Resumo
As pessoas LGBT se deparam com dificuldades e barreiras que prejudicam o acesso aos serviços de saúde. A falta de preparo e de sensibilidade dos profissionais, nesse contexto, são alguns dos elementos que reiteram as iniquidades em saúde e a vulnerabilidade desses corpos. Para conhecer esse fenômeno, entrevistamos 15 trabalhadores da Atenção Primária à Saúde e analisamos suas falas seguindo a perspectiva da análise do discurso foucaultiana. Os resultados evidenciaram que, apesar de os profissionais conhecerem a temática, eles usam estratégias discursivas que velam seus preconceitos e resistências, dificultando o reconhecimento das possibilidades de agência na transformação dessa realidade. A mobilização de categorias relativas às identidades e aos direitos sexuais em seus discursos indica deslocamentos no regime de sexualidade contemporâneo que devem ser considerados em intervenções de educação em saúde. A implicação de cada um na materialização das diferenças que marcam o campo sexual se demonstrou, nesse sentido, fundamental para discussão de formas de cuidado que sejam verdadeiramente acolhedoras e que não reforcem as desigualdades dos corpos que desafiam o binarismo e a heteronormatividade social.
Palavras-chave:
Sexualidade; Pessoas LGBT; Acesso aos serviços de saúde; Atenção Primária à Saúde; Educação em Saúde.
Introdução
Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), por não se adequarem às normas que definem os padrões de sexualidade e de gênero, são alvos de estigma, discriminação e violência. As reiteradas violações de seus direitos e a exclusão social geram sofrimento, adoecimento e morte prematura (LIONÇO, 2008LIONÇO, T. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saude soc., São Paulo, v.17, n.2, p.11-21, 2008. ; CARDOSO; FERRO, 2012CARDOSO, M. R.; FERRO, L. F. Saúde e população LGBT: demandas e especificidades em questão. Psicol.cienc. prof., Brasília, v.32, n.3, p.552-563, 2012.). Apesar de apresentarem piores condições de saúde do que a população geral, o acesso e a utilização dos serviços assistenciais são marcados por dificuldades e barreiras (GONZALES; PRZEDWORSKI; HENNING-SMITH, 2016GONZALES, G.; PRZEDWORSKI, J; HENNING-SMITH, C. Comparison of health and health risk factors between lesbian, gay, and bissexual adults and heterossexual adults in the United Stades: results from the Nacional Health Interview Survey. JAMA Intern Med., v. 176, n. 9, p. 1344-1351, 2016.).
Lésbicas, por exemplo, buscam por consultas ginecológicas com menor frequência do que mulheres heterossexuais. A falta de preparo dos profissionais contribui para que a assistência ocorra de forma insuficiente e pouco acolhedora (BARBOSA; FACCHINI, 2009BARBOSA, R. M.; FACCHINI, R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad.Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, supl. 2, p. s291-s300, 2009.; VALADÃO; GOMES, 2011VALADÃO, R. C.; GOMES, R. A homossexualidade feminina no campo da saúde: da invisibilidade à violência. Physis, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1451-1467, 2011.). Há, também, a ideia equivocada de que essas mulheres apresentam risco diminuído para desenvolvimento de infecções sexualmente transmissíveis (IST) e de câncer de colo uterino (ALMEIDA, 2009ALMEIDA, G. Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e Aids entre mulheres que se autodefinem como lésbicas. Physis, Rio de Janeiro, v.19, n.2, p.301-331, 2009.), fato que colabora para que elas se afastem dos serviços de saúde.
No caso de travestis e transexuais, a situação é mais preocupante. Apesar da precariedade de dados produzidos pelo Estado, levantamentos realizados por organizações não governamentais mostram que o Brasil é o país onde mais se matam travestis e transexuais. De forma geral, a expectativa de vida dessas pessoas é de 35 anos, menos do que a metade da média de vida da população nacional (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2020BENEVIDES, B. G.; NOGUEIRA, S. N. B. (Orgs.). Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2020.). Tais achados se tornam mais alarmantes quando consideramos outras formas de violência como, por exemplo, expulsões de casa e acesso precário aos serviços de saúde e de educação. O preconceito, a discriminação, a interpretação patológica de suas condições e o não reconhecimento do nome social por parte dos profissionais são motivos recorrentes para que essas pessoas deixem de buscar os cuidados formais em saúde. Diante disso, a automedicação é comum, situação que deixa esses corpos ainda mais vulneráveis (MULLER; KNAUTH, 2008MULLER, M.I; KNAUTH, D.R. Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é 'babado'! Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 1-14, 2008.; ROCON , 2016ROCON, P. C. et al. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v.21, n.8, p.2517-2526, 2016. ; SILVA , 2017SILVA, L. K. M. da et al. Uso do nome social no Sistema Único de Saúde: elementos para o debate sobre a assistência prestada a travestis e transexuais. Physis, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, p. 835-846, 2017.; BEZERRA , 2019BEZERRA, M. V. R. et al. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde debate, Rio de Janeiro, v.43, n. spe8, p.305-323, 2019.).
Esse cenário convive com esforços de diversos atores sociais que lutam por um sistema de saúde menos preconceituoso e mais inclusivo. No Brasil, um dos efeitos dessas disputas e negociações foi a formalização, em 2011, da Política Nacional de Saúde Integral LGBT (PNSI-LGBT), que reconheceu os efeitos da discriminação e da exclusão no processo de saúde-doença dessa população. Esse documento estabeleceu diretrizes voltadas para mudanças nos determinantes sociais de saúde com vistas à redução das iniquidades, reafirmando o compromisso do Sistema Único de Saúde (SUS) com a universalidade, integralidade e controle social. Ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação, além do incentivo à produção de conhecimentos voltados para o cuidado desse público, se tornariam, assim, focos de investimento do Estado Nacional (BRASIL, 2013BRASIL . Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT. Brasília: MS, 2013.).
Apesar da existência desse projeto, assim como de outros compromissos assumidos pelo Estado, observa-se que pouco se avançou em relação à melhoria concreta das condições de acesso à saúde das pessoas LGBT (BEZERRA , 2019BEZERRA, M. V. R. et al. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde debate, Rio de Janeiro, v.43, n. spe8, p.305-323, 2019.). É notável o pouco envolvimento dos estados e municípios no reconhecimento das particularidades dessa população em seus territórios para fomentar políticas e ações locais que contribuam, de maneira articulada, para a consumação da proposta nacional (GOMES , 2018GOMES, S. M. et al. O SUS fora do armário: concepções de gestores municipais de saúde sobre a população LGBT. Saude soc., São Paulo, v.27, n.4, p.1120-1133, 2018.). A Atenção Primária à Saúde (APS), nesse caso, assume um importante papel, uma vez que se constitui como principal porta de entrada do SUS e tem como missão articular e monitorar o acesso dos usuários aos serviços, garantindo cuidado longitudinal e continuado (PAULINO , 2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. B. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface, Botucatu, v.23, e180279, 2019.).
Conhecer como a população LGBT circula nessas instâncias de locais geográficos específicos, assim como precisar os impasses, as dificuldades e as possibilidades de atuação na perspectiva dos profissionais é, portanto, fundamental para fomentar debates sobre estratégias concretas que possam garantir a efetivação da PNSI-LGBT e melhorar as condições de saúde e de acessibilidade desse público. Para contribuir com essa discussão, apresentaremos os resultados de uma investigação que teve como foco a análise de discursos de trabalhadores de Unidades Básicas de Saúde (UBSs) de um município de Minas Gerais. Buscamos, além de compreender aspectos mais pragmáticos relacionados ao acesso e ao cuidado da população LGBT já destacados em outros estudos (BEZERRA , 2019BEZERRA, M. V. R. et al. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde debate, Rio de Janeiro, v.43, n. spe8, p.305-323, 2019.; GOMES , 2018GOMES, R. et al. Gênero, direitos sexuais e suas implicações na saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p.1997-2006, 2018.; PAULINO , 2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. B. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface, Botucatu, v.23, e180279, 2019.), avançar no debate a partir da problematização de algumas particularidades do próprio regime da sexualidade que tem se configurado na sociedade ocidental contemporânea (CARRARA, 2015CARRARA, S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015. ).
Para isso, nos apropriamos da ideia de Foucault (2001FOUCAULT, M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.) de que a sexualidade é um conjunto de ditos e não ditos que, desde a modernidade, evidencia que o controle dos corpos ocorre de forma mais efetiva não através da repressão ou do silenciamento, mas pela via da produção de práticas e discursos que assumem, em condições sócio-históricas específicas, efeitos de verdade. Esse campo, que durante muito tempo foi caracterizado pelo império do discurso biomédico, parece, atualmente, sofrer transformações a partir da emergência de discursos relativos aos “direitos sexuais” (CARRARA, 2015CARRARA, S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015. ), que merecem uma análise mais cuidadosa. Seguindo essa via, discutiremos, com base em nossos dados empíricos, os efeitos desse fenômeno no campo da saúde para, na sequência, pensarmos em estratégias que possam melhorar a qualidade do acesso ao cuidado pelas pessoas LGBT.
Percurso metodológico
Este estudo segue os pressupostos da pesquisa qualitativa e teve como corpus de análise (MINAYO, 2007MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento. São Paulo: Hucitec, 2007.) os discursos de trabalhadores de UBSs do município de Ouro Preto, Minas Gerais. Esse campo se mostrou particularmente rico por se tratar de uma cidade histórica e universitária, onde valores morais e religiosos tradicionais convivem com uma variedade de visões de mundo, muitas vezes, dissidentes e contraditórias.
Escolhemos quatro UBSs que já acolhiam alunos da Universidade para atividades de ensino, pesquisa e extensão. Visitamos esses espaços para conhecer profissionais e suas rotinas. Explicamos o projeto para a equipe e, de acordo com a disponibilidade e o consentimento, selecionamos, intencionalmente, alguns participantes, tentando abranger diferentes áreas de atuação. As entrevistas aconteceram nos locais de trabalho e tiveram, como norteador, um roteiro semiestruturado (MINAYO, 2007MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento. São Paulo: Hucitec, 2007.), composto por questões sobre crenças, conhecimentos, dificuldades, impasses e possibilidades de cuidado em relação à população LGBT.
Realizamos, entre junho e dezembro de 2018, 15 entrevistas com trabalhadores de diferentes áreas. Todas foram gravadas, transcritas e analisadas segundo a perspectiva foucaultiana de discurso, “não como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; 2008., p. 55). Procuramos descrevê-los de forma a evidenciar regras históricas que determinam suas formações em nosso contexto social. Organizamos os resultados em três grupos: (Des)conhecimentos e (pre)conceitos; Regimes da sexualidade: “somos todos iguais?”; (Des)construções. A discussão foi estruturada de modo a permitir um tensionamento com referenciais teóricos da Saúde Coletiva e das Ciências Humanas e Sociais.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa institucional (CAAE 79745317.1.0000.5150). Para manter o anonimato dos participantes, designamos, cada um deles, com um código (tabela 1).
Resultados e Discussões
(Des)conhecimentos e (pre)conceitos
Durante nossas incursões nas UBSs, fomos muito bem recebidos pelos profissionais. Na medida em que entrávamos propriamente na temática relativa às sexualidades e aos gêneros, no entanto, todos diziam não saber quase nada, como se não tivessem como contribuir com a investigação:
[...] eu não tive muito treinamento em relação a isso, então não sei no que que eu posso estar ajudando. (M1)
Essa postura se revelou, muitas vezes, como resistência à reflexão, uma vez que todos tinham algum conhecimento sobre o tema. Além do saber adquirido em vivências pessoais e profissionais, cinco participantes fizeram cursos sobre a PNSI-LGBT na Universidade Aberta do SUS (UnA-SUS). As justificativas para o (des)conhecimento recaíram, frequentemente, na ausência da temática na graduação, no excesso de terminologias que têm surgido nesse campo e no pouco uso das nomenclaturas no cotidiano de suas práticas profissionais.
A deficiência na formação dos profissionais de saúde em relação às sexualidades e aos gêneros está particularmente bem documentada na literatura (PAULINO , 2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. B. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface, Botucatu, v.23, e180279, 2019.; RUFINO; MADEIRO, 2017RUFINO, A. C.; MADEIRO, A. P. 6 Práticas Educativas em Saúde: Integrando Sexualidade e Gênero na Graduação em Medicina. Rev. Bras .educ. med., Rio de Janeiro, v.41, n.1, p.170-178, 2017.). Um dos aspectos centrais, no entanto, não é exatamente que não se fala sobre o tema. Pelo contrário. Como já apontava Foucault ao questionar a hipótese repressiva, é notável que, ao longo da formação, fala-se (e fala-se muito) sobre sexualidade. A abordagem, no entanto, é focada em aspectos biológicos (VAL , 2019VAL, A. C. et al. “Nunca Me Falaram sobre Isso!”: o Ensino das Sexualidades na Perspectiva de Estudantes de uma Escola Federal de Medicina. Rev.bras.educ.med., Brasília, v.43, n.1, supl.1, p. 108-118, 2019. ) que reatualizam uma matriz binária e heteronormativa e sedimentam uma suposta continuidade entre sexo, gênero e desejo (BUTLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.). A forma como isso se materializa no cotidiano assistencial pôde ser observada, por exemplo, em discursos em que os entrevistados se mostravam algo confusos em relação a certos termos:
[...] porque tem orientação sexual, identidade de gênero, aí tem que parar mesmo para pensar. Então, como não é da rotina, fica um pouco difícil. (E4)
Diante do suposto não-saber, os profissionais reagiam de diferentes maneiras. Muitos se valeram dessa justificativa para não se implicar nessa questão e, consequentemente, não trazê-la para suas práticas de cuidado. Alguns, no entanto, não ficavam imobilizados e se engajavam na construção ativa de um saber a partir da literatura sobre o tema e do contato com seus pacientes:
Eu não sou muito de definir, eu vou mais pelo que as pessoas se enquadram [...]. (TE1)
Então, como é algo que eu estou aprendendo, às vezes, eu sinto dificuldade na definição de como aquela pessoa se apresenta, né? É... então, assim, eu já tive pacientes que eram de orientação de identidade de gênero que se identificava com um homem cis, que tinha uma orientação sexual homossexual, mas que questionava se não era transexual. [...] E isso foi interessante, porque eu consegui trabalhar isso na minha cabeça [...]. (M2)
Paulo Freire (1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.) é enfático ao defender que a aprendizagem não se dá através da postura passiva do educando em relação aos conteúdos transmitidos, mas a partir da manutenção de uma “curiosidade epistemológica” viva, que restaura, permanentemente, a força criadora do aprender. O encontro com contingências nas práticas de cuidado é, nesse sentido, bastante potente para desconstruir conhecimentos preestabelecidos e possibilitar o surgimento de formas inéditas de saber. No caso dos entrevistados citados, ficou nítida a disposição de aprender com os pacientes, situação que contribui não só para a ruptura das hierarquias tão comuns no campo da saúde, mas também para a transformação de subjetividades e formas de atuar dos profissionais (VAL , 2019VAL, A. C. et al. “Nunca Me Falaram sobre Isso!”: o Ensino das Sexualidades na Perspectiva de Estudantes de uma Escola Federal de Medicina. Rev.bras.educ.med., Brasília, v.43, n.1, supl.1, p. 108-118, 2019. ). Como ressaltou o segundo entrevistado, quando mencionou alguns pacientes trans que ele acompanha, “[...] nós estamos vivendo a transição com eles.” (M2).
De fato, o conhecimento preestabelecido não representa qualquer garantia de que o cuidado será adequado. É o caso de uma enfermeira que, apesar de falar que não tinha qualquer dificuldade em usar o nome social, nos contou sobre uma situação em que seu conhecimento não foi operativo:
A primeira vez de uma paciente aqui que está nessa fase de transexualidade de menino para menina... E eu pedi até desculpas depois, porque eu fiquei chamando na sala de espera e não via uma mulher. E eu insisti chamando... Aí, eu perguntei: “quem que é?”, de costas para a pessoa. Aí ela falou: “sou eu”. Eu fiquei com muita vergonha, porque, na verdade, eu já conhecia ele. Só que eu não sabia que já tinha mudado o nome social. A recepção não informou. (E3)
Diversos participantes admitiram ter dificuldades com o uso do nome social. Apesar de a Carta dos Direitos dos Usuários do SUS garantir, desde 2007, esse uso em prontuários e outros documentos do sistema (BRASIL, 2009BRASIL. Ministério da Saúde . Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009. Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. Brasília, 2009.), sua efetivação parece depender da boa vontade dos profissionais e dos gestores das unidades (SILVA , 2017SILVA, L. K. M. da et al. Uso do nome social no Sistema Único de Saúde: elementos para o debate sobre a assistência prestada a travestis e transexuais. Physis, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, p. 835-846, 2017.). Não é por acaso que situações de violência como a relatada, mesmo que não intencional, sejam comuns nos serviços de saúde, constituindo um dos principais motivos para que travestis e transexuais não frequentem esses espaços (MULLER; KNAUTH, 2008MULLER, M.I; KNAUTH, D.R. Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é 'babado'! Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 1-14, 2008.; ROCON , 2016ROCON, P. C. et al. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v.21, n.8, p.2517-2526, 2016. ; BEZERRA , 2019BEZERRA, M. V. R. et al. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde debate, Rio de Janeiro, v.43, n. spe8, p.305-323, 2019.).
Outra questão recorrente foi em relação à violência contra a população LGBT. A maioria dos profissionais afirmou nunca ter tido conhecimento de situações de violência contra essas pessoas no território de abrangência de suas UBSs. Nenhum deles conhecia a necessidade de preenchimento da Ficha de Notificação Compulsória (BRASIL, 2016BRASIL . Portaria nº 204, de 17 de fevereiro de 2016. Define a Lista Nacional de Notificação compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências. Brasília: MS, 2016.) em caso de atendimento de algum paciente com esse tipo de relato e, tampouco, sabia como proceder. No ambiente de trabalho, todos negaram ter presenciado episódios de agressão direcionados a esse público. Apesar disso, alguns relataram acontecimentos, não só como aquele em relação ao nome social, mas também outros que envolviam comentários pejorativos de membros da equipe ou de usuários da unidade, como se essas ocorrências não constituíssem como formas de violências simbólicas (BOURDIEU, 2003BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.).
O “desconhecimento” das diversas formas de violência que fazem parte do cotidiano das pessoas LGBT, assim como a não notificação, tornam precária a produção de indicadores fundamentais para elaboração de políticas públicas que possam auxiliar no combate a essa questão (LIONÇO, 2008LIONÇO, T. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saude soc., São Paulo, v.17, n.2, p.11-21, 2008. ; CARDOSO; FERRO, 2012CARDOSO, M. R.; FERRO, L. F. Saúde e população LGBT: demandas e especificidades em questão. Psicol.cienc. prof., Brasília, v.32, n.3, p.552-563, 2012.; BEZERRA , 2019BEZERRA, M. V. R. et al. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde debate, Rio de Janeiro, v.43, n. spe8, p.305-323, 2019.). Perpetua-se, assim, um ciclo vicioso estruturado por uma violência que não só reitera as normas binárias e heterossexistas, mas também exime Estado e cidadãos de qualquer responsabilidade em relação a essa situação.
Alguns entrevistados apontaram que pessoas mais velhas e com determinados valores apresentam mais preconceito e estigma em relação à população LGBT. Aspectos como idade e religião surgiram, muitas vezes, como justificativas “compreensíveis”, quase “naturais”, para uma realidade que não teria grandes possibilidades de mudanças:
Sinto até comentários preconceituosos, mesmo por parte, às vezes, da equipe. Questão de religião, né? Questão de ser mais antigo. [...] A população é mais velha, tem pessoas que não se interessam pelo novo ou se mantém mais... né? (M1)
Esse cenário se torna um espaço propício para permanência de uma “LGBTfobia institucionalizada” onde a violência e o preconceito são permanentemente invisibilizados (LIONÇO, 2008LIONÇO, T. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saude soc., São Paulo, v.17, n.2, p.11-21, 2008. ; CARDOSO; FERRO, 2012CARDOSO, M. R.; FERRO, L. F. Saúde e população LGBT: demandas e especificidades em questão. Psicol.cienc. prof., Brasília, v.32, n.3, p.552-563, 2012.; VALADÃO; GOMES, 2011VALADÃO, R. C.; GOMES, R. A homossexualidade feminina no campo da saúde: da invisibilidade à violência. Physis, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1451-1467, 2011.; BEZERRA , 2019BEZERRA, M. V. R. et al. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde debate, Rio de Janeiro, v.43, n. spe8, p.305-323, 2019.; RAMOS; CARRARA, 2015RAMOS, S.; CARRARA, S. A constituição da problemática da violência contra homossexuais: a articulação entre ativismo e academia na elaboração de políticas públicas. Physis, Rio de Janeiro, v.16, n.2, p.185-205, 2006.). O não reconhecimento da participação de cada um nesse processo, localizando-o nos outros e/ou negando-o em si mesmo, foi recorrente. Uma médica, por exemplo, ao mesmo tempo que disse ser aberta às diferenças, no momento em que introduzimos o tema da diversidade sexual, ressaltando que ele tem sido cada vez mais abordado na mídia, comentou: “Nunca vejo, graças a Deus!” (M4).
Butler (2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.) esclarece que existe uma “matriz de inteligibilidade” dos gêneros e das sexualidades que se sedimenta a partir de processos sócio-históricos caraterizados por jogos de poder e estabelece corpos que serão ininteligíveis e, portanto, excluídos do sistema social. A norma, nesse caso, não é algo que vem “de fora”, mas se constitui como um produto que se materializa através de atos reiterados de atores sociais que, ao mesmo tempo que a reafirmam, podem negá-la ou subvertê-la. Nessa dinâmica em que todos estão implicados, não há uma dicotomia rígida entre o “eu” e o “outro”. Afinal, a afirmação da diferença do outro é “indispensável para própria existência do sujeito: [a diferença] estaria dentro, integrando e constituindo o eu” (LOURO, 2018LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 45). Desestabilizar esse sistema e revelar o caráter arbitrário da norma requer uma disposição para se reconhecer no diferente e se engajar nesse jogo que envolve permanentes reposicionamentos, negociações e rearranjos.
Alguns participantes, nesse sentido, ao se recusarem a (re)conhecer esse campo marcado pela exclusão, não só revelavam a norma binária e heterossexual que rege nossa sociedade, mas também contribuíam ativamente para que ela fosse naturalizada e mantida inalterada. Isso foi reforçado em discursos que revelaram um “preconceito invertido”, ou seja, a crença de que são as pessoas LGBT que protagonizam episódios de preconceito e violência contra a sociedade, e não ao contrário:
[...] eu acho que a informação é importante para todo mundo, porque é igual eu falei, existe a homofobia, mas existe o contrário, né? (M1)
[...] eu acho assim, eu não sei se é por conta da vulgaridade ou se é a questão de se transformar, homem transformar em mulher e mulher em homem. Os gays que são homens mesmo e só têm a preferência por homens. Eu sinto que eles são mais bem-aceitos na sociedade do que as pessoas trans. [...] porque eu não vejo ninguém que aparenta, no ambiente que eu frequento, com uma questão social melhor, né?! Eu vejo mais as pessoas marginalizadas mesmo. Até a questão de atitude frente à sociedade é diferente... É vulgar, né? Às vezes, até falta de educação deles, entendeu? Não é que eu esteja discriminando, mas talvez já até esteja... (E2)
É evidente, nesta última fala, como o império da norma binária e heterossexual só se sustenta a partir da segregação de corpos e práticas erótico-sexuais dissidentes (LOURO, 2018LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.; MOTTA, 2016MOTTA, J. I. J. Sexualidades e políticas públicas: uma abordagem queer para tempos de crise democrática. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. esp., p.73-86, 2016.). Um gay, por exemplo, para entrar no campo de inteligibilidade precisa reproduzir a matriz heteronormativa, apresentando-se como um “homem mesmo”. Esse homem, ao que tudo indica, seria branco, se identificaria com o gênero que lhe foi designado ao nascimento, teria boas condições socioeconômicas e apresentaria comportamentos que são socialmente atribuídos ao universo masculino. Essa perspectiva idealizada é reforçada pelas políticas públicas voltadas para homens, que acabam tomando-os como uma categoria genérica sem considerar suas diversidades de experiências. A normatividade pode, assim, causar sofrimento e fragilizar o cuidado não só de homens gays, bissexuais e transexuais, mas também daqueles que, apesar de se identificarem como cisgêneros e heterossexuais, não se adequam ao modelo de masculinidade hegemônico (COUTO; GOMES, 2012COUTO, M. T.; GOMES, R. Homens, saúde e políticas públicas: a equidade de gênero em questão. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 10, p. 2569-2578, 2012.).
Algo semelhante acontece com lésbicas, que, diante de experiências anteriores de indiferença ou de preconceito por parte dos profissionais, passam a evitar serviços de saúde. Além disso, não é raro que, quando essa busca acontece, elas prefiram omitir a orientação sexual (BARBOSA; FACCHINI, 2009BARBOSA, R. M.; FACCHINI, R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad.Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, supl. 2, p. s291-s300, 2009.; VALADÃO; GOMES, 2011VALADÃO, R. C.; GOMES, R. A homossexualidade feminina no campo da saúde: da invisibilidade à violência. Physis, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1451-1467, 2011.):
Mulher, por exemplo, que eu tinha conhecimento de ser lésbica da minha unidade... teve uma que veio me procurar e que não sabia a necessidade de ela fazer o preventivo, por exemplo. Então, elas acham que por elas não terem relação ou penetração com um homem, acham então que não têm essa necessidade de fazer o exame. (E1)
Tal discurso reforça como estereótipos heteronormativos contribuem para que a assistência em saúde ocorra de forma inadequada, sem contemplar as reais necessidades de grupos específicos. As lésbicas, nesse contexto, frequentemente têm os seus corpos invisibilizados, situação que impede um verdadeiro reconhecimento de suas demandas de saúde e reforça certos imaginários como, por exemplo, o de que elas são imunes às ISTs e ao câncer de colo uterino (ALMEIDA, 2009ALMEIDA, G. Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e Aids entre mulheres que se autodefinem como lésbicas. Physis, Rio de Janeiro, v.19, n.2, p.301-331, 2009.). Nessa fala, particularmente, é nítida a estratégia de se apagar as experiências lésbicas a partir da ideia de que essas mulheres não frequentam as UBSs ou, ainda, de que elas não buscam cuidado por falta de informação. A culpabilização dessas pessoas, nesse caso, ao mesmo tempo em que colabora para afastá-las dos serviços assistenciais, camufla a participação ativa dos profissionais e do próprio sistema nessa questão.
As transexualidades e travestilidades enfrentam barreiras ainda mais intransponíveis, uma vez que os seus corpos expõem a precariedade das normas de gênero, revelando, finalmente, que não existe qualquer essência masculina ou feminina. Essas pessoas são relegadas a um campo onde não só há uma absoluta falta de garantia de direitos, mas também onde a própria condição de humano é negada (BUTLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.). Obviamente, as chances de existência, nesse cenário, são escassas, situação que irá repercutir diretamente no âmbito educacional, profissional e econômico.
Isso não significa - como indicado por um dos discursos citados anteriormente - que essas pessoas sejam “vulgares” e “sem-educação”, mas que precisam, dia após dia, lutar para garantir o mínimo para sobrevivência em um sistema que as rechaçam. Categorias acusatórias como essas, ao serem acionadas, não só velam a falta de empatia e de capacidade de comunicação de muitos profissionais (MULLER; KNAUTH, 2008MULLER, M.I; KNAUTH, D.R. Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é 'babado'! Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 1-14, 2008.; ROCON , 2016ROCON, P. C. et al. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v.21, n.8, p.2517-2526, 2016. ), mas também sedimentam “barreiras simbólicas, morais e estéticas” que impedem o acesso à saúde dessa população. Tal constatação torna-se patente quando se trata de pessoas com condições socioeconômicas precárias ou, ainda, de pessoas que subvertem mais claramente o binarismo e a heteronormatividade, incluindo-se nesse grupo não só travestis e transexuais, mas também mulheres “masculinizadas” e homens “afeminados” (MELLO , 2011MELLO, L. et al. Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n.9, p.7-28, 2011. ).
Nesse cenário, entre os (des)conhecimentos e os (pre)conceitos, os ditos e os não ditos, as impossibilidades e as possibilidades de atuação, um tipo de discurso nos chamou a atenção, tanto por sua recorrência, como também por nos indicar uma tendência de pensamento particular de nossa época. A seguir, discutiremos esse achado a partir da seguinte reflexão: estaríamos vivendo o mesmo regime da sexualidade de outrora?
Regimes da sexualidade: somos todos iguais?
Durante as entrevistas, quando questionamos sobre as particularidades da população LGBT, diversos entrevistados disseram que não existiam diferenças, ressaltando que “todos somos seres humanos”. Esse tipo de discurso foi, algumas vezes, acompanhado de explicações nas quais a diversidade sexual era naturalizada e/ou essencializada a partir de referências à biologia ou à própria história da humanidade:
[...] nós também somos animais, entre aspas, racionais, né? Mas, entre os animais, 40% dos animais também ou é bissexual ou alguma coisa aconteceu ali. É da nossa natureza. [...] Então, eu me espelho nisso como uma coisa normal. (ACS1)
E hoje... a gente sabe que, desde os primórdios, existe isso, mas hoje a mídia, de maneira gritante, eu nem sei te dizer se é a forma correta, né? [...] Porque existe desde a Antiguidade, mas não era algo que tava tão exposto, né? (ACS2)
Tais argumentos, embora estivessem associados a um posicionamento dos entrevistados contra preconceitos, na prática, pouco contribuem para revelar os jogos de poder e as performatividades dos atores que reiteram a lógica binária e heteronormativa que segregam corpos que não se enquadram nas normas de gênero. Aliás, como destacou a segunda entrevistada, esse mesmo tipo de discurso que naturaliza e essencializa as performances sexuais e de gêneros pode ser acionado por setores conservadores que se posicionam contra a diversidade sexual, a partir da ideia de que há uma natureza divina que comporta apenas dois gêneros e uma única orientação sexual (MIGUEL, 2011MIGUEL, F.P.V. "Sexy Nature": a naturalização da (homo)sexualidade em uma exposição museográfica. Anuário Antropológico, Brasília, v.39, n.1, p.99-123, 2014.):
[...] a gente vive em uma situação muito religiosa que é baseado que o homem é imagem semelhante de Deus. Então, Deus vai, cria o homem e cria a mulher. [...] fica difícil pras pessoas que já têm essa formação de cunho religioso de, às vezes, absorver como é isso [a diversidade sexual]. (ACS3)
Dito de outro modo, se essa estratégia discursiva pode contribuir para que comportamentos sexuais “dissidentes” se tornem socialmente aceitáveis, por outro, ela também pode corroborar o fenômeno da exclusão e da patologização11 A patologização das sexualidades e dos gêneros “dissidentes” tem sido foco candente de discussão na atualidade. A questão central diz respeito à impossibilidade de se reduzir um campo marcado pela multiplicidade de experiências a uma descrição homogênea e prescritiva, que mina a autonomia e a participação efetiva das pessoas em seus processos de cuidado (TENÓRIO; PRADO, 2016; ROCON et al., 2016; SOUSA; IRIART, 2018). (MIGUEL, 2011MIGUEL, F.P.V. "Sexy Nature": a naturalização da (homo)sexualidade em uma exposição museográfica. Anuário Antropológico, Brasília, v.39, n.1, p.99-123, 2014.). O paradoxo fica mais evidente quando percebemos que esses discursos, apesar de se sustentarem na ideia de “natureza”, são interligados a princípios morais socialmente valorizados, como, por exemplo, “respeito”, “tolerância” e “amor ao próximo”.
Um elemento recorrente, nesse contexto, foi a referência aos direitos humanos ou àquilo que, mais contemporaneamente, tem sido reconhecido como “direitos sexuais” (CARRARA, 2015CARRARA, S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015. ):
Eu insisto em dizer que tesão é universal, desde quando cada qual respeita o direito dos outros, não queiram ter hegemonia e manter seu direito e respeito do direito dos outros, há espaço para todo mundo. (A1)
Ora, sabemos que a sexualidade, desde o século XIX, se sedimentou como um processo social complexo, marcado por disputas e negociações que produzem saberes, corpos e subjetividades. Nessa dinâmica, o aspecto produtivo do poder assume diferentes roupagens de acordo com o tensionamento entre discursos, práticas, crenças e valores que compõem os variados “estilos de regulação moral” de certa época. Carrara (2015CARRARA, S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015. ), seguindo esse caminho, indica horizontes de transformações ao comparar o regime da sexualidade da Modernidade, tal como descrito por Foucault (2001FOUCAULT, M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.), com aquele que tem se perfilado no século XXI.
O antropólogo destaca injunções e disjunções entre a racionalidade, a política e a moralidade que marcam a sexualidade nas diferentes épocas. No plano da racionalidade, o sexo, no século XIX, era compreendido como um instinto incoercível cuja tradução se dava, eminentemente, pela linguagem biomédica. As relações sexuais eram legitimadas a partir do valor moral da reprodução biológica, situação que estava diretamente interligada ao interesse político do Estado de manter determinada “raça” ou “nação”. Dentro dessa lógica eugênica, aqueles que não se inscreviam no marco do casal monogâmico heterossexual eram excluídos e, no limite, fisicamente executados (CARRARA, 2015CARRARA, S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015. ).
A partir dos finais do século XX, diferentes atores e processos sociais contribuíram para que o regime da sexualidade começasse a se organizar em torno dos direitos humanos ou, mais especificamente, dos direitos sexuais. Tiveram papel importante, nessa mudança, a atuação dos movimentos feministas e LGBT, a crescente valorização, por discursos socialmente validados, do prazer sexual sem estar associado ao seu aspecto reprodutivo e a sedimentação de um mercado erótico-sexual variado. A moralidade se deslocou de uma lógica eugênica e reprodutiva para se ancorar em valores como “felicidade”, “realização pessoal”, “consentimento” e “respeito”. Paralelamente, emergiu uma racionalidade individualizante em que cada um é responsável por suas escolhas, devendo regulá-las de forma a atingir uma plena satisfação sem, no entanto, ferir princípios socialmente estabelecidos (CARRARA, 2015CARRARA, S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015. ). Trata-se de um regime aparentemente libertário em que o exercício da sexualidade é possível desde que certos valores sejam respeitados:
[...] a partir do momento que a pessoa tem aquela opção, não tá transgredindo, não tá ofendendo ninguém, ela tem o direito de ser respeitada, né? [...] A gente tem que ver que esse pessoal, a partir do momento que eles tão atuando no seu papel de indivíduo, de cidadão como qualquer outro, ele tem que ser respeitado, tem direito de ir e vir, tem que ser bem aceito como qualquer outro ser humano. (ACS3)
A linguagem biomédica nesse “novo” regime é, aos poucos, substituída por uma linguagem sociojurídica que engendra movimentos identitários organizados a partir da reivindicação de direitos:
[...] a minoria sempre vai ser massacrada. Mas a minoria tem que lutar por seus direitos. E você só é cidadão quando você luta por seus direitos e tem eles garantidos. [...] eu falo de direitos humanos, não é só aquele direito que a gente tem... o leigo acha que os direitos humanos... é defender bandido. Não! Direitos humanos está em outra categoria. (ACS1)
Se, por um lado, esse regime esboça uma política cujo carro-chefe é a garantia da cidadania e dos direitos sociais, por outro, pode incorrer numa reificação de identidades que reforça estereótipos e sedimenta normas (CARRARA, 2015CARRARA, S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015. ; LOURO, 2018LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.; MOTTA, 2016MOTTA, J. I. J. Sexualidades e políticas públicas: uma abordagem queer para tempos de crise democrática. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. esp., p.73-86, 2016.). Em nossa investigação, isso foi notável quando perguntamos sobre demandas específicas da população LGBT. Além da já conhecida associação entre esse público, os transtornos mentais, a promiscuidade e as ISTs (MULLER; KNAUTH, 2008MULLER, M.I; KNAUTH, D.R. Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é 'babado'! Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 1-14, 2008.; ROCON , 2016ROCON, P. C. et al. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v.21, n.8, p.2517-2526, 2016. ; VAL , 2019VAL, A. C. et al. “Nunca Me Falaram sobre Isso!”: o Ensino das Sexualidades na Perspectiva de Estudantes de uma Escola Federal de Medicina. Rev.bras.educ.med., Brasília, v.43, n.1, supl.1, p. 108-118, 2019. ), alguns profissionais associaram a baixa procura das pessoas trans ao fato de as UBSs não disponibilizarem hormônios. As transexualidades, nesse caso, foram tomadas como uma categoria homogênea e não como um campo existencial marcado por múltiplas experiências e nomeações. Isso não só ofusca demandas recorrentes de certos grupos, mas também promove uma universalização do cuidado. Alguns homens trans, por exemplo, constroem seus corpos valendo-se de recursos que não incluem intervenções hormonais ou cirúrgicas, como o uso de binder/faixas para ocultar os seios, os cortes de cabelo e o uso de vestuários específicos. Outros desejam fazer o uso de hormônios e/ou realizar a mamoplastia masculinizante, mas não se sentem incomodados com suas vaginas (SOUSA; IRIART, 2018SOUSA, D.; IRIART, J. “Viver dignamente”: necessidades e demandas de saúde de homens trans em Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.34, n.10, e00036318, 2018. ). Da mesma forma, existem mulheres que se identificam como travestis e desejam realizar a cirurgia de transgenitalização, contrapondo a ideia comum de que essa demanda está presente apenas em mulheres trans (CARVALHO, 2018CARVALHO, M. “Travesti”, “mulher transexual”, “homem trans” e “não binário”: interseccionalidades de classe e geração na produção de identidades políticas. Cad. Pagu, Campinas, n.52, e185211, 2018.). Ou seja, ainda que as particularidades de cada grupo devam ser consideradas, não há como, na prática clínica, deixar de singularizar o cuidado (GOMES , 2018GOMES, R. et al. Gênero, direitos sexuais e suas implicações na saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p.1997-2006, 2018.).
Essa tendência à universalização apareceu, em diversas entrevistas, de forma ainda mais radical. Muitos profissionais, partindo da ideia de que “somos todos iguais”, negaram que a população LGBT teria especificidades em suas demandas. Alguns, inclusive, alegaram que um tratamento particularizado poderia fomentar segregação e preconceito:
Eu acho que, se a gente tomar essa iniciativa, a gente acaba por criar uma forma de espantar ela da unidade. Eu acho que cabe a nós recepcionar como uma pessoa qualquer, independente do que elas fizeram lá fora. É um direito delas, é um problema delas, elas sabem o que é bom pra elas. (A1)
Paulino e colaboradores (2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. B. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface, Botucatu, v.23, e180279, 2019.) encontraram esse mesmo tipo de discurso, nomeando-o como “discurso da não diferença”. Trata-se de uma estratégia socialmente aceitável que, ao mesmo tempo em que vela o preconceito contra pessoas LGBT, nega as particularidades desse grupo, os processos de exclusão pelos quais essas pessoas passam, assim como suas próprias existências. A equidade em saúde, nesse caso, é ignorada, aumentando a vulnerabilidade dessa população. Nos discursos que analisamos, a menção a esse desafio foi rara, mas esteve presente de forma esclarecedora em um deles:
Eu acho que, diante de um contexto cultural, de uma história, de uma formação, eu preciso ter sim uma habilidade treinada específica para lidar com esse público. Gostaria que não tivesse, gostaria que fosse uma questão muito natural, mas eu sei que não é natural por causa de uma dificuldade mesmo, tabus que a gente constrói. Eu tenho 48 anos. Então eu venho de uma sociedade que talvez não esteja preparada para o mundo contemporâneo. Então, eu acho que tem que ter sim algo específico para conseguir uma equidade. (M3)
De fato, para superar as diferenças no que diz respeito à vulnerabilidade social de grupos específicos, é preciso tratá-los de forma diferente, respeitando as suas necessidades específicas e suas desigualdades sedimentadas ao longo do tempo. O princípio da equidade, nesse sentido, não se contrapõe ao princípio da universalidade dos direitos humanos, uma vez que o seu objetivo central é a inclusão de populações historicamente rechaçadas na divisão de bens e serviços socialmente produzidos (COHEN; FRANCO, 2007COHEN, E.; FRANCO, R. Gestão social: como obter eficiência e impacto nas políticas sociais? Brasília: ENAP, 2007. ). Manter uma oferta homogênea para atender a situações heterogêneas, nesse caso, só serviria para preservar as desigualdades e as hierarquias sociais.
Mas como garantir a equidade de acesso ao cuidado às pessoas LGBT sem incorrer em discursos que homogeneízam seus corpos ou, ainda, que os particulariza a partir de fixações identitárias? Talvez esse seja um dos maiores desafios no campo da saúde, quando se trata de uma população extremante heterogênea, atravessada por singularidades no que diz respeito às sexualidades, aos gêneros, às raças, às etnias, às classes sociais, entre outros aspectos que marcam a vida de cada um.
(Des)construções
Em nossa investigação, ao perguntarmos de que forma seria possível melhorar o acesso das pessoas LGBT às UBSs, muitos acionaram os termos “treinamento” e “capacitação” sem, no entanto, problematizá-los (BEZERRA , 2019BEZERRA, M. V. R. et al. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde debate, Rio de Janeiro, v.43, n. spe8, p.305-323, 2019.). Alguns fizeram propostas mais claras, como, por exemplo, rodas de conversa e dinâmicas interativas:
Eu acho que, num primeiro momento, podia ser algo como uma palestra, uma... É, um primeiro momento pra identificar os problemas, né? Entre as pessoas, quais são as dificuldades. E, num segundo momento, pensar num treinamento, como uma capacitação, vamos dizer assim, com dinâmicas, né? Discussão de casos, pra pessoa identificar ali: “ah não tenho preconceito”, mas, de fato, tem. (M4)
A literatura ressalta que, tendo em vista que a falta de sensibilização dos profissionais é uma das principais barreiras para o acesso das pessoas LGBT ao cuidado, é fundamental que o tema seja abordado tanto nas graduações, como nas práticas cotidianas de saúde, através de estratégias de educação permanentes (LIONÇO, 2008LIONÇO, T. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saude soc., São Paulo, v.17, n.2, p.11-21, 2008. ; PAULINO , 2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. B. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface, Botucatu, v.23, e180279, 2019.). Estudos mostram, nesse contexto, que aulas meramente expositivas são pouco eficientes no que diz respeito à sensibilização de estudantes e trabalhadores, indicando a importância de se investir em metodologias dialógicas e participativas (VAL , 2019VAL, A. C. et al. “Nunca Me Falaram sobre Isso!”: o Ensino das Sexualidades na Perspectiva de Estudantes de uma Escola Federal de Medicina. Rev.bras.educ.med., Brasília, v.43, n.1, supl.1, p. 108-118, 2019. ; RUFINO; MADEIRO, 2017RUFINO, A. C.; MADEIRO, A. P. 6 Práticas Educativas em Saúde: Integrando Sexualidade e Gênero na Graduação em Medicina. Rev. Bras .educ. med., Rio de Janeiro, v.41, n.1, p.170-178, 2017.). Estratégias como as indicadas pela entrevistada se mostram, portanto, mais adequadas para que as pessoas possam expressar suas vivências, crenças e preconceitos de forma a promover mudanças de posturas e de atitudes.
Essa (des)construção requer a sedimentação de espaços democráticos e plurais (BUTLLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.; MELLO, 2011MELLO, L. et al. Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n.9, p.7-28, 2011. ) onde todos - estudantes, profissionais, gestores, usuários e representantes de outros setores sociais - estejam implicados na construção de um saber que possa, efetivamente, alterar a realidade das práticas assistenciais. Não se trata de criar espaços em que as diferenças sejam toleradas ou tomadas como “curiosidades exóticas” (LOURO, 2018LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.), algo que localizamos em outros discursos:
E que tenha o público também fazendo parte, que eu acho que é muito importante. Porque a gente tem uma visão, mas a pessoa que tá ali no lugar dela... Às vezes, a gente não tem a visão, não consegue compreender. Por isso que eu acho que é muito importante que nessa roda de conversa tenha cada um com seu gênero pra gente ver também como é que é a visão deles, né? Porque eles não são extraterrestres, isso que eu quero dizer... (ACS5)
Esse tipo de discurso de acolher as diferenças, embora possa parecer bem-intencionado, na prática, contribui para manutenção de uma epistemologia binária em que o diferente sempre ocupa o lado oposto. Louro (2018LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.) indica que um dos caminhos para desestabilização dessa lógica é pavimentado por práticas pedagógicas em que cada participante possa se perguntar sobre a construção de sua própria identidade. É importante, nesse processo, o uso de metodologias desconstrutivistas para que cada um se dê conta da instabilidade de toda e qualquer identidade e rompa com a lógica binária em que o diferente está do lado de fora. Na medida em que fica claro que a identidade só se afirma a partir da demarcação e negação de seu oposto, é possível perceber que a diferença não está do outro lado, mas faz parte da própria constituição de cada sujeito. Esse tipo de estratégia teria o potencial de deslocar uma discussão focada em um mero reconhecimento da diversidade sexual, a partir de identidades fixas, para uma discussão em que é possível problematizar a própria constituição do binarismo e da heterossexualidade como norma.
Especialmente no campo da saúde, não há como discutir políticas públicas desconsiderando as diferenças relativas aos gêneros (COUTO; GOMES, 2012COUTO, M. T.; GOMES, R. Homens, saúde e políticas públicas: a equidade de gênero em questão. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 10, p. 2569-2578, 2012.). Devemos, no entanto, estar advertidos em relação ao risco de que o “novo” regime de sexualidade (CARRARA, 2015CARRARA, S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015. ) reduza essa questão a identidades estanques e estereotipadas, reafirmando normas e hierarquias. Há, nesse sentido, a possibilidade de que as identidades sejam tomadas como fragmentos temporários que possam nortear políticas e práticas de cuidado, sem reduzir os sujeitos e suas subjetividades a uma essência definitiva e individualizante (MOTTA, 2016MOTTA, J. I. J. Sexualidades e políticas públicas: uma abordagem queer para tempos de crise democrática. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. esp., p.73-86, 2016.).
Talvez, como aponta Louro (2018LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.), esse desafio demande um deslocamento epistemológico que desaloje todos aqueles implicados no cuidado de uma postura cômoda de contemplação de uma sociedade diversificada, engajando-os em um questionamento permanente, democrático e plural dos processos políticos e sociais que produzem identidades e diferenças. Tal indicação é uma via para que as práticas assistenciais se tornem ações críticas e criativas em que todos os envolvidos afetam e sejam afetados, de forma a promover efetivamente a saúde, tanto no indivíduo quanto na sociedade.
Considerações finais
Os discursos analisados revelaram que, apesar de muitos dos profissionais terem algum conhecimento em relação à abordagem da população LGBT, não há um engajamento efetivo na construção de formas de cuidado que possam verdadeiramente acolher as diferenças. Preconceitos e resistências são, frequentemente, velados a partir de certas estratégias discursivas, tais como a responsabilização do outro, a naturalização do fenômeno, a mobilização de categorias acusatórias para se referir aos corpos LGBT e a negação de suas diferenças. Para além dessas questões mais pragmáticas, evidenciamos a convivência de diferentes regimes de sexualidade cujas racionalidades e moralidades estão em permanentes disputas e negociações. Tal processo dá origem a uma política cuja marca é uma regulação, cada vez mais sutil, das práticas sexuais e expressões de gênero que reafirma a matriz binária e heteronormativa que rege nossa sociedade.
O campo da saúde é, nesse sentido, um espaço potente para ruptura dessa lógica e promoção de novas formas de cuidado que incluam diferenças, transformando o social. Entendemos que, para isso, seja necessário investir em estratégias de educação democráticas e plurais que facilitem a implicação de todos a partir do reconhecimento da diferença de cada um. Não se trata de uma receita pronta, mas de uma indicação que deve ser revista e reformulada de acordo com as realidades locais e com as contingências próprias do cotidiano das práticas de cuidado.
Seguindo essa ideia, buscamos, neste artigo, contribuir com o debate sobre esse tema, deixando lacunas para novas pesquisas e diálogos. Quais seriam as diferenças nos discursos dos trabalhadores de acordo com suas formações, experiências pessoais e profissionais? Como ocorre o cuidado desses corpos heterogêneos que, embora sejam reduzidos nas políticas de saúde à sigla LGBT, apresentam especificidades quanto às suas performatividades sexuais e de gênero? Esperamos que essas e outras perguntas mantenham esse campo em aberto, garantindo a vivacidade necessária para que possamos avançar em relação a essa questão.22A. Costa-Val: idealização e desenho do estudo, transcrição e análise das entrevistas, revisão bibliográfica, escrita do artigo e aprovação da versão final. M. de S. Manganelli e V. M. F. de Morais: realização, transcrição e análise das entrevistas, revisão bibliográfica, escrita do artigo e aprovação da versão final. H. A. C. Prais: análise das entrevistas, revisão bibliográfica, revisão crítica do artigo e aprovação da versão final. G. M. Ribeiro: mapeamento do campo, realização das entrevistas, revisão crítica do artigo e aprovação da versão final.
Referências
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- BARBOSA, R. M.; FACCHINI, R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad.Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, supl. 2, p. s291-s300, 2009.
- BENEVIDES, B. G.; NOGUEIRA, S. N. B. (Orgs.). Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019 São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2020.
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- BRASIL . Portaria nº 204, de 17 de fevereiro de 2016. Define a Lista Nacional de Notificação compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências. Brasília: MS, 2016.
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- 1A patologização das sexualidades e dos gêneros “dissidentes” tem sido foco candente de discussão na atualidade. A questão central diz respeito à impossibilidade de se reduzir um campo marcado pela multiplicidade de experiências a uma descrição homogênea e prescritiva, que mina a autonomia e a participação efetiva das pessoas em seus processos de cuidado (TENÓRIO; PRADO, 2016TENÓRIO, L.; PRADO, M. A. M. As contradições da patologização das identidades trans e argumentos para a mudança de paradigma. Revista Periódicus, v. 1, n. 5, p. 41-55, 2016. ; ROCON , 2016ROCON, P. C. et al. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v.21, n.8, p.2517-2526, 2016. ; SOUSA; IRIART, 2018SOUSA, D.; IRIART, J. “Viver dignamente”: necessidades e demandas de saúde de homens trans em Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.34, n.10, e00036318, 2018. ).
- 2A. Costa-Val: idealização e desenho do estudo, transcrição e análise das entrevistas, revisão bibliográfica, escrita do artigo e aprovação da versão final. M. de S. Manganelli e V. M. F. de Morais: realização, transcrição e análise das entrevistas, revisão bibliográfica, escrita do artigo e aprovação da versão final. H. A. C. Prais: análise das entrevistas, revisão bibliográfica, revisão crítica do artigo e aprovação da versão final. G. M. Ribeiro: mapeamento do campo, realização das entrevistas, revisão crítica do artigo e aprovação da versão final.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Jul 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
27 Abr 2021 - Revisado
06 Maio 2021 - Aceito
09 Jul 2021