A guerra do agronegócio contra a saúde coletiva: entrevista com Allan Rodrigo de Campos Silva

The agribusiness war against public health: interview with Allan Rodrigo de Campos Silva

La guerra del agronegocio contra la salud pública: entrevista con Allan Rodrigo de Campos Silva

Rafael Afonso da Silva Sobre o autor

Agronegócio; Epidemias; Saúde Coletiva

Fonte: Acervo pessoal

Em 31 de outubro de 2022, ocorreu a primeira roda do ciclo “Saúde (Roda Viva) Coletiva: Não vamos ficar gerindo a extinção”, apoiado pelo programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da Faculdade de Ciências Médicas, da UnicampbbEvento disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oDn4COgDB2o&t=127s . O convidado da roda, orientada para o tema “agronegócio e epidemias”, era Allan Rodrigo de Campos Silva. A entrevista foi realizada no dia seguinte ao evento, ainda sob a ressonância de sua denúncia de que a Saúde Coletiva estará condenada à “irrelevância” “se não trouxer, com seriedade, o agronegócio para o centro da roda”.

Allan Rodrigo de Campos Silva é doutor em Geografia Humana pela USP. Atualmente é pesquisador na Unesp. Sua pesquisa dirige-se às interfaces entre Saúde Pública, agronegócio, doenças ocupacionais, doenças infecciosas e migrações. Ele traduziu “Pandemia e agronegócio”, de Rob Wallace11. Wallace R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Igra Kniga, Elefante; 2020. .

Em um momento em que fomos obrigados a reconhecer a gravidade do cenário epidemiológico mundial, com a explosão da pandemia de Covid-19, esta entrevista, sob inspiração da obra de Wallace, introduz perspectivas que podem contribuir para enriquecer o debate sobre a produção de epidemias e os modos de enfrentamento do que podemos chamar de “era das epidemias e pandemias”. Além de discutir as relações entre doenças infecciosas e agronegócio, a entrevista aborda os limites e as contradições das intervenções de Saúde Pública no cenário epidemiológico, bem como das pesquisas na área de ecologia das epidemias, oferecendo pistas para redefinir as condições epistemológico-metodológicas e político-pragmáticas do debate.

O texto que se segue é uma versão da entrevista editada pelo entrevistador e avalizada pelo entrevistado.

Itinerário intelectual e descoberta da obra de Wallace

E: Conte um pouco do seu itinerário intelectual e acadêmico e do seu encontro com a obra de Wallace.

A: Sou geógrafo. Comecei a fazer pós-graduação estudando a indústria de carnes e a indústria avícola, com foco nas relações de trabalho e na migração. Eu estudava o engajamento de imigrantes africanos muçulmanos na indústria de frangos no Brasil.

Como geógrafo, eu me concentrava na análise dos circuitos de mobilidade do trabalho, na espacialidade da trajetória migratória e em como ela se relacionava com a modernização agropecuária no Brasil. Tinha um olhar leve sobre as relações de saúde, porque era incontornável. Não tem como estudar frigorífico e deixar de reconhecer as violações dos corpos e mentes dos trabalhadores que o agronegócio executa. Minha abordagem de saúde era limitada aos problemas de doenças osteomusculares, às lesões por esforço repetitivo no trabalho.

No doutorado, estudei a dimensão jurídica da solicitação de refúgio no Brasil. A solicitação de refúgio é uma espécie de limbo jurídico, que cai como uma luva para as relações de trabalho superprecarizadas dos frigoríficos, com seus contratos temporários de noventa dias. Muitas vezes, em noventa dias, os trabalhadores desenvolvem uma lesão que carregarão para o resto da vida, nos braços, nos ombros, no pescoço. E são descartados com a mesma frieza que a indústria descarta as carcaças dos animais que eles abatem. Um dos capítulos da dissertação se chama “Com a faca no pescoço”, em que tento trazer essa dimensão autossacrificial do trabalho.

Encerrei essa pesquisa em 2018. Pouco depois, estoura a pandemia da Covid-19, e encontro um texto do Coletivo Chuang intitulado “Contágio social: coronavírus e a luta de classes microbiológica na China”22. Coletivo Chuang. Contágio social: coronavírus e a luta de classes microbiológica na China. São Paulo: Veneta; 2020. . Chuang é um coletivo chinês anticapitalista que faz oposição frontal ao regime do Partido Comunista Chinês. O texto descreve a emergência da Covid em Wuhan. Ao longo da descrição, eles mencionam a análise do biólogo Rob Wallace das “rotas principais pelas quais o capitalismo ajuda a gestar e desencadear epidemias cada vez mais mortais”22. Coletivo Chuang. Contágio social: coronavírus e a luta de classes microbiológica na China. São Paulo: Veneta; 2020. (s.p). Foi assim que cheguei ao livro “Big Farms make Big Flu”, que traduzi e que saiu como “Pandemia e Agronegócio11. Wallace R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Igra Kniga, Elefante; 2020. .

É um livro de quarenta artigos escrito durante quase 15 anos, ao longo dos quais Wallace desenvolve um conjunto de hipóteses sobre esse modo capitalista de produção de pandemias. Como microbiólogo interessado na crítica ao capitalismo, ele abriu essa encruzilhada e, com muita dificuldade, conseguiu colocar em movimento essa pesquisa.

A Santa Inquisição da Big Farm nos EUA e no Brasil

E: Você falou de muita dificuldade. O agronegócio tornou-se uma crença quase universal e qualquer crítica a ele aparece como um tipo de heresia, passível de excomunhão e linchamento. A partir dos aprendizados decorrentes de sua aproximação com Wallace e com o contexto estadunidense, você diria que há diferenças entre ser crítico do agronegócio no Brasil e nos EUA?

A: O agronegócio brasileiro é muito parecido com o estadunidense. Ele é produto de importação, resultado do capital sobrante nos EUA, que, nos anos 1960 e 1970, inunda o campo brasileiro e transforma as práticas agropecuárias. Mas, pensando na pesquisa e na crítica, há diferenças drásticas entre os EUA e o Brasil. A primeira coisa que Rob Wallace costuma dizer é que, nos EUA, ninguém vai te matar por criticar o agronegócio. Essa é a diferença gritante com o contexto brasileiro.

Nós estávamos conversando, antes da entrevista, sobre a investigação que “O Joio e o Trigo” fez com cientistas brasileiros perseguidos por fazerem pesquisas críticas em relação ao agronegócio33. Alves S. Quando estudar agrotóxicos vira caso de perseguição [Internet]. São Paulo: O joio e o trigo; 2022 [citado 20 Set 2022]. Disponível em: https://ojoioeotrigo.com.br/2022/07/quando-estudar-agrotoxicos-vira-caso-de-perseguicao/
https://ojoioeotrigo.com.br/2022/07/quan...
. O caso que mais se destaca é o de Larissa Bombardi, que teve de sair do Brasil depois de ter a sua casa invadida, o seu computador roubado e ter sofrido ataques reiterados, principalmente de Xico Graziano. Trata-se de uma reportagem investigativa muito profunda sobre o que acontece com cientistas que atacam o agronegócio no Brasil.

Wallace, por sua parte, foi excomungado da universidade, teve suas pesquisas descontinuadas de forma financeira e desistiu de fazer da universidade o espaço para colocar em movimento suas pesquisas. Agora ele atua basicamente na sociedade civil organizada, em diversos coletivos, para continuar suas pesquisas.

A aliança estratégica entre patógenos e agronegócio

E: Wallace refere-se, em termos bem latourianos, a uma aliança estratégica entre a Big Farm e diversos novos patógenos. O que isso significa?

A: Wallace recorre à antropomorfização de vírus e bactérias como expediente narrativo. Ele descreve cepas de vírus como grupos de pressão nos corredores das corporações, como se eles estivessem fazendo lobby , sentadas na mesa.

Essa aliança estratégica não é equitativa. Não é uma aliança bioeconômica em que patógenos e agronegócio se beneficiam igualmente. É uma aliança na qual quem tem poder mesmo são os patógenos, que impõem condições cada vez mais autodestrutivas para o agronegócio.

O agronegócio é fundado basicamente no princípio da monocultura em escala. Mesmo quando percebe as consequências desastrosas do modelo, busca soluções que o aprofundam, como a tentativa de filtragem de patógenos em ambientes que expandem ainda mais a escala da produção. Diante de suas crises, o agronegócio dobra a aposta no seu próprio modelo, cedendo o poder aos patógenos, que vão encontrar, nessa duplicação da aposta, o caminho para levar o agronegócio à sua ruína. Um exemplo paradigmático são os hotéis de porcos na China, que abrigam trinta mil porcos em uma estrutura. O resultado foi a morte de duzentos milhões de porcos na China, desde 2018.

Esse modelo cria janelas de oportunidade para evolução de patógenos que se tornam mais mortais e mais contagiosos; e que podem levar a pandemias catastróficas. A Covid-19 já levou 15 milhões de pessoas.

O agronegócio como sistema está inscrito em um tipo de entropia cega e autodestrutiva, do ponto de vista tanto epidemiológico quanto econômico. Não existe astúcia política ou econômica que salve o agronegócio da sua irracionalidade econômica intrínseca. É um sistema que só existe porque é financiado publicamente pelo conjunto dos Estados nacionais.

E: Ontem, no início do evento, você apresentou, por meio do histórico de algumas epidemias, dinâmicas que favorecem a produção de patógenos dentro das paisagens bioculturais do agronegócio. Você poderia retomar essa discussão?

A: O problema principal é o monocultivo genético. Animais, na grande maioria consanguíneos, sem diversidade imunológica, são mais suscetíveis a infecções do que animais reproduzidos in loco . Tem a brincadeira que Wallace faz dizendo que deve haver alguma razão para todo aquele “sexo quente” entre as galinhas na selva. Trata-se de um dispositivo evolutivo para amplificação de diversidade imunológica. Mas a agropecuária moderna está fundada na eliminação da diversidade.

Existem ainda outros complicadores. O confinamento faz com que o contágio seja aceleradíssimo entre um animal e outro. Galpão com dez, doze mil aves. O contágio entre um animal e seu consanguíneo, além de tudo deprimido imunologicamente pelas formas de criação, é extremamente facilitado pela aglomeração.

O agronegócio entende o animal como um complexo bioeconômico de conversão de ração em carne e, por isso, a janela de vida do animal é comprimida. Hoje, um frango é abatido em quarenta dias, e esse tempo tem diminuído cada vez mais. Do ponto de vista da evolução viral, essa pressão sobre o tempo de vida espreme o tempo que o vírus tem para infectar o animal, passar pela incubação e pular para o próximo animal. Você pode pensar que essa compressão temporal atua contra o vírus. No entanto, as cepas que passam para frente são justamente as mais velozes. O agronegócio seleciona as cepas mais velozes e furiosas.

A primeira produção de Wallace foi um blog chamado Farming pathogens, que quer dizer “cultivando patógenos” ou a “industrialização dos patógenos”. O argumento de Wallace é: ao industrializar a produção monocultural de animais, estamos industrializando os seus patógenos. É um argumento simples, autointuitivo. Se os microbiomas são parte do organismo, a industrialização do vivente é a industrialização do seu microbioma.

E: Outro ponto que você apresentou ontem foi a redução das florestas, na discussão da Ebola e das plantações de palma.

A: Até a Influenza tem relação com a destruição das florestas. Aves migratórias aquáticas são reservatórios importantes de Influenza . Por exemplo, o sudeste da China é uma região fundamental para evolução de qualquer uma das variantes de H5Nx, porque ali existe, além de uma tradição de criação de patos e gansos, a zona úmida do delta do Rio das Pérolas. Desde os anos 1970, com a criação das Zonas Econômicas Especiais por Deng Xiaoping, as paisagens bioculturais do sudeste da China mudaram completamente, afetando as zonas úmidas. Com a drenagem e o aterramento no delta, as aves migratórias perdem sua área de pousio e forrageamento e vão alimentar-se das sobras das fazendas, convivendo com os animais de criação intensiva e transbordando vírus. Na natureza, esses vírus são, em geral, de baixa patogenicidade. Um vírus muito letal, que mata rapidamente um animal silvestre, não vai conseguir contaminar um bando inteiro da mesma forma, já que o bando tem diversidade imune e genética. Quando atinge um bando de aves monocultivado, o vírus não encontra essa barreira.

A cozinha epidemiológica do agronegócio no Brasil

E: Wallace concentra-se na descrição de paisagens bioculturais de emergência da gripe aviária no sul e sudeste da China, da gripe suína no complexo do NAFTA e da Ebola no oeste africano, mostrando as conexões dessas paisagens com os circuitos globais de capital. Onde estão as paisagens de “sexo quente” entre agronegócio e vírus ou outros patógenos no Brasil?

A: O continente americano tem uma espécie de corredor migratório de aves, muitas das quais são aquáticas. Um estudo44. Hurtado RF. Vigilância epidemiológica dos vírus da influenza aviária em aves migratórias na região costeira da Amazônia [tese]. São Paulo: USP; 2013. identificou uma cepa de Influenza em aves silvestres no Brasil que era da mesma cepa encontrada em aves no Canadá. Isso aponta para um tipo de unidade epidemiológica nos repositórios silvestres de Influenza .

Sabemos que o circuito da produção de epidemias de Influenza começa com a exposição de animais monocultivados em larga escala a fontes de vírus silvestres. Isso está presente nas paisagens brasileiras. Eu destacaria, pelo menos, a Amazônia e o Pantanal. No Pantanal, onde há mais de seiscentas espécies de aves, o agronegócio avança a passos largos. As queimadas no Pantanal, movidas pela intrusão do monocultivo de soja e milho e dos pastos em reservas indígenas e florestais, abrem essa interface para Influenza .

O Brasil declara-se livre de Influenza aviária, mas podemos suspeitar de subnotificação, em um momento em que a vigilância sanitária está enfraquecida e vive sob a ameaça de um projeto de “entregar o galinheiro para a raposa”, segundo o modelo estadunidense de delegar às corporações a responsabilidade da vigilância em saúde animal. De qualquer modo, as condições para Influenza aviária estão dadas.

O cenário mundial da Influenza aviária e suína é grave. Não temos dados para avaliar a gravidade do cenário no Brasil. O que se sabe com certeza é que estamos experimentando com a Influenza suína e que abrigamos repositórios silvestres para Influenza aviária. O Brasil já fabricou duas variantes de Influenza suína: em 2015, em Castro, no Paraná, e em 2020, em Ibiporã, também no Paraná. Duas cepas de H1N2 emergiram da produção industrial de suínos e infectaram humanos.

E: Para além da Influenza, o Brasil tem outras doenças infecciosas importantes, como malária e dengue. A malária, por exemplo, quase erradicada no século passado, reaparece, com 600 mil casos por ano, na entrada do XXI. Qual a relação dessas epidemias com o agronegócio e outras frentes predatórias, como o extrativismo madeireiro e mineral?

A: O Brasil é uma fonte infindável de problemas ecológicos e epidemiológicos que estão prestes a estourar ou já estouraram, como é o caso da malária. A malária já é vista por ecólogos como indicador de destruição ambiental. É uma inversão: você pode olhar a malária como indicador. Ela está ligada na Amazônia diretamente ao desflorestamento e à atividade garimpeira. O garimpo na Amazônia é de escala industrial. Mobiliza pistas de pouso, aviões, maquinário. Reorienta cursos de rios, transformando completamente o regime de águas em regiões inteiras. Isso impacta diretamente os ciclos reprodutivos dos vetores, dos mosquitos. Onde tem garimpo na Amazônia tem malária. Uma coisa segue a outra de perto, e isso vale não só para malária, mas também para arboviroses de maneira geral.

Existem várias pesquisas apontando para a capacidade dos mosquitos de ampliar sua área de alcance. Nas Filipinas ou no Peru, mosquitos fazem a sedimentação de ovos nas balsas que transportam soja, por exemplo. O mosquito alcança manchas urbanas por causa do transporte hidroviário de grãos. A gente nem imagina as consequências que, por exemplo, a hidrovia da soja pode ter na paisagem epidemiológica brasileira. Para compreender os percursos das arboviroses no Brasil, como a dengue ou a Chikungunya , vale começar a investigar esses mecanismos discretos.

Mas eu diria que, no caso brasileiro, há um monstro dormente ainda mais preocupante: as arenaviroses. Um dos vírus descobertos no Brasil é o Aporé, nome de uma cidade goiana, em uma região atravessada pela Ferrogrão, uma malha ferroviária de escoamento de grãos na região centro-oeste. Fiz um trabalho de avaliação de impacto ambiental dessa ferrovia no Mato Grosso. É impressionante. Os trens passam carregadíssimos de soja e cai muito grão ao longo da via. A fauna silvestre habitua-se a consumir esses grãos. Vi cenas de bandos de araras consumindo a soja espalhada às margens da ferrovia. É uma cena trágica, horrível e bonita, ao mesmo tempo. Imagine o pôr-do-sol alaranjado, os bandos de araras vermelhas e azuis voando, centenas de aves. A soja, quando cai no chão, começa a decompor-se, espalhando um cheiro que lembra carniça. É um bando de aves comendo carniça vegetal. Uma cena bonita e horrível. Esse resto de soja atrai também roedores silvestres. Estes são repositórios naturais de arenavírus, como o vírus Aporé ou o Xapuri.

As arenaviroses podem ter taxas de mortalidade gigantes, de 15, 20, 30 por cento. Podem causar febres hemorrágicas graves. Existe possibilidade de transmissão por via respiratória. A capacidade de transmissão é altíssima. Em resumo, é um monstro invisível com a taxa de mortalidade da Ebola e a capacidade de transmissão da Covid-19. Essa pandemia está sendo cozida agora no Brasil pela intrusão do agronegócio na Amazônia e no Pantanal.

É importante a gente ter claro que o agronegócio está preparando pandemias em solo brasileiro. É uma questão de tempo. Não é uma questão de “se vai produzir ou não”. É uma questão de tempo.

Blindando o agronegócio: o limite das instituições de Saúde Pública

E: Wallace afirma que a Saúde Pública tem operado, em geral, sob perspectivas que tendem a absolver o agronegócio da responsabilidade pela repetida emergência de cepas protopandêmicas. Wallace apresenta, inclusive, uma crítica pesada à atuação da Organização Mundial da Saúde (OMS) no ocultamento ativo dessa responsabilidade. Você poderia retomar um pouco o mote dessa crítica?

A: Tem um artigo específico sobre isso no livro “Pandemia e agronegócio: o grande jogo de empurra da gripe aviária”11. Wallace R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Igra Kniga, Elefante; 2020. . Nesse artigo, Wallace discute a decisão da OMS de adotar nomenclaturas científicas para as doenças, supostamente para superar o preconceito cultural relacionado à nomeação da doença de acordo com um hábito, uma localidade, um povo. No entanto, essa estratégia pode contribuir para ocultar a produção capitalista de epidemias, suas dinâmicas e geografias.

A OMS oculta as origens das doenças e atua como agência emergencial. Como agência emergencial, a OMS tornou-se, em parte, uma sucursal da indústria farmacêutica. Ela recebe amostras anuais de vírus principalmente de institutos de Saúde Pública e fornece esse material gratuitamente para laboratórios privados que produzem versões atualizadas das vacinas. Mesmo se quisesse, a OMS não teria força para opor-se ao paradigma da saúde-mercadoria. É esse paradigma que permite que a pesquisa financiada com recursos públicos seja transformada em mercadoria, como ocorreu com a vacina contra Covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford, uma instituição pública que cedeu os direitos de produção e comercialização à AstraZeneca.

Mesmo reconhecendo seu importante papel em outras frentes da agenda política global da saúde, é preciso dizer que a OMS opera como um intermediário fraco entre o agronegócio, com as suas safras virais, e as corporações farmacêuticas, com suas safras de vacinas. A OMS atua como advogado da Big Farm, ajudando a ocultar os padrões e regimes territoriais e financeiros que produzem as doenças infecciosas emergentes, e como fornecedor da Big Pharma, enviando safras virais de todas as partes do mundo para a produção de vacinas patenteadas.

E: Você imagina que, como no caso da OMS, há uma prática de ocultamento das instituições sanitárias brasileiras?

A: Eu desconfio muito das práticas de vigilância em saúde animal. Não pelos vigilantes sanitários, enfraquecidos como categoria, mas pela própria força que o agronegócio tem para impedir qualquer investigação. Um problema hoje é a dificuldade de testagem para verificar qual é a linha de causalidade entre a criação de animais em escala e a ocorrência de Influenza . Não temos esses dados. Isso é um vácuo. Isso vale também para Salmonella ou bactérias que podem emergir na indústria de laticínios e de ovos.

E: Você menciona no prefácio o escândalo brasileiro da Operação Carne Fraca.

A: A Operação Carne Fraca é uma piada de mau gosto. Enquanto Tony Ramos fazia propaganda de churrasco da Friboi, a JBS, controladora da Friboi, estava moendo papelão junto com a carne. A carne contaminada, barrada na Europa, voltou para o Brasil para ser comercializada. A Polícia Federal revelou que o próprio Ministério da Agricultura orientou a destruição de evidências. Você estava perguntando sobre as instituições brasileiras. O Ministério da Agricultura nesse caso atua como posto avançado da JBS. Enquanto a política brasileira for só um puxadinho do agronegócio, não haverá política sanitária séria no Brasil. Os paradigmas da Saúde Pública e do agronegócio são incompatíveis. Hoje o agronegócio dirige a política sanitária brasileira.

Os limites da One Health e a abordagem estrutural proposta por Wallace

E: Wallace fala da limitação dos nossos arsenais epistêmicos corriqueiros para capturar as dinâmicas relacionadas às geografias das epidemias e pandemias. Ele desenvolve, inclusive, uma crítica às promessas epistêmicas e práticas de propostas como as da One Health. Você poderia falar dessa crítica e da perspectiva alternativa que Wallace apresenta, a One Health Estrutural?

A: O paradigma da One Health – Saúde Única – está se tornando cada vez mais popular no Brasil. Ele está inscrito em um paradigma de gestão de catástrofe, e não de interrupção da produção das catástrofes. Esse é seu limite.

Por exemplo, o estudo “Epidemiologia, diversidade e trajetórias tecnológicas na Amazônia brasileira: da malária ao Covid-19”55. Codeço CT, Dal’Asta AP, Rorato AC, Lana RM, Neves TC, Andreazzi CS, et al. Epidemiology, biodiversity, and technological trajectories in the Brazilian Amazon: from malaria to COVID-19. Front Public Health. 2021; 9:647754. mapeou a Amazônia pelos padrões de uso e ocupação do solo. Seguindo o paradigma da One Health, o estudo considera a saúde das paisagens, dos animais e dos humanos de forma integrada. O que o estudo descobre? Que onde predominam soja e gado há incremento no índice de hantaviroses, doenças infectocontagiosas que encontram nos roedores silvestres seus repositórios naturais. Ratinhos silvestres vão se habituando a sobras de grãos. Suas populações aumentam descontroladamente. O desmatamento impacta a fauna de predadores. Aumenta o índice de hantaviroses. Mas a pesquisa se encerra nesse ponto. Não faz perguntas sobre como essas paisagens foram produzidas, sobre os processos político-econômicos que dirigem essa forma de uso e ocupação do solo.

Qual é a proposta da One Health Estrutural? Trazer para os modelos de análise as variáveis de mercantilização do solo; os fluxos financeiros e as agências políticas que permitem que florestas sejam derrubadas e reduzidas a latifúndios sojicultores; as formas de ocupação violenta de territórios indígenas e quilombolas capitaneadas por grandes corporações, como Cargill e Dreyfus, etc.

A One Health não analisa essas questões, não sei se por restrição disciplinar de área do conhecimento ou em razão dos fundamentos epistemológicos da ciência hegemônica, convertida em departamento de ciência e tecnologia do agronegócio. Em alguns casos, o motivo é óbvio. Há centros de pesquisas que são financiados pela Cargill, pela Palmolive, etc. Esses lugares não vão fazer as perguntas necessárias, porque ninguém vai pesquisar contra quem paga a conta.

E: Wallace aponta também o risco de haver um uso “disciplinador” da One Health no sentido de sustentar argumentos que podem ser manejados para políticas de “modernização” de produtores, povos e comunidades que estão fora do circuito do agronegócio.

A: Esse é o maior perigo da One Health. Como opera com uma geografia absoluta, ela acaba imputando a modos locais de produção e até a rituais funerários responsabilidade por emergências epidêmicas. Quando você separa uma prática alimentar ou outra prática cultural do contexto no qual está inscrita, você perde de vista as dimensões que a colocam de forma viva no mundo.

Eu imagino que alguns praticantes da One Health estão muito felizes com o caso dos morcegos e da Covid, que pode ser mobilizado para atacar a chamada indústria da carne não convencional. Por essa via, o que defendem não é outra coisa a não ser a universalização da indústria de carnes convencionais. Se a gente retoma o caso da peste suína africana, a gente vê que a separação entre carnes convencionais e não convencionais é imaginária, fictícia.

Enquanto nos fixarmos nessas espacialidades absolutas, a resposta vai ser sempre colonizadora, no sentido de você ter um padrão ocidental, dito racional, que se apresenta como superior e seguro, e que você vai impor deslocando práticas diferentes daquela da “fotossíntese financeirizada”, do CEO da Cargill. Eu vejo uma convergência entre a defesa da modernização agropecuária nos padrões do agronegócio e a One Health.

Da promoção “sanitária” de bioinsegurança à vigilância popular em saúde articulada a novos modelos de produção-consumo

E: Isso nos leva a outra questão. Os sistemas de saúde têm assumido os pressupostos econômicos e técnicos do agronegócio para instituição de regras de biossegurança na produção. Por isso, do mesmo modo que Wallace fala de um dumping viral, talvez possamos falar de um dumping institucional, na forma de intervenções de saúde pública que favorecem o agronegócio, eliminando concorrentes incapazes de implementar dispositivos de biossegurança baseados na escala econômica e nos pressupostos técnicos do agronegócio. Promovemos, assim, o agronegócio, que é a própria bioinsegurança, como estratégia subjacente às nossas regras de biossegurança. Pergunta: podemos imaginar um dumping institucional-estatal ao contrário, na forma de protocolos de biossegurança ancorados em pressupostos sociais, econômicos e ecológicos incompatíveis com o agronegócio?

A: Em relação à promoção da bioinsegurança, o caso da fábrica de chocolates na Suíça é paradigmático. A maior fábrica de chocolate do mundo tornou-se um foco de Salmonella . Crianças ficando doentes no Reino Unido ao comer Kinder Ovo, sob o mais rígido protocolo suíço de biossegurança. Isso não é uma exceção. É a regra. A biossegurança seleciona patógenos e os projeta sobre a sociedade como externalidade do modelo “absolutamente racional” do agronegócio.

Em relação à possibilidade de transformação dos pressupostos de biossegurança em oposição ao agronegócio, gostaria de fazer duas considerações.

Uma transformação dos protocolos de pecuária em direção ao bem-estarismo animal é bastante provável. As legislações europeias já caminharam em direção à produção de ovos free-range , sem gaiola. Essas transformações técnico-produtivas são direcionadas para o bem-estarismo animal, algo importante a ser considerado no debate sobre as formas pelas quais o Estado pode interferir no modo como criamos animais. Mas essa tendência terá pouco ou nenhum impacto sobre o problema epidemiológico, porque não está em questão o modelo da monocultura genética, a compressão da janela de vida, a produção em escala, etc. Outros grupos reivindicam o abolicionismo da exploração animal. Bem-estaristas e abolicionistas se beneficiariam muito da perspectiva de assumir o agronegócio como opositor.

Um movimento com potencial de fazer oposição ao agronegócio na gestão sanitária pode nascer de experiências como aquela da vigilância popular em saúde no Ceará. A perspectiva do projeto, promovido pela Fiocruz, é a de que as próprias comunidades definam seus protocolos de biossegurança, de vigilância sanitária. Dentro dessa perspectiva, as populações poderiam ser capacitadas para fazer leitura dos seus quadros de paisagem e avaliar, por conta própria, os problemas locais em relação às doenças emergentes e sua relação com sistemas produtivos.

E: Acho que isso tem, de fato, grande potencial. Mas essa alternativa será muito limitada se a proposta for apenas vigiar práticas já instituídas de produção. A agroecologia insiste na possibilidade de negociar os padrões de biossegurança entre produtor e consumidor. Coletividades negociando com coletividades aquilo que se pode considerar como riscos aceitáveis e como medidas ou respostas aceitáveis. A vigilância popular em saúde seria mais efetiva em um contexto de instituição de outros tipos de relações de produção-consumo.

A: Por isso é muito interessante a experiência do Ceará. Eu convido todos a conhecer essa experiência66. Lamir D. Escola no Ceará é exemplo de “resistência ativa através da educação” [Internet]. São Paulo: Brasil de Fato; 2021 [citado 20 Set 2022]. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/04/15/escola-no-ceara-e-exemplo-de-resistencia-ativa-atraves-da-educacao
https://www.brasildefato.com.br/2021/04/...
. Ela envolve a perspectiva da Escola Família Agrícola, baseada na “pedagogia da alternância”. As crianças estudam na escola e nas fazendas, onde as famílias tentam pôr em prática formas de produção agroecológicas. Essa rede da escola-família faz uma ligação entre práticas incubadas pela Fiocruz e produtores rurais. O que está em questão é mesmo fazer uma produção contra-hegemônica, informada sobre os riscos epidemiológicos da agricultura e da pecuária tradicionais. Trata-se, assim, de uma iniciativa que procura articular novas práticas de produção-consumo e novas práticas de vigilância em saúde.

Sobre “fazer parentes” e as alternativas ao agronegócio

E: Donna Haraway77. Haraway D. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cult Cient. 2016; 5:139-46. diz que “fazer parentes é, talvez, a parte mais difícil e mais urgente do problema” (p. 141). Que parentes ou associações estratégicas poderíamos fazer para “derrotar o agronegócio como modo de produção e oponente político” (p. 546), como sugere Wallace11. Wallace R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Igra Kniga, Elefante; 2020. ?

A: Ontem, no evento, conversamos sobre como as mulheres que estavam nas fazendas no começo do século XX, nos sítios que surgem da decomposição do grande latifúndio escravocrata e da colonização sistemática do Centro-Sul do Brasil por imigrantes, assumem a função de cuidado dos animais. Cuidar de galinhas e porcos era a atividade reprodutiva delegada pelo patriarcado às mulheres.

Se você viaja ou visita as zonas rurais do Brasil hoje, onde estão os polos da produção suinícola e avícola, você percebe que os produtores rurais descendentes daquela colonização estão encurralados, envolvidos em espirais de dívidas, com transtornos mentais, inclusive. A pressão econômica é muito forte sobre o produtor rural. O protocolo de criação e engorda de animais é muito rígido e muito arriscado.

Existem estudos nos EUA que mostram que o agronegócio funciona como arma de esvaziamento demográfico, uma arma de expropriação. A pulverização aérea de agrotóxico, os lotes de monocultivo, as lagoas com dejetos de porcos, etc., tudo isso torna a vida inviável para o produtor rural. Eu vi um relato de um produtor rural de Santa Catarina, em uma região que é centro de criação suína: ele não produz porcos, mas convive com uma infestação de moscas que o faz prisioneiro na própria casa, a ponto de ele não conseguir abrir as janelas.

Esses produtores são interlocutores de primeira hora, pessoas com as quais a gente deveria construir melhores conversas, melhores alianças, para alargar o horizonte de possibilidades da reprodução material da vida deles. Mas isso não pode ser feito se da conversa não participarem os povos indígenas, os quilombolas, que são os guardiães das práticas agropecuárias outras, não monoculturais.

Um movimento muito interessante é a Teia dos Povos. No Rio Grande do Sul, ele coloca em contato militantes de retomadas indígenas Xokleng, militantes de Porto Alegre do movimento pela soberania popular na mineração, militantes do MST. O Fórum Popular da Natureza, que abrange militantes do MTST e outros do MST e da Via Campesina, é outro movimento relevante. Essas frentes de luta campo-cidade são fundamentais para pensar alternativas.

Durante a pandemia, os quilombos do Ribeira doaram toneladas de alimentos para as favelas na região metropolitana de São Paulo. Isso é muito interessante porque a gente costuma olhar o Vale do Ribeira apenas como região pobre. Essa aliança favela-quilombo associa contextos territoriais totalmente diferentes. Para alguém que vive em uma favela, onde parece inimaginável produzir o próprio alimento, conhecer uma experiência quilombola é maravilhoso. Esses encontros propiciam linhas de fuga para imaginação, mas também para a prática.

E: Pensando em linhas de fuga, o tema das tecnologias é essencial. Você disse que os povos originários e quilombolas são guardiães de “práticas agropecuárias outras”. Esses povos são detentores históricos de tecnologias sem as quais não teríamos essas paisagens bioculturais maravilhosas que são as florestas. Ailton Krenak tem nos convidado a refletir sobre as tecnologias admiráveis que produziram essas paisagens, insistindo em que se trata de tecnologias baseadas em uma intensa negociação entre viventes, humanes e não humanes. Essas tecnologias de negociação são tecnologias probióticas, mais do que antibióticas, no sentido das tecnologias “ cowboy ” do agronegócio, que, como ironiza Berlan88. Oliveira MB, Loureiro IMFR. Entrevista com Jean-Pierre Berlan. Scientiæ Studia. 2004; 2(3):395-413. , atira em tudo que se mexe. Como incluir essas tecnologias outras e suas epistemes na dinâmica de enfrentamento do problema da reconstrução de nossas paisagens bioculturais? Que outros saberes deveriam ser convidados para essa conversa?

A: Realmente acho fundamental caminhar para além desse monopólio epistemológico da racionalidade ocidental moderna. Mas, antes de entrar nesse ponto, gostaria de lembrar que há possibilidades divergentes dentro da própria racionalidade ocidental moderna. Por exemplo, a experiência da Guerra Civil Espanhola foi muito inspirada pelos escritos do Piotr Kropotkin, um geógrafo anarquista russo, para constituir redes de relação campo-cidade. Kropotkin era um leitor crítico de Darwin. Em “Ajuda Mútua”, ele critica a concepção darwinista de evolução como guerra de todos contra todos99. Kropotkin P. Ajuda mútua: um fator de evolução. São Paulo: Biblioteca Terra Livre; 2021. . Dentro da própria episteme moderna, existem dissidências que permitem confrontá-la por dentro. Mas não é suficiente.

E: Viveiros de Castro1010. Castro EV. “Transformação” na antropologia, transformação da “antropologia”. Mana. 2012; 18(1):151-71. diz que é possível encontrar nas metafísicas ou cosmopolíticas dos “outros”, dos não ocidentais, ecos do “outro lado do nosso pensamento”, aquele tratado como “seu lado menor, marginal, excêntrico” (p. 166). Esse “lado menor” é “o lado dos perdedores da história intelectual do Ocidente moderno”. A Guerra Civil Espanhola é uma história dos vencidos e dos escritos vencidos da história ocidental.

A: Exatamente. É por aí. Walter Benjamin1111. Benjamin W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense; 1994. Sobre o conceito da história; p. 222-32. diz para “escovar a história a contrapelo” (p. 225), para ler a história dos vencidos. E aí abundam experiências de luta contra as formas de vida única. Cosmovisões, não só ameríndias, mas também africanas e asiáticas, são fundamentais para uma política de alternativas.

Eu gosto de trazer o exemplo chinês, porque ele confunde um pouco as explicações simplistas. A origem da Covid-19 está alinhada à modernização agropecuária na China, ao desflorestamento no Sudeste Asiático, à intrusão da monocultura de palma. Mas esse não é o modelo chinês, no sentido dos seus sistemas alimentares.

O sistema alimentar tradicional chinês baseia-se em um tipo de mosaico multiespécies, com lagoas onde se planta arroz e se criam peixes, com amoreiras nas bordas, com bicho da seda no pé de amora. Você produz a seda, a fruta, o arroz, o peixe e ainda cria gansos e patos ao ar livre, que contribuem para o controle de pragas. É um tipo de ecologia probiótica, que convive de forma contraditória com a modernização agropecuária chinesa.

Uma sugestão é procurar pelos Sistemas Importantes para o Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAMs), da Unesco, uma espécie de banco de dados que cataloga as práticas de agricultura humana. A agricultura andina, por exemplo, tem algo incrível: a liofilização de tubérculos. Você faz a colheita dos tubérculos e os dispõe em uma colina, um lugar que é muito frio e muito seco, para desidratarem. Uma batata que passa por esse processo dura vinte, trinta anos. É uma prática de preservação alimentar que demonstra que não é necessário recorrer aos expedientes da agricultura industrial. Os SIPAMs são muito interessantes por isso. Eles apresentam práticas viáveis que foram atropeladas para dar lugar à monocultura.

Os quilombolas do Ribeira trabalham com a capuova, uma clareira muito pequena usada para roçado, que vai mudando de lugar. Desconfio que foi uma prática contaminada pela agricultura guarani, que trabalha com pequenas clareiras, em um esquema que se articula com a própria diversidade da Mata Atlântica. Quando você abre uma clareira, isso altera todos os indicadores biofísicos da floresta. A incidência de luz solar altera e novas sementes podem germinar. Por isso, os guaranis podem ser chamados de plantadores de floresta ou de amplificadores de biodiversidade. Mais do que protetores de biodiversidade, eles são seus amplificadores, povos da megadiversidade.

E: São tecnologias baratas, que não interessam às corporações da Big Farm porque favorecem a autonomia dos produtores.

A: É mais difícil você financeirizar uma cadeia probiótica do que uma cadeia antibiótica. A cadeia de valor do transgênico está muito bem amarrada. O fornecimento aprisionado dos insumos, das sementes, dos agrotóxicos. O ponto de partida das corporações do agronegócio é, como diz o CEO da Cargill, a “comercialização da fotossíntese”. O critério é a financeirização, não a saúde do sistema do ponto de vista ecológico.

O agronegócio quer aprisionar o camponês nas suas espirais de dívidas. As corporações externalizam os riscos do modelo. Segundo Rob Wallace, o agronegócio planta produtores rurais e colhe aqueles que vingam. É um sistema darwinista, que planta produtores e descarta os “fracassados”.

E: Toda essa narrativa que você foi construindo nos leva a pensar na relação entre autonomia e diversidade. A própria diversidade depende da criatividade, o que Donna Haraway88. Oliveira MB, Loureiro IMFR. Entrevista com Jean-Pierre Berlan. Scientiæ Studia. 2004; 2(3):395-413. chama de “ sympoiesis ”, uma dinâmica criativa de associações e trocas entre viventes, de coprodução de biotecnologias interespécies. O agronegócio, no entanto, é contrário à autonomia do vivente, que é, antes de tudo, autonomia para fazer associações, parentes, comuns.

A: Wallace insiste em deslocar a perspectiva antibiótica em benefício de uma perspectiva probiótica. Em “O Filtro do Café”11. Wallace R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Igra Kniga, Elefante; 2020. , ele analisa uma produção agroflorestal de café no México. A produção agroflorestal é capaz associar animais em um sistema de autoproteção e de autorregulação probiótica. Não se trata de idealizar a natureza. As próprias relações multiespécies são baseadas em cooperações frágeis, instáveis, que precisam ser sempre reinventadas. Na era da monocultura, todas essas frágeis teias de cooperação são abolidas, dando lugar ao modo capitalista de produção de pandemias. Sair dessa era é o grande desafio atual, se queremos evitar catástrofes epidemiológicas talvez piores do que a da pandemia atual.

Agradecimentos

A João da Silva, pela transcrição da entrevista integral, com todo cuidado e com presteza.

Referências

  • 1
    Wallace R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Igra Kniga, Elefante; 2020.
  • 2
    Coletivo Chuang. Contágio social: coronavírus e a luta de classes microbiológica na China. São Paulo: Veneta; 2020.
  • 3
    Alves S. Quando estudar agrotóxicos vira caso de perseguição [Internet]. São Paulo: O joio e o trigo; 2022 [citado 20 Set 2022]. Disponível em: https://ojoioeotrigo.com.br/2022/07/quando-estudar-agrotoxicos-vira-caso-de-perseguicao/
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    Haraway D. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cult Cient. 2016; 5:139-46.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2022
  • Aceito
    01 Nov 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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