Pensar a dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade, em especial mediante cartografia realizada em Belo Horizonte, como propõem as autoras Pontes, Braga e Jorge, é, antes de tudo, problematizar a ideia de “situação de vulnerabilidade”.
Como colocado pelas autoras, a condição de vida das mulheres que têm suas crianças retiradas de si “devido à concepção de ofertarem risco em decorrência de circunstâncias como trajetória de vida nas ruas, uso de álcool e outras drogas, ausência de pré-natal ou negligência/violência”11 Pontes MG, Braga LS, Jorge AO. A dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210511. doi: https://doi.org/10.1590/interface.210511
https://doi.org/10.1590/interface.210511... (p. 2), faz parte de um longo processo de violências contra as mulheres no país, que têm como foco aquelas consideradas em situação de vulnerabilidade a cada momento histórico social.
Ao observarmos a rotulação, pelo Estado, de determinados indivíduos como em condição de vulnerabilidade, temos a oportunidade de pensar, com as autoras, o caminho cartográfico que fazem ante as inúmeras violações de direito que encontraram em seu percurso. Desde Belo Horizonte, local em que descrevem as violações vivenciadas e o que nomeiam como “movimentos indutores da separação de mães e filhos”11 Pontes MG, Braga LS, Jorge AO. A dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210511. doi: https://doi.org/10.1590/interface.210511
https://doi.org/10.1590/interface.210511... (p. 2), as autoras encontram matizes para a vulnerabilidade social referida e os impactos dessa rotulação em determinados grupos sociais.
A “vulnerabilidade social” é uma condição de determinados indivíduos em nossa sociedade intimamente ligada à incapacidade do Estado de prover o mínimo garantido constitucionalmente a uma parte significativa de seus cidadãos ou, mais especificamente, cidadãs. Como demonstram as autoras, em um complexo movimento narrativo e por meio de seus diferentes órgãos públicos e estratégias de governo, o Estado exime-se da responsabilidade de cuidado para com determinadas pessoas em situação de vulnerabilidade social. E fazem isso, por exemplo, não ofertando serviços de atendimento à drogadição feminina, tendo insuficientes políticas habitacionais e permitindo a violação transgeracional de direitos. Como apontam as autoras, muitas das mulheres hoje separadas de seus filhos e filhas foram elas também crianças separadas de suas famílias, adolescentes que não foram protegidas, tornaram-se mães e não foram assistidas pelo Estado.
Em razão da vulnerabilidade das mães e em busca, supostamente, de evitar que as crianças fiquem em vulnerabilidade, justifica-se, retoricamente, nos âmbitos médicos, jurídicos e de assistência social especialmente implicados nesses casos, a retirada das crianças. A vulnerabilidade das famílias, que idealmente seria o motivo que justificaria o atendimento conjunto às crianças, mães e famílias, é usada como justificativa para a separação. O cuidado é, antes de tudo, como tem sido discutido por diversas autoras22 Guimarães NA, Hirata HS. O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades. São Paulo: Ateliê Editorial; 2021.,33 Molinier P. Ética e trabalho do care. In: Guimarães NA, Hirata HS, organizadoras. Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Editora Atlas S.A.; 2012. p. 29-43. e especialmente aplicado a esses casos44 Gomes JDG. O cuidado em julgamento: um olhar sobre os processos de destituição do poder familiar no estado de São Paulo [tese]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2022., uma escolha política.
De quem cuidamos e como, longe de ser uma escolha pautada em quem mais precisa de cuidados, está intimamente ligado à vulnerabilidade que reputamos passível de atenção por parte dos agentes que têm condições de ofertar o cuidado.
A vulnerabilidade, a exemplo de Joan Tronto55 Tronto J. Assistência democrática e democracias assistenciais. Soc Estado. 2007; 22(2):285-308. e como têm afirmado as autoras do cuidado, é inerente à condição humana. Todos e todas nós estivemos ou estaremos, em algum momento de nossas vidas, em condição de vulnerabilidade, de necessidade de cuidado. A infância, a velhice, a doença, a drogadição, a miséria, o estado puerperal são situações que podem acometer, em maior ou menor medida, diversos membros de nossa sociedade. Mas quais serão os considerados dignos de cuidado, e quais serão aqueles (ou aquelas?) responsabilizados pela vulnerabilidade na qual se encontram?
As narrativas apresentadas no artigo das autoras, baseadas em duas mulheres separadas de seus filhos e entrevistas com 19 atores estratégicos, permitem entrever como a vulnerabilidade e o (não) cuidado estão amalgamados na (dita) incapacidade de atender a todos e todas que precisam do Estado para o acesso ao mínimo necessário para viver com dignidade.
Observa-se, por exemplo, que “uma justificativa comum para a separação de mãe e filho (...) refere-se à impossibilidade de uma mulher em situação de vulnerabilidade criar seus filhos”11 Pontes MG, Braga LS, Jorge AO. A dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210511. doi: https://doi.org/10.1590/interface.210511
https://doi.org/10.1590/interface.210511... (p. 4), ou ainda qual “a justificativa que eles usam?! Que o bebê tem risco. Eles partem também da premissa de que o serviço de saúde não funciona”11 Pontes MG, Braga LS, Jorge AO. A dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210511. doi: https://doi.org/10.1590/interface.210511
https://doi.org/10.1590/interface.210511... (p. 7).
Assim, a vulnerabilidade das mulheres compõe os motivos pelos quais elas devem ser punidas e não os motivos que justificam seu cuidado, invisibilizando ativamente o Estado de suas responsabilidades de erradicar, cuidar e evitar ditas vulnerabilidades nos termos do determinado pela própria Constituição Federal de 1988 e uma série de outros institutos legais nacionais e internacionais.
Ao observar os elementos que materializam essa vulnerabilidade, com base nas narrativas coletadas, nota-se como a pobreza compõe seu núcleo irradiador, atravessado por moralidades em relação a essas mulheres e famílias e a necessidade de justificar que o Estado “não pode dar conta de tudo”. Mas será que não pode?
Por meio da busca por inserção de crianças em vagas de creche no Rio de Janeiro, Camila Fernandes66 Fernandes C. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2017., em sua tese de doutoramento, demonstra como a sexualidade feminina e as “mulheres que fazem filhos demais” são, elas próprias, responsabilizadas pela incapacidade do Estado de ofertar vagas a todas as crianças.
No mesmo sentido, a falta de políticas para mães e famílias é utilizada como motivo que justifica as retiradas. A inexistência de políticas seria advinda do excesso de filhos dessas mulheres, de sua falta de adesão aos serviços, e uma série de outros motivos descrita no texto ora debatido e em diversos outros sobre a temática.
Conforme coletado pelas autoras, assim como no caso das creches descrito por Fernandes, os próprios agentes reconhecem a “falta de resposta das políticas públicas”11 Pontes MG, Braga LS, Jorge AO. A dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210511. doi: https://doi.org/10.1590/interface.210511
https://doi.org/10.1590/interface.210511... (p. 8). Se as mães são responsabilizadas pelos filhos na falta de vagas e não podem acessar trabalhos dignos, estudos, lazer, por precisarem cuidar das crianças, no caso das separações opta-se por “salvar o bebê” da vulnerabilidade identificada pelo Estado e seus agentes, sendo as mães responsáveis por colocar mais uma pessoa nesse estado de vulnerabilidade no qual vivem.
A cartografia realizada pelas autoras registra com destreza ímpar as nuances dessas violências cotidianas que acometem diversas mulheres em nosso país. O caso de Belo Horizonte é de especial interesse, pois as próprias instituições trouxeram à luz, por meio de portarias institucionais descritas no texto, elemento que em geral fica restrito aos seus agentes e a uma zona cinzenta, afastada da possibilidade de acompanhamento social: a moralidade que norteia a ação dos agentes e instituições de Estado.
Um elemento passível de problematização no texto é, desde minha perspectiva, a ideia de invisibilidade referida pelas autoras em diversas passagens do texto. Por exemplo, as autoras referem que seus registros ao longo da cartografia realizada “trouxeram pistas de que a invisibilidade dos contextos econômicos, sociais e culturais que envolvem as vidas de mulheres em situação de vulnerabilidade serve a uma razão de mundo na qual as vidas de uns valem mais do que as de outros”11 Pontes MG, Braga LS, Jorge AO. A dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210511. doi: https://doi.org/10.1590/interface.210511
https://doi.org/10.1590/interface.210511... (p. 6).
O que problematizo aqui é justamente esta ideia de “invisibilidade” que envolve essas vidas. Não seria justamente a visibilidade dessas mulheres e referidos contextos que permitiram a naturalização das retiradas e seus fluxos automatizados? Talvez seja possível apresentar como hipótese que a hiper-visibilidade dessas mulheres, permitindo as reiteradas separações, a vigilância que por vezes determina a retirada até mesmo antes do nascimento, não esteja relacionada a ver ou não ver tais mulheres, mas, sim, ao lugar de visibilidade que têm seus filhos, como também apontou Sarmento77 Sarmento CS. “Por que não podemos ser mães?”: tecnologias de governo, maternidade e mulheres com trajetória de rua [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2020..
A prática adotiva, carro-chefe de políticas públicas contemporâneas da gestão da infância pobre88 Fonseca C. (Re)descobrindo a adoção no Brasil trinta anos depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. Runa. 2019; 40(2):17-38., e a ideia de “cuidado com a fila de adoção”44 Gomes JDG. O cuidado em julgamento: um olhar sobre os processos de destituição do poder familiar no estado de São Paulo [tese]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2022. talvez produzam, arrisco, a visibilidade seletiva dessas mulheres e suas vulnerabilidades. Visibilizam-se as vulnerabilidades, invisibilizam-se as potencialidades para projetar as crianças como “salváveis” e as mães como “separáveis” de seus filhos.
Talvez, assim como “vulnerabilidade”, a ideia de “invisibilidade” de sujeitos nesse contexto precise ser observada de maneira atenta pelos indivíduos implicados na questão, como agentes, pesquisadoras, formuladoras de políticas. A única invisibilidade é, infelizmente, a da potencial responsabilização do Estado brasileiro por práticas violadoras dos direitos das mulheres e famílias nesses contextos.
- Gomes JDG. Entre (in)visibilidades pensando “a dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade”. Interface (Botucatu). 2022; 26: e220455 https://doi.org/10.1590/interface.220455
Referências
- 1Pontes MG, Braga LS, Jorge AO. A dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210511. doi: https://doi.org/10.1590/interface.210511
» https://doi.org/10.1590/interface.210511 - 2Guimarães NA, Hirata HS. O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades. São Paulo: Ateliê Editorial; 2021.
- 3Molinier P. Ética e trabalho do care. In: Guimarães NA, Hirata HS, organizadoras. Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Editora Atlas S.A.; 2012. p. 29-43.
- 4Gomes JDG. O cuidado em julgamento: um olhar sobre os processos de destituição do poder familiar no estado de São Paulo [tese]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2022.
- 5Tronto J. Assistência democrática e democracias assistenciais. Soc Estado. 2007; 22(2):285-308.
- 6Fernandes C. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2017.
- 7Sarmento CS. “Por que não podemos ser mães?”: tecnologias de governo, maternidade e mulheres com trajetória de rua [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2020.
- 8Fonseca C. (Re)descobrindo a adoção no Brasil trinta anos depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. Runa. 2019; 40(2):17-38.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
05 Dez 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
14 Set 2022 - Aceito
10 Out 2022