Resumo
A morte e o morrer suscitam continuamente o debate sobre as fronteiras, as regras e a disputa pela legitimidade dos distintos significados que envolvem os processos de finalização da vida. Este artigo busca abordar, especialmente, os conflitos que ocorrem entre o sistema terapêutico antroposófico e a biomedicina no Brasil. As reflexões se dão com base na etnografia multissituada realizada entre os anos 2012 e 2016 que se debruçou sobre a concepção de cura na antroposofia em três comunidades, duas no Brasil e uma na Suíça. Nesse percurso, fomos levados pela experiência etnográfica às elaborações sobre a morte e o morrer das viúvas da Demétria, uma das comunidades antroposóficas investigadas. Demétria é um bairro rural no interior do estado de São Paulo, na cidade de Botucatu, composto na sua maioria por mulheres, europeias e brasileiras, que convivem e partilham de um estilo de vida que reelabora o ethos da morte como um projeto estético de Bildung que difere da concepção do processo de morte na biomedicina.
Palavras-chave:
morte; antroposofia; biomedicina; Bildung; estética
Introdução
A morte e o morrer suscitam continuamente o debate sobre as fronteiras, as regras e a disputa pela legitimidade dos distintos significados que envolvem os processos de finalização da vida. Este artigo busca abordar, especialmente, os conflitos que ocorrem entre a antroposofia (ciência espiritual fundadora de um sistema terapêutico elaborada na Suíça no início do século XX) e a biomedicina no Brasil. As reflexões se dão com base na etnografia multissituada realizada entre os anos 2012 e 2016, que investigou a concepção de cura na antroposofia em três comunidades - duas no Brasil e uma na Suíça. Nesse percurso, fomos levados pela experiência etnográfica às elaborações sobre a morte e o morrer das viúvas da Demétria, uma das comunidades antroposóficas investigadas.11 O artigo é oriundo dos resultados de uma etnografia de doutorado, realizada em 2016, em comunidades e clínicas antroposóficas no Brasil e na Suíça. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em 2013, e está registrada com o número CAAE (11991512.3.0000.5505), com o título “Estudo Etnográfico sobre a saúde na antroposofia: a Bildung como Cura”. A pesquisa foi financiada pela Capes nos anos de 2014, 2015 e 2016.
Demétria é um bairro rural no interior do Estado de São Paulo, na cidade de Botucatu, organizado no Brasil desde a década de 1970, composto majoritariamente por mulheres, europeias e brasileiras, que convivem e partilham de um estilo de vida destinado ao cultivo de uma Bildung. A palavra-conceito Bildung, cunhada no romantismo alemão, expressa o processo de formação cultural e a noção de pessoa germânica (DUARTE, 2003DUARTE, L. F. D. Indivíduo e pessoa na experiência da saúde e da doença. Ciênc. Saúde Coletiva, v.8, n. 1, p. 173-183, 2003.), um processo de autoformação espiritual e estética. Tal ideia apresenta uma visão de mundo atemporal e é considerada a mais importante do século XVIII.
As regras e os tabus sobre o morrer e a morte são temas que proporcionam ricas investigações e por isso são recorrentes na literatura científica produzida no campo das ciências sociais e na interface com a saúde. Já em 1921, Marcel Mauss escreve um texto incontornável sobre a expressão obrigatória dos sentimentos. Os estudos antropológicos sobre a morte realizados por Hertz (1978), Mauss (2003) e Thomas (1993THOMAS, Louis-Vincent. Antropología de la muerte. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.) apontam para a constituição coletiva desse sistema de orientação diante da morte. Hertz, por sua vez, realiza um estudo sobre práticas e crenças relativas à morte com foco nas duplas exéquias para mostrar que não se está diante de um fenômeno inteligível apenas em âmbito fisiológico e emocional, portanto individual, mas de um processo de ruptura enfrentado pelo grupo social.
A produção antropológica sobre o tema demonstra que a morte não pode ser entendida apenas como um acontecimento, pois ela é um processo (LYRA, 2017LYRA, E. A tecnologização da morte: filosofia, ciência e poesia. Revista Natureza Humana. São Paulo, v. 19, n. 2, p. 114-133, Jul-Dec. 2017.; MENEZES, 2013MENEZES, R. A. A medicalização da esperança: reflexões em torno de vida, saúde/doença e morte. Amazôn., Rev. Antropol., v. 5, n. 2, p. 478-498, 2013.; MENEZES; GOMES, 2011). As pesquisas que envolvem a expressão “morte digna” ou “dignidade na morte” são numerosas (LADOUCEUR, 2017LADOUCEUR, R. L’aide médicale à mourir. Canadian Family Physician, v. 63, Jan. 2017.; GOLSE, 2016GOLSE, B. Se laisser mourir ou vouloir mourir. Le Carnet PSY, v. 201, p. 1-1-, 2016/7.; KOVÁCS, 2014KOVÁCS, M. J. O caminho da morte com dignidade no século XXI. Rev. bioét. (Impr.). 2014; 22 (1): 94-104.). Os rituais funerários também estão bastante presentes entre as publicações de cunho antropológico (CARNEIRO, 2015CARNEIRO, R. A vida em suspensão: “Fale com ela” e os sentidos da morte. Interface, Comunicação, Saúde e Educação, v. 19, n. 54, p. 615-21, 2015.), acompanhados quase sempre de investigações sobre a gramática emocional utilizada nos rituais e em grupos de apoio para doentes terminais (KOVÁCS, 2014).
Os artigos discutem também o conceito de morte encefálica (MACEDO, 2016MACEDO, J. L. As regras do jogo da morte encefálica. Rev. Antropol. São Paulo, v. 59, n. 2, p. 32-58, Aug. 2016.). Entre esses artigos, destacamos os que se desdobram sobre a judicialização da morte e as diretivas antecipadas de vontade (KAMIJO, 2016KAMIJO, E. D; LIMA, M. V.; SCHWEDER, E. L. B. Cumprimento dos desejos do paciente por meio das diretivas antecipadas de vontade. Anais de Medicina, 2016.; PACHECO, 2016PACHECO, B.; CRIPPA, A.; OLIVEIRA, P. O. Testamento vital: a proteção da autonomia de vontade do paciente em casos de doenças terminais. Rev. Sorbi, v. 4, n. 1, p. 58-78, 2016.), dos cuidados paliativos e a morte digna ou bioética no final da vida (ALVES e CASAGRANDE, 2016ALVES, N. L; CASAGRANDE, M. L. Aspectos éticos, legais e suas interface sobre o morrer. Revista Científica do ITPAC, Araguaína, v.9, n. 1, fev. 2016.), e sobre a morte hospitalar o prolongamento da vida e a morte assistida (WIEBE, 2018WIEBE, E.; GREEN, S.; SCHIFF, B. Enseigner l’aide médicale à mourir aux residents. Canadian Family Physician, v. 64, April 2018.; TEIXEIRA, 2016TEIXEIRA, A. L. Gestões de vida e morte: um olhar sobre o morrer no contemporâneo. Ayvu, Rev. Psicol., v. 2, n. 2, p. 150-171, 2016.). Ainda sobre esta temática, alguns artigos exploram as dificuldades enfrentadas pelos profissionais de saúde ao lidar com o processo da morte e o morrer (SILVA, HORTALE, 2006SILVA, R. C. F.; HORTALE, V. A. Cuidados paliativos oncológicos: elementos para o debate de diretrizes nesta área. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 22, n. 10, p. 2055-66, 2006.; COMBINATO, MARTIN, 2017COMBINATO, D. S, MARTIN, S. T. F. Necessidades da vida na morte. Interface, Comunicação, Saúde e Educação, v. 21, n. 63, p. 869-80, 2017.).
Na produção acadêmica sobre a morte e o morrer, identificamos uma incipiência de textos que abordem os conflitos entre outras racionalidades médicas com o modelo biomédico em prática no processo do morrer e, especialmente, entre a antroposofia e a biomedicina. A noção de conflito é impregnada de atribuições negativas, entretanto, Georg Simmel (1977SIMMEL, Georg. Estúdios sobre las formas de socialización. Revista de Occidente. Madrid, v. 1, p. 265, 1977. p. 265., p. 265-270) rompe com essa dicotomia atribuindo ao conflito uma importante forma de socialização na ação recíproca entre homens. O conflito pode adquirir um significado unificador, pois, muitas vezes, é o que permite e possibilita a convivência entre o que, de outra forma, seria intolerável.
A concepção da morte e do morrer na antroposofia sofreu forte influência do Romantismo Alemão e da Naturphilosophie, reelaborando um ethos da morte como um projeto de bildung que difere da concepção do processo de morte na biomedicina (BASTOS, 2018). Bildung, além de ser a noção de pessoa germânica, é também, para este grupo cultural, o mote para a cura: um forjar da armadura para enfrentar os conflitos das adversidades da vida, com coragem e dignidade. No conflito gerado pela convivência incontornável com a biomedicina no final da vida, os antropósofos reafirmam que é preciso aprender a morrer para renascer, pois a morte é uma das etapas da Bildung.
Este texto descreve os conflitos e as estratégias utilizadas pelos antropósofos para ter controle na decisão sobre o processo da morte e do morrer frente ao modelo biomédico. As narrativas sobre os enfrentamentos vivenciados pelas Viúvas da Demétria, neste conflito, compõem a primeira parte do artigo, preparando o leitor para as invenções de estratégias na lida com as regras biomédicas, apoiado na judicialização do morrer. As Viúvas da Demétria renegociam as concepções da morte, do morrer e da doação de órgãos.
Percurso metodológico
Os resultados apresentados no artigo são fruto de uma etnografia multissituada realizada entre os anos de 2012 e 2016, que se dedicou a investigar a concepção de cura na antroposofia enquanto uma Bildung. A pesquisa se iniciou em 2012 na Clínica Tobias, na cidade de São Paulo, onde participamos das terapias do corpo, do espírito e da alma, no período de um ano. Em 2013, registramos na comunidade da Demétria, no interior do Estado de São Paulo, na cidade de Botucatu, a rotina da comunidade nos eventos do nascimento e da morte dos moradores, no período de seis meses. E, em 2014, acompanhamos o cotidiano em uma comunidade na cidade de Vevey, na parte francesa da Suíça, por mais seis meses.
Em 2013, as interlocutoras eram todas moradoras da Demétria com diferentes graus de adesão a antroposofia. A participação das interlocutoras na pesquisa ocorreu de forma voluntária em uma teia de relações em que uma indicava a outra. Por toda a investigação, realizamos observação participante, entrevistas e acompanhamento da vida cotidiana das moradoras das comunidades antroposóficas observando a rotina das comunidades.
Para as reflexões deste artigo, especificamente, valemo-nos dos resultados da pesquisa realizada na Demétria, um bairro rural que em 2013 contava com mais de seiscentos habitantes, simpatizantes e adeptos a esta ciência espiritual, cercados por serviços associados à filosofia, como o de uma escola Waldorf, uma Comunidade de Cristãos, lojas de produtos orgânicos e biodinâmicos, bares, restaurantes e pousadas, além de clínicas terapêuticas, entre outros empreendimentos ligados ao cultivo e produção de alimentos orgânicos .
Durante a etnografia, em diversos momentos, surgia a discussão da morte e do morrer. Era como um tema recorrente, aquele que exaltava os ânimos, fazendo com que discorressem sobre suas expectativas e receios. As narrativas se avolumavam, revelando uma diversidade de situações conflitivas com a biomedicina. Foi assim que nos aproximamos das Viúvas da Demétria e os desafios que enfrentavam ao fazer valer o desejo de morrer diferente do estabelecido pela biomedicina. Vamos narrar um pouco dessa história adiante.
Resultados
As Viúvas da Demétria
O primeiro encontro com as Viúvas da Demétria aconteceu em 2013, no período em que a etnografia acontecia na comunidade rural antroposófica situada em um bairro da cidade de Botucatu. Demétria é a primeira comunidade a realizar a agricultura biodinâmica fora do continente europeu e a primeira a se instalar na América Latina. O impulso original de sua formação objetivava produzir matéria-prima para atender à demanda da empresa farmacêutica Weleda. Posteriormente, a fazenda se transformou em um bairro rural habitado por simpatizantes e adeptos da antroposofia, oferecendo serviços que atendessem às necessidades dos membros da comunidade antroposófica, como uma escola Waldorf, uma comunidade de cristãos, espaços terapêuticos, pousadas, além de outras iniciativas. A população do bairro é composta principalmente por mulheres de classe média e alta, escolarizadas e com origem familiar estrangeira. As mulheres mais idosas ostentam uma cabeleira grisalha que lhes confere status social entre as demais. São consideras sábias pela comunidade e desfrutam de uma reconhecida saúde física, que lhes é atribuída a alimentação biodinâmica e orgânica produzida in loco.
Durante o período de seis meses, participamos do grupo de senhoras da comunidade cristã. O convívio entre essas senhoras de semblante sereno viabilizou o contato com as situações do morrer de acordo com os princípios da antroposofia. Foram muitas as conversas, algumas agradáveis e outras sofridas, mas esses diálogos possibilitaram compreender o ethos antroposófico destinado ao morrer e sobre os rituais funerários, mas principalmente, permitiram conviver com uma gramática emocional diferenciada para a experiência da morte, muito distinta da qual fomos educados, possibilitando realizar um importante exercício de alteridade. A pesquisadora relembra que seu pai havia falecido no início da pesquisa, em 2012, o que favoreceu uma abertura para os assuntos ligados a morte. No desenrolar das narrativas, invejava o controle emocional destas mulheres e a determinação nos conflitos que enfrentaram para terem suas convicções respeitadas, apesar de estarem vulneráveis aos infortúnios da vida. Como a primeira autora a observa:
A escuta atenta das histórias sobre a morte e o morrer, nos aproximou pela dor. Mas o choro incontido nos distanciava, assim como um desvio da etiqueta emocional. Ali, naquela comunidade, morria-se lutando, mas não lutando contra a morte. Não havia espaço para o choro no novo renascimento (BASTOS, 2018, p. 129).
Para os assuntos que este texto aborda, uma Viúva em especial conquistou a atenção da etnografia. Dona Mel ou como todos carinhosamente a chamam - Mel -, foi a primeira participante do grupo de senhoras que se colocou à disposição para ajudar na pesquisa. Por volta dos seus setenta anos, essa gaúcha esbelta possuía um longo percurso de militância nos movimentos de agricultores camponeses no Brasil e na França, percurso de luta por direitos sociais. Mais tarde, depois de casada, por influência do marido francês, se envolveu também com a agricultura orgânica e biodinâmica e, em decorrência dessa aproximação, conheceram a antroposofia. Sua origem familiar, anarquista, foi, segundo ela, a responsável por seu excelente senso crítico. Nas reuniões, na sua presença, nada podia ser afirmado dogmaticamente sobre a antroposofia. Se assim o fizessem, Mel logo iniciava um debate interminável de ideias. Tanta disposição física e emocional para o diálogo rendeu várias conversas interessantes e uma amizade duradoura. Mas as mais intensas foram sobre sua viuvez, a doença e a morte do seu marido. Entre essas conversas, para esse artigo, nos é caro relembrar as lutas que travou contra as imposições que a biomedicina os submeteu durante o processo do morrer.
Sem medo da doença, sem medo da morte, a história da Mel e do morrer do seu marido, assim, como todas as outras narrativas desta viúva, é uma história de militância, tratando, neste episódio, da busca por uma morte honrosa. Uma disputa pelo poder de morrer de acordo com as suas próprias concepções.
A estética da morte
Para mim, o prolongamento da vida é uma máfia! Há interesse dos médicos e dos hospitais. O custo vai de hospital para hospital, esses “cuidados paliativos”. A morfina, enfraquece o Eu ao preço de perder a consciência. Então, meu marido escolheu que ele ia suportar a dor, e quem ia decidir o momento da morfina seria ele, somente ele. Se ele conseguisse suportar até a morte, sem morfina, era isso que ele tinha como meta. Mas ele não suportou e pediu morfina para o médico. Ele disse à médica: “agora a senhora já pode me dar morfina, eu sei que tenho apenas três dias de vida. Já disse tudo o que eu queria dizer para minha esposa, já escrevi cartas pedido perdão, já está tudo preparado. (Mel)
Com uma personalidade extremamente performática, Mel narrou esse episódio como se este fosse uma ópera. Alterando a voz de acordo com o momento vivido, a primeira autora era conduzida na narrativa, permitindo-a compreender o quanto de energia havia sido necessário para a personagem enfrentar cada uma das situações adversas. Nos momentos mais tristes e de grande cumplicidade entre elas, ela abaixava o tom da voz ao ponto de apenas sussurrar as palavras. Esses momentos eram sempre seguidos por um movimento lento de retirar e por óculos, marcando a necessidade de que houvesse um tempo de silêncio entre elas. Imediatamente depois vinha um brado, apontando uma virada de situação, uma reviravolta, um novo dado, um desfecho. Serena e convicta, não derramou uma lágrima sequer nos encontros etnográficos.
O sofrimento não era inexistente. O seu corpo arcado e suas mãos apertadas demonstrava a sua dor em rememorar situações tão tristes. Mas havia algo a mais que a princípio a primeira autora não conseguia compreender, principalmente porque nas normas da “expressão obrigatória dos sentimentos” na qual ela foi educada, chorar é a forma habitual para expressar publicamente a dor. No entanto, lá não havia nenhuma lágrima, nenhum desespero. Havia sofrimento, mas era um sofrimento nobre, estético e belo.
O antropósofo preza pelo controle das reações. Reagir de forma intempestiva às provocações do mundo enfraquece o seu Eu. Consciente das dificuldades da vida, procura manter-se firme no entendimento que tudo tem seu ensinamento e cada qual evolui a sua forma. Liberais por convicção, preocupam-se mais com o seu próprio processo de formação do que com os tropeços alheios. Sua Bildung carrega a ética da não lamúria, pois mais importante do que apenas suportar a dor é o esforço de metamorfosear a si mesmo em algo superior. Uma batalha pessoal em que o meu maior inimigo sou eu mesmo disperso em emoções exageradas. A estética da dor está em morder o próprio rabo como em um ouroboros, o ciclo da evolução voltando-se sobre si mesmo, em um projeto constante de Bildung.
Para a antroposofia, quando a doença leva a morte, ou seja, ao fim da doença, a morte é benéfica para a evolução daquele ser humano. Sem a doença, a humanidade não alcançaria sua meta na evolução. Steiner (1998STEINER, R. Doença e cura. São Paulo: Associação Brasileira de Medicina Antroposófica, 1998., p. 17) dizia: “Que o homem adoeça enquanto ele se desenvolve”. A doença almejaria, na cura ou mesmo na morte, ir para além de si mesma, e nos elevar a um nível superior na vida, entre a morte e um novo nascimento, sanando a essência humana.
As situações de câncer em estágio terminal demandam a decisão de tomar morfina ou não. A biomedicina, por meio da política de cuidados paliativos, objetiva evitar a dor e o sofrimento dos pacientes terminais e de suas respectivas famílias. Para a biomedicina, a analgesia proporcionaria uma “bela morte”, com dignidade humana preservada. Usar a morfina dos casos de estrema dor é um consenso na biomedicina. Os médicos são educados para cuidar da vida, a morte é vista como um fracasso, uma derrota (ALVES; CASAGRANDE, 2016ALVES, N. L; CASAGRANDE, M. L. Aspectos éticos, legais e suas interface sobre o morrer. Revista Científica do ITPAC, Araguaína, v.9, n. 1, fev. 2016., p. 2).
Na antroposofia, o uso de morfina atrapalha o “ir além de si mesmo” pois, a utilização da morfina levaria o paciente a perder a consciência plena dos seus atos no processo do morrer. Manter a consciência, principalmente na hora da morte, é considerado o ideal, o desejado para transpor o limiar: a morte consciente é considerada um episódio capaz de nos “elevar a um nível superior na vida”.
De acordo com a cosmologia antroposófica, não somente o uso de opiáceos ou o uso constante de qualquer outro analgésico durante a vida denotaria, por exemplo, um desiquilíbrio entre as forças espirituais, onde as forças luciféricas estariam exercendo uma maior influência. Umas das orientações da antroposofia para se manter consciente no momento da morte, apesar da dor e do sofrimento, é praticar, durante toda a vida e não somente na morte, o hábito da meditação, para fazer uso dela em momentos difíceis da vida. Sucumbir a morfina não é proibido, mas enfraqueceria o enfrentamento necessário.
No entanto, não há uma proibição explícita do uso de morfina ou qualquer outro analgésico, apenas algumas ressalvas alertando os membros para uma situação de confusão após a morte, causando atrasos na evolução espiritual. O indivíduo se encontraria perdido no mundo espiritual, sem saber exatamente o que teria acontecido. E sem perceber sua passagem no limiar, vagariam por tempo indeterminado até serem orientados espiritualmente.
Para evitar essa situação indesejada, os membros são orientados a exercerem seus direitos na hora de aderir ou não aos tratamentos médicos durante a doença, situações de internação e situações terminais. Há um conflito entre as normas. Internados em espaços hospitalares, os antropósofos se sentem vulneráveis ao defender o seu estilo de vida. Uma queda de braço com a biomedicina. Quem pode mais irá decidir como o Outro pode morrer.
Os membros desta ciência espiritual, principalmente a comunidade de cristãos voltados ao estudo da Cristologia,22 Segundo o site da Livraria Antroposófica, a Cristologia é um de seus temas centrais da cosmovisão antroposófica que é essencialmente cristã. consideram o modelo de morte “hospice” aplicável à cosmovisão antroposófica do processo de morrer e da morte, na qual o ser humano se encontra em um caminho evolutivo espiritual, onde a doença pode assumir um papel central em seu destino, como parte de um processo de cura interior. Segundo Floriani (2014FLORIANI, C. A. Kalotanásia, antroposofia e o moderno movimento hospice: compartilhando um modelo de boa morte. In: ______. (Org.). No umbral da morte. São Paulo: Antroposófica, 2014.), o movimento hospice é centrado na pessoa, diferentemente do modelo biomédico vigente, que centra suas intervenções na doença, e surge, formalmente, no final da década de sessenta do século XX, com a construção do St Christopher’s Hospice, na Inglaterra. Hospice deriva do latim hospes, que inicialmente significava hospedeiro para, posteriormente, com o uso cristão do termo no século IV, vir a significar também um estranho, um hóspede, um viajante.
O conceito de “boa morte” que fundamenta o movimento hospice está associada a uma disposição peculiar do paciente de enfrentamento durante sua jornada de adoecimento. Esse modelo de morte tem suas origens em sociedades antigas, como as sociedades agrícolas, onde a ritualização social da morte se iniciava e se organizava comunitariamente e em elementos éticos e estéticos da Grécia Antiga, especialmente da sociedade espartana, fundamentada em uma disposição virtuosa de enfrentamento durante uma jornada de luta (FLORIANI, 2014FLORIANI, C. A. Kalotanásia, antroposofia e o moderno movimento hospice: compartilhando um modelo de boa morte. In: ______. (Org.). No umbral da morte. São Paulo: Antroposófica, 2014.).
Segundo Vernant (1989VERNANT, J. P. La belle mort ou le cadavre outragé. In: ______. L’individu, la mort et l’histoire: soi-même et l’autre en Grèce Ancienne. Paris: Gallimard, 1989.), a razão deste heroísmo, comentada e identificada também por outros helenistas consagrados como Pierre Vidal-Nacquet e Paul Veyne, não tem qualquer caráter utilitário, nem mesmo com nenhum desejo de prestígio social, mas é de natureza transcendental, ou seja, tem a ver com a condição humana que os deuses fizeram como toda criatura aqui de baixo, depois do apogeu da juventude, ao declínio das forças e à decrepitude da idade, e apesar de ambos serem inevitáveis, o ideal seria ultrapassar a morte acolhendo-a em lugar de sofrê-la, pois a verdadeira morte seria o silêncio, o esquecimento, a obscura indignidade, a ausência de reputação.
Um ideário inscrito não somente em um tipo específico de morte, mas em uma forma específica de morrer, inscrito dentro de uma jornada de luta, em um morrer nobremente, “sustentado em uma concepção estética profunda do belo, do nobre, que perpassa esse peculiar modo de lidar com a morte, uma morte bela, uma morte ideal ou exemplar” (FLORIANI, 2014FLORIANI, C. A. Kalotanásia, antroposofia e o moderno movimento hospice: compartilhando um modelo de boa morte. In: ______. (Org.). No umbral da morte. São Paulo: Antroposófica, 2014., p. 10), encontrar-se reconhecido, estimado, honrado; é sobretudo ser glorificado por um destino admirado por todos. Glória que ele soube adquirir devotando sua vida ao combate, um herói que inscreve na memória coletiva do grupo sua realidade de sujeito individual, “exprimindo-se numa biografia que a morte, porque se realiza, torna inalterável” (VERNANT,1989VERNANT, J. P. La belle mort ou le cadavre outragé. In: ______. L’individu, la mort et l’histoire: soi-même et l’autre en Grèce Ancienne. Paris: Gallimard, 1989., p. 56).
A essa forma específica de luta para não ser vencido pela morte, mesmo sabendo-se que se vai morrer, é chamado de kalotanásia. Uma luta, que segundo os antropósofos, é travada em instâncias mais profundas da natureza humana, dando sentido e disposição a quem luta e a enfrenta. Uma luta para não se sucumbir à morte, mas para transcendê-la. Ou seja, a luta não seria contra a morte, mas com a morte. Esse modo de enfrentamento considerado virtuoso tirar-lhe-ia toda a enganadora e aparente resignação externa e lhe revestiria de uma disposição interna e extrema de coragem em um cenário de luta para além da morte (FLORIANI, 2014FLORIANI, C. A. Kalotanásia, antroposofia e o moderno movimento hospice: compartilhando um modelo de boa morte. In: ______. (Org.). No umbral da morte. São Paulo: Antroposófica, 2014.).
A cosmovisão antroposófica fica clara nos relatos dos interlocutores que entendem a morte como uma passagem ou como uma transição para uma forma de existência diferente dá própria vida sensorial. A doença, principalmente aquela incurável, é compreendida como via de possibilidades de transcendência, de transformação e de crescimento espiritual, a despeito de sua evolução, sempre vinculada à biografia de quem adoece. Nessa perspectiva, a doença física passa a ser encarada como possibilidade de ajuda ao paciente que, por meio da ritualização social de seu processo de morte e pelo enfrentamento de sua condição existencial, poderá, dentro das circunstâncias de cada caso, ser conduzido e cuidado nesta passagem do umbral, sendo auxiliado, assim, nos processos de transformação interior, uma espécie de semeadura para o além-morte.
Em síntese, por detrás das várias características constitutivas da “boa morte” defendida pelo movimento hospice, e compartilhada pelas terapias antroposóficas, encontra-se uma morte esteticamente percebida e eticamente desejável, ou seja, um modelo de morte considerado belo e digno. Marie de Hennezel (2005HENNEZEL, M. Mourir lês yeux ouverts. Paris: Albin Michel, 2005.) interpreta esse modelo de morte como um trabalho subjetivo empreendido pelo “morredor”, o “trabalho do falecimento”. Segundo a autora, esse “trabalho do falecimento” seria um último esforço na construção de “entrar vivo em sua morte”, em outras palavras, trata-se da conclusão e elaboração da própria vida e morte.
O velório de alguns dias depende da esperteza do sacerdote e da pessoa que cuida disso, porque, por exemplo, meu marido faleceu de manhã cedo e a esperteza funciona assim, no caso do meu marido, eu sabia que seu eu falasse que meu marido havia morrido as 8 horas da manhã, com certeza iriam querer enterrá-lo na parte da tarde, no mesmo dia. E nós, como temos convicção de quanto mais tempo demorar para enterrar, melhor para desligar o corpo etérico, então eu fiz o seguinte no hospital: eu disse, eu quero acompanhar a preparação do corpo, primeiro eu vou acompanhar tudo o que vocês fizerem. Minha vontade é ficar aqui mais um tempo, eu só quero ficar sozinha. Eu sou a responsável, eu decido, não dava explicação. Aí chegou o sacerdote da comunidade, apesar de pressionada, eu não estava nem aí pro hospital, eu vou enrolar até o final da tarde. Já sabia que o serviço funenário fechava as cinco da tarde, então cheguei lá a tempo de não conseguir contratar o serviço. No outro dia, de manhã, dei a desculpa que ainda havia alguém para chegar e essa pessoa só iria chegar às cinco da tarde. O sacerdote também ajudou a enrolar tudo o que pôde. Infelizmente não consegui três dias, eu consegui no máximo que eles ficassem muito contrariados. Até chegar ao cemitério na vila Alpina, consegui que ele fosse cremado depois de três dias. (Mel)
Para Mel, o conflito demanda esperteza, por exemplo, na hora de medicar, chama-se o medicamento antroposófico de Homeopatia. A Homeopatia, apesar subalternizada, encontra-se mais legitimada ou é entendida como algo que não oferece risco ao poder hegemônico da biomedicina. Essa esperteza também aparece nas narrativas sobre os velórios, que apontam para uma rede de relações pessoais que procuram colaborar com a situação, seja por simpatia a antroposofia ou por respeito às pessoas envolvidas que juntas descobrem brechas no sistema para que a duração de três dias de velório, por exemplo, aconteça o mais próximo do indicado por esta ciência espiritual.
A judicialização do morrer
A advogada nos orientou a ser pessoa e não paciente, ou seja, aquele que não aceita passivamente os tratamentos. Para ter seu desejo respeitado, a advogada nos orienta ter várias copias, com várias pessoas que estão acompanhando o tratamento, com o revezamento de pessoas para ter ao lado do doente sempre alguém documentado. Quero isso, isso e isso, se não for cumprido, chama o advogado e processa o profissional e o hospital. Tem que ser assim, se não eles não respeitam. A história da doença do meu marido é uma história de embate para que antroposofia fosse respeitada. O embate maior foi com o diretor do hospital para permitir que outros dois médicos, amigos e antropósofos, acompanhassem o tratamento. Por vezes chamamos a antroposofia de Homeopatia para que ela pudesse ser ministrada durante o tratamento. Precisamos usar de influência dos amigos para conseguir utilizar os medicamentos antroposóficos no hospital. (Mel).
Ressaltamos que o episódio narrado por Mel ocorreu dez ou onze anos antes desta entrevista, realizada em 2013. A Medicina Antroposófica não havia ainda sido considerada uma racionalidade médica (ABMA, 2006). O recurso jurídico, que hoje é utilizado para garantir direitos em caso de tratamentos especiais, também não consegue confrontar plenamente o poder da biomedicina, principalmente na decisão do tratamento e, por consequência, do processo do morrer. Quando Mel diz “[...] para ter seu desejo respeitado a advogada nos orienta ter várias copias, com várias pessoas que estão acompanhando o tratamento, com o revezamento de pessoas para ter ao lado do doente sempre alguém documentado. Quero isso, isso e isso, se não for cumprido, chama o advogado e processa o profissional e o hospital [...]”, demonstra a fragilidade da comunidade antroposófica em fazer valer suas concepções sobre o morrer. Mesmo havendo um documento, havia a necessidade da vigília. Como a presença de guardião do morrer com o ‘mágico’ poder jurídico, um testamento vital, o único eficaz para conter o poder da biomedicina sobre o processo do morrer daquela pessoa.
O chamado testamento vital originou-se nos EUA em 1969, estabelecido como documento de direito de recusa de tratamento médico com o objetivo de prolongar a vida nos casos de diagnóstico de terminalidade ou estágio vegetativo persistente (DADALTO, 2013DADALTO, L.; TUPINAMBAÍ, U.; GRECO, D. B. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Rev. bioét., v. 21, n. 3, p. 463-76, 2013.). Para Kamijo (2016KAMIJO, E. D; LIMA, M. V.; SCHWEDER, E. L. B. Cumprimento dos desejos do paciente por meio das diretivas antecipadas de vontade. Anais de Medicina, 2016.), embora se trate de documento aceito entre os profissionais de saúde, o testamento vital encontra um entrave à sua aplicação: o fato de ser pouco conhecido pelos profissionais de saúde. Para Chehuen (2015CHEHUEN, N. J. A. Testamento vital: o que pensam profissionais de saúde? Revista Bioética, Brasília, v. 123, n. 3, Sept-Dec. 2015.), existe atualmente a necessidade de se ampliar a discussão do tema entre os profissionais e os pacientes.
A discussão sobre a judicialização do morrer atinge o ápice entre as Viúvas da Demétria, mais precisamente em novembro de 2013. O feriado de finados trouxe o tema da morte e do morrer para a comunidade, e com ele uma reflexão sobre as dificuldades do morrer na biomedicina sem abandonar a antroposofia. Na semana que precedia o Dia dos Mortos, os habitantes da Demétria foram convidados a participar de uma palestra realizada pela advogada Stella Marques, intitulada “A morte como amiga: aspectos jurídicos”.
A intenção da palestra era esclarecer possíveis dúvidas e orientar a comunidade para proceder legalmente, em concordância com as orientações antroposóficas, no período terminal do doente hospitalizado bem como nos rituais funerários e na atitude de não doação de órgãos. Os membros com idades mais avançadas participaram intensamente do evento, a plateia estava grisalha. A advogada parecia treiná-los para uma guerra. O encontro era um exercício para o embate entre camponeses e moinhos de vento da biomedicina. Quixotesco? Talvez. Vislumbrando a proximidade da morte, aquelas pessoas estavam mais interessadas no conflito inevitável. Invejavelmente elas pareciam não temer o fim.
Nesse evento, foram distribuídas apostilas contendo uma discussão teórica sobre alguns temas pertinentes a situação de doença e morte como, por exemplo, o conceito de morte nos anos 1960, a Eutanásia, a Distanásia e a Ortotanásia, além de trazer informações e modelos de como elaborar um testamento vital ou diretivas antecipadas de vontade, permitindo ao doente expressar o seu desejo para o fim da vida.
Esse instrumento jurídico permitiria ao paciente, antecipadamente, recusar tratamento médico para o prolongamento da vida de modo artificial, recusar transfusão de sangue ou mesmo fazer opção pela não utilização de morfina nos casos de câncer. Na apostila não havia a referência bibliográfica sobre o conceito de morte utilizado pela advogada. Mas, de acordo com a mesma, o conceito de morte era a parada cardiorrespiratória e, atualmente, é a encefálica que caracteriza a morte do indivíduo. Vale destacar a preocupação estética da abordagem da advogada ao colocar na capa da apostila a obra de arte Hipnos e Tânatos, do pintor inglês John William Waterhouse, se referindo ao mito que relaciona a morte a um sono profundo.
Rosamaria Carneiro (2015CARNEIRO, R. A vida em suspensão: “Fale com ela” e os sentidos da morte. Interface, Comunicação, Saúde e Educação, v. 19, n. 54, p. 615-21, 2015.) menciona um artigo de Rachel Menezes (2003MENEZES, R. A. Tecnologia e morte natural: o morrer na contemporaneidade. Physis. Rio de Janeiro, v. 13, n.2, p. 129-47, 2003.), “Tecnologia e morte natural: o morrer na contemporaneidade”, no qual a autora salienta que, com o desenvolvimento do “ventilador artificial” e da acepção de “morte cerebral”, passa a vigorar uma leitura de “morte moderna”: a do morto controlado por máquinas, que tem vida porque está conjugado a uma máquina. Com essa virada paradigmática, “viver bem” passa a ser socialmente entendido como ter “vida longa” (CARNEIRO, 2015CARNEIRO, R. A vida em suspensão: “Fale com ela” e os sentidos da morte. Interface, Comunicação, Saúde e Educação, v. 19, n. 54, p. 615-21, 2015.). O desenvolvimento técnico na área da saúde criou um ambiente onde não há espaço para a dignidade, ou esta é deixada em segundo plano. Para Schramm (2002SCHRAMM, F. R. A questão da definição da morte, na eutanásia e no suicídio assistido. Mundo Saúde, v. 26, n. 1, p. 178-83, 2002.), houve uma desapropriação da morte na era moderna, afastando pessoas da consciência do seu processo de morrer, em uma flagrante perda de autonomia de decisão.
A questão da doação dos órgãos
Em uma tarde fria de inverno, nos recolhemos, eu e Melba, em sua pequena e acolhedora cozinha. Enquanto a água esquentava no fogão aquecendo todo o ambiente, Mel deu início a um diálogo sobre como a antroposofia compreendia e orientava a questão da doação de órgãos. Apesar do controverso posicionamento desta ciência espiritual sobre a doação, Melba estava convicta de que esta era a postura correta. Era necessário respeitar e não interferir no processo individual de evolução cósmica. Cada qual trilhando sua ildung com órgãos que nasceu.
Primeiro que em princípio você não deveria doar nada, cada um é responsável pela sua saúde e seu corpo, pela conservação do seu corpo, pelos seus órgãos. A antroposofia vê isso como uma interferência na individualidade, quem recebe os órgãos precisa tomar uma quantidade absurda de medicação para que o corpo não rejeite esses órgãos que está sendo doado (sic), e essa medicação interfere no seu Eu, enfraquece o seu Eu, quer dizer... todo trabalho que a gente faz de fortalecimento do Eu se perde. A doação interfere na evolução daquela pessoa, se o órgão daquela pessoa parou é porque há um motivo maior. Hoje em dia, com tanta propaganda, parece cruel, mas cada um lida com o grau de consciência que tem.
Mas quando mesmo podemos nos considerar mortos? Melba filosofou sobre o desfecho. E, ao expor os seus receios, se aproximou dos medos da maioria das pessoas sobre o mercado paralelo de órgãos. O coração na concepção antroposófica assume agências distantes da biomedicina. A sua função não seria a de circular o sangue. O sangue é que movimentaria o coração, e esse seria um elemento crístico de suma importância na manutenção da vida física e biológica. Enquanto o coração não para de pulsar, existe vida.
O outro aspecto é que você tem uma parada cardíaca, que é a morte realmente, você só pode doar a córnea e eu acho que os rins, os outros órgãos precisam ser retirados enquanto o seu coração ainda bate, o transplante só funciona quando o órgão é retirado ainda com a pessoa viva! A partir do primeiro transplante, foi inventada essa história de morte encefálica medida por um aparelho, e que a morte não é mais a parada cardíaca, então, quem pode confiar que realmente aconteceu. É uma coisa completamente manipulada, tem um comercio negro terrível de venda de órgãos. Do meu ponto de vista, não deve doar. (Mel)
Na biomedicina, para a doação de órgãos, é fundamental que estes sejam retirados do corpo do falecido enquanto ainda há circulação sanguínea irrigando-os, ou seja, antes que o coração deixe de pulsar, antes que os aparelhos não consigam mais manter a respiração do paciente. Os antropósofos não reconhecem a morte cerebral. Para eles, a morte só se concretiza com a parada do coração. Sem essa situação, os órgãos seriam retirados ainda em vida.
A prática da não doação de órgãos orientada pela antroposofia pode parecer polêmica. Contudo, um olhar mais atento é capaz de perceber uma coerência afinada com a cosmologia antroposófica. A doença, independente da causa que a motivou, e a morte são entendidas como a cura de questões maiores e mais complexas. Doar um órgão para restabelecer a saúde perdida de alguém é entendido com uma intromissão nefasta no processo evolutivo da pessoa que recebe esse órgão. O ato que parece benevolente seria responsável por atrapalhar o karma desta pessoa.
Discussão: o mana do morrer
Carlos Rodrigues (1984RODRIGUES, J. C. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1984., p. 99), em seu livro o Tabu da Morte, afirma que ao invés de se dizer que a morte tem poder, “melhor seria dizer que ela tem mana, ou seja, uma capacidade geral de produzir efeitos ao nível da sociedade e de seus sistemas simbólicos”. Para Marcel Mauss, “[...] le mana n'est pas simplement une force, un être, c'est encore une action, une qualité et un état. [...]On dit d'un être, esprit, homme, pierre ou rite, qu'il a du mana”33 Tradução da primeira autora: “mana não é simplesmente uma força, um ser, ainda é uma ação, uma qualidade e um estado. [...] Diz-se de um ser, espírito, homem, pedra ou rito, que ele tem mana". (1904, p. 68). É nesse ensejo que iremos nos debruçar.
A biomedicina, assim como a antroposofia, possui rituais do morrer. Essas práticas ritualísticas e seus discursos irão manipular o poder no morrer, o mana no campo de disputa. Um exemplo estaria no repertoria oferecido ao morto em sua “vida” após a morte. Os rituais, sejam eles em torno da morte, assim como quaisquer outros rituais como os de fertilidade e reprodução, nascimento, entrada na idade adulta, de guerra, de cultivo, entre outros, refletem os valores e as crenças compartilhadas por cada grupo, cultura ou sociedade. Em todas as sociedades, a família e seu círculo social respondem de maneira estruturada com base nos sentidos compartilhados pelo grupo. As referências culturais determinam os cuidados com o corpo no morrer e o seu destino (MENEZES; GOMES, 2011MENEZES R. A.; GOMES, R. “Seu funeral, sua escolha”: rituais fúnebres na contemporaneidade. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 54, n. 1, 2011.).
O que estamos ressaltando aqui são as estratégias de apropriação de distintos sistemas culturais e o poder da morte mediado pelos rituais, tanto na antroposofia quanto na biomedicina. Um exemplo do que afirmamos está na “escolha” da vida após a morte, onde essa “escolha” dependerá do cumprimento das regras estabelecidas em cada cultura. Na antroposofia, a forma como o morredor enfrentou a enfermidade garante a ele um status na comunidade. Uma bela morte é consequência de uma evolução espiritual.
Rodrigues (1984RODRIGUES, J. C. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1984., p. 103) descreve diversas culturas em seu livro, e em todas o poder supremo da morte está conferida pela imortalidade. Afinal, “todos os poderes se pretendem eternos”. Na biomedicina, o poder está encarnado no corpo ainda vivo, e por isso o malabarismo frenético em mantê-lo assim, mantendo o poder. Já na antroposofia, o morrer e a morte intensificam o poder do indivíduo. A morte não é temida como o final, até porque a antroposofia acredita na reencarnação e no resgate da consciência de vidas passadas. O poder se estabelece assim, sem limites, atemporal, para além do material.
O prolongamento da vida, seja por ressuscitação, seja pela manutenção continua ou oferecida pelo transplante de órgãos, também pode ser compreendido como um poder ritualizado pela biomedicina, prescrevendo onde, como, quando e em quais situações podemos morrer. As obrigações do terapeuta tradicional, com a função de curar ou ajudar a morrer, transformaram-se na contemporaneidade.
Considerações finais
A partir dos diálogos com as Viúvas da Demétria, foi possível vislumbrar uma outra opção para o morrer e a disputa do controle da morte entre a antroposofia e a biomedicina. Para isso, é preciso aprender a morrer. Então não é possível morrer na antroposofia sem antes ter percorrido uma Bildung? Na antroposofia, as experiências dolorosas são compreendidas como uma oportunidade de fortalecimento interno, o forjar de uma armadura para essa vida ou para a próxima. Sua concepção de morte dignificante, quase heroica, aparece como um reencantamento para a morte materialista apresentada pela biomedicina. Esse projeto de Bildung é viável em outras culturas?
Contudo, a estética da “bela morte” antroposófica não parece destinada a qualquer mortal. Suportar a dor de um câncer terminal consciente e sem morfina é demasiado desafiador aos filhos da analgesia biomédica. A expectativa de uma ‘bela morte’ pode frustrar a percepção do que é belo. A antroposofia deixa por vezes um gosto amargo na boca. Primeiro, porque nos oferece um reencantamento sobre a torturante questão que acompanha nossas vidas: como morreremos? Aos olhos desta ciência espiritual, a morte não parece mais nem tão insuperável e o embate nos parece viável. A morte deixa de ser inimiga, quiçá amiga. Mas o gosto amargo permanece, o de não conseguir atingir o ideal de coragem e determinação na tarefa do morrer. Queremos morrer em paz, mas sempre haverá o barulho do conflito pelo mana do ritual do morrer.44 R. L. de Bastos: realização da pesquisa, elaboração do artigo, revisão, correção e submissão na plataforma. R. Matsue: realização da pesquisa, elaboração do artigo, revisão e correção. P. P. G. Pereira: orientação e participação na realização da pesquisa, elaboração do artigo, revisão e correção.
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- 1O artigo é oriundo dos resultados de uma etnografia de doutorado, realizada em 2016, em comunidades e clínicas antroposóficas no Brasil e na Suíça. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em 2013, e está registrada com o número CAAE (11991512.3.0000.5505), com o título “Estudo Etnográfico sobre a saúde na antroposofia: a Bildung como Cura”. A pesquisa foi financiada pela Capes nos anos de 2014, 2015 e 2016.
- 2Segundo o site da Livraria Antroposófica, a Cristologia é um de seus temas centrais da cosmovisão antroposófica que é essencialmente cristã.
- 3Tradução da primeira autora: “mana não é simplesmente uma força, um ser, ainda é uma ação, uma qualidade e um estado. [...] Diz-se de um ser, espírito, homem, pedra ou rito, que ele tem mana".
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Nov 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
25 Ago 2019 - Aceito
07 Mar 2020 - Revisado
26 Jul 2021