tributação de bebidas adoçadas. A maioria das barreiras identificadas foram estratégias de atividade política corporativa protagonizadas pelo setor privado, principalmente, pela indústria de alimentos. Dentre as estratégias de atividade política corporativa utilizadas em diversas etapas dos processos políticos destacam-se: ações judiciais contra a ação do Estado; substituição de políticas sugerindo alternativas voluntárias ou inefetivas; oposição, fragmentação e desestabilização, com busca de apoio da comunidade. No período estudado, nenhuma das medidas foi aprovada. Diante desse cenário, os obstáculos para aprovação das medidas regulatórias de proteção a alimentação adequada e saudável necessitam ser superados no Brasil.

Palavras-chave:
Programas e Políticas de Nutrição e Alimentação; Publicidade de Alimentos; Alimentação Escolar; Rotulagem de Alimentos; Bebidas Adoçadas


Las medidas regulatorias están entre las estrategias de promoción de la alimentación adecuada y saludable, preconizadas por la Política Nacional de Alimentación y Nutrición (PNAN). A pesar de que otras acciones de promoción de la alimentación adecuada y saludable hayan avanzado en Brasil, esas medidas progresan lentamente. El objetivo del estudio es identificar y describir factores relacionados con el desarrollo y la implementación de las principales medidas regulatorias de protección de la alimentación adecuada y saludable en Brasil durante los últimos 20 años. Se trata de un estudio cualitativo documental, que evaluó algunas medidas regulatorias de protección a las alimentación adecuada y saludable federales, propuestas o en discusión, entre 1999 y 2020. Son las siguientes: regulación de la publicidad de alimentos; regulación de la comercialización de alimentos en el entorno escolar; implementación del etiquetado nutricional frontal obligatorio de alimentos; y tributación de bebidas azucaradas. La mayoría de las barreras identificadas fueron estrategias de actividade política corporativa, protagonizadas por el sector privado, principalmente, por la industria de alimentos. Entre las estrategias de actividade política corporativa utilizadas en diversas etapas de los procesos políticos se destacan: acciones judiciales contra la acción del Estado; sustitución de políticas sugiriendo alternativas voluntarias o inefectivas; oposición, fragmentación y desestabilización, con búsqueda de apoyo de la comunidad. En el periodo estudiado, ninguna de las medidas fue aprobada. Ante este escenario, en Brasil, se necesitan superar los obstáculos para la aprobación de las medidas regulatorias de protección a la alimentación adecuada y saludable.

Palabras-clave:
Programas y Políticas de Nutrición y Alimentación; Publicidad de Alimentos; Alimentación Escolar; Bebidas Azucaradas


Introdução

Em 2017, a má alimentação foi um dos principais fatores de risco para mortalidade e anos de vida perdidos em diversos países. Sua melhoria poderia prevenir uma em cada cinco mortes no mundo 11. GBD 2017 Diet Collaborators. Health effects of dietary risks in 195 countries, 1990-2017: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2017. Lancet 2019; 393:1958-72.. No Brasil, o consumo de alimentos in natura ou minimamente processados tem sido substituído pelo de produtos ultraprocessados 22. Martins AP, Levy RB, Claro RM, Moubarac JC, Monteiro CA. Increased contribution of ultra-processed food products in the Brazilian diet (1987-2009). Rev Saúde Pública 2013; 47:656-65., que são associados à obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) 33. Monteiro CA, Cannon G, Lawrence M, Louzada MLC, Machado PP. Ultra-processed foods, diet quality, and health using the NOVA classification system. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2019.. O ambiente no qual as pessoas vivem, estudam e/ou trabalham é um dos determinantes desse consumo alimentar, podendo promover ou dificultar o acesso a alimentos saudáveis 44. Swinburn BA, Sacks G, Hall KD, McPherson K, Finegood DT, Moodie ML, et al. The global obesity pandemic: shaped by global drivers and local environments. Lancet 2011; 378:804-14..

Por essa razão, a melhoria da saúde pública depende da adoção de medidas de promoção da alimentação adequada e saudável, focadas nos ambientes para viabilizar e proteger a alimentação, especialmente, com base em medidas regulatórias 44. Swinburn BA, Sacks G, Hall KD, McPherson K, Finegood DT, Moodie ML, et al. The global obesity pandemic: shaped by global drivers and local environments. Lancet 2011; 378:804-14.. Contudo, essas impactam diretamente atores que utilizam práticas mercadológicas e atividade política corporativa, para expandir a presença de produtos ultraprocessados na alimentação e influenciar a decisão de governos e a opinião pública a seu favor 55. Moodie R, Stuckler D, Monteiro C, Sheron N, Neal B, Thamarangsi T, et al. Profits and pandemics: prevention of harmful effects of tobacco, alcohol, and ultra-processed food and drink industries. Lancet 2013; 381:670-9.,66. Mialon M, Swinburn B, Sacks G. A proposed approach to systematically identify and monitor the corporate political activity of the food industry with respect to public health using publicly available information. Obes Rev 2015; 16:519-30.. Assim, são soluções que exigem vontade e liderança política dos governos 77. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. Lancet 2019; 393:791-846.

A Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) do Ministério da Saúde do Brasil propõe respeitar, proteger, promover e prover os direitos humanos à saúde e à alimentação 88. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.. Nela, o governo se compromete a desenvolver políticas saudáveis e criar ambientes favoráveis à saúde. São ainda reforçadas a capacidade e a competência de o Estado utilizar instrumentos legais necessários à proteção da saúde e o compromisso do setor saúde na articulação e no desenvolvimento de ações intersetoriais.

Nas últimas décadas, o Brasil avançou em políticas estruturais que desempenharam um papel fundamental no combate à fome e na promoção da alimentação adequada e saudável 99. Food and Agriculture Organization of the United Nations. The state of food insecurity in the world: strengthening the enabling environment for food security and nutrition. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2014.. Em 2014, foi publicada a atualização do Guia Alimentar para a População Brasileira1010. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2014., que reconhece o papel do ambiente nas escolhas alimentares e traz recomendações para evitar o consumo de produtos ultraprocessados e superar obstáculos à adoção de hábitos alimentares saudáveis, passando a ser um importante instrumento de orientação de políticas, porém, sem caráter regulatório. A classificação de alimentos apresentada no Guia foi usada como base para o Modelo de Perfil Nutricional da Organização Pan-Americana da Saúde1111. Organização Pan-Americana da Saúde. Modelo de perfil nutricional da Organização Pan-Americana da Saúde. Washington DC: Organização Pan-Americana da Saúde; 2016. e vem sendo reconhecida e utilizada internacionalmente 33. Monteiro CA, Cannon G, Lawrence M, Louzada MLC, Machado PP. Ultra-processed foods, diet quality, and health using the NOVA classification system. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2019..

As medidas regulatórias não avançaram da mesma forma. Iniciativas para restringir a publicidade de alimentos não saudáveis 1212. Baird MF. O lobby na regulação da publicidade de alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Revista de Sociologia Política 2016; 24:67-91., regular a comercialização de alimentos em escolas 1313. Ministério da Saúde; Ministério da Educação. Portaria Interministerial nº 1.010, de 8 de maio de 2006. Institui as diretrizes para a Promoção da Alimentação Saudável nas Escolas de educação infantil, fundamental e nível médio das redes públicas e privadas, em âmbito nacional. Diário Oficial da União 2006; 9 mai., incluir a rotulagem nutricional frontal em alimentos 1414. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Processo de revisão da regulamentação de rotulagem nutricional. Resultados das atividades já desenvolvidas e planejamento das próximas ações. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2017 e tributar produtos alimentícios não saudáveis 1515. Ministério da Fazenda. Nota Técnica nº 10.068/MF/SPE, de 26 de outubro de 2016. Tributação de Bebidas Açucaradas. Brasília: Ministério da Fazenda; 2016. foram postas à consideração nas instâncias políticas decisórias. Contudo, não há estudos que tenham consolidado esse histórico e analisado o que pode ter contribuído para a sua não adoção. Assim, este trabalho objetiva identificar e descrever os fatores relacionados ao desenvolvimento e à implementação das principais medidas de proteção da alimentação adequada e saudável no Brasil nos últimos 20 anos.

Métodos

Trata-se de uma análise qualitativa documental. Foram selecionadas quatro medidas regulatórias de proteção à alimentação adequada e saudável da esfera federal (Legislativo e Executivo), propostas ou em discussão, entre 1999 e 2020, que são recomendadas por organismos internacionais para a redução de demanda e oferta de produtos ultraprocessados e superação de obstáculos que impedem o alcance de uma alimentação adequada e saudável 1616. World Health Organization. Report of the Commission on Ending Childhood Obesity. Geneva: Wolrd Health Organization; 2017.,1717. Shekar M, Popkin B. Obesity health and economic consequences of an impending global challenge. Washington DC: World Bank; 2019. (Human Development Perspectives).: regulação da publicidade de alimentos; regulação da comercialização de alimentos em escolas; implantação da rotulagem nutricional frontal; e tributação de bebidas adoçadas.

Com base na experiência dos autores, foram identificados os principais instrumentos normativos propostos ou em discussão durante o período de análise, cujo tema estava centrado em uma das quatro medidas regulatórias analisadas. Assim, os instrumentos de regulação estudados foram:

(a) Regulação de publicidade de alimentos proposta pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA);

(b) Regulação da comercialização de alimentos no ambiente escolar, proposta pelos ministérios da Saúde e da Educação;

(c) Proposta de rotulagem nutricional frontal obrigatória de alimentos embalados, conduzida pela ANVISA;

(d) Tributação de bebidas adoçadas e incentivos fiscais aos fabricantes de bebidas cujos xaropes (extratos concentrados de bebidas) para sua fabricação são produzidos na região da Zona Franca de Manaus, Amazonas, Brasil.

Foram triangulados dados de diversas fontes de informação (Quadro 1): sítios oficiais do Governo Federal, do Congresso Nacional, de conselhos de políticas públicas, entidades da sociedade civil e do setor privado, e organizações internacionais, além de informações jornalísticas. Para cada caso foram realizadas buscas sobre marcos temporais, atores envolvidos, informações sobre dificultadores para a aprovação das medidas estudadas, e potenciais facilitadores para reverter a ausência da ação regulatória. Os principais Projetos de Lei (PL) em tramitação ou arquivados foram identificados por busca não exaustiva nas bases do Congresso Federal ou em documentos que consolidaram tais PL.

Quadro 1
Fontes de dados e tipos de documentos buscados.

As fontes de inércia política e as alavancas para ampliar a discussão sobre o tema, promover a adoção das medidas ou pressionar sua aprovação, descritas por Swinburn et al. 77. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. Lancet 2019; 393:791-846, foram utilizadas para a classificação de barreiras e facilitadores, respectivamente. Para detalhar as estratégias de atividade política corporativa, foi usada a estrutura de Mialon et al. 1818. Mialon M, Swinburn B, Sacks G. A proposed approach to systematically identify and monitor the corporate political activity of the food industry with respect to public health using publicly available information. Obes Rev 2015; 16:519-30..

Os principais marcos foram numerados e incluídos nos Quadros S1 e S2 (Material Suplementar: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/suppl-e00153120-port_4044.pdf), e os documentos consultados listados no Quadro S3 (Material Suplementar: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/suppl-e00153120-port_4044.pdf). Os facilitadores e as barreiras comentados nos resultados a seguir estão pormenorizados nos Quadros S1 e S2 e podem ser identificados pelas indicações sobrescritas.

Resultados

Regulação da publicidade de alimentos

A PNAN aponta a necessidade da adoção de medidas voltadas ao disciplinamento da publicidade de produtos alimentícios não saudáveis, especialmente aqueles voltados ao público infantil (A3, A10). A regulação da publicidade de alimentos encontra forte amparo na legislação brasileira (A1, A2, P1, P10), entretanto, não há regulação específica desta publicidade com vistas ao desestímulo à demanda por produtos alimentícios não saudáveis, com exceção da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (P2).

As tentativas regulatórias sobre a publicidade de alimentos foram sistematicamente embarreiradas pelo setor regulado (P4, P7, P8, P10, P11) 1919. Martins APB. Publicidade de alimentos não saudáveis: os entraves e as perspectivas de regulação no Brasil. São Paulo: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; 2014. (Cadernos Idec - Série Alimentos, 2).. A principal proposta foi o processo regulatório sobre esse tema conduzido pela ANVISA entre 2006 e 2010.

Em 2006, a ANVISA abriu a Consulta Pública (CP) nº 71/2006 sobre a elaboração de Regulamento Técnico relativo à publicidade de produtos alimentícios de baixo valor nutricional e com quantidades elevadas de açúcar, gordura saturada, gordura trans e/ou sódio. A proposta previa medidas como frases de alerta em publicidades sobre os riscos para DCNTs relacionados ao consumo excessivo de alimentos com elevadas quantidades de nutrientes críticos, limites de horários para a veiculação de publicidades e a vedação de brindes, personagens e estratégias de publicidade direcionados ao público infantil (P3). Tais propostas receberam ampla oposição dos setores alimentício e publicitário, representados pela Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (ABIA) e pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR), que sustentaram a tese de inconstitucionalidade de regulação do tema pela ANVISA, devido à competência privativa da União de disciplinar a propaganda comercial por Lei Federal e fundamentando a publicidade como liberdade de expressão. A sociedade civil defendia a proposta, sustentando a competência normativa da ANVISA delegada pela Lei Federal de criação da agência, e por amparo constitucional, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Código de Defesa do Consumidor (P4) 1919. Martins APB. Publicidade de alimentos não saudáveis: os entraves e as perspectivas de regulação no Brasil. São Paulo: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; 2014. (Cadernos Idec - Série Alimentos, 2)..

Na tentativa de evitar uma regulação restritiva, em setembro de 2006 o setor regulado modificou o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária do CONAR, recomendando que a publicidade não usasse apelo imperativo de consumo à criança; não sugerisse produtos como substitutos de refeições básicas; e evitasse a exploração de benefícios potenciais derivados do consumo de produto específico. Essa modificação foi usada para argumentar a desnecessidade de normas regulatórias. Também houve reuniões do CONAR, da ABIA e da Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas Não Alcoólicas (ABIR), com o então Ministro da Saúde e com a Casa Civil, além de mobilização de alguns legisladores para pressionar os dirigentes da ANVISA a interromper o processo regulatório (P4) 1919. Martins APB. Publicidade de alimentos não saudáveis: os entraves e as perspectivas de regulação no Brasil. São Paulo: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; 2014. (Cadernos Idec - Série Alimentos, 2)..

Na audiência pública da ANVISA (2009), o setor produtivo dava indícios de que judicializaria a norma, enquanto a sociedade civil pressionava por sua publicação. Nessa ocasião, outra tentativa de autorregulamentação por parte do setor produtivo foi divulgada (P4). Em 2010, a ANVISA publicou a RDC nº 24/2010 determinando que a publicidade de alimentos com alto teor de açúcar, gorduras e sódio, e de bebidas com baixo teor nutricional passasse a ser seguida de mensagens de alerta quanto aos riscos à saúde associados ao seu consumo excessivo. Entretanto, a restrição à publicidade direcionada às crianças, apresentada na CP, foi retirada, o que levou a fortes críticas da sociedade civil, ainda que reconhecessem a importância da medida publicada (P5) 2020. Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Considerações sobre a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 24/2010 e solicitação de retomada imediata de discussão da resolução que trate da regulamentação da publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis direcionada à criança. https://criancaeconsumo.org.br/wp-content/uploads/2014/06/10_Manifestacaogeral_ANVISA_14.07.2010.pdf (acessado em 14/Jul/2010).
https://criancaeconsumo.org.br/wp-conten...
. Ainda assim, a oposição do setor regulado suspendeu a eficácia da RDC nº 24/2010, por meio de ações judiciais, questionando a competência da ANVISA em regular o tema, apoiada em parecer da Advocacia-Geral da União (AGU, P8) 1919. Martins APB. Publicidade de alimentos não saudáveis: os entraves e as perspectivas de regulação no Brasil. São Paulo: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; 2014. (Cadernos Idec - Série Alimentos, 2)..

Em 2014, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente publicou a Resolução nº 163/2014, definindo a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente (P10). O setor regulado novamente reagiu, rejeitando a legitimidade e a vigência dessa e de outras disposições sobre a publicidade infantil (P11). Em contrapartida, o Ministério da Saúde publicou o atual Guia Alimentar para a População Brasileira e o Guia Alimentar para Crianças Menores de Dois Anos, que explicitam a publicidade de produtos ultraprocessados como um dos obstáculos para a alimentação adequada e saudável (A12, P16).

Em 2017, uma decisão nos tribunais superiores brasileiros condenou, pela primeira vez, uma empresa por publicidade abusiva de produtos ultraprocessados dirigida à criança (P13). Mesmo diante desse reconhecimento, a sociedade civil continuou sendo fundamental para impedir retrocessos nas normas e leis que disciplinam o tema, a exemplo da manifestação de mais de 90 organizações da sociedade civil em 2020 (P17) contra uma proposta de Portaria aberta à CP pela Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça, que flexibilizaria o entendimento da abusividade da publicidade direcionada ao público infantil, ampliando as possibilidades de o setor regulado realizar tal prática (P15).

A ausência de lei específica regulamentadora da publicidade de alimentos segue sendo um desafio. Muitos PL foram apresentados no Congresso Nacional 2121. Khandpur N, Sato PM, Mais LA, Martins APB, Spinillo CG, Garcia MT, et al. Are front-of-package warning labels more effective at communicating nutrition information than traffic-light labels? A randomized controlled experiment in a Brazilian sample. Nutrients 2018; 10:688., entretanto, sem nenhuma aprovação até o momento devido a dificuldades, como trâmite lento e influência de interesses comerciais e econômicos contrários à regulação, como as das indústrias de produtos ultraprocessados e da propaganda.

Regulação da comercialização de alimentos em escolas

A PNAN aponta a importância do incentivo à criação de ambientes institucionais promotores de alimentação saudável, incluindo as escolas (A10). O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), originado na década de 1950, orienta a oferta da alimentação escolar a estudantes da educação pública. Apesar de ter tido suas diretrizes revisadas em 2006, incluindo aquelas sobre a alimentação oferecida, ações educativas, respeito à cultura local, adaptação às recomendações nutricionais e apoio ao desenvolvimento sustentável (E7), a comercialização de produtos alimentícios nos espaços escolares não foi abordada.

A Portaria MEC/MS nº 1.010/2006 definiu, pela primeira vez, uma diretriz sobre a restrição da comercialização de alimentos não saudáveis, porém, com caráter não obrigatório (E5). No mesmo ano, o Ministério da Saúde publicou uma análise de legislações locais, que revelou a atuação da indústria alimentícia para impedir avanços locais via processos judiciais, e concluiu pela necessidade de aprovar uma Lei Federal (E6).

Em 2009, novas diretrizes do PNAE foram publicadas, proibindo a aquisição de bebidas com baixo teor nutricional, limitando alguns alimentos, como doces, preparações semiprontas ou prontas, e com quantidade elevada de sódio ou de gordura saturada, e estabelecendo o porcentual mínimo de recursos para a compra de alimentos da agricultura familiar e quantidades mínimas de frutas e hortaliças por semana (E15). Em 2020, parâmetros alinhados ao Guia Alimentar para a População Brasileira foram estabelecidos, contudo, em nenhuma das normas é mencionada a comercialização de alimentos (E36).

Entre 2010 e 2015, recomendações e ações voluntárias foram difundidas pelo Ministério da Saúde e pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) para escolas particulares e/ou municípios (A13, E16-E18, E23-E25) e, principalmente, entre 2015 e 2019, foram assumidos compromissos (A14-16) e propostos instrumentos normativos pelo Poder Executivo (E26) para regular a comercialização e a publicidade de alimentos no ambiente escolar. Destaca-se a proposta de regulação da comercialização e publicidade de alimentos não saudáveis em escolas públicas e privadas conduzida pelo Ministério da Saúde, com o apoio do então Ministério do Desenvolvimento Social, desde 2009, e o envolvimento da Casa Civil em 2018, porém, sem aval político do Ministério da Educação (E16, E26).

No âmbito Legislativo, diversos PL estão em discussão desde 2001 (E1-E4, E8, E9, E10, E19, E20, E21). O PL nº 1.755/2007, que proíbe a venda de refrigerantes em escolas de educação básica, é o mais antigo ainda em discussão (E8). Em 13 anos de tramitação, foi alvo de diversas movimentações e manifestações favoráveis de alguns parlamentares (E8), do Ministério da Saúde (E12, E22, E32) e da sociedade civil (E30, E33, E34), e contrárias por parte da indústria alimentícia e parlamentares alinhados aos interesses desta indústria (E8, E29, E33, E35). Desde 2017, aguarda votação em plenário (E8).

No Judiciário, o Conselho Nacional do Ministério Público recomendou aos membros do Ministério Público o desestímulo ou proibição de vendas ou ofertas de produtos industrializados ou ultraprocessados nos refeitórios e cantinas escolares (A25).

O apoio da sociedade civil e de conselhos de políticas públicas foi identificado com base nas ações: atividades de sensibilização na Câmara (A23); participação em audiências públicas (E33); campanhas (E29) e documentos, com atualização da lista de municípios que regulam a comercialização de alimentos nas escolas (E31); mobilização da aprovação de propostas em conferências locais e nacionais de saúde e de segurança alimentar, além de recomendações ao Governo Federal (A4, A6, A8, A9, A17-A20, A23, A24, A26, E28, E34).

Em relação ao setor regulado, logo após a aprovação do PL pela Comissão de Seguridade Social e Família em 2016, a Coca-Cola (Estados Unidos), a Ambev (Brasil) e a PepsiCo (Estados Unidos) comprometeram-se a não vender refrigerantes para escolas com crianças de até 12 anos (E27). Em 2020, o acordo foi ampliado para a ABIR (E35). Contudo, a implementação desse compromisso foi revelada inviável. Essa estratégia foi utilizada para impedir a tramitação dos PL ou debilitá-los, argumentando que a regulação seria desnecessária e/ou que deveriam ser considerados os fracos parâmetros do acordo voluntário das três empresas (E27, E33, E35).

Rotulagem nutricional frontal de alimentos

A PNAN (A10) reconhece a rotulagem nutricional como uma medida regulatória fundamental para a promoção da alimentação adequada e saudável e para a garantia do direito à informação. Uma rotulagem nutricional simples e de fácil compreensão contribui para a garantia do direito básico à informação adequada e clara sobre a composição e os riscos dos alimentos, conforme previsto pelo Código de Defesa do Consumidor (A2). O modelo de rotulagem de advertências baseia-se nessa premissa e permite identificar de forma fácil e rápida os produtos que contêm excessiva quantidade de nutrientes associados com as DCNTs. Um estudo realizado com a população brasileira comprova que o uso das advertências é a melhor opção para atender os objetivos regulatórios 2121. Khandpur N, Sato PM, Mais LA, Martins APB, Spinillo CG, Garcia MT, et al. Are front-of-package warning labels more effective at communicating nutrition information than traffic-light labels? A randomized controlled experiment in a Brazilian sample. Nutrients 2018; 10:688..

Apesar de o Brasil ser um dos primeiros países a adotar a rotulagem nutricional obrigatória de alimentos embalados, o mesmo protagonismo não é observado em relação à implantação da rotulagem nutricional frontal (R1).

Em 2013, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) recomendou à ANVISA o aprimoramento da rotulagem nutricional para facilitar a compreensão e combater as informações enganosas e abusivas dos rótulos de alimentos (R2). No ano seguinte, a ANVISA instituiu um grupo de trabalho (GT) sobre o tema (R3), culminando na proposição de três modelos de advertências, dois propostos por órgãos do Poder Executivo, o círculo vermelho (Fundação Ezequiel Dias) e o octógono preto (CAISAN), e o triângulo preto, proposto pela sociedade civil (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC e Universidade Federal do Paraná - UFPR), além do modelo do semáforo nutricional, proposto pelo setor regulado (ABIA, R4). Em 2017, o CONSEA também recomendou a adoção de um modelo de advertência (R6). Nesse mesmo ano, o Idec lançou a campanha “Rotulagem Adequada Já!” com o objetivo de informar e engajar a população para a necessidade de uma rotulagem de alimentos compreensível (R7). Logo o setor regulado alinhou esforços para defender o semáforo nutricional, com a criação da “Rede de Rotulagem” (R8). Composta por vinte entidades ligadas ao setor de alimentos e bebidas, além de perfis em rede sociais e página na internet, a Rede organizou eventos - contando com a presença do diretor-presidente da ANVISA em um deles (R8) - e mobilizou profissionais de saúde conhecidos na mídia para defender uma suposta “liberdade de escolha” que o semáforo nutricional ofereceria à população (R9, R11).

Em novembro de 2017, as propostas apresentadas e as evidências foram debatidas em um painel técnico organizado pela ANVISA (R9). No Relatório Preliminar de Análise de Impacto Regulatório (AIR) sobre Rotulagem Nutricional (2018) (R12), a agência avaliou a literatura disponível, os impactos econômicos, os aspectos jurídicos e regulatórios sobre o tema e concluiu que o modelo de rotulagem nutricional frontal de advertências era o mais apropriado para fornecer informações nutricionais, além de ter menor custo de implantação por não exigir aplicação em todos os produtos.

O relatório preliminar foi submetido à Tomada Pública de Subsídios (TPS, R13), prorrogada por 15 dias, após a ABIA recorrer à Justiça Federal alegando falta de tempo para apresentar estudos e não ser ouvida pela Agência. A medida judicial (R14) protelou o andamento do processo. A maioria (90%) dos 3.579 participantes manifestou-se favoravelmente à implantação da rotulagem nutricional frontal obrigatória, com apoio também à adoção de um modelo de advertência e do Modelo de Perfil Nutricional da Organização Pan-Americana da Saúde (R15). Durante a TPS, a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável promoveu campanhas para mobilizar a população a cobrar a aprovação da rotulagem nutricional frontal em formato de triângulo e garantir o acesso à informação clara e adequada para melhores escolhas alimentares (R14).

Apesar do processo regulatório conduzido pela Agência, baseado em fortes evidências, concluir que a rotulagem nutricional frontal de advertências é a mais adequada para a população brasileira e do apoio ao modelo obtido na TPS, ministros da saúde e dirigentes da ANVISA declararam preferências por outros sistemas de rotulagem nutricional frontal defendidos pela indústria de alimentos (R17, R20). Em encontro com empresários, o Presidente da República manifestou contrariedade aos modelos de advertências, alegando que poderiam prejudicar o setor (R18). A Rede de Rotulagem financiou um estudo para apontar impactos negativos nas vendas do setor alimentício, caso o triângulo fosse adotado (R19).

Em setembro de 2019, a ANVISA publicou o Relatório Final de Análise de Impacto Regulatório sobre Rotulagem Nutricional (R22). Em seguida, a Agência realizou as CP nº 707/2019 (R23) e nº 708/2019 (R24) sobre a proposta de norma para o aprimoramento da rotulagem nutricional, nas quais recomendou a adoção do modelo retangular preto com lupa “alto em”. Esse modelo apresenta desempenho inferior aos outros modelos de advertência, tanto em auxiliar o entendimento do conteúdo nutricional quanto em reduzir o tempo para a identificação de nutrientes em excesso, além de ser defendido pela indústria de alimentos no Canadá, onde também se mostrou menos eficaz que os outros modelos de advertência 2222. Deliza R, Alcântara M, Pereira R, Ares G. How do different warning signs compare with the guideline daily amount and traffic-light system? Food Quality and Preference 2020; 80:103821.,2323. Health Canada. Consumer research on front of package nutrition labeling. Montréal: Léger; 2018.,2424. Goodman S, Vanderlee L, Acton R, Mahamad S, Hammond D. The impact of front-of-package label design on consumer understanding of nutrient amounts. Nutrients 2018; 10:1624..

O prazo do processo regulatório foi novamente estendido, as CP foram prorrogadas pela ANVISA por mais 30 dias, com a justificativa de melhorar a qualidade regulatória e aguardar estudos pelo setor regulado. Um pedido de prorrogação realizado pela Associação Brasileira de Proteína Animal indica outra iniciativa do setor regulado para atrasar o processo regulatório (R25).

Tributação de bebidas adoçadas

Nenhuma das versões da PNAN menciona a adoção de medidas fiscais para a promoção da alimentação adequada e saudável (A3, A10). Apesar das recomendações de organismos internacionais desde 2004 (A5) e de essa medida contar com resultados positivos em países que a implementaram 2525. Teng AM, Jones AC, Mizdrak A, Signal L, Genç M, Wilson N. Impact of sugar-sweetened beverage taxes on purchases and dietary intake: systematic review and meta-analysis. Obes Rev 2019; 20:1187-204., a discussão sobre a tributação para a promoção da alimentação adequada e saudável adquiriu notoriedade mais tardiamente no Brasil. Entre 2014 e 2015, o país referendou requerimentos de medidas fiscais para alimentos não saudáveis (A14, A15). Com a ampliação da discussão sobre o tema, avolumaram-se manifestações da sociedade civil, de representantes do Estado e do setor regulado sobre incentivos fiscais concedidos aos fabricantes de bebidas adoçadas, cujos xaropes são produzidos na Zona Franca de Manaus; e de tributação de bebidas adoçadas. Na medida em que as distorções da Zona Franca de Manaus são descortinadas, percebe-se a necessidade de corrigi-las para atingir a tributação de bebidas adoçadas efetiva.

Para desenvolver a economia local e atrair investidores, o Brasil concede incentivos fiscais ao setor de bebidas não alcoólicas desde os anos 1990, quando se instalaram na região da Zona Franca de Manaus os principais produtores de xaropes, insumos básicos das bebidas adoçadas (T15). Desde a criação da Zona Franca de Manaus, as empresas ali instaladas recebem incentivos fiscais, a princípio provisórios, mas que tiveram sucessivas prorrogações; a última, até 2073 (T1-T4, T8).

Além de abatimento de diversos tributos aos xaropes produzidos na Zona Franca de Manaus, há duplo incentivo fiscal do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) decorrente da isenção de IPI ao xarope produzido na Zona Franca de Manaus, e dos créditos de IPI concedidos na compra do xarope da Zona Franca de Manaus às fabricantes de bebidas (T15, T24). Até 2018, os produtores de xaropes localizados na Zona Franca de Manaus eram isentos do pagamento da alíquota de 20% de IPI (T9, T23). Ademais, fábricas de bebidas que adquirem os xaropes da Zona Franca de Manaus ainda recebem créditos no patamar da alíquota conferida ao insumo (T15, T24). Com isso, as fabricantes de bebidas acumulavam 20% de IPI em créditos, apesar da isenção de IPI aos produtores de xarope, gerando o duplo incentivo fiscal (Quadro 2). Em 2018, o Governo Federal reduziu o IPI dos xaropes de 20% para 4% (T23), para diminuir os créditos para 4%, objetivando aumentar a arrecadação para subsidiar o diesel e findar a greve dos caminhoneiros (T23). A medida gerou debate entre o setor de bebidas, a sociedade civil e os órgãos do governo. Senadores posicionaram-se contrários à medida, apresentaram PL para tentar aumentar a alíquota do IPI e, assim, aumentar os créditos (T27).

Quadro 2
Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de xaropes, créditos de fabricantes compradores de xaropes e renúncia fiscal total da Zona Franca de Manaus, Amazonas, Brasil, 2016-2020.

A redução da alíquota do IPI também foi questionada em ações no Poder Judiciário. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.987, que tramita no Superior Tribunal Federal, questiona a constitucionalidade de tal redução (T26). Nas discussões da ADI, a Procuradoria Geral da República e a AGU apresentaram documentos desfavoráveis ao setor regulado (T39, T40). Como consequência, no último triênio, foram instituídas sucessivas alterações no IPI.

A Receita Federal, que se opõe publicamente ao duplo incentivo (T17) e já havia publicado que, a cada R$ 100 milhões de receita de refrigerantes vendidos, o fabricante acumulava R$ 4 milhões em créditos para abater em outros tributos ou outros tipos de bebidas (T15, T18), divulgou que a redução do IPI dos xaropes para 4% diminuiria a renúncia fiscal anual em R$ 1,5 bilhão (T24).

Com a necessidade mais evidente de correção das distorções fiscais da Zona Franca de Manaus para alcançar a efetiva tributação de bebidas adoçadas, o debate nacional sobre a tributação de bebidas adoçadas também avançou. A CAISAN (T14) defendeu tributar as bebidas açucaradas para a prevenção da obesidade em 2016 e contatou o Ministério da Fazenda para analisar as possibilidades de adoção da medida que, em resposta, apoiou a tributação de bebidas adoçadas (T15). O Instituto Nacional de Câncer posicionou-se favoravelmente à tributação de bebidas adoçadas para combater a obesidade e 13 tipos de cânceres relacionados (A21). O Conselho Nacional de Saúde (T16, T41), o Ministério da Saúde (T22) e o CONSEA (A25) apontaram recomendações para uma efetiva tributação de bebidas adoçadas: aumentar, no mínimo, em 20% os preços de bebidas açucaradas; criar preços mínimos para bebidas adoçadas; extinguir o duplo incentivo fiscal, via redução de IPI dos xaropes; criar uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico sobre o preço das bebidas adoçadas; destinar recursos da tributação de bebidas adoçadas à saúde e/ou ao enfrentamento da obesidade. Avolumaram-se também na última década as propostas legislativas em favor da tributação de bebidas adoçadas (T5-T7, T10-T13, T29-T33).

No período 2017-2020, manifestações públicas de representantes do Poder Executivo, incluindo o Ministério da Saúde e o Ministério da Economia, cresceram em defesa da tributação de bebidas adoçadas (T21, T42) e contra os subsídios da Zona Franca de Manaus (T21, T36), favorecendo a majoração de tributos sobre produtos alimentícios açucarados, com discordâncias posteriores por parte de deputados federais (T37), da Presidência da República (T43) e do Ministério da Saúde (T34). A sociedade civil, representada pela Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável e pela ACT Promoção da Saúde, assumiu a liderança na defesa da tributação de bebidas adoçadas e da extinção dos créditos aos fabricantes de bebidas adoçadas (T33).

Entre o setor regulado, a Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil, representante dos fabricantes de bebidas não alcoólicas regionais, tornou-se aliada no eixo da extinção de incentivos da Zona Franca de Manaus ao setor de bebidas não alcoólicas (T20). Já a ABIR (T46), representante dos grandes conglomerados beneficiários dos incentivos da Zona Franca de Manaus, como AMBEV e Coca-Cola (T35), destaca-se como um dos maiores opositores da redução dos créditos e da tributação de bebidas adoçadas (T43). A ABIR defende medidas voluntárias; argumenta que a tributação de bebidas adoçadas vilaniza tais bebidas; alega que a extinção de créditos prejudicará o desenvolvimento econômico; e questiona as evidências científicas existentes (T19, T43, T45).

Discussão

No período estudado nenhuma das quatro medidas foi implementada. As barreiras ao avanço dessas medidas foram majoritariamente protagonizadas pela indústria de alimentos, por meio de atividade política corporativa similares às utilizadas pelas indústrias de tabaco e álcool para evitar a aprovação de regulações 55. Moodie R, Stuckler D, Monteiro C, Sheron N, Neal B, Thamarangsi T, et al. Profits and pandemics: prevention of harmful effects of tobacco, alcohol, and ultra-processed food and drink industries. Lancet 2013; 381:670-9.,2626. Collin J, Plotnikova E, Hill S. One unhealthy commodities industry? Understanding links across tobacco, alcohol and ultra-processed food manufacturers and their implications for tobacco control and the SDGS. Tob Induc Dis 2018; 16:80., corroborando resultados sobre a interferência da indústria de alimentos na América Latina 2727. Mialon M, Gomes FDS. Public health and the ultra-processed food and drink products industry: corporate political activity of major transnationals in Latin America and the Caribbean. Public Health Nutr 2019; 22:1898-908..

No caso da regulação da publicidade, a forte atuação do setor privado para embarreirar as ações foi exitosa na demora e no impedimento do avanço desta agenda. A RDC aprovada pela ANVISA sofreu significativas modificações no texto-base e está suspensa devido às ações judiciais movida pelo setor. Apesar de haver base jurídica e ser o tema em debate há mais tempo, não houve avanços em normas específicas sobre a publicidade de alimentos. Os órgãos reguladores são deslegitimados pela indústria 2828. Henriques P, Dias PC, Burlandy L. A regulamentação da propaganda de alimentos no Brasil: convergências e conflitos de interesses. Cad Saúde Pública 2014; 30:1219-28. e há dificuldade estatal de fiscalizar, avaliar e punir infrações 2929. The Economist Intelligence Unit; Instituto Alana. Os impactos da proibição da publicidade dirigida às crianças no Brasil. São Paulo: Instituto Alana; 2019..

Nesse contexto, a infração recorrente às normas existentes e o uso de ações legais contra o Estado são importantes barreiras para o avanço regulatório 3030. Gostin LO, Manahan JT, Kaldor J, DeBartolo M, Friedman EA, Gottschalk K, et al. The legal determinants of health: harnessing the power of law for global health and sustainable development. Lancet 2019; 393:1857-910., e têm sido comuns não só no caso da publicidade, mas também da rotulagem nutricional frontal, no Brasil e em outros países da América Latina 77. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. Lancet 2019; 393:791-846,2727. Mialon M, Gomes FDS. Public health and the ultra-processed food and drink products industry: corporate political activity of major transnationals in Latin America and the Caribbean. Public Health Nutr 2019; 22:1898-908.. A Justiça tem um papel fundamental na garantia do cumprimento das normas existentes para a proteção à saúde, e a existência de leis e regulações específicas pode prevenir lacunas que possibilitem diversas interpretações 3030. Gostin LO, Manahan JT, Kaldor J, DeBartolo M, Friedman EA, Gottschalk K, et al. The legal determinants of health: harnessing the power of law for global health and sustainable development. Lancet 2019; 393:1857-910..

As barreiras para a regulação da comercialização de alimentos nas escolas incluíram lobby e proposições de iniciativas voluntárias. Por outro lado, existe a possibilidade de aprovação local das medidas, com legislações existentes em estados e municípios à luz do que ocorreu com a proibição do fumo em ambientes fechados 3131. Johns P, Andreis M. Dez anos da Lei Antifumo em São Paulo. In: Coordenadoria e Controle de Doenças, Centro de Vigilância Sanitária, Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, organizadores. 10 anos da Lei Antifumo do Estado de São Paulo. São Paulo: Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo; 2019. p. 64-7.. No entanto, esse debate perdura há mais de 14 anos, sem avanços importantes em âmbito nacional.

Em função dos avanços da rotulagem nutricional frontal, a atuação da indústria de alimentos tem sido mais incisiva nos últimos anos, com campanhas públicas sobre o modelo defendido pelo setor.

Para impedir o avanço em países que tentam implantar medidas que possam desencorajar a venda de seus produtos, a indústria de alimentos também atua financiando pesquisas 3232. Sainsbury E, Magnussonb R, Thowc AM, Colagiuria S. Explaining resistance to regulatory interventions to prevent obesity and improve nutrition: a case-study of a sugar-sweetened beverages tax in Australia. Food Policy 2020; 93:101904.,3333. Nestle M. Public health implications of front-of-package labels. Am J Public Health 2018; 108:320-1., como nos casos da rotulagem nutricional e da tributação de bebidas adoçadas. Essa ação, além de confundir a opinião pública e os tomadores de decisão, busca infiltrar representantes das indústrias ou cientistas financiados por elas em instâncias de decisão política 3434. Nestle M. Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos. São Paulo: Editora Elefante; 2019., como no grupo de trabalho da ANVISA sobre rotulagem, identificado nesta análise, e da indústria do tabaco em grupos de trabalho no Ministério da Saúde para enfraquecer o processo regulatório sobre as advertências em embalagens de cigarros 3535. Perez CA, Costa e Silva VL, Bialous SA. Analysis of the tobacco industry's interference in the enforcement of health warnings on tobacco products in Brazil. Cad Saúde Pública 2017; 33 Suppl 3:e00120715..

No caso da tributação de bebidas adoçadas, incentivos fiscais à indústria de bebidas introduzem uma complexidade tributária adicional, dificultando alcançar a opinião pública. Essa confusão é aproveitada pela indústria de bebidas, por exemplo, para defender o aumento de impostos, por gerar créditos tributários para o setor. Ademais, apesar de presente em todas as medidas, nessa, é especialmente notável a supervalorização da importância econômica do setor, estratégia já documentada anteriormente como atividade política corporativa empregadas por empresas transnacionais na América Latina para impedir o avanço de medidas regulatórias 2626. Collin J, Plotnikova E, Hill S. One unhealthy commodities industry? Understanding links across tobacco, alcohol and ultra-processed food manufacturers and their implications for tobacco control and the SDGS. Tob Induc Dis 2018; 16:80..

Também foram propostas ações voluntárias para substituir e evitar regulações. No caso da publicidade, a defesa é sustentada pela existência do CONAR. Nos demais, argumentando pela responsabilidade social e pela possibilidade do mercado e a indústria corrigirem por si os danos do alto consumo de mercadorias não saudáveis 55. Moodie R, Stuckler D, Monteiro C, Sheron N, Neal B, Thamarangsi T, et al. Profits and pandemics: prevention of harmful effects of tobacco, alcohol, and ultra-processed food and drink industries. Lancet 2013; 381:670-9.. Essa prática foi adotada pela indústria de alimentos na França e no Reino Unido para embarreirar a adoção da rotulagem nutricional frontal 3636. Mialon M, Julia C, Hercberg S. The policy dystopia model adapted to the food industry: the example of the Nutri-Score saga in France. World Nutrition 2018; 9:109-20. e a regulação da publicidade 55. Moodie R, Stuckler D, Monteiro C, Sheron N, Neal B, Thamarangsi T, et al. Profits and pandemics: prevention of harmful effects of tobacco, alcohol, and ultra-processed food and drink industries. Lancet 2013; 381:670-9..

Em todas medidas, foram identificadas discordâncias entre órgãos de governo para alcançar objetivos comuns na resolução de fatores determinantes da obesidade 77. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. Lancet 2019; 393:791-846,3737. Meija-Costa A, Fanzo J. Fighting maternal and child malnutrition: analysing the political and institutional determinants of delivering a national multisectoral response in six countries. Brighton: Institute of Development Studies; 2012.: entre a ANVISA e a AGU (publicidade); entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação (ambiente escolar); entre os Ministério da Saúde e a ANVISA (rotulagem nutricional frontal); e entre o Ministério da Saúde, o Ministério da Economia e o Presidente da República (tributação de bebidas adoçadas). O efetivo enfrentamento da desnutrição no Brasil indica para a prevenção da obesidade a importância da coordenação estatal multissetorial, com liderança e autoridade suficientes para conduzir políticas bem elaboradas e coerentes, com um forte controle social 77. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. Lancet 2019; 393:791-846,99. Food and Agriculture Organization of the United Nations. The state of food insecurity in the world: strengthening the enabling environment for food security and nutrition. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2014.,3737. Meija-Costa A, Fanzo J. Fighting maternal and child malnutrition: analysing the political and institutional determinants of delivering a national multisectoral response in six countries. Brighton: Institute of Development Studies; 2012.. Em 2019, a extinção do CONSEA e a desestruturação da CAISAN 3838. Brasil. Lei nº 13.844, de 18 de junho de 2019. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios; altera as Leis nos 13.334, de 13 de setembro de 2016, 9.069, de 29 de junho de 1995, 11.457, de 16 de março de 2007, 9.984, de 17 de julho de 2000, 9.433, de 8 de janeiro de 1997, 8.001, de 13 de março de 1990, 11.952, de 25 de junho de 2009, 10.559, de 13 de novembro de 2002, 11.440, de 29 de dezembro de 2006, 9.613, de 3 de março de 1998, 11.473, de 10 de maio de 2007, e 13.346, de 10 de outubro de 2016; e revoga dispositivos das Leis nos 10.233, de 5 de junho de 2001, e 11.284, de 2 de março de 2006, e a Lei nº 13.502, de 1º de novembro de 2017. Diário Oficial da União 2019; 18 jun. debilitaram a articulação intersetorial e a atuação da sociedade civil.

A inércia política é a combinação de inadequada liderança do poder público, forte oposição de atores econômicos às políticas e falta ou insuficiente demanda da população 77. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. Lancet 2019; 393:791-846. Nesta análise, embora tenham sido identificadas demandas pela sociedade, exemplos de inadequada liderança política e de forte atuação das transnacionais de alimentos contribuíram para o não avanço das medidas.

Este é o primeiro estudo a sistematizar o histórico das quatro medidas regulatórias mais recomendadas para a promoção da alimentação adequada e saudável no Brasil, identificando fatores que ajudaram a pautar o tema nas esferas de tomada de decisão, e aqueles que dificultaram a sua aprovação. Porém, apresenta limitações. A inclusão de informações de acesso interno ao governo, que poderiam ser obtidas via Lei de Acesso à Informação, não foram solicitadas. A realização de entrevistas com os principais atores envolvidos poderia apoiar a identificação de fatores não descritos nos documentos analisados. Ademais, todos os autores possuem envolvimento direto com o tema, seja como representante da sociedade civil ou de governo.

Conclusão

Esta análise identificou diversas barreiras que atrasaram e/ou impediram a implementação das medidas de proteção da alimentação adequada e saudável, e que decorreram, principalmente, das atividade política corporativa da indústria de alimentos em diversos instâncias governamentais, como ações judiciais contra o Estado e alternativas voluntárias ou inefetivas, além de outros fatores relacionados à inércia política.

Por outro lado, potenciais facilitadores apontam caminhos para a superação das barreiras. A sociedade civil se mostrou ativa e representa uma força potencial na pressão para a adoção das medidas regulatórias em questão. Da mesma forma, alguns atores e áreas técnicas governamentais, como o Ministério da Saúde e a Receita Federal, apresentaram posicionamentos e ações favoráveis à adoção das medidas, mesmo que ainda sem efeitos reais.

Para contrabalançar o poder econômico dos atores da indústria, cujas ações podem comprometer o desenvolvimento e implantação de políticas de saúde, é, ainda, necessário construir uma base mais ampla de advocacy para enfrentar a poderosa oposição de interesses privados 77. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. Lancet 2019; 393:791-846,3939. Jahiel RI, Babor T. Industrial epidemics, public health advocacy and the alcohol industry: lessons from other fields. Addiction 2007; 102:1335-9.. Nesse sentido, é fundamental a adoção de medidas para evitar a interferência da indústria de alimentos em políticas de nutrição 77. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. Lancet 2019; 393:791-846,4040. World Health Organization. Safeguarding against possible conflicts of interest in nutrition programmes. Geneva: World Health Organization; 2017., com o estabelecimento de mecanismos claros a serem adotados pelo Governo Federal 4141. Mialon M, Vandevijvere S, Lutzenkirchen AC, Bero L, Gomes F, Petticrew M, et al. Mechanisms for addressing and managing the influence of corporations on public health policy, research and practice: a scoping review. BMJ Open 2020; 107:e034082..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2020
  • Revisado
    11 Set 2020
  • Aceito
    02 Out 2020
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