Os “outros” das favelas: humanos, animais e ambientes tecendo pistas para um projeto de saúde multiespécies

Los “otros” de las favelas: humanos, animales y ambientes tejiendo pistas para un proyecto de salud multiespecies

Yarlenis Ileinis Mestre Malfrán Sobre o autor
2021

“Comunidades e famílias multiespécies: aportes à saúde única em periferias”11 Baquero OS, Peçanha E, organizadores. Comunidades e famílias multiespécies: aportes à saúde única em periferias. São Paulo: Amavisse; 2021. é um livro de autoria coletiva, sob a organização de Oswaldo Santos Baquero e Érica Peçanha, docentes e pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP). Lançado em 2021 pela Editora Amavisse de São Paulo, na escrita do livro concorrem múltiplos viventes, corpos e territórios, a maioria dos quais vivenciam processos de marginalização e resistência.

Encontramo-nos diante de um trabalho que mistura uma multiplicidade de produções textuais, tais como ensaios, reflexões autobiográficas, debates teóricos e relatos de pesquisa. Tal abordagem se posiciona também como inter(in)disciplinar ao convocar diferentes campos de conhecimento para abordar a saúde e ao abrir um espaço de luta contra o apagamento epistemicida dos saberes das periferias. Como se afirma logo na apresentação: “este livro abre um espaço desde o cruzamento entre periferias do saber, urbanas e animais”22 Baquero OS. Apresentação: periferias do saber, urbanas e animais. In: Baquero OS, Peçanha E, organizadores. Comunidades e famílias multiespécies: aportes à saúde única em periferias. São Paulo: Amavisse; 2021. p. 13-42. (p. 14).

Comparecem nessa jornada estudantes de graduação de diferentes cursos da USP, doutorandos e pós-doutorandos, mas não só. Susi e Pitchula, cães domiciliados, os gatos companheiros Janette e Joe, o jabuti Sid, os filhotes Baby e Beethoven, os cachorros Bidu e Bob, um papagaio e um galo corajoso também compõem a travessia a qual o livro nos convida. Sem falar dos entre-lugares onde somos levados pelas mãos dos autores: o campus da USP, tão perto e ao mesmo tempo tão longe da São Remo; o Jardim Keralux e, dentro deste, o córrego a céu aberto; e a comunidade de haitianos que coabita no território. Assim, o livro desloca a narrativa do sujeito único universal da saúde – o Humano – para nos apresentar coordenadas epistêmicas, éticas que concebem, por outras lógicas, a saúde de coletivos multiespécies marginalizados.

O livro como um todo acaba sendo um material extenso e, por isso, abrangente. As pessoas que assinam os capítulos provêm de diferentes formações, que resultam em mais de vinte textos, que ultrapassam as trezentas páginas. Por isso, para construir esta resenha, eu preferi me debruçar sobre o argumento central que percorre os diversos capítulos e que explico nas linhas que seguem. Inclusive adianto que a seção de apresentação do livro é muito acertada na forma de introduzir os capítulos, deixando um gosto irresistível para uma leitura aprofundada destes.

A riqueza de situações que o livro nos apresenta pode ser alinhavada com o que me parece ser a questão-chave da obra: o que os coletivos multiespécies, localizados em periferias urbanas da cidade de São Paulo, têm a nos ensinar acerca da saúde? Uma pergunta a partir da qual os diversos trabalhos esmiúçam e elucidam o argumento central, que guia os autores nas suas empreitadas. Tal argumento opera uma fissura nas concepções hegemônicas da saúde, reivindicando a descentralização do Humano como alvo exclusivo das políticas de saúde; a recusa do binarismo ontológico que separa humanos, animais e natureza; e o resgate dos saberes marginalizados que inspiram cosmopolíticas do bem viver de coletivos multiespécies.

Assim, as pessoas autoras tomam as periferias como espaço para esboçar uma proposta crítica de saúde. Tal proposta se inscreve em uma matriz de pensamento e práxis decolonial que, ao optar por esse enquadramento, convida a não deixar de fora das gramáticas do cuidado a grande parte dos viventes que coabitam as periferias. Ou seja, estamos diante de um trabalho que conclama a repensar políticas estruturais de saúde, a partir de experiências locais. No diálogo tecido ao longo da obra, deparamo-nos com humanos, animais e ambientes que interpelam os pesquisadores e certos modos de se fazer pesquisa em periferias, tal como mostra o seguinte questionamento: “[…] depois que a mulher do censo foi embora, minha vizinha veio aqui reclamar que não fizeram perguntas sobre a porquinha. Que havia pergunta sobre gato, cachorro e passarinho, mas nenhuma sobre a Mel”33 Rodrigues ER. Visita do censo. In: Baquero OS, Peçanha E, organizadores. Comunidades e famílias multiespécies: aportes à saúde única em periferias. São Paulo: Amavisse; 2021. p. 96-100. (p. 100). O valor pedagógico do livro radica também esse tipo de tensionamento que os sujeitos envolvidos nas pesquisas colocam aos atores da academia.

O trabalho apresentado contribui para pensar o político; e o papel do Estado e da universidade pública na gestão da saúde, considerada como um projeto de justiça social multiespécies. Decorrente disso, uma das apostas centrais do livro é a urgência de acolher as relações de coconstituição multiespécies, como um modo de quebrar as cumplicidades com projetos necropolíticos, neoliberais, antropocêntricos e coloniais que, de forma negligente, vêm orientando as ações de saúde em periferias. A começar pelos instrumentos de pesquisa, alguns dos textos ressaltam a importância de censos que contemplem animais e ambientes, e não apenas humanos. Destaca-se a necessidade de se criarem disciplinas que propiciem essa formação, que vem encontrando um espaço em projetos de extensão universitária mencionados no livro.

Diante dos limites dos processos de mapeamento que nem sempre contemplam as complexidades das periferias resultam relevantes as trajetórias de quem nasceu e/ou mora nas periferias. As vivências, relatos e insights de várias pessoas que moram nas periferias e estudam na USP fornecem dados eloquentes acerca dos dispositivos de marginalização que atingem eles mesmos e seus parentes não humanos. Assim, refere-se em um dos textos: “a nossa casa na São Remo era pouco ventilada, com apenas uma janela na cozinha que ficava aberta, e o portão era vazado, o que impossibilitava o controle do trânsito de nossos gatos”33 Rodrigues ER. Visita do censo. In: Baquero OS, Peçanha E, organizadores. Comunidades e famílias multiespécies: aportes à saúde única em periferias. São Paulo: Amavisse; 2021. p. 96-100. (p. 75).

Longe de uma perspectiva de um sujeito universal da saúde, os trabalhos reunidos nos permitem olhar para múltiplas especificidades, desde os entraves da circulação e convivência de animais nos contextos das periferias até as tensões de ser migrantes racializados morando no Jardim Keralux. O livro então direciona seu olhar para questões como “raça” e migração enquanto vetores que atravessam a saúde.

Essas premissas guiam as escolhas metodológicas dos diferentes trabalhos. É com base nelas que, para construir as análises, os autores se detêm em lugares como os becos dos gatos, o córrego, quintais e vielas, mas também nas memórias de enchentes e inundações, nas três únicas ruas asfaltadas da Vila Guaraciaba. Essa observação crítica possibilita abrir o escopo de algumas noções teóricas, como a de cidades sustentáveis, uma das tantas abordadas no livro. No fim, os critérios de sustentabilidade promovidos por agências internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) acolhem a realidade das periferias urbanas?

Outro valor da obra reside na sua ressonância com os tempos que correm no Brasil, lócus privilegiado do negligenciamento da saúde na gestão do atual presidente Jair Bolsonaro, que, em meio à crise sanitária global provocada pelo vírus Sars-Cov-2, colocou-a na dimensão de “gripezinha”. Essa gestão tem mostrado muito bem que o Estado também se habilita na função de matar o “outro”, servindo-se da retórica de ameaça à sua soberania. Diante desse cenário, este livro torna-se um importante registro de outra gramática política, oposta a essa gestão. São vários os textos que lançam mão dos conceitos de biopolítica de Michel Foucault e de necropolítica de Achille Mbembe para explicar como a figura da favela é tomada como o exterior constitutivo que ameaça a “segurança nacional”. É dessa óptica que escapa as análises censitárias convencionais e partir da qual vários trabalhos nos mostram a persistência do paradigma colonial, responsável pelo racismo ambiental em territórios como o Jardim Keralux.

Para se contrapor a essa gramática mortífera, o livro aposta em uma ética multiespécies, interessada em elucidar os mecanismos que, de forma conjunta, produzem vidas outrificadas. Ao mesmo tempo, é com fundamento nessa ética que o livro rompe com a imagem das favelas como locais de absoluta carência. Os textos debatem noções do bem-viver latino-americano que se fazem presentes nesses territórios e resgatam as disputas que os moradores das favelas articulam em fóruns e outros espaços formais. Como se aponta em um dos trabalhos: “São Remo é um lugar cheio de vidas, seja nas ruas, becos, quadras ou casas”44 Souza DP. Laços entre animais. In: Baquero OS, Peçanha E, organizadores. Comunidades e famílias multiespécies: aportes à saúde única em periferias. São Paulo: Amavisse; 2021. p. 180-4. (p. 182). Precisamente, a pluralidade de vidas pulsantes constitui a marca das alianças multiespécies que, sem apagar as singularidades, tecem focos de resistência. Nesse sentido, o livro é um alento, uma âncora na qual é possível nos segurar nos tempos que correm. Jogue-se nessa leitura cativante, que traça rumos para um outro Brasil que já existe e que tem muito a nos ensinar sobre uma ética e uma política comprometidas com o florescimento das alteridades.

  • Malfrán YIM. Os “outros” das favelas: humanos, animais e ambientes tecendo pistas para um projeto de saúde multiespécies. Interface (Botucatu). 2022; 26: e220325 https://doi.org/10.1590/interface.220325
  • Financiamento

    Bolsa de pós-doutorado PRCEU-USP, Edital 02/2021, Projeto: Saúde Única em Periferias; Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de financiamento 001.

Referências

  • 1
    Baquero OS, Peçanha E, organizadores. Comunidades e famílias multiespécies: aportes à saúde única em periferias. São Paulo: Amavisse; 2021.
  • 2
    Baquero OS. Apresentação: periferias do saber, urbanas e animais. In: Baquero OS, Peçanha E, organizadores. Comunidades e famílias multiespécies: aportes à saúde única em periferias. São Paulo: Amavisse; 2021. p. 13-42.
  • 3
    Rodrigues ER. Visita do censo. In: Baquero OS, Peçanha E, organizadores. Comunidades e famílias multiespécies: aportes à saúde única em periferias. São Paulo: Amavisse; 2021. p. 96-100.
  • 4
    Souza DP. Laços entre animais. In: Baquero OS, Peçanha E, organizadores. Comunidades e famílias multiespécies: aportes à saúde única em periferias. São Paulo: Amavisse; 2021. p. 180-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2022
  • Aceito
    05 Set 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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