Expressões do trabalho infantil no cotidiano de crianças em uma comunidade periférica: suas percepções sobre direitos

Expressions of child labor in the everyday lives of children living in a peripheral community: their perceptions of their rights

Expresiones del trabajo infantil en el cotidiano de niños en una comunidad periférica: sus percepciones sobre derechos

Maria Catarina Messias da Silva Iara Falleiros Braga Daví Antonio Silva Sobre os autores

Resumos

Este estudo visa apresentar a percepção de crianças de uma comunidade periférica sobre os seus direitos. A metodologia envolveu a realização de Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos em uma comunidade periférica do Nordeste brasileiro em parceria com um Centro de Referência da Assistência Social e o uso de diários de campo como forma de registro. Os resultados apontam reflexões cruciais sobre o fenômeno do trabalho infantil e as dinâmicas sociais envolvidas. Revelou-se que as crianças possuem uma visão crítica e complexa de seus direitos, dos recursos aos quais têm acesso e das violações que enfrentam. A ausência do Estado e a fragilidade nas relações foram identificadas como fatores que contribuem para violações de direitos, notadamente o trabalho infantil. Essas ações revelaram as problemáticas sociais enfrentadas pelas crianças, permitindo sua participação e sua autonomia em todas as etapas da pesquisa.

Palavras-chave
Crianças; Direitos; Trabalho infantil; Terapia ocupacional


This study presents the perceptions of children living in a peripheral community about their rights. The data were collected using group activity and project workshops in a peripheral community in the northeast of Brazil in partnership with a Social Assistance Referral Center and field diaries. The results prompt crucial reflections about child labor and the social dynamics involved in this phenomenon, revealing that children have a complex and critical perspective of their rights, the resources they have access to and the violations they face. The absence of the state and fragility of relations were factors that contributed to rights violations, notably child labor. These actions reveal the social problems faced by the children, enabling their participation and autonomy in all stages of the study.

Keywords
Children; Rights; Child labor; Occupational therapy


El objetivo de este estudio es presentar la percepción de los niños de una comunidad periférica sobre sus derechos. La metodología comprendió la realización de Talleres de Actividades, Dinámicas y Proyectos en una comunidad periférica del nordeste brasileño en alianza con un Centro de Referencia de la Asistencia Social y el uso de diarios de campo como forma de registro. Los resultados apuntan reflexiones cruciales sobre el fenómeno del trabajo infantil y las dinámicas sociales envueltas. Se reveló que los niños tienen una visión crítica y compleja sobre sus derechos, los recursos a los cuales tienen acceso y las violaciones que enfrentan. La ausencia del Estado y la fragilidad en las relaciones se identificaron como factores que contribuyen para violaciones de derechos, especialmente el trabajo infantil. Tales acciones revelaron las problemáticas sociales enfrentadas por los niños, permitiendo su participación y autonomía en todas las etapas de la investigación.

Palabras clave
Niños; Derechos; Trabajo infantil; Terapia ocupacional


Introdução

Pinto e Sarmento11 Pinto M, Sarmento MJ. As crianças: contextos e identidades. Braga: Universidade do Minho; 1997., em um de seus trabalhos acerca da Sociologia da Infância, apontam que as concepções atualmente partilhadas sobre as infâncias podem ser consideradas construções sociais, atravessadas por fatores sociais específicos, como classe, etnia, gênero e cultura, representando fatores de heterogeneidade que definem sua posição social11 Pinto M, Sarmento MJ. As crianças: contextos e identidades. Braga: Universidade do Minho; 1997..

A compreensão contemporânea dessa categoria social, definida pela idade, é comumente fundamentada em um modelo universal de infância, predominantemente baseado nos padrões de vida do Norte global, desqualificando outras culturas e caracterizando as experiências dos primeiros anos de vida em outras regiões como “sem infância”22 Carvalho CN. Infâncias, direitos e políticas. In: Carvalho LD, Bizzoto LM, organizadores. A criança e a cidade: participação infantil na construção de políticas públicas. Belo Horizonte: UFMG/FaE/NEPEI/TEIA; 2022. p. 12-63..

O entendimento da infância associada aos direitos foi empregado no pós-guerra dos países ocidentais. A aprovação pelas Nações Unidas, em 1989, da Convenção dos Direitos da Criança não garantiu o controle dos fatores que colocassem as crianças como grupo social em que há mais indicadores de pobreza33 Gomes LO. Infância, participação e socialização. Psicol Conoc Soc. 2021; 11(1):85-96. doi: 10.26864/pcs.v11.n1.6.
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,44 Organização das Nações Unidas. Convenção sobre os Direitos da Criança [Internet]. Rio de Janeiro: Unicef Brasil; 2013 [citado 10 Mar 2024]. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca#:~:text=A%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20os%20Direitos,Foi%20ratificado%20por%20196%20pa%C3%ADses
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. Somado a isso, esses indivíduos são os mais afetados pelos conflitos de guerra e ocupação; estão também mais suscetíveis a situações de violações de direitos como o trabalho infantil, “turismo sexual” e prostituição infantil11 Pinto M, Sarmento MJ. As crianças: contextos e identidades. Braga: Universidade do Minho; 1997..

No Brasil, com a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente55 Brasil. Presidência da República. Lei n° 8.069, de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Presidência da República; 1990. em 1990, a infância ganha destaque nas agendas públicas, e a proteção às crianças, compreendidas como pessoas de até 12 anos de idade incompletos, e aos adolescentes, aqueles entre 12 e 18 anos de idade, torna-se uma responsabilidade tanto do Estado quanto da sociedade. Entretanto, com o avanço das políticas neoliberais que promovem a privatização de serviços essenciais, o Estado assume cada vez menos a responsabilidade pela proteção dos direitos fundamentais, o que propicia o aumento da pobreza e a criação de condições de extrema vulnerabilidade66 Teixeira BCA, Paravidini JLL, Neves AS. Psicanálise, infâncias e vulnerabilidades: as crianças nos espaços da cidade. Estilos Clin. 2021; 26(3):421-34. doi: 10.11606/issn.1981-1624.v26i3p421-434.
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A pesquisa da Fundação Abrinq, realizada no Brasil, revela que, em 2018, 46% de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos viviam em situação domiciliar de baixa renda, 4,1% de crianças de 0 a 5 anos estavam em situação de desnutrição e mais 1,3 milhão de crianças e adolescentes não estavam indo à escola. Além disso, dentre as 9,8 mil mortes de crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos, quatro em cada cinco vítimas eram negras77 Cavalcante DC. A violência contra a criança durante a pandemia [Internet]. São Carlos: InformaSUS-USFCar; 2020 [citado 10 Mar 2024]. Disponível em: https://informasus.ufscar.br/a-violencia-contra-a-crianca-durante-a-pandemia/
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Consolidado em detrimento do momento histórico, cultural, geográfico, político e socioeconômico88 Melo KMM, Monzeli GA, Leite JD Jr. A formação de terapeutas ocupacionais e a questão dos gêneros e das sexualidades. In: Silva RAS, Bianchi PC, Calheiros DS, editores. Formação em terapia ocupacional no Brasil: pesquisas e experiências no âmbito da graduação e pós-graduação. São Paulo: FiloCzar; 2018. p. 225-42.

9 Lima FF, Ferigato SH, Silva CR, Oliveira ALO. Percepções e experiências de mulheres atuantes no campo da saúde sobre violências de gênero. Saude Debate. 2022; 46(132):76-92.
-1010 Galheigo SM. Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cad Bras Ter Ocup. 2020; 28(1):5-25. doi: 10.4322/2526-8910.ctoAO2590.
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, o cotidiano é parte inter-relacionada e constitutiva da vida dos sujeitos, ao mesmo tempo que eles compõem o conceito em questão. Assim, nele é possível observar diversas formas de existência, formas infinitas de ser e estar no mundo1111 Kastrup V, Fernandes CH. A atenção conjunta e o bebê cartógrafo: a cognição no plano dos afetos. Ayvu Rev Psicol. 2018; 5(1):117-39..

Então, é importante reconhecer que situações de injustiças sociais vão reverberar no cotidiano, na participação democrática, na vida social e na igualdade de oportunidades1212 Melo KMM, Farias MN, Lopes RE. Terapia ocupacional social e justiça social: diálogos a partir das demandas trans. Cad Bras Ter Ocup. 2023; 31. doi: 10.1590/2526-8910.ctoAO262234211.
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, e podem impedir crianças e adolescentes de acessar direitos básicos e já garantidos pela lei, além de serem impelidos a ingressar no trabalho infantil. Situações de desigualdade social e desfiliação impossibilitam as famílias de terem acesso a trabalho digno, renda e escolarização de qualidade, o que afeta suas trajetórias de vida e o cuidado com suas crianças e adolescentes.

Seguindo essa linha de raciocínio e buscando ampliar visões biologicistas e desenvolvimentistas relacionadas às crianças, Pastore1313 Pastore MN. Terapia Ocupacional, pluralidades e infâncias: o brincar como atividade significativa de crianças ao sul de Moçambique. RevSALUS. 2022; 4(1):1-10. doi: 10.51126/revsalus.v4i1.196.
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aponta a necessidade de se focar nas vivências sociais e culturais das infâncias. Com base nisso, é latente que se aprofundem os debates sobre as infâncias e suas diferentes culturas, as relações que estabelecem entre si e a dinâmica peculiar de seus cotidianos e contextos1414 Borba AM. Culturas da infância nos espaços-tempos do brincar: estratégias de participação e construção da ordem social em um grupo de crianças de 4-6 anos. Momento. 2008; 18(1):35-50..

O território no qual foi desenvolvida esta pesquisa é caracterizado por violações de direitos de seus moradores, especialmente das crianças e adolescentes, com conflitos e disputas “no mundo do crime”1515 Motta L, Rocha R, Rízia A, Amorim A. Fora do crime no ‘mundo do crime’: experiências juvenis em meio à guerra em periferias de Maceió e Belo Horizonte. Rev Estud Conflito Controle Soc. 2022; (4 Spec No):387-414. doi: 10.4322/dilemas.v15nesp4.46076.
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e situações de violências presentes no bairro. Nesse contexto, as crianças acabam sendo excluídas da possibilidade de circular pela cidade e de acessar as redes de assistência, de sociabilidade e de lazer disponíveis; e, ademais, encontrando-se ainda sujeitas a desafios como a fome e a exploração do trabalho infantil.

Diante desse panorama, reconhecendo que essas situações de vulnerabilidade e injustiças sociais afetam o cotidiano, o presente estudo busca apresentar qual é a percepção das crianças de uma comunidade periférica em uma capital do Nordeste acerca do que são seus direitos e como eles são acessados no contexto em que estão inseridas.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa participante, de abordagem qualitativa, realizada em parceria com o Centro de Referência de Assistência Social (Cras)(d(d)Principal programa de Proteção Social Básica no Sistema Único de Assistência Social, sendo um espaço físico público que oferta e coordena, em rede, ações de prevenção de risco social por meio do desenvolvimento de potencialidades e fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.) de um bairro periférico de uma capital nordestina.

A pesquisa participante, predominantemente aplicada em comunidades no interior de movimentos populares, tem suas raízes na metodologia científica que emergiu entre as décadas de 1960 e 1980. Essa abordagem metodológica é guiada por princípios fundamentais, incluindo a ênfase na importância de a pesquisa originar-se com uma perspectiva alinhada à realidade social na qual será implementada11 Pinto M, Sarmento MJ. As crianças: contextos e identidades. Braga: Universidade do Minho; 1997..

O primeiro contato da pesquisadora principal com o serviço e a comunidade se fez, inicialmente, por uma disciplina do curso de Graduação em Terapia Ocupacional de uma instituição do Nordeste. Em todas as etapas da pesquisa, um membro da equipe técnica do Cras acompanhou as visitas e encontros que foram realizados no território. O serviço também foi essencial na identificação das famílias cadastradas no Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif), no contato com os moradores da comunidade e na articulação com um líder comunitário que reside no local e disponibilizou o lugar em que as oficinas foram realizadas (um galpão onde ocorriam as reuniões do time de futebol e outras festas da comunidade).

A pesquisa teve três principais etapas para a produção e a análise dos dados, como exemplificado pelo Fluxograma 1. A princípio, foram convidadas as famílias e crianças inscritas no Paif e selecionadas pelos técnicos de referência do Cras. Esse primeiro contato foi realizado pessoalmente mediante visitas da equipe de pesquisa e do técnico de referência aos domicílios das famílias identificadas pelo serviço. Nesse momento apresentaram-se os objetivos da pesquisa e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para as responsáveis(e(e)As responsáveis porque eram na maioria mulheres que estavam em casa e respondiam pelas crianças.) legais. Posteriormente, deu-se início às Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos, que ocorreram em cinco encontros semanais, com duração de cerca de duas horas e meia cada um. Por fim, os dados gerados nessas oficinas foram submetidos a uma análise aprofundada por meio da leitura dos diários de campo, culminando na identificação de três categorias principais(f(f)As categorias foram o trabalho infantil no cotidiano das crianças, o acesso à alimentação e à saúde no território e a circulação das crianças nos espaços públicos.) para a análise a ser discutida. No escopo deste artigo, vamos nos concentrar na exploração aprofundada de uma das categorias analisadas.

Fluxograma 1
Principais etapas da pesquisa.

A delimitação da faixa etária para a participação nas oficinas foi estabelecida entre 5 e 13 anos, presumindo-se que as crianças nesse intervalo etário estivessem em fase de alfabetização ou já alcançado tal competência, o que favoreceria sua efetiva participação nas atividades propostas. Ao final, aproximadamente 10 crianças dentro da faixa etária delimitada participaram das ações.

Os procedimentos metodológicos para composição do campo foram: (1) realização de Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos e (2) uso de diários de campo. As Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos são uma das tecnologias da terapia ocupacional social que usa as atividades como recurso de aproximação, acompanhamento, reconhecimento de demandas e como meio de fortalecer o vínculo com os sujeitos. Essa tecnologia social permite a compreensão da realidade dos indivíduos ou coletivos, ampliando possibilidades de vínculo, construindo planos e projetos em conjunto e desenvolvendo a capacidade dos sujeitos de buscar respostas e soluções para suas problemáticas1616 Brandão CR, Borges MC. A pesquisa participante: um momento da educação popular. Educ Popular. 2007; 6(1):50-2. doi: 10.14393/REP-2007-19988.
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,1717 Barreiro RG. Entre redes: juventudes, ambientes virtuais e vidas entretidas [tese]. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos; 2019..

Apesar de serem utilizadas para fins de intervenção, as Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos foram escolhidas como ferramenta metodológica de pesquisa por possibilitar aprofundar a compreensão de suas percepções, identificar demandas e permitir um contato mais próximo com suas realidades cotidianas e sua participação social. Além disso, possibilitaram a investigação das interações entre as crianças e as entidades presentes, manifestadas por meio de sociabilidades e trocas ocorrendo em um ambiente seguro. Esse enfoque se revelou crucial, compreendendo o fazer como um elemento comunicativo de relevância no processo investigativo1717 Barreiro RG. Entre redes: juventudes, ambientes virtuais e vidas entretidas [tese]. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos; 2019.

18 Silva MJ. Terapia ocupacional social, juventudes e espaço público [tese]. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos; 2020.
-1919 Pereira PE, Malfitano APS. Atrás da cortina de fumaça: jovens da periferia e a temática das drogas. Saude Transform Soc. 2014; 5(1):27-35..

Nesse contexto, as pesquisadoras empregaram atividades de natureza dramática, plástica e lúdica, cujos objetivos foram alinhados às concepções de cidadania, direitos/deveres e participação democrática2020 Lopes RE, Malfitano APS, Silva CR, Borba PLO. Recursos e tecnologias em terapia ocupacional social: ações com jovens pobres na cidade. Cad Bras Ter Ocup UFSCar. 2014; 22(3):591-602. doi: 10.4322/cto.2014.081.
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, ações realizadas em conjunto com o técnico de referência do serviço. Elas constituem uma das técnicas e metodologias de trabalho desenvolvidas pela terapia ocupacional social, voltadas à intervenção e à atuação no campo social.

No que concerne ao diário de campo, ele constitui um instrumento de natureza etnográfica, distinguindo-se do texto convencional por possibilitar a documentação das experiências vivenciadas na prática, ainda que se configurando como um documento científico2121 Freitas M, Pereira ER. O diário de campo e suas possibilidades. Quad Psicol. 2018; 20(3):235-44. doi: 10.5565/rev/qpsicologia.1461.
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No intervalo compreendido entre 7 de agosto e 4 de setembro, durante o segundo período letivo de 2023, foram implementadas cinco oficinas, realizadas semanalmente, no período matutino, com uma média de duas horas e meia de duração.

Como na presente metodologia os dados são construídos e não colhidos, eles foram retratados sob a perspectiva das pesquisadoras e da relação que estabeleceram com as crianças. Nesse sentido, foram priorizadas atividades e brincadeiras nas quais elas pudessem construir, individual ou coletivamente, materiais contendo suas opiniões e afirmações em relação às temáticas dos direitos e de como elas os acessavam cotidianamente. Além dessas, também foi dado lugar para discussões conduzidas pelas pesquisadoras, nas quais as crianças participaram dando suas opiniões, elaborando críticas e discutindo as temáticas abordadas.

Foram seguidas as diretrizes e as normas regulamentadoras para as pesquisas que envolvem seres humanos estabelecidas na Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. As pessoas participantes do estudo e suas respectivas responsáveis foram esclarecidas sobre o estudo e assinaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE)(g(g)O termo, escrito em linguagem acessível para os participantes, foi lido em grupo com as crianças. Durante a leitura, termos como “pesquisa” e “dados” foram explicados para garantir a compreensão de todos. No momento da assinatura, as crianças que ainda não eram alfabetizadas registraram seu consentimento e assentimento por meio da impressão digital.) e o TCLE; consentindo na publicação dos resultados obtidos. Assim, como forma de preservar a identidade dos participantes da pesquisa, foram utilizados nomes fantasia na apresentação e na discussão dos resultados, conforme foi acordado no primeiro contato com os sujeitos da pesquisa. O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal da Paraíba sob o parecer n. 6.149.816.

Resultados

Considerando a natureza participativa do estudo, foram planejadas Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos1919 Pereira PE, Malfitano APS. Atrás da cortina de fumaça: jovens da periferia e a temática das drogas. Saude Transform Soc. 2014; 5(1):27-35. com o intuito de viabilizar a autonomia e a participação ativa das crianças. Esse delineamento demandou flexibilidade e inventividade por parte das pesquisadoras que, de maneira reflexiva, avaliaram quais atividades e formatos melhor se adequavam ao grupo em questão, levando em consideração a diversidade etária, a dinâmica de entrada e saída das crianças, bem como as características territoriais específicas. O vínculo entre as pesquisadoras e os participantes se estabeleceu de forma gradual, sendo evidente o crescimento da confiança dessas crianças ao lidar com as temáticas abordadas. Contudo, também foram frequentes os momentos nos quais as crianças realizaram adaptações de forma autônoma, sugerindo ajustes nas “regras” estabelecidas ou na maneira pela qual cada uma participaria do processo. A Figura 1 ilustra uma das ações conduzidas no âmbito deste estudo.

Figura 1
Crianças realizando atividade com a pesquisadora na primeira oficina.

Na primeira oficina, que teve como objetivo a aproximação e o vínculo das pesquisadoras com as crianças e quais as percepções delas sobre a infância, foi realizada a dinâmica da “batata quente” para apresentação dos nomes, idade e brincadeiras favoritas. Posteriormente, uma atividade de desenho, na qual elas se dividiram em subgrupos para responder ao que uma criança gosta ou não gosta de fazer, assim como ao que ela pode e não pode fazer. Durante a proposta, as participantes compartilharam suas opiniões sobre quais atividades consideram apropriadas ou inadequadas para uma criança realizar, oferecendo uma breve imersão em seus cotidianos.

[…] fui perguntando o que as crianças gostavam de fazer e elas falaram “brincar”, “sair com a mãe” e “passear” [...] perguntei se todas elas iam para a escola e Jasmin disse que não ia. […] Perguntei, então, se criança podia trabalhar, o que algumas disseram que não, mas outras disseram “eu trabalho”; perguntei quem delas trabalhava e Jasmin [menina, 7 anos] disse que trabalha no sinal, e Nicole [menina, 12 anos] disse que vendia pudim e mousse na rua […].

(Diário de campo, 7 de agosto de 2023)

Na segunda oficina, foi elaborado um acordo de convivência com as crianças, a fim de que o espaço se tornasse mais seguro e respeitoso. Após, deu-se lugar à brincadeira do ‘pega balão”. O objetivo da dinâmica era entender as relações familiares das participantes e suas percepções sobre o direito à educação. Para isso, foi realizada uma atividade com balões que continham perguntas dentro. Durante a dinâmica, se alguém deixasse um balão cair, essa pessoa deveria estourá-lo, ler a pergunta em voz alta e responder com as outras crianças. As perguntas abordavam temas relacionados à frequência escolar e ao ambiente familiar. A maioria das participantes afirmou frequentar a escola regularmente e gostar das aulas, enquanto outras disseram ir por obrigação e faltar com frequência. No que diz respeito à dinâmica familiar, as participantes relataram morar em casas com muitas pessoas, mas, apesar das brigas e desentendimentos ocasionais, afirmaram manter boas relações com os familiares.

A terceira oficina teve como objetivo promover a reflexão sobre participação social, acesso a equipamentos de lazer e a espaços públicos. Na primeira atividade, as pesquisadoras distribuíram plaquinhas contendo preferências e identificações (brincadeira, religião, gênero musical). As crianças escolhiam as plaquinhas com as quais se identificavam e se reuniam ao redor delas. Em seguida, eram conduzidas discussões sobre os temas escolhidos. Depois, foram utilizados fantoches para contar histórias relacionadas à participação em atividades de lazer e cultura, baseadas no cotidiano das crianças. Essa abordagem lúdica facilitou a compreensão e o engajamento delas nos tópicos discutidos, incentivando a participação ativa e a reflexão sobre suas próprias experiências.

[…] perguntamos, então, se elas gostavam de ler, ao que a maioria disse que não, e Helena (menina, 10 anos) disse ‘nem tem biblioteca aqui’.

(Diário de campo, 21 de agosto de 2023)

A quarta oficina teve como objetivo aprofundar a discussão sobre o acesso à alimentação e as percepções das crianças sobre o trabalho infantil. Para explorar o tema do trabalho infantil, foram apresentadas diversas imagens de atividades laborais e outras tarefas. Uma a uma, as crianças discutiam quais atividades consideravam trabalho compartilhando suas perspectivas e compreensões.

Em relação ao acesso à alimentação, as pesquisadoras distribuíram figuras de diversos alimentos e lápis de cor para desenhos. As crianças receberam uma folha dividida em duas partes: “O que eu como no dia a dia” e “O que eu gostaria de comer”. Elas desenharam e colaram as figuras expressando suas experiências e possibilitando um diálogo acerca do direito à alimentação.

Na análise das representações imagéticas envolvendo crianças realizando tarefas domésticas, as crianças identificaram várias dessas como trabalho infantil – tais como serem responsáveis pelo cuidado de crianças menores e limpar e arrumar a casa sem o auxílio de um adulto – e refletiram que deixavam de fazer outras atividades significativas (como brincar, estudar e ficar com amigos), pois tinham de executar tais tarefas, e reconheceram atividades como lavar a louça e dobrar as roupas como ajuda ou apoio às mães, não considerando trabalho infantil.

[…] outra criança disse que trabalhava em casa, arrumando a casa, o que algumas disseram que não era trabalho, e Nicole [menina, 12 anos] disse “se for pra ajudar a mãe em casa tudo bem”, outra disse que arrumava a casa para que a mãe deixasse ela brincar na rua; perguntei quem gostava de arrumar a casa e uma disse que não gostava, e algumas a chamaram de preguiçosa por isso. […] as crianças mais velhas serviam e se responsabilizavam pelo lanche das menores, uma cuidando da outra com muita cautela. No final, ainda organizaram o espaço, juntaram os lápis, as cadeiras, o lixo, Nicole até quis varrer o chão.

(Diário de Campo, 7 de agosto de 2023)

O trabalho infantil, especialmente o trabalho doméstico, mostrou-se presente no cotidiano das meninas. Muitas vezes, elas eram responsáveis por cuidar dos irmãos mais novos em casa e durante as Oficinas de Atividades, já que não tinham com quem deixá-los. Durante as atividades, frequentemente precisavam interromper o que estavam fazendo para dar suporte às tarefas que os irmãos estavam desenvolvendo.

Na última oficina, os objetivos foram compreender como as crianças percebiam seu acesso à saúde e avaliar as contribuições das oficinas para entender os direitos das participantes. Foram exibidas imagens relacionadas a equipamentos de saúde e atividades cotidianas, como tomar banho e escovar os dentes, e para discutir o acesso ao saneamento básico. Para encerrar, realizamos novamente a dinâmica do desenho, em que cada criança respondeu individualmente a perguntas sobre o que uma criança pode ou não fazer e quais são seus direitos. Essa atividade final proporcionou uma reflexão pessoal, permitindo que as crianças expressassem suas percepções de maneira autônoma.

Durante a produção, Jasmin, uma menina de 7 anos que disse trabalhar no sinal na primeira oficina e estava sem frequentar a escola, pediu que uma das pesquisadoras escrevesse para ela em seu desenho, pois ainda não está alfabetizada: “criança não pode trabalhar” e “criança não pode ir pro sinal”, ação na qual demonstrou estar ciente de que aquele era um direito que lhe foi negado.

Compreendendo os inúmeros desafios presentes no cotidiano das crianças participantes da pesquisa, tornou-se necessário aprofundar a problemática mais evidente durante as oficinas: o trabalho infantil. Desde o primeiro encontro, ficou claro como essa violação permeia a vida das crianças, ressurgindo em diversas dinâmicas subsequentes. As atividades laborais limitavam ou impediam a participação, especialmente das meninas, em brincadeiras, atividades culturais, transição entre espaços e até no acesso a outros direitos fundamentais, como educação e saúde.

Figura 2
Produção de uma das crianças.

Discussão

Entende-se que as tarefas domésticas, como a gestão da casa, o cuidado dos filhos e dos adultos, são classificadas como trabalho, atividade fundamental para a manutenção das estruturas nas sociedades capitalistas. Nesse contexto, a família é vista como o espaço de reprodução da força de trabalho2222 Muller EF, Mulinari BAP, Moser L. Desigualdades de gênero, política social e cuidado: a histórica responsabilização feminina pelo trabalho de cuidado familiar. Rev Latinoam Estud Trab. 2022; 25(41):29-49.. Majoritariamente desempenhada por mulheres, essa forma de trabalho também é destinada às crianças mulheres2323 Zacharias GO. Reflexões acerca da exploração do trabalho infantil e a desigualdade de gênero [trabalho de conclusão de curso]. Santa Maria (RS): Universidade Federal de Santa Maria; 2021., caracterizando uma das formas mais perigosas de trabalho segundo o atual relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mesmo que seja praticado dentro das suas residências2424 Brasil. Organização Internacional do Trabalho. O fim do trabalho infantil: um objetivo ao nosso alcance. Brasília: OIT; 2006.,2525 Unicef. Trabajo infantil: estimaciones mundiales 2020, tendencias y el camino a seguir [Internet]. Nueva York: Unicef; 2021 [citado 10 Mar 2024]. Disponível em: https://www.ilo.org/es/publications/major-publications/trabajo-infantil-estimaciones-mundiales-2020-tendencias-y-el-camino-seguir
https://www.ilo.org/es/publications/majo...
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Historicamente, sobretudo nas sociedades capitalistas ocidentais, a esfera do cuidado foi associada predominantemente ao feminino. Influenciada também por preceitos cristãos, essa responsabilidade foi subestimada em comparação às atividades voltadas para a geração de renda ou aquelas que ocupam o espaço público como centro – que geralmente são atribuídas ao gênero masculino. Essa configuração contribui para a sobrecarga e a desvalorização do trabalho de muitas mulheres, especialmente as mais economicamente desfavorecidas e as de origem negra. No caso das mulheres pobres que necessitam trabalhar fora, as substitutas costumam ser as filhas crianças2626 Quintela IML. As filhas de criação: as ligações entre trabalho infantil doméstico e gênero [trabalho de conclusão de curso]. Niterói (RJ): Universidade Federal Fluminense; 2017..

Tal forma de trabalho também possui implicações raciais, já que, como aponta Rizzini2727 Rizzini I. Pequenos trabalhadores do Brasil. In: Del Priore M. História das crianças no Brasil. 4a ed. São Paulo: Contexto; 2004. p. 376-406., as crianças negras sempre trabalharam, desde o Brasil colonial, para seus “donos” escravocratas, e até nas ruas, atualmente, buscando sustento para si e suas famílias. Barreto2828 Barreto VS. Raça e gênero no trabalho doméstico de crianças e adolescentes. In: Peres A. Crianças invisíveis: o enfoque da imprensa sobre o trabalho infantil doméstico e outras formas de exploração. São Paulo: OIT, ANDI, UNICEF, Cortex; 2003. p. 77-86. aponta que os anos de escravidão impuseram sobre mulheres negras certas formas de trabalho, precarizados e subalternos, se estendendo também às meninas, que desde cedo são expostas à exploração em ambientes domésticos (também de terceiros), tendo suas atividades escolares negligenciadas. Além disso, mulheres negras e/ou pobres muitas vezes exercem funções monoparentais, sendo impelidas a assumir dupla jornada de trabalho para que suas famílias tenham o mínimo de sustento, resultando em suas filhas mais velhas assumindo os papéis de “donas de casa” e cuidadoras dos irmãos mais novos.

Diante desse contexto histórico de trabalho racializado e infantil, é possível analisar que as crianças, ao serem inseridas nessas atividades, já compreendem que não deveriam trabalhar. No entanto, elas possuem suas próprias concepções sobre o que é considerado trabalhar. Ainda assim, devido a papéis de gênero impostos desde cedo, interseccionado com a classe social, as meninas reforçam que têm atribuições relacionadas ao cuidado da casa e das crianças mais novas, chegando a cobrar essa norma social umas das outras.

Dessa forma, torna-se evidente como as desigualdades de gênero, raça e classe moldam a percepção e a vivência do trabalho doméstico desde a infância, perpetuando ciclos de exploração que comprometem o exercício pleno da cidadania e o acesso aos direitos fundamentais das crianças.

Quintela2626 Quintela IML. As filhas de criação: as ligações entre trabalho infantil doméstico e gênero [trabalho de conclusão de curso]. Niterói (RJ): Universidade Federal Fluminense; 2017. afirma que as meninas são silenciosamente educadas a realizar os afazeres domésticos, crescendo em um espaço limitado (a casa), pois ainda que, no Brasil, o número de meninos inseridos no trabalho infantil (65,1% dos trabalhadores infantis em 2020) seja maior que o de meninas, quando há o recorte do trabalho doméstico esse número é invertido, demonstrando atravessamentos entre gênero e classe2929 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Características étnico-raciais da população: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE; 2021..

O peso das tarefas domésticas indica uma restrição na liberdade de circulação cotidiana das meninas, pois elas alocam uma parte significativa do seu tempo para essas obrigações, mesmo quando desejariam realizar outras atividades. A circulação não é uma questão que ocorre automaticamente, “depende de fatores técnicos, organizacionais, sociais, culturais, econômicos e políticos”, e, no caso das meninas, também está condicionado ao gênero, “marginalizando o desejo, a emancipação e a busca de participação social significativa”3030 Farias MN, Lopes RE. Circulação cotidiana e uma práxis terapêutico-ocupacional social. Interface (Botucatu). 2021; 25. doi: 10.1590/interface.200717.
https://doi.org/10.1590/interface.200717...
(p. 8).

Porém, ainda que o trabalho doméstico tenha sido mais aparente no decorrer das ações, essa não foi a única forma de trabalho infantil que as crianças trouxeram para as discussões. Em virtude das condições de pobreza e vulnerabilidade social que permeiam a referida comunidade, associadas à ineficácia das políticas públicas e sociais em alcançar efetivamente o contexto local, diversas crianças compartilharam experiências relacionadas ao exercício, presente ou passado, de atividades laborais nas vias públicas. Algumas relataram o comércio ambulante de produtos alimentícios, como pudins e musses, enquanto outras mencionaram a realização ou o envolvimento passado em atividades laborais em semáforos, na tentativa de colaborar com a subsistência de suas famílias.

Toda forma de trabalho infantil, no entanto, tem consequências na vida das crianças. As perdas se expressam por meio do desenvolvimento físico e mental, restrições no convívio familiar e comunitário, além de serem impedidas de acessar direitos fundamentais, como o brincar. Adicionalmente, as meninas enfrentam obstáculos que prejudicam seu processo educacional, limitando suas oportunidades de ascensão acadêmica e no mercado de trabalho. Isso perpetua um ciclo de pobreza, mantendo-as em condições de exploração2626 Quintela IML. As filhas de criação: as ligações entre trabalho infantil doméstico e gênero [trabalho de conclusão de curso]. Niterói (RJ): Universidade Federal Fluminense; 2017.. Ainda assim, mesmo tendo seus direitos violados, essas crianças possuem dimensão daquilo que lhes é negado, como a proteção contra o trabalho infantil.

Dessa forma, durante as atividades propostas, as crianças puderam expressar suas opiniões sobre o acesso aos seus direitos, incluindo o direito ao brincar, à educação, aos equipamentos de esporte, lazer e cultura e à alimentação. No entanto, o trabalho infantil, especialmente o trabalho doméstico, emergiu como uma temática recorrente durante as oficinas, pois está presente em seus cotidianos. Elas discutiram coletivamente o que consideravam como trabalho, dialogando entre si para chegar a uma conclusão. As crianças trouxeram conceitos e exemplos de suas vidas para embasar suas afirmações, demonstrando uma compreensão profunda e contextualizada do tema.

Essas discussões corroboram a análise de Tomás3131 Tomás C. “Participação não tem Idade” Participação das crianças e cidadania da infância. Rev Contexto Educ. 2007; 22(78):45-68. doi: 10.21527/2179-1309.2007.78.45-68.
https://doi.org/10.21527/2179-1309.2007....
sobre a importância da participação social na luta por direitos. Quando dada a oportunidade, as crianças podem discutir e afirmar suas demandas de acordo com suas necessidades e dentro de seu contexto. A oportunidade de dialogar sobre essas questões permite que as crianças não apenas expressem suas preocupações e análises, mas também fortaleçam sua compreensão e sua articulação sobre seus direitos.

Importante destacar que o fenômeno do trabalho infantil se manifesta de maneira heterogênea, refletindo as disparidades existentes nas realidades socioeconômicas no Brasil. O trabalho infantil, independentemente de sua natureza doméstica ou não, emerge como uma decorrência direta da desigualdade social. Esse fenômeno persiste mesmo diante de dispositivos legais como o ECA, uma vez que crianças, como as participantes da pesquisa, não conseguem efetivar o pleno acesso a esses direitos. É crucial compreender que a presença do trabalho infantil não resulta de escolhas individuais das famílias ou de negligência parental, mas sim de uma problemática sistêmica e multifatorial. Tal complexidade demanda, por exemplo, a articulação de políticas públicas efetivas em territórios e bairros economicamente desfavorecidos, com um aparato estatal e ações que garantam acesso a creches, escolas públicas, equipamentos de lazer, transporte público eficiente e programas sociais de qualidade. E, para que isso ocorra, é preciso superar ações focalizadas e fragmentadas presentes ainda em diversas políticas, nas quais são reforçados os papéis que tradicionalmente são ocupados pelas mulheres3232 Marchi RC. Trabalho infantil: representações sociais de sua instituição em Blumenau/SC. Educar Rev. 2013; (47):249-65..

Diante da complexa tessitura que envolve o fenômeno do trabalho infantil, delineado pelas perspectivas apresentadas pelas próprias crianças, é imperativo considerar a urgência de ações que transcendam as abordagens simplistas. O engajamento ativo das crianças na construção de reflexões sobre suas realidades sugere um potencial transformador que pode ser explorado em iniciativas de intervenção. A heterogeneidade das condições socioeconômicas no Brasil destaca a necessidade de abordagens contextualizadas e sensíveis à diversidade de experiências vividas pelas famílias brasileiras. Assim, o enfrentamento do trabalho infantil deve transcender a responsabilidade individual das famílias, contemplando uma abordagem intersetorial e de corresponsabilidades, que reconheça e atenue as múltiplas facetas dessa problemática na sociedade contemporânea.

Considerações finais

Como considerações finais, destacamos que esta pesquisa revelou que as crianças têm um olhar crítico e complexo sobre seus direitos, especialmente em relação ao trabalho infantil. No contexto específico da comunidade em que vivem, a ausência do Estado e a fragilidade relacional foram ressaltadas como fatores contribuintes para as violações de direitos, tais como o trabalho infantil.

Apesar das violações de direitos identificadas, as Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos, metodologia de intervenção coletiva da terapia ocupacional social, proporcionaram considerável aproximação com as crianças e suas realidades, permitindo sua participação e sua autonomia em todas as etapas da produção dos dados. Com as oficinas, foi possível a imersão das pesquisadoras nas problemáticas sociais, aquelas que se fazem, apesar dos impedimentos, de diferentes infâncias e tudo aquilo que as constroem.

A combinação da perspectiva da Sociologia da Infância com a metodologia de intervenção da terapia ocupacional social possibilitou a participação ativa das crianças, valorizando seus saberes e experiências. Esse método proporcionou um espaço de trocas e sociabilidades fundamentado no exercício da democracia, permitindo que as crianças discutissem e afirmassem suas demandas dentro de um contexto de respeito e reconhecimento.

Este estudo destaca a potencialidade de realizar pesquisas com crianças, partindo de suas perspectivas e colaboração, ampliando o debate sobre a necessidade de incorporar os discursos da infância na construção de estudos científicos e políticas sociais. É essencial que novos estudos e pesquisas sejam realizados, em que as crianças sejam as interlocutoras principais, permitindo-lhes refletir sobre seus direitos e participar ativamente da construção de suas próprias vidas sociais, das vidas daqueles ao seu redor e das sociedades em que vivem.

Ao reconhecer que o trabalho infantil é fruto da desigualdade social, este estudo reforça a necessidade do fortalecimento das políticas sociais. Essas políticas devem garantir a proteção social, assegurando também o acesso efetivo a direitos fundamentais, como educação de qualidade, cuidados adequados e oportunidades de acesso a equipamentos de esporte, cultura e lazer. É essencial que o enfrentamento do trabalho infantil transcenda a responsabilidade individual das famílias, adotando uma abordagem intersetorial e de corresponsabilidade. Isso significa que diferentes setores da sociedade devem trabalhar de maneira integrada para abordar as diversas facetas dessa complexa questão.

Além disso, as políticas devem reconhecer as especificidades locais e culturais, considerando as diversas realidades vividas pelas infâncias em diferentes contextos. Devem incluir medidas que combatam a pobreza estrutural e promovam a inclusão social. A participação ativa das comunidades, especialmente das próprias crianças, é fundamental para a elaboração e a implementação dessas políticas, assegurando que suas vozes e experiências sejam levadas em conta.

  • (d)
    Principal programa de Proteção Social Básica no Sistema Único de Assistência Social, sendo um espaço físico público que oferta e coordena, em rede, ações de prevenção de risco social por meio do desenvolvimento de potencialidades e fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.
  • (e)
    As responsáveis porque eram na maioria mulheres que estavam em casa e respondiam pelas crianças.
  • (f)
    As categorias foram o trabalho infantil no cotidiano das crianças, o acesso à alimentação e à saúde no território e a circulação das crianças nos espaços públicos.
  • (g)
    O termo, escrito em linguagem acessível para os participantes, foi lido em grupo com as crianças. Durante a leitura, termos como “pesquisa” e “dados” foram explicados para garantir a compreensão de todos. No momento da assinatura, as crianças que ainda não eram alfabetizadas registraram seu consentimento e assentimento por meio da impressão digital.

  • Silva MCM, Braga IF, Silva DA. Expressões do trabalho infantil no cotidiano de crianças em uma comunidade periférica: suas percepções sobre direitos. Interface (Botucatu). 2024; 28: e240110 https://doi.org/10.1590/interface.240110

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2024
  • Aceito
    22 Jun 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br