Para além das “prescrições” da boa maternidade: pensando a amamentação a partir dos estudos de gênero e feminismos

Beyond the “prescriptions” of good motherhood: thinking about breastfeeding based on gender studies and feminism

Más allá de las “prescripciones” de la buena maternidad: pensar la lactancia materna desde los estudios de género y feministas

Marina Nucci Sobre o autor

O artigo “Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil”, de Natália Fazzioni e Kátia Lerner, parte de uma crítica fundamental: a de que a maioria dos estudos sobre amamentação costuma adotar a perspectiva médica e da Saúde Pública, sendo poucas as análises sobre as experiências que vão além dos discursos médico-sanitários. Complementando a crítica, poderíamos dizer que menos frequentes ainda são os estudos sobre a temática que pensam maternidade em sua diversidade (sobretudo de raça e classe) e por meio de contextos concretos, que lançam luz para as diferentes formas de agenciamento das mulheres. Por isso, o artigo de Fazzioni e Lerner traz contribuições importantes para os estudos sobre amamentação e para o campo dos estudos de gênero e feminismos.

Além disso, é possível notar que trabalhos sobre amamentação, mesmo quando abordam o tema de modo mais crítico, quase sempre iniciam os textos fazendo uma espécie de ressalva, anunciando as diversas vantagens e os benefícios do aleitamento materno, talvez para se protegerem da ideia de que qualquer visão crítica, que coloque questões na perspectiva hegemônica do campo biomédico, possa ser uma ameaça direta à Saúde Pública. É como se mostrar as dificuldades de sua realização prática, ou os limites dos discursos biomédicos e das campanhas oficias de saúde fosse um desestimulo à amamentação em si. Ou como se não houvesse espaço para críticas, uma vez que os “benefícios” sempre superariam eventuais “prejuízos”. Tudo isso indica um aspecto importante a ser considerado quando tratamos a questão: o intenso entrelaçamento entre ciência e moral nos discursos sobre maternidades e amamentação. Tal aspecto fica ainda mais evidente quando pensamos, como aponta Badinter11 Badinter E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1985.,22 Badinter E. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record; 2010., que, historicamente, a amamentação tem ocupado lugar central no processo de construção do “amor materno” e do ideal de “boa mãe”. Ou seja, se amamentar é dar o “melhor alimento” ao bebê33 Brasil. Ministério da Saúde. Saúde da criança: aleitamento materno e alimentação complementar. Brasília: Ministério da Saúde; 2015., que tipo de mãe privaria seu filho disso?

Nesse sentido, um exercício produtivo, que nos ajuda a ampliar as perspectivas sobre o tema, é olhar para a pluralidade de questões que os estudos de gênero e feministas têm colocado sobre a amamentação. Por um lado, como aponta Linda Blum44 Blum L. Mothers, babies, and breastfeeding in late capitalist America: the shifting contexts of feminist theory. Feminist Studies. 1993; 19(2):291-311., por ser a amamentação uma experiência que exige muito tempo, dedicação e intensa interdependência entre mãe e bebê, ela tem sido alvo de desconfiança feminista, já que são frequentes os argumentos biologizantes e deterministas que, além de poderem ameaçar direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, podem também servir para aumentar a culpa daquelas que não são consideradas mães “suficientemente boas”.

Ao mesmo tempo, Glenda Wall55 Wall G. Moral constructions of motherhood in breastfeeding discourse. Gender Soc. 2001; 15(4):592-610. doi: 10.1177/08912430101500.
https://doi.org/10.1177/08912430101500...
chama a atenção para a complexidade da discussão que, por outro lado, inclui também o debate sobre medicalização do corpo feminino (perpassando também a medicalização do parto e da reprodução em geral), além de escândalos e abusos ligados à indústria da fórmula láctea infantil, especialmente em países do sul global como o Brasil. Vista por essa perspectiva, a amamentação pode ser entendida como um direito reprodutivo e uma experiência que empodera mulheres capazes de controlar seu próprio corpo e boicotar a indústria da fórmula. Portanto, como bem resume Orit Avishai66 Avishai O. Managing the lactating body: the breastfeeding project in the age of anxiety. In: Liamputtong P. Infant feeding practices: a cross-cultural perspective. New York: Springer; 2010. p. 23-38., a amamentação encontra-se em uma espécie de encruzilhada, atravessada por ideais moralizantes de maternidade, campanhas de Saúde Pública, ativismos, disparidades econômicas e raciais, contextos medicalizados e mercantilizados.

Não há, assim, uma perspectiva única, muito menos uma resposta fácil para o debate, o que torna ainda mais necessária a análise do tema por meio de contextos concretos, como faz o artigo de Fazzioni e Lerner. No texto, podemos constatar que as mulheres que fazem parte da pesquisa apresentada conhecem as recomendações médicas sobre o aleitamento, e concordam que o leite materno é o alimento ideal para seus filhos. Porém – e esta é a questão crucial debatida pelas autoras –, em meio a “prescrições” por vezes deterministas, elas não encontram espaço e escuta para aquilo que fazem quando não podem ou não conseguem amamentar. Ou, em outras palavras, não encontram espaço e escuta para aquilo que fazem quando não podem ou não conseguem (haveria espaço para o “não querem”?) seguir a “prescrição ideal” de maternidade em relação à alimentação de seus filhos. Não por acaso, as dúvidas, compartilhadas entre as mães nos fóruns de internet analisados pelas autoras, surgem justamente após uma consulta médica, não antes, como a princípio poderia ser esperado. Isto é, de certo modo, nesse contexto, os médicos não são aqueles que tiram as dúvidas, mas os que as suscitam.

Mais especificamente entre mulheres de camadas médias, nesse vácuo deixado entre o ideal e o possível na prática, podemos identificar uma série de novas profissionais e novos serviços voltados à perinatalidade e maternidade – ou, novos “experts somáticos”, como propõe Nikolas Rose77 Rose N. The politics of life itself. Princeton: Princeton University Press; 2007.. Trata-se de “consultoras”, representantes de múltiplas subprofissões, que reivindicam expertise e exercem a gestão de aspectos particulares da existência somática. Esse é o caso, por exemplo, das consultoras de amamentação, cuja trajetória profissional muitas vezes mistura aspectos da própria vivência de maternidade da consultora, além de um ativismo pró-amamentação88 Nucci M, Russo J. Ciência, natureza e moral entre consultoras de amamentação. In: Silva CD. Saúde, corpo e gênero: perspectivas teóricas e etnográficas. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2021. p. 70-87.. Mas, além das diversas “consultoras” e “experts” e os serviços e atendimentos que elas oferecem, Fazzioni e Lerner mostram como a internet será o local em que muitas das mulheres irão em busca de aconselhamento em relação às dúvidas, ou em busca de “consentimento” em relação às suas práticas entendidas como “não ideais”.

Fóruns e grupos de mães na internet, portanto, são um campo profícuo de análise para pensar nos processos de agenciamento de mulheres mães, como indica o artigo de Fazzioni e Lerner. Nas interações on-line, modelos de maternidade são construídos, reforçados e disputados. Se, por um lado, tal espaço e tais interações possibilitam novos papéis às mulheres – que deixam de ser meras receptoras de informação –, por outro, como observam as autoras, eles adicionam mais uma dose de sobrecarga em relação ao cuidado materno com os filhos – ou mais uma volta no parafuso. Voltemos ao que afirmamos acima: ao menos no ponto de vista dos estudos de gênero e feminismos, no que tange à temática da amamentação e maternidades, não há resposta fácil ou perspectiva única. Fiquemos, pois, com o problema99 Haraway D. Ficar com o problema: fazer parentes no chthluceno. São Paulo: N-1 Edições; 2023..

  • Nucci M. Para além das “prescrições” da boa maternidade: pensando a amamentação a partir dos estudos de gênero e feminismos. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230586 https://doi.org/10.1590/interface.2305867

Referências

  • 1
    Badinter E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1985.
  • 2
    Badinter E. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record; 2010.
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde. Saúde da criança: aleitamento materno e alimentação complementar. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.
  • 4
    Blum L. Mothers, babies, and breastfeeding in late capitalist America: the shifting contexts of feminist theory. Feminist Studies. 1993; 19(2):291-311.
  • 5
    Wall G. Moral constructions of motherhood in breastfeeding discourse. Gender Soc. 2001; 15(4):592-610. doi: 10.1177/08912430101500.
    » https://doi.org/10.1177/08912430101500
  • 6
    Avishai O. Managing the lactating body: the breastfeeding project in the age of anxiety. In: Liamputtong P. Infant feeding practices: a cross-cultural perspective. New York: Springer; 2010. p. 23-38.
  • 7
    Rose N. The politics of life itself. Princeton: Princeton University Press; 2007.
  • 8
    Nucci M, Russo J. Ciência, natureza e moral entre consultoras de amamentação. In: Silva CD. Saúde, corpo e gênero: perspectivas teóricas e etnográficas. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2021. p. 70-87.
  • 9
    Haraway D. Ficar com o problema: fazer parentes no chthluceno. São Paulo: N-1 Edições; 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    14 Mar 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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