O cuidado em cenas: nas trilhas de Dona Violeta

Care in scenes: on the trail of Dona Violeta

El cuidado en escenas: en los caminos de Doña Violeta

Neide Emy Kurokawa e Silva Sobre o autor

Resumos

Discutem-se as possibilidades reflexivas e práticas para compreensão do cuidado nas práticas de saúde com base na exploração de narrativas, inspiradas em vivências práticas, e em um filme, orientadas pela tríplice concepção de mimeses, que medeia tempo e narrativa (Paul Ricoeur). Essas histórias permitiram problematizar os limites de intervenções exclusivamente voltadas ao alcance de finalidades técnicas, evidenciando múltiplas possibilidades de conceber-se a noção de sucesso prático. Ao se abrirem para elementos significativos na vida dos personagens, as narrativas, como refiguração das experiências, possibilitaram cogitar sobre lacunas e projetar outros porvires, inclusive para o cuidado.

Palavras-chave
Práticas de saúde; Narrativas; Cuidado


This article discusses reflective and practical possibilities for understanding care in health practices, drawing on the analysis of narratives inspired by practical experiences and a film guided by Ricoeur’s theory of triple mimesis, which mediates time and narrative. The stories allowed us to problematize the limits of interventions exclusively geared towards achieving technical ends, evidencing multiple possibilities of conceiving the notion of practical success. By opening up significant elements of the protagonists’ lives, the narratives, as a reconfiguration of experiences, allowed us to cogitate on gaps and project other futures, including those for care.

Keywords
Health practices; Narratives; Care


Se discuten las posibilidades reflexivas y prácticas para comprensión del cuidado en las prácticas de salud, a partir de la exploración de narrativas, inspiradas en vivencias prácticas y en una película orientadas por la triple concepción de mimesis, presente en tiempo y narrativa (Paul Ricoeur). Esas historias permitieron problematizar los límites de intervenciones exclusivamente enfocadas en el alcance de finalidades técnicas, poniendo en evidencia múltiples posibilidades de concebir la noción de éxito práctico. Al abrirse para elementos significativos en la vida de los personajes, las narrativas, como reconfiguración de las experiencias, posibilitaron pensar sobre lagunas y proyectar otros porvenires, incluso para el cuidado.

Palabras clave
Prácticas de salud; Narrativas; Cuidado


Introdução

Desde as primeiras leituras sobre o cuidado na saúde, especialmente pela abordagem proposta pelo professor José Ricardo Ayres(b(b)Médico, sanitarista, professor titular do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Atua na área de Saúde Coletiva, com ênfases em Atenção Primária em Saúde e Humanidades em Saúde. https://orcid.org/0000-0002-5225-6492 ), tentamos acompanhar suas reflexões e ensinamentos sobre o tema, que nos remetem para o que se tomaria como uma reviravolta no modo de pensar a saúde. Tal reviravolta não significaria abrir mão de finalidades que visam incidir sobre condições morfofuncionais dos indivíduos, por meio de intervenções medicamentosas, em favor daquelas que consideram os valores e sentidos atinentes às experiências concretas daqueles envolvidos no cuidado.

Ele nos convida a repensar reconstrutivamente as práticas de saúde, indagando-nos sobre os seus sentidos, com o aporte do “trio” da hermenêutica contemporânea, Gadamer, Habermas e Ricoeur11 Ayres JRCM. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Cienc Saude Colet. 2005; 10(3):549-560.. Trata-se de um convite que não se apresenta ameno, exigindo muitas releituras para buscar compreender como o Cuidado com “C” maiúsculo não está reduzido a uma prática baseada em sólidos conhecimentos técnicos, tampouco associado a um comportamento atencioso ou empático do profissional. Muito menos aspiraria, como muitos pretendem, que o profissional se coloque no lugar do paciente para que entenda suas demandas e o seu sofrimento.

A listagem do que não se coadunaria com a proposta de cuidado, desenvolvida por Ayres, poderia estender-se por muitos parágrafos e, embora não seja o caso de defini-la objetivamente, o autor dá algumas pistas por meio do desenvolvimento de ideias como êxito técnico, sucesso prático e projeto de felicidade22 Ayres JRCM. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis. 2007; 17(1):43-62..

A construção do conceito de cuidado parte da crítica à lógica que atribui o sucesso das intervenções em saúde unicamente a resultados predeterminados, que visam diagnosticar e corrigir anomalias morfofuncionais relacionadas a doenças, em geral, por meio de tecnologias médicas envolvendo medicamentos e equipamentos. A despeito da importância desse tipo de finalidade, denominado êxito técnico, o investimento nessa lógica estritamente instrumental das práticas de saúde acaba por secundarizar ou mesmo retirar da cena assistencial os seus agentes, seus valores, seus contextos de vida, enfim, os distintos modos de lidar com a doença, com a saúde, com a vida. Atentando para essa lacuna é que Ayres desenvolve o conceito de cuidado, privilegia a dimensão interativa das práticas de saúde e envolve profissionais de saúde e pacientes, situando ambos como agentes do processo e rechaçando-se o significado de passividade que o termo “paciente” pode sugerir. Para designar essa perspectiva, na qual o objeto do cuidado é construído intersubjetivamente, o autor utiliza o termo sucesso prático, incluindo saberes e expectativas técnico-científicas, além de saberes e expectativas práticas.

Ainda nas trilhas de uma abordagem hermenêutica do cuidado, a expressão projeto de felicidade serviria como um norte no processo de busca e construção do sucesso prático, sucesso esse sem garantias de resultados, muito menos de resultados previsíveis a priori. O projeto de felicidade inscreve-se e vai sendo plasmado conforme o devir de nossas existências, continuamente redefinido e ressignificado no decorrer do tempo, mais a partir “daquilo que vivenciamos como Bem do que na definição do que seja isso”22 Ayres JRCM. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis. 2007; 17(1):43-62. (p. 56).

Embora muitos de nós sejamos simpáticos a essas ideias, concordando que nosso trabalho em saúde não deveria se reduzir aos êxitos técnicos, um dos maiores obstáculos parece ser o exercício do cuidado. Na hora “H”, situações envolvendo a não adesão aos tratamentos, os hábitos alimentares inadequados ou a falta de exercícios físicos dominam as nossas iniciativas e continuamos a reproduzir questões apoiadas eminentemente em êxitos técnicos, tais como: o que fazer para que o paciente tome os medicamentos, deixe de comer torresminho ou faça caminhadas ao menos três vezes por semana, para o controle da hipertensão e diabetes? Ou, pior, também lançamos perguntas que remetem à culpabilização do paciente: por que ele não toma os medicamentos, insiste em comer torresminho e não pratica nenhuma atividade física? Será que ele quer morrer? Será que ele não tem amor próprio? Será que ele não entendeu?

Do mesmo modo que as tentações da prescrição e da culpabilização, nossa volúpia por decifrar o paciente também pode confundir-se com o cuidado, quando o paciente é tomado como uma esfinge a ser desvendada pelo profissional de saúde. Nessa perspectiva, equivocadamente, se espera que uma vez conhecendo o paciente “a fundo” é possível fazer a escolha da melhor estratégia para conduzi-lo aos objetivos do tratamento.

A despeito das boas intenções e mesmo do valor dessas iniciativas, todas tomam o paciente como objeto de intervenções delineadas pelo profissional de saúde, o que colide com um dos traços principais do cuidado, que é o seu caráter intersubjetivo33 Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cienc Saude Colet. 2001; 6(1):63-72.,44 Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface (Botucatu). 2004; 8(14):73-92. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832004000100005.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200400...
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Considerando-se intersubjetividade como compartilhamento de sentidos, fica claro por que o cuidado transcende qualquer tipo de estratégia ou técnica, reclamando uma compreensão do outro, de si e do mundo, exigindo a nossa presença diante do outro, colocando-nos nas cenas de cuidado como trabalhadores da saúde e como humanos, a cada atendimento, a cada interação, seja com os pacientes, seja com a instituição, seja com as políticas de saúde.

Talvez ciente da complexidade desse tipo de abordagem e ao valorizar o potencial das narrativas para o reconhecimento do cuidado e das vulnerabilidades que o obstaculizam, Ayres nos brindou com o que ficou conhecido como a história da Dona Violeta55 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(3):16-29.. O autor conta uma experiência que evocou o cuidado em uma situação de consulta: ele, o médico já cansado da jornada do dia e já buscando antever como lidar com as queixas rotineiras de Dona Violeta; e ela, uma típica paciente-impaciente. Chamou-me a atenção a transformação propiciada nos ânimos dos sujeitos envolvidos naquela consulta, desde o ímpeto do médico em propor um inabitual começo de conversa (“Hoje eu quero que a senhora fale um pouco de si mesma, da sua vida, das coisas de que gosta, ou de que não gosta... enfim, do que estiver com vontade de falar”) até o vivaz relato de sua história, pela paciente, reconfigurando a relação entre ambos.

O impacto da narrativa de Dona Violeta, porém, teve o potencial de ir além dos limites temporais e espaciais do set da consulta, na medida em que, a cada vez que é recontada, se abre a uma miríade de reconfigurações que oportunizam a reconstrução de outras histórias, pautando direta ou indiretamente o cuidado. O próprio autor foi incitado a dar continuidade à história de Dona Violeta, brindando-nos com outro texto, dessa feita sob a forma de uma entrevista fictícia envolvendo os personagens, no sentido de elucidar alguns pontos que, segundo ele, mereceriam ser esclarecidos ou aprofundados66 Ayres JRCM. Revisitando “D. Violeta”, nos caminhos do Cuidado. In: Pinheiro R, Müller Neto JS, Ticianel F, Spinelli MAS, organizadores. Construção social da demanda por cuidado: revisitando o direito à saúde, o trabalho em equipe, os espaços públicos e a participação. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/CEPESC/LAPPISABRASCO; 2013. p. 15-32..

Essas iniciativas vêm contribuindo para a empreitada de compreender o cuidado, inclusive nos estimulando a perscrutar e valorizar nossas próprias histórias cotidianas, incitando-nos a fazer perguntas sobre os sentidos dessas experiências para profissionais, pacientes, comunidades.

Estimulada pelas muitas releituras da história de Dona Violeta é que surgiu a motivação para narrar algumas experiências próprias na expectativa de que, ao serem narradas, poderiam ter o potencial de mobilizar reflexões sobre o cuidado.

Contando as histórias

A autora pretende compartilhar situações, duas, de sua própria experiência no trabalho em um ambulatório de atendimento a pessoas com Aids; outra, de um filme a que assistiu pela primeira vez há muitos anos, esperando que, ao serem narradas e lidas, tenham o potencial de mobilizar outras narrativas, outras problematizações, outras histórias inspiradoras para o pensar e o viver o cuidado.

As narrativas referentes à experiência da autora são provenientes da recordação de duas atividades cotidianas desenvolvidas em um ambulatório de Aids: uma oficina de prevenção a infecções sexualmente transmissíveis e um atendimento de aconselhamento sorológico para comunicação de resultado de teste anti-HIV. Embora na ocasião as cenas narradas tenham chamado a atenção dos profissionais envolvidos, não havia a pretensão de serem tratadas como objeto de pesquisa científica; portanto, desprovidas de projeto com planejamento ou objetivos prévios nesse sentido.

A terceira cena narrada foi construída pela recomposição de falas de dois dos personagens de um filme intitulado “Minha vida sem mim” (My life without me), dirigido por Isabel Coxiet, produzido em 2003, pela Sony Pictures Home Entertainment77 My life without me. Direção: Isabel Coixet. Produção de Esther Garcia, Gordon McLennan. Culver City: Sony Pictures Home Entertainment; 2013. DVD (126 min).. A autora não se recorda exatamente quando foi a primeira vez a que assistiu ao filme, talvez por volta de 2004 ou 2005, em algum canal de TV. Inicialmente a história a tocou pelo modo como a iminência da morte deu vitalidade à personagem principal, cuja vida, até então, se arrastava em um cotidiano sem horizontes. Entretanto, não pôde deixar de se ater a cenas em que a personagem e o médico estabeleceram curtos diálogos, mas que pareceram ilustrar de modo marcante as vulnerabilidades envolvidas na interação entre um profissional de saúde e a paciente. Anos mais tarde, a cada vez que pensava sobre o cuidado, essas cenas vinham à sua cabeça, ainda que de modo desordenado, até que, para este texto, decidiu adquirir o DVD para auxiliar na recomposição dessas cenas.

O ato de escrever essas histórias se apoia na apreensão das narrativas como proposto por Paul Ricoeur, nos três volumes de “Tempo e narrativa”88 Ricoeur P. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus; 1994.. Especialmente em diálogo com as obras de Santo Agostinho sobre o tempo, e de Aristóteles acerca da intriga, o autor toma a narrativa como uma operação mimética, por meio da qual se entra em contato com o mundo, e como síntese da diversidade temporal.

Kearney99 Kearney R. Narrativa. Educ Real. 2012; 37(2):409-438., nas trilhas de Ricoeur, aponta que:

Mimesis é invenção, no sentido original do termo: invenire significa tanto descobrir como criar, ou seja, revelar aquilo que já estava ali à luz do que ainda não é (mas é potencialmente). É o poder, em resumo, de recriar mundos atuais na forma de mundos possíveis.

(p. 414)

Segundo Ricoeur66 Ayres JRCM. Revisitando “D. Violeta”, nos caminhos do Cuidado. In: Pinheiro R, Müller Neto JS, Ticianel F, Spinelli MAS, organizadores. Construção social da demanda por cuidado: revisitando o direito à saúde, o trabalho em equipe, os espaços públicos e a participação. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/CEPESC/LAPPISABRASCO; 2013. p. 15-32., o ato de narrar e o caráter temporal da experiência humana são interdependentes na medida em que o tempo se torna tempo humano quando narrado, e a narrativa só atinge seu pleno significado quando atrelada à existência temporal. A mediação entre tempo e narrativa se dá por meio de três tempos miméticos: mimesis I, II e III.

Considera-se que a existência já esteja imersa em um enredo prévio, em um estado pré-narrativo, correspondendo ao que Ricoeur denominou de mimesis I. A elaboração da narrativa seria o modo de reinscrever a vida como história de vida e o exercício de reconstrução das experiências, por meio da escrita, visou cumprir esse papel.

Ainda que o texto fale da experiência que se quer relatar, na narrativa, o modo de tecer a trama não diz respeito a uma mera sucessão de acontecimentos, mas a um enredo que expressa a existência temporalizante-sintetizante, como mimesis II. A configuração, a composição e o agenciamento dos fatos é feito por meio da tessitura de uma intriga que extrai uma história de uma pluralidade de acontecimentos.

Completando o círculo da tripla mimesis, mimesis III desponta como a refiguração da narrativa por um leitor. É quando ocorre a interseção entre o mundo do texto e o do leitor, como nos propiciam os encontros com a história de Dona Violeta.

Da mimesis I à mimesis III, mediada pela mimesis II, o caminho é circular e espiral, passando-se diversas vezes pelo mesmo ponto, mas sempre de outro modo – da ação ao texto e de volta à ação. Assim é que se espera que as histórias a seguir narradas possam contribuir para refigurar as representações sobre o cuidado nas práticas de saúde.

Não preciso usar camisinha!

No trabalho em um ambulatório de Atenção à Saúde de pessoas com Aids, eram desenvolvidas oficinas de sexo seguro com diferentes grupos populacionais. Em uma delas, dirigida a adolescentes em liberdade assistida, o objetivo, como de costume, era conversarmos sobre prevenção a infecções sexualmente transmissíveis, sobre a importância e as dificuldades para incorporá-la no cotidiano e sobre temas correlatos. Nesse dia, estavam presentes uns dez garotos, na faixa dos 14, 15 anos de idade. A conversa estava bem animada, sobretudo ao se falar sobre sexo. Em meio às recorrentes e provocadoras perguntas como: “Pode pegar Aids se transar com uma vaca?” (sim, recorrente!), um dos meninos, em um dado momento, interpelou abrupta e ansiosamente: “Senhora! A senhora disse que, da hora que pega a doença até ficar doente, pode demorar muitos anos... Até dez anos, certo?” Isso foi confirmado, tentando contextualizar e relativizar a fala, ressaltando que o aparecimento dos sintomas dependia de muitos fatores, quando ele interrompeu e, com uma expressão de alívio, recostou-se na cadeira e disse: “Ah, então não tem problema. Pensa comigo: Eu tô com 14 anos. Se eu pegar agora, só vou ficar doente lá pelos 25 anos. Eu não vou viver tudo isso! Se chegar nos vinte, tô no lucro!” E acrescentou: “eu não vou ficar velho feito a senhora!”.

Mesmo que atordoada diante dessa conclusão, não havia como contestar o seu raciocínio, dizendo, por exemplo, que ele poderia viver muito mais, que ninguém garantiria que ele não ficaria velho como a senhora etc., etc. Naquele momento, o melhor que se pôde fazer foi lançar questões: Por que você acha que não vai passar dos vinte? É assim com outros meninos de onde você mora? Por que isso ocorre? Mas as tentativas de problematização não vingaram. Eles estavam muito empolgados com a ideia de invulnerabilidade.

Se a oficina pretendesse sensibilizar os adolescentes quanto à importância do uso de preservativos nas relações sexuais, já seria patente o seu fracasso. Entretanto, o desfecho da história se coadunaria com a ideia de um sucesso prático? Ou se trataria de um duplo fracasso? Admitindo-se tanto um sim como um não, o gradiente de argumentos é extenso, passando desde o exame do modelo de oficina proposto até as reflexões sobre o contexto social em que se naturaliza o fato de que um grupo significativo de jovens tenha seus horizontes de vida restritos.

Ficou claro que nos limites de uma oficina de três horas não seria possível desenvolver e aprofundar problematizações sobre as vulnerabilidades à violência vivida por aqueles meninos e mesmo à infecção pelo HIV. Sobretudo, quando o morrer de “morte matada”, em confronto com a polícia ou mesmo com “facções inimigas”, tinha um valor moral superior ao da “morte morrida”, decorrente de uma doença ou de velhice. A possibilidade de viver uma vida extraordinária, encerrada com uma “morte matada”, se sobrepunha à ordinariedade da “morte morrida”. Não havia mais tempo nem clima, naquele mesmo dia, para continuar um processo de problematização sobre as vulnerabilidades daqueles meninos ao HIV. No fundo, eles parecem ter saído da oficina aliviados com a conclusão de que a previsão de uma morte precoce (ao menos do ponto de vista das coordenadoras da oficina) se apresentava como vantajosa, pois, ainda que contraíssem o vírus naquele mesmo dia, não haveria tempo e vida suficiente para viver doenças oportunistas.

A história do garoto talvez tenha seguido o enredo vislumbrado para a sua vida e que se reproduz para outros tantos vivendo em contextos semelhantes de vulnerabilidades sociais, econômicas, culturais. Mas essa história, além do impacto imediato do sentimento de impotência dos profissionais envolvidos, continua a reverberar. A cada vez que a cena é lembrada, novas questões são destacadas, novas possibilidades de ação são pensadas e colocadas em prática. É uma história que vale a pena ser contada. E recontada.

E o banho de chuva?

Aconselhamento sorológico. Objetivamente, as ações podiam ser resumidas em entrevistar pessoas que desejassem realizar o teste de HIV, coletar alguns dados, esclarecer eventuais dúvidas e comunicar o resultado do exame dentro de uma semana. Na prática, cada um desses momentos era recheado de situações diversas e adversas. Havia aqueles que vinham com o companheiro para fazer o teste, simulando desconhecer seus status sorológicos, mas que não apenas tinham ciência do diagnóstico positivo para o HIV como já estavam em tratamento. Mulheres que vinham fazer o teste porque souberam que os companheiros foram infiéis. E, para espanto dos profissionais, desejosas de que o diagnóstico fosse reagente só para que o marido se sentisse culpado. Sem falar dos que vinham todas as semanas demandando testagem porque “tinham certeza” de que tinham o HIV. Bom, o repertório de casos era infindável, mas àquela altura eles já se sentiam mais preparados para esse trabalho. Em geral, o mesmo profissional solicitava a testagem e ficava responsável por informar o resultado. Entretanto, naquele dia, foi encaminhada à autora a avó de uma criança, que viera saber do resultado do exame do neto. A mãe da criança, soropositiva para o HIV, estava hospitalizada e a equipe de atendimento domiciliar, considerando a possibilidade de transmissão vertical, havia feito a coleta de sangue do filho de cinco anos. E a autora relata:

“Ao adentrar a minha sala, percebi quanto aquela mulher estava ansiosa com toda aquela situação, de saber que a filha tinha aids e, pior, de imaginar que a criança poderia ter sido infectada. Eu já tinha algumas informações sobre a situação, por meio de outras colegas que cuidavam do caso, mas ela me relatou a história da filha e seu adoecimento repentino e falou sobre a sua preocupação com o neto. Fez algumas perguntas, querendo entender, ou confirmar, por que e como a filha poderia ter passado a doença para a criança, que já tinha cinco anos e era sadia, por que a filha adoeceu ‘de repente’. Explicações dadas, abri o envelope com o resultado e informei que o teste havia sido reagente. Eu já esperava uma reação de tristeza, indignação ou mesmo de choro da avó. Realmente, o choro ocorreu, mas o que se sucedeu foi surpreendente: com a voz embargada, em um misto de pergunta e de lamento, ela disse: ‘Ele nunca mais vai poder tomar banho de chuva? Como vou dizer isso a ele?’. De todas as coisas que ouvi após a comunicação de um resultado reagente, creio que essa foi a mais inusitada. Não notei sentimentos de revolta ou de injustiça, de busca por culpados ou mesmo do temor da doença ou da morte, como de costume. O que aquele diagnóstico ameaçava seria mesmo um prosaico (ao menos para mim, naquele momento) banho de chuva? Como tecer a conversa pela identificação daquilo que a preocupava? Quais os sentidos do banho de chuva diante do diagnóstico de HIV? Pedi que ela me falasse sobre o banho de chuva e entendi, então, que o banho de chuva, dentre todos os possíveis obstáculos à vida daquela criança, encarnava a própria infância, a alegria, a espontaneidade, a comunhão, já que outras crianças e mesmo os adultos da rua se juntavam na calçada para esse regalo. Além de ser alijado desse prazer, não participar do banho de chuva poderia levantar a curiosidade dos vizinhos e poderia se converter em discriminação, na medida em que a ausência da criança naquele quase ritual da vizinhança precisaria ser justificada. Eu nunca havia valorizado o banho de chuva; aliás, na minha infância, esse tipo de iniciativa era terminantemente proibido, associando-se ao perigo de um resfriado ou coisa pior.”

Aquela avó alertou para a gama de significados acionados por um diagnóstico de HIV, mostrando os limites do repertório dos profissionais, por mais experientes que sejam. Parar para ouvir, antes de descarregar os próprios pontos de vista, provoca a pensar diferente e a ser interpelado pelo sofrimento do outro, por mais estranho que pareça.

Nem exames, nem remédios. Viver a vida

É farta a listagem de filmes que têm servido para ilustrar situações que focalizam cenas de interações entre profissionais de saúde e os pacientes: “The Doctor”, “Patch Adams”, “Wit”, “House”, além de produções brasileiras, como “Unidade Básica de Saúde”, “Plantão Médico”, entre outros, podem ser citados como exemplos ou contraexemplos dessas interações e que poderiam servir como mote para pensar o cuidado.

O filme que marcou profundamente a autora não tem como tema ou cenário principal um ambiente institucional de saúde. Aliás, a relação entre o médico e a paciente pode até passar despercebida no enredo todo. Trata-se do filme “Minha Vida sem Mim”99 Kearney R. Narrativa. Educ Real. 2012; 37(2):409-438..

Ann, a protagonista, tem uma vida bastante modesta, trabalhando no período noturno como faxineira em uma universidade, e morando em um trailer com o marido e duas filhas. Sua rotina parece dura, envolvendo problemas como o conturbado relacionamento com a mãe, as precárias condições de vida e o desemprego do marido. Por conta de alguns episódios de desmaios, decide procurar um hospital para uma consulta, acreditando estar grávida. No entanto, acaba sendo submetida a uma longa série de exames que culminam no diagnóstico de um câncer, sem possibilidade de tratamento. A conversa entre o médico, Dr. Thompson, e Ann se dá no corredor do hospital, onde eles estão sentados lado a lado em um banco. Sem encarar a paciente, o médico mira no seu bloco de anotações, fazendo-lhe perguntas sobre o trabalho, o marido, a família e até sobre o seu signo, às quais ela vai respondendo. Abruptamente ela abandona o semblante despreocupado, encara o médico e pergunta: “Que diabos está havendo comigo?”. Nesse ponto ele decide revelar e dar explicações sobre o diagnóstico, bem como sobre o prognóstico. Ann, aparentemente impassível, indaga quanto tempo de vida ainda teria e ele responde que entre dois e três meses, aproximadamente.

Ann comenta que já imaginava que receberia uma notícia grave quando se sentaram naquele lugar e o médico prontamente se justificou dizendo que sua sala estava em reforma. Mas logo desistiu desse argumento, admitindo: “Não sei me sentar na frente de uma pessoa e dizer que ela vai morrer. Jamais consegui. As enfermeiras já estão comentando”.

Dr. Thompson retoma o foco para Ann, sugerindo: “Sua família pode querer procurar outro médico para ter um segundo parecer...” E Ann o interrompe explosivamente respondendo, com lágrimas no rosto: “Alguém que diga o mesmo, mas olhando nos meus olhos?”

Mais uma vez o médico muda o rumo da conversa, indagando se Ann aceita um café. Diante de sua negativa, o médico continua a tentar contornar a situação e lhe oferece uísque, ao que ela retruca: “Agora vai me oferecer um cigarro?”

Mas Ann, mais calma, adere a esse fluxo da conversa e pergunta: “Você tem uma bala?”. Dr. Thompson mexe no bolso do jaleco, encontra uma bala e a entrega a Ann. Imediatamente ela a desembrulha e leva à boca, comentando que era muito gostosa e pergunta sobre o sabor.

Dr. Thompson: “Gengibre.”

Ann: “Muito gostosa. É um pouco forte, mas é boa.”

Dr. Thompson volta para os procedimentos e orientações médicas: “Preparei uns folhetos que, mais ou menos, explicam tudo. E algumas receitas para aliviar a náusea. E quero ver você na semana que vem. Marquei uma hora para você. Tem aí meu telefone direto, caso precise”.

Ann: “Tem outra bala? A saideira.”

Dr. Thompson: “Sinto muito, era a última.”

Ann sorri, se levanta e vai embora.

Dr. Thompson levanta-se e fala: “Na semana que vem, terei mais balas.”

A conversa entre Dr. Thompson e Ann expressa distintas motivações, expectativas e preocupações. O médico manteve uma postura técnica, primando pelo rigor nos exames realizados, por exemplo, ao confirmar suas suspeitas com a realização de outros exames e cotejando-as com a opinião de outros colegas. Também buscou fornecer informações à paciente, no sentido de disponibilizar os recursos tecnológicos, tanto para a realização de novos exames quanto para prescrever medicamentos para alivio de sintomas. Ann, por sua vez, também não abriu mão de suas preocupações e desejos, sobretudo quanto à recusa em realizar mais exames, de se sentir “dopada” pelos medicamentos, de ser internada e morrer no hospital. Essas diferentes posições, entretanto, não impediram que o diálogo continuasse a fluir, criando-se um vínculo naquilo que os identificava, cada qual se apresentando ao outro naquilo que os colocava em comunhão naquela cena: a identidade existencial e a bala de gengibre.

O diagnóstico deu a Ann a urgência de viver o que foi obstaculizado durante toda a sua vida, e ela cumpre intensamente uma listagem que preparou contendo “10 coisas para fazer antes de morrer”. Entre itens como viver um grande amor e arranjar uma esposa para o seu marido, uma das tarefas consistia em gravar mensagens de aniversário para as filhas, até completarem 18 anos. Sua outra ida ao hospital teve como objetivo confiar ao Dr. Thompson a entrega dos inúmeros tapes que produziu, conforme planejara. Embora sua rede familiar e de amizade não fosse tão restrita, para Ann, o médico despontou como a melhor pessoa para cumpri-la.

Essa cena se encerra com o Dr. Thompson prometendo receitar apenas algo para aliviar a dor, abrindo mão da realização de mais exames e de outros medicamentos. Acolhe o pedido de Ann prometendo guardar e fazer chegar os tapes às suas filhas, justificando-se: “digamos que isso faz parte da terapia”. Também aproveita para lhe entregar um pacote de balas, que Ann recebe e já levando uma à boca diz, animadamente: “Nossa, estas balas são tão boas!”.

Chamou a atenção como dois personagens aparentemente tão diferentes em suas experiências, expectativas, personalidades e com modos de vida tão contrastantes, não deixaram de ser eles mesmos em nenhum momento do filme.

Dr. Thompson dominava os procedimentos técnicos para tratar o paciente com câncer e minimizar sua dor física, mas recebeu outras demandas, estranhas a qualquer protocolo clínico. De alguém visivelmente comprometido com as condutas técnicas preconizadas e que nem conseguia encarar um paciente para dar-lhe um prognóstico de morte, ele não só reviu profundamente tais condutas, cedendo aos argumentos de Ann, como também estendeu o cuidado para além da morte de sua paciente. Para Ann, a iminência da morte impulsionou-a para a vida e Dr. Thompsom, a despeito dos breves encontros, teve um papel fundamental para essa ressignificação como depositário e responsável pela entrega das gravações às filhas. Ambos afetados pelos encontros. E o cuidado atravessando o tempo.

No encontro entre o êxito técnico e o sucesso prático: o cuidado

Os personagens, os cenários e a construção do enredo das histórias indicaram como a narradora apreendeu e compôs alguns elementos do cuidado com base nas experiências que serviram como referência para a trama. Tal construção, que expressa tanto uma distanciação quanto o seu pertencimento às experiências narradas, ensejou problematizar as situações apresentadas, permitindo cogitar sobre as lacunas, os lapsos, e projetar porvires de uma prática de saúde ancorada no cuidado, seus limites e possibilidades.

Evidenciou-se a ideia de sucesso prático, como um traço fundamental do cuidado, na medida em que as histórias nos convidaram a considerar os limites de práticas centradas exclusivamente no alcance de finalidades técnicas.

Nas interações abertas ao jogo entre identidades e alteridades, alguns elementos, talvez inusitados nas práticas de saúde referentes ao uso de preservativos ou à comunicação de um diagnóstico de HIV, reforçaram o entendimento sobre a crítica que se faz a finalidades que são definidas a priori, restritas a um êxito técnico.

Ao situar-se em um campo de possibilidades, o cuidado não pressupõe uma resolução imediata dos problemas, seja os referentes à doença, como um distúrbio fisiológico ou funcional, seja aqueles afetos a outras condições, seja os pessoais, sociais ou familiares. Nos limites temporais e espaciais em que as cenas foram narradas, não foi possível, nem se pretendia, um desfecho decisivo ou salvador como o que fazer ou dizer ao garoto que chegou à conclusão de que não precisaria usar preservativos, ou à avó que se preocupava com a interdição dos banhos de chuva do neto.

A história sobre o filme ilustrou de modo contundente como o cuidado transcendeu o tempo presente da interação entre o médico e a paciente, indicando a ideia do fluxo do tempo como devir da existência que acompanha o cuidado.

O tempo emergiu como um importante balizador do cuidado também nas outras experiências narradas. O garoto da camisinha saiu aliviado com a conclusão de que não seria atingido por doenças oportunistas pelo simples fato de que não viveria tempo suficiente para tal. Nós (profissionais) ficamos pensando quanto essa falta de expectativa de vida era cruel e injusta. Mas será que aquele seria o momento propício para problematizarmos essa situação? À avó não ocorreu pensar imediatamente em doenças oportunistas, em medicamentos, níveis de CD-4 ou CD-8 ou mesmo em outras restrições nos horizontes de vida do neto, coisas essas que interpelavam no cotidiano os profissionais de saúde. Mas naquele momento o banho de chuva sintetizava, talvez, tudo o que estava sob ameaça pelo diagnóstico de HIV.

O processo de narrar as experiências permitiu deslindar vários traços do cuidado, ao mostrar situações em que a identidade profissional, por vezes engessada nos procedimentos e voltadas para o êxito técnico, é confrontada, exigindo uma autêntica abertura ao outro para sua redefinição. Os projetos de felicidade, tomados como sentido e norte da existência, também se fizeram presentes nas histórias, desafiando os repertórios de finalidades previstas para cada situação.

No encontro entre tempo e narrativas, o cuidado se fez presente, assumindo diferentes configurações e aberto a muitas outras apreensões e reconfigurações.

Porque a vida recontada abre perspectivas inacessíveis à percepção ordinária. Ela marca uma extrapolação poética dos mundos possíveis que suplementam e remodelam nossas relações referenciais com o “mundo da vida” existente antes do recontar. Nossa exposição às novas possibilidades de ser reconfigura nosso “estar no mundo” cotidiano99 Kearney R. Narrativa. Educ Real. 2012; 37(2):409-438..

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Que a história de Dona Violeta e tantas outras que ainda serão lembradas, escritas e contadas inspirem a compreender melhor a diversidade de sentidos presentes nas cenas assistenciais, e incitem a repensar as práticas de saúde e a qualidade das interações. Como apontou Ayres, por meio da experiência com Dona Violeta: “receitas, dietas e exercícios continuaram presentes: eu e ela é que éramos a novidade ali”55 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(3):16-29. (p. 18).

  • (b)
    Médico, sanitarista, professor titular do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Atua na área de Saúde Coletiva, com ênfases em Atenção Primária em Saúde e Humanidades em Saúde. https://orcid.org/0000-0002-5225-6492

Referências

  • 1
    Ayres JRCM. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Cienc Saude Colet. 2005; 10(3):549-560.
  • 2
    Ayres JRCM. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis. 2007; 17(1):43-62.
  • 3
    Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cienc Saude Colet. 2001; 6(1):63-72.
  • 4
    Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface (Botucatu). 2004; 8(14):73-92. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832004000100005.
    » https://doi.org/10.1590/S1414-32832004000100005
  • 5
    Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(3):16-29.
  • 6
    Ayres JRCM. Revisitando “D. Violeta”, nos caminhos do Cuidado. In: Pinheiro R, Müller Neto JS, Ticianel F, Spinelli MAS, organizadores. Construção social da demanda por cuidado: revisitando o direito à saúde, o trabalho em equipe, os espaços públicos e a participação. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/CEPESC/LAPPISABRASCO; 2013. p. 15-32.
  • 7
    My life without me. Direção: Isabel Coixet. Produção de Esther Garcia, Gordon McLennan. Culver City: Sony Pictures Home Entertainment; 2013. DVD (126 min).
  • 8
    Ricoeur P. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus; 1994.
  • 9
    Kearney R. Narrativa. Educ Real. 2012; 37(2):409-438.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2022
  • Aceito
    27 Abr 2022
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