O artigo “Grande mídia e comunicação sobre Saúde Coletiva e Atenção Primária: o desafio da produção da série televisiva ‘Unidade Básica’” apresenta aspectos da produção da série “Unidade Básica”, principalmente no que concerne às escolhas feitas no esforço de adequação e diálogo entre os campos da Comunicação e da Saúde Coletiva. Entre os autores do texto está uma pesquisadora da saúde envolvida na produção da série, o que permite trazer à luz questões fundamentais do processo de transposição da experiência vivenciada por equipes de saúde para uma narrativa ficcional comprometida com o grande público.
A série “Unidade Básica” tem um compromisso político – defende e promove uma visão da saúde como direito, dando visibilidade e protagonismo ao Sistema Único de Saúde (SUS); e ao mesmo tempo propõe uma visão integrada e socialmente engajada da prática médica, que encara a doença com base no contexto de vida de cada paciente. Nos dias de hoje, diante do avançado desmonte de direitos conquistados desde a redemocratização, pode-se dizer que a série é também uma estratégia de resistência: erigida no âmbito da comunicação, tem potencial educativo sobre aspectos fundamentais da Saúde Coletiva e das políticas públicas de saúde, podendo assim contribuir para que a população, ao conhecê-los, se mobilize em sua defesa.
Do ponto de vista da produção audiovisual é importante ressaltar que a “grande mídia”, como referida no artigo, não é o único, mas sim um dos campos possíveis de atuação. Também foram desenvolvidas, ao longo da história do cinema, da televisão e do vídeo, práticas que podem ser chamadas de experimentais ou autorais, com propostas de estruturação narrativa e formulação estética que buscam diferenciar-se do mainstream e, consequentemente, apresentam suas próprias potencialidades e limites. Essa diferenciação não se relaciona à qualidade ou ao valor das obras, mas sim aos seus objetivos e público-alvo.
Assim, a primeira grande escolha realizada pelos criadores, que determinou os processos de produção e as outras escolhas feitas, é a inserção do projeto no campo da grande mídia. Essa escolha é assertiva e tem objetivo concreto: que a série possa se comunicar com grande número de pessoas. Nesse sentido, dado o alcance que a série tem obtido, o projeto vem sendo muito bem-sucedido.
Mas, como relatam os autores, o potencial de comunicação em larga escala, fundamental para o objetivo de incidir na percepção da sociedade sobre práticas de saúde, é mais bem explorado quando se aplicam alguns modelos narrativos próprios da comunicação de massa. E esses modelos impõem demandas e limites com os quais os especialistas da saúde cocriadores da série tiveram que negociar.
É interessante perceber, nesse movimento de negociação, ecos e desdobramentos de antigas discussões travadas no campo da teoria cinematográfica. As relações e os tensionamentos, gerados pela fricção entre os códigos estéticos do audiovisual comercial e as aspirações políticas de obras comprometidas com a transformação social, foram problematizados e debatidos em diferentes momentos da história da produção e da crítica cinematográfica.
No surgimento da teoria feminista de cinema nos anos 1970, por exemplo, essa discussão ocupou um lugar central. Em seu célebre ensaio “Prazer Visual e Cinema Narrativo”, publicado em 1975, a inglesa Laura Mulvey analisa as formas como o cinema dominante da época construía e perpetuava estereótipos de gênero e lógicas de opressão, não somente pelo conteúdo de suas narrativas, mas também pela abordagem da fotografia, da montagem, pela construção das personagens etc. Assim, a autora defende que a condição para a criação de um contracinema feminista seria a negação dos códigos desenvolvidos por esse cinema dominante: “Um cinema de vanguarda estética e política é agora possível, mas ele só pode existir enquanto contraponto”11 Mulvey L. Prazer visual e cinema narrativo. In: Xavier I, organizador. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, Embrafilme; 1983. (p. 439). Como também era realizadora, Mulvey dirigiu filmes que fizeram parte de uma escola denominada “Cinema Feminista Teórico de Vanguarda”, que colocava em prática as ideias defendidas nos textos teóricos.
As obras do “Cinema Feminista Teórico de Vanguarda” foram fundamentais no desenvolvimento do cinema feminista, tendo aberto um leque de possibilidades estéticas e influenciado diversas cineastas. Porém, também encontraram críticas. Ann E. Kaplan22 Kaplan AE. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco; 1995., ao analisar um dos mais importantes filmes dessa vertente, The Riddle of the Sphinks (Laura Mulvey e Peter Wolen, 1977), aponta as dificuldades de fruição que a obra acarretava: “Devido ao seu complexo embasamento teórico, de um filme como Riddles só é visto, e completamente apreciado, por estudantes e intelectuais” (p. 255).
Essa disputa na qual estava polarizada a concepção de que os filmes deveriam ser ferramentas para a organização social e, desse modo, ter uma linguagem acessível, e a ideia de que a subversão dos elementos narrativos e estéticos era primordial na criação de estratégias de desconstrução da representação patriarcal das mulheres, ocupou o pensamento feminista sobre o cinema por um período. Kaplan foi uma das teóricas que defenderam que a forma de um filme não é o fator determinante de seu compromisso político:
Eu não estou tão convencida quanto o grupo inglês de que a forma inevitavelmente está carregada de ideologia, e acredito que uma maneira de sair do dilema é usar fórmulas conhecidas do público de novas maneiras, de modo que desafiem antigos conceitos ao mesmo tempo que ainda permitam que as pessoas entendam o que está acontecendo22 Kaplan AE. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco; 1995.. (p. 255)
O efeito contraproducente da disputa foi observado por Teresa de Lauretis, que propõe que essas tendências, ao contrário de rivais, podem ser vistas como complementares:
Se repensarmos o problema de uma especificidade do cinema das mulheres e das formas estéticas em termos de endereçamento – quem está fazendo filmes para quem, quem está olhando e falando, como, onde e para quem –, então o que tem sido visto como uma divisão, um racha ideológico dentro da cultura feminista do cinema entre teoria e prática, ou entre formalismo e ativismo, pode parecer a própria força, o impulso e a heterogeneidade produtiva do feminismo33 Lauretis T. A tecnologia de gênero. In: Holanda HB. Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro: Rocco; 1994.. (p. 35)
No artigo em discussão, os autores narram a busca de criar um discurso contra-hegemônico sobre a concepção de saúde prevalente, no que chamam de “guerra de narrativas”. Esse termo é também usado por Rosane Borges44 Borges R. Prefácio. In: Hooks B. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante; 2019. quando afirma que “a nossa época, o século 21, está sendo marcado por embates na ordem do imaginário, por uma guerra de imagens e signos, por uma sede de representação e visibilidade” (p. 10). E essa guerra se dá, entre outros, no campo da produção televisiva.
A televisão ocupa um lugar central na formação cultural do Brasil. Segundo Rubim e Rubim55 Rubim AAC, Rubim LSO. Televisão e políticas culturais no Brasil. Rev USP. 2004; (61):16-29., a partir dos anos 1960 ocorre um processo fundamental de midiatização da cultura, que se desdobra nos anos seguintes:
De uma cultura conformada através de um circuito cultural escolar-universitário – restrito e excludente, porém dominante – a cultura brasileira passa a ser hegemonizada por um outro e novo circuito cultural, aquele ambientado e constituído pelo sistema de mídias. (p. 18)
Com ampla penetração na sociedade, os modelos e mecanismos de comunicação desenvolvidos pela televisão brasileira têm papel formativo para grande parte da população: “A amplitude das redes de comunicação afeta o papel desempenhado pela comunicação midiatizada como modo, crescente e majoritário, de estar e conhecer o mundo”55 Rubim AAC, Rubim LSO. Televisão e políticas culturais no Brasil. Rev USP. 2004; (61):16-29. (p. 22). Assim, as estruturas narrativas e os padrões estéticos difundidos pela televisão tornam-se acessíveis e amigáveis para os telespectadores que os consomem com facilidade – e muitas vezes rejeitam ou encontram dificuldades de fruição de obras com formatos que se distanciam demais desses padrões.
Dessa perspectiva, entende-se que o esforço para criar um conteúdo alicerçado em conceitos complexos, mas capaz de atingir (emocionar, afetar) grande número de pessoas, passa por uma competência fundamental: a cooperação. Isso fica claro quando os autores concluem, com base na experiência de “Unidade Básica”, que é possível transpor questões da Saúde Coletiva para uma narrativa ficcional de uma série televisiva e ressaltam que a chave do processo foi encontrada em uma busca que era “não exatamente a proposição de uma linguagem completamente outra na ‘guerra de narrativas’, mas a ressignificação de alguns de seus elementos-chave”.
Assim, é fundamental entender, questionar e subverter as formas como a cultura mainstream impõe padrões, cria estereótipos e reitera opressões. Mas criar imagens e narrativas que abram portas para novas percepções da realidade – e no limite nos ajudem, como sociedade, a criar novas realidades –, com o objetivo de obter amplo alcance, passa também por negociar com os modelos e efeitos de uma área da comunicação que desenvolveu, ao longo da história, padrões e mecanismos de comunicação hegemônicos.
- Ruiz C. Negociação e cooperação: apontamentos sobre os desafios da produção da série “Unidade Básica”. Interface (Botucatu). 2021; 25: e210276 https://doi.org/10.1590/interface.210276
Financiamento
Bolsa Capes – 88882.461722/2019-01
Referências
- 1Mulvey L. Prazer visual e cinema narrativo. In: Xavier I, organizador. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, Embrafilme; 1983.
- 2Kaplan AE. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco; 1995.
- 3Lauretis T. A tecnologia de gênero. In: Holanda HB. Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro: Rocco; 1994.
- 4Borges R. Prefácio. In: Hooks B. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante; 2019.
- 5Rubim AAC, Rubim LSO. Televisão e políticas culturais no Brasil. Rev USP. 2004; (61):16-29.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Ago 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
24 Abr 2021 - Aceito
18 Maio 2021