Uso de psicodélicos com fins terapêuticos: considerações bioéticas

Use of psychedelics for therapeutic purposes: bioethical considerations

Ivan Rennó Brochetto Marcelo Dalla Vecchia Sobre os autores

Resumo

O artigo apresenta os resultados obtidos em uma pesquisa bibliográfica que objetivou compreender aspectos bioéticos envolvidos no uso de psicodélicos com fins terapêuticos presentes nas publicações nacionais e internacionais acerca do tema. Pelo Portal Periódicos CAPES, a partir de critérios de inclusão/exclusão, foram selecionados 28 artigos, que foram analisados tomando como base premissas de escolas de bioética latino-americanas. Os resultados foram apresentados em três eixos de discussão, organizados a partir dos temas e princípios bioéticos: liberdade de investigação científica, que discute os entraves e suas implicações para a ciência psicodélica; consentimento, autonomia e respeito à vulnerabilidade, que discute segurança; e igualdade, justiça e equidade, que discute o acesso. Constata-se que questões bioéticas precisam ser levadas em conta de modo central, para que o uso de psicodélicos com fins terapêuticos seja acessível, produza benefícios e proteja potenciais pacientes e demais pessoas de eventuais danos.

Palavras-Chave:
Terapia com psicodélicos; Alucinógenos; Usuários de drogas; Bioética

Abstract

The article presents the results obtained in a bibliographical research that aimed to understand bioethical aspects involved in the use of psychedelics for therapeutic purposes in national and international publications on the topic. Through the CAPES Periodicals Portal, based on inclusion/exclusion criteria, 28 articles were selected and analyzed based on premises from Latin American bioethics schools. The results were presented in three axes of discussion, organized in themes and bioethical principles: freedom of scientific investigation, which discusses the obstacles and their implications for psychedelic science; consent, autonomy and respect for vulnerability, which discusses security; and equality, justice and equity, which discusses access. It appears that bioethical issues need to be taken into account in a central way, so that the use of psychedelics for therapeutic purposes is accessible, produces benefits and protects potential patients and other individuals from possible harm.Resumo: O artigo apresenta os resultados obtidos em uma pesquisa bibliográfica que objetivou compreender aspectos bioéticos envolvidos no uso de psicodélicos com fins terapêuticos presentes nas publicações nacionais e internacionais acerca do tema. Pelo Portal Periódicos CAPES, a partir de critérios de inclusão/exclusão, foram selecionados 28 artigos, que foram analisados tomando como base premissas de escolas de bioética latino-americanas. Os resultados foram apresentados em três eixos de discussão, organizados a partir dos temas e princípios bioéticos: liberdade de investigação científica, que discute os entraves e suas implicações para a ciência psicodélica; consentimento, autonomia e respeito à vulnerabilidade, que discute segurança; e igualdade, justiça e equidade, que discute o acesso. Constata-se que questões bioéticas precisam ser levadas em conta de modo central, para que o uso de psicodélicos com fins terapêuticos seja acessível, produza benefícios e proteja potenciais pacientes e demais pessoas de eventuais danos.

Keywords:
Psychedelic Therapy; Psychedelics; Hallucinogen; Drug Users; Bioethics

Nos últimos anos, é notório um crescente número de pesquisas sobre o potencial terapêutico dos psicodélicos – substâncias também conhecidas como alucinógenas –, após décadas de estagnação, devido ao sensacionalismo acerca de seu uso não controlado na década de 1960, que culminou na sua proibição (Johnson; Richards; Griffths, 2008; Letheby, 2016). Apesar dos desafios, essas pesquisas têm buscado desenvolver e validar modelos de tratamento que recorrem a essas substâncias devido ao potencial de inovação nos tratamentos em saúde mental, uma vez que os resultados são promissores (Belouin; Henningfield, 2018; Carhart-Harris et al., 2018; Hartogsohn, 2016; Perry, 2016). Porém, ainda há barreiras regulatórias e legais para o uso dessas substâncias com fins terapêuticos e para a liberdade de investigação científica na área, afetando, inclusive, o acesso aos progressos da ciência para quem não encontra alternativas de tratamento para alívio do sofrimento (Belouin; Henningfield, 2018).

Ainda que com um propósito de proteger a saúde pública das consequências do uso social, a proibição dos psicodélicos não diminuiu o uso prejudicial em contextos menos seguros e controlados (Belouin; Henningfield, 2018; Bragazzi, 2018; Rucker; Iliff; Nutt, 2017). Pelo contrário, principalmente se forem considerados os danos sociais, o controle das drogas gera mais danos do que as drogas em si, uma vez que há um mercado ilegal que "utiliza trabalho escravo, tráfico humano, exploração sexual e assassinatos motivados por dinheiro" (Nutt; King; Nichols, 2013; Sessa, 2018, p. 555, tradução nossa). No contexto brasileiro, as políticas proibicionistas levaram à superlotação dos presídios com pessoas presas por tráfico de drogas, mas que, muitas vezes, são só usuárias (Pereira et al., 2013). Sem uma regulação adequada, as drogas tornadas ilícitas em circulação têm sua qualidade diminuída, ampliando a vulnerabilidade de pessoas possivelmente já vulneradas pelo uso da droga e outras condições (Pereira et al., 2013).

Além da baixa qualidade, outro fator que amplia a vulnerabilidade, potencializada por essas políticas, é o risco de se adquirir substâncias adulteradas, impuras ou falsamente rotuladas (Andersson; Persson; Kjellgren, 2017). Ainda, ao dificultar o uso mais seguro de drogas, essas políticas limitam o acesso às estratégias e informações que garantem a saúde de usuários (Sessa, 2018). Ferem-se seus direitos à informação e à saúde, expondo-os a riscos evitáveis, já que é sabido que os riscos do uso de psicodélicos são baixos em contextos controlados (Letheby, 2016). Mesmo assim, muitas pessoas vulneradas devido a enfermidades como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), transtorno obsessivo compulsivo, cefaleia em salvas e enxaqueca, arriscam-se clandestinamente em busca do potencial terapêutico dessas substâncias (Andersson; Persson; Kjellgren, 2017; Danforth et al., 2016; Majic; Schmidt; Gallinat, 2015; Perry, 2016; Sessa, 2018).

As políticas proibicionistas afetaram também as práticas de uso ritual de psicodélicos, que somente em alguns lugares foram legitimadas com base na liberdade religiosa (Belouin; Henningfield, 2018; Blainey, 2015). Essas práticas, assim como as pesquisas científicas clínicas, buscam o potencial terapêutico dessas substâncias, mesmo tomando como base racionalidades terapêuticas não-biomédicas (Belouin; Henningfield, 2018). No entanto, a liberdade de investigação científica desse potencial permanece obstruída. Assim, esboça-se um cenário insustentável que aponta para a necessidade de discutir formas de lidar com o uso dessas substâncias, em direção a uma alternativa ao proibicionismo. É imprescindível uma reflexão ética que vá além de segurança e eficácia, para que não se reproduza uma lógica injusta no acesso a potenciais benefícios, o que poderia gerar mais problemas do que soluções.

Em relação às questões de segurança e eficácia, após avanços nas discussões éticas, foram desenvolvidas políticas de regulação de pesquisas envolvendo humanos e de desenvolvimento de medicamentos, estabelecidas por instituições como a U.S Food and Drug Administration (FDA) – órgão do governo estadunidense de controle de alimentos e medicamentos – que frequentemente estabelece os padrões metodológicos adotados no resto do mundo (Bonson, 2018).

Em época anterior ao estabelecimento dessas regulações, da década de 1950 até meados da década de 1960, publicaram-se mais de mil artigos científicos abordando o uso clínico da dietilamida do ácido lisérgico (LSD) (Nutt; King; Nichols, 2013). Naquele período, para a comercialização de novos medicamentos nos EUA, o Food and Drug Cosmetic Act de 1938 (FDCA) – conjunto de leis sobre segurança do uso de drogas – havia estabelecido que, mesmo não sendo necessário avaliar a toxicidade animal antes de testar em humanos, era necessário que as companhias farmacêuticas submetessem dados que demonstrassem segurança e eficácia da droga para a FDA, sob uma new drug application (NDA) (Bonson, 2018). Contudo, se fosse para uso experimental por peritos, o FDCA permitia distribuir amostras pelo país, mesmo antes de aprovar uma NDA. Sob esse sistema de distribuição, a Sandoz Pharmaceuticals – companhia responsável pela patente do LSD – enviou amostras da substância para que psiquiatras nos EUA investigassem suas aplicações (Belouin; Henningfield, 2018; Bonson, 2018). Assim, as pesquisas eram realizadas seguindo as indicações de uso da Sandoz, mas psiquiatras testavam a droga em qualquer grupo de pacientes e, a partir de seus próprios julgamentos, determinavam a eficácia do tratamento (Bonson, 2018).

Devido às preocupações sobre a qualidade dos estudos clínicos patrocinados por indústrias farmacêuticas, foi promulgada a emenda Kefauver-Harris, de 1962, ao FDCA. Com ela, passou a ser necessário que a FDA determinasse a eficácia para uma indicação médica específica antes da comercialização do medicamento (Bonson, 2018). O rigor científico dos estudos passou a ser mais valorizado, com o estudo duplo-cego controlado randomizado como padrão-ouro. Nesse desenho metodológico, pacientes recebem aleatoriamente o tratamento experimental ou placebo, sem que pesquisadores e pacientes saibam, permanecendo "cegos" até o fim do estudo. Assim, com análises estatísticas sofisticadas e amplas amostras visando aumentar o intervalo de confiança dos resultados, teoricamente seria possível avaliar objetivamente a eficácia de uma droga. A partir da comparação entre as análises estatísticas dos grupos controle e experimental, deduz-se que qualquer diferença existente se deve ao efeito da droga, já que ambos os grupos foram submetidos aos mesmos fatores extrafarmacológicos que poderiam alterar os resultados do tratamento (Oram, 2014).

Porém, esse rigor metodológico não garante que todas as questões éticas sejam discutidas sistematicamente. Para isso, é pertinente utilizar ferramentas como a bioética como base de reflexão. Definida como "[...] uma ética aplicada às Ciências da Vida [...]" (Nery Filho; Lorenzo; Diz, 2014, p. 128), tem como uma de suas atribuições deliberar sobre questões do desenvolvimento científico e tecnológico, levando em conta também, em sua nova agenda, questões "[...] sanitárias, sociais e ambientais [...]" (Garrafa; Manchola-Castillo, 2017, p. 16). Politizada, em contraposição a uma bioética que lidava exclusivamente com questões biotecnocientíficas, essa agenda trata de questões relevantes para países periféricos, como o acesso a recursos de saúde, inclusão social, questões ambientais etc. (Garrafa; Manchola-Castillo, 2017).

Com isso, as reflexões aqui propostas partem principalmente de ideias fundamentadas em duas das principais escolas brasileiras e latino-americanas de bioética anti-hegemônica: a Bioética de Intervenção e a Bioética de Proteção. A primeira, comprometida com populações mais vulneráveis, propõe instrumentalizar a discussão bioética para solucionar impasses, visando a uma sociedade mais justa (Cruz; Trindade, 2006; Garrafa, 2005). Para isso, propõe "categorias como responsabilidade, [...] prevenção (de possíveis danos e iatrogenias), precaução (frente ao desconhecido), prudência (com relação aos avanços e 'novidades') e proteção (dos excluídos sociais, dos mais frágeis e desassistidos)", categorias essas aqui utilizadas (Garrafa, 2005, p. 130). A Bioética de Proteção (BP) foi entendida a princípio como ética aplicada à saúde pública, visto que lida com questões de justiça no acesso a recursos escassos. Propõe-se uma ferramenta para resolver conflitos em saúde pública, sendo a proteção de populações pelo Estado um pressuposto para considerar legítimo um programa sanitário (Schramm, 2017). Parte da concepção de que a vulnerabilidade é uma condição humana, compartilhada por todos, mas que diversas condições podem acentuá-la, como enfermidades, uso de drogas, discriminação, exclusão social, entre outras. Assim, caracteriza-se uma situação de vulnerabilidade específica, ou seja, de vulnerado, que se destaca de uma condição comum e implica a necessidade de proteção pelo Estado (Pereira et al., 2013). Tais noções da BP são pilares para as discussões aqui feitas.

Em vista disso, esta pesquisa busca investigar questões éticas relativas ao uso de psicodélicos com fins terapêuticos e, para tanto, utilizou-se a metodologia de revisão sistemática (Costa; Zoltowski, 2014). Neste artigo, são apresentadas algumas das dificuldades das pesquisas com psicodélicos e colocadas discussões bioéticas que podem servir de orientação para lidar com o uso de psicodélicos com fins terapêuticos.

Metodologia

A busca por artigos para o desenvolvimento da revisão sistemática foi realizada de abril a junho de 2018 no Portal de Periódicos da CAPES, utilizando o termo ethics e os termos entheogen, hallucinogen e psychedelic, sendo cada um dos três últimos termos agrupados ao termo therapy, ou ao termo treatment, ou ao termo psychotherapy. Quando havia, as variações de sufixo foram consideradas. No levantamento do material, as buscas foram feitas na língua portuguesa e inglesa, porém não foram encontrados artigos sobre o tema usando termos em português.

Foram incluídos artigos: (1) resultantes de pesquisa, (2) revisados por pares, (3) que abordassem questões éticas relativas às pesquisas sobre uso de psicodélicos com fins terapêuticos, (4) publicados entre 2006 e 2018, (5) relativos a pesquisas com seres humanos, e (6) com texto completo disponível. Durante a leitura dos 843 resumos encontrados, 89 foram pré-selecionados e, destes, a partir dos critérios citados, foram incluídos 22 resumos. Outros 21 resumos, que geraram dúvidas quanto à inclusão, foram avaliados por pares, que atuaram como juízes, sendo mantidos 10 resumos. Ao total, foram selecionados 32 artigos em inglês. Durante a coleta e análise de dados dos artigos selecionados, quatro foram excluídos por não estarem coerentes com os objetivos e critérios de inclusão. Esse processo foi ilustrado na Figura 1.

Figura 1
Fluxograma da escolha dos artigos.

Resultados e Discussão

Para uma melhor apresentação, os resultados foram estruturados em três eixos de discussão e análise, organizados a partir de temas bioéticos. O primeiro eixo reúne questões relativas à liberdade de investigação científica, de importância reconhecida pela bioética. O segundo aborda consentimento, autonomia e respeito à vulnerabilidade, princípios bioéticos que devem ser considerados para garantir a segurança no uso de psicodélicos. Já o terceiro eixo compreende discussões sobre acesso aos psicodélicos com fins terapêuticos, amparadas nos princípios de igualdade, justiça e equidade.

Liberdade de investigação científica: os entraves e suas implicações para a ciência psicodélica Obstáculos metodológicos das pesquisas pré-proibicionistas

Com as mudanças nas políticas de regulação das pesquisas citadas, vieram avanços nos padrões científicos biomédicos e na proteção de participantes de pesquisas que evitaram práticas antiéticas comuns à época (Bonson, 2018BONSON, K. R. Regulation of human research with LSD in the United States (1949-1987). Psychopharmacology. Berlim, v. 235, n. 2, p. 591-604, nov 2018.). Contudo, a Emenda Kefauver-Harris, de 1962, trouxe a exigência de um método cujo pressuposto é a ação diretamente biológica das terapias medicamentosas, dificultando a testagem de tratamentos que dependiam de fatores psicológicos. Essa exigência gerou obstáculos para demonstrar a eficácia do uso do LSD na psicoterapia, levando os pesquisadores a se concentrarem no rigor científico do desenho de seu estudo clínico, em detrimento do método terapêutico propriamente dito, prejudicando o desenvolvimento das pesquisas sobre os resultados das intervenções (Oram, 2014).

Na psicoterapia com LSD, a substância era entendida como uma ferramenta sem efeitos terapêuticos intrínsecos, mas que, numa relação específica entre paciente e terapeuta, funcionava como catalisador de estados de consciência ou experiências que produziam impacto psicológico e, dependendo da habilidade do terapeuta, podiam ser utilizadas para fins terapêuticos (Oram, 2014). Essa complexidade, que envolve diversos elementos extrafarmacológicos, criava uma dificuldade de reprodução em um grupo controlado “cego”. Além disso, era um desafio desenhar um estudo mantivesse o paciente e o investigador cegos, uma vez que os efeitos do LSD são notáveis, podendo enviesar os resultados e aumentar os efeitos da substância devido às expectativas criadas (Oram, 2014; Rucker; Iliff; Nutt, 2017). Atualmente, para contornar essa questão, sugere-se recorrer a participantes sem experiências com psicodélicos ou o uso do placebo ativo, ou seja, baixas doses da mesma droga ou outras com efeitos similares, mas sem efeitos terapêuticos, apesar de cada estratégia trazer problemas específicos (Johnson; Richards; Griffths, 2008; Rucker; Iliff; Nutt, 2017). Pesquisadores já apontaram que a metodologia dos estudos duplo-cego controlados é inapropriada para pesquisas com LSD, julgando não ser possível criar um desenho de estudo que mantenha o mascaramento (Bonson, 2018BONSON, K. R. Regulation of human research with LSD in the United States (1949-1987). Psychopharmacology. Berlim, v. 235, n. 2, p. 591-604, nov 2018.). Esse tipo de estudo era apropriado para avaliar a eficácia de ansiolíticos, antibióticos e antidepressivos, as chamadas “pílulas mágicas”, que – em tese – não dependiam do contexto nem de habilidade profissional para serem eficazes (Oram, 2014). Além disso, as investigações com LSD aliado à psicoterapia traziam outras complexidades na avaliação da eficácia: (a) não havia consenso sobre os procedimentos terapêuticos e suas teorias de base; (b) nem sobre a necessidade de controlar as variáveis psicológicas, já que estas faziam parte do tratamento com LSD, e (c) a efetividade e competência do terapeuta são variáveis de difícil aferição (Oram, 2014; Phelps, 2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.).

Subsequentemente, a importância do contexto passou a ser considerada (Carhart-Harris ., 2018CARHART-HARRIS, R. L. et al. Psychedelics and the essential importance of context. J Psychopharmacol, Oxford, v. 32, n. 7, p. 725-731, jul 2018.). Nesse sentido, Timothy Leary introduziu em 1963 o conceito de set and setting, em que set abrange os fatores psicológicos da personalidade, a preparação, a expectativa e a intenção da pessoa com a experiência; e setting abrange os aspectos ambientais do entorno físico, social e cultural (Hartogsohn, 2016HARTOGSOHN, I. Set and setting, psychedelics and the placebo response: an extra-pharmacological perspective on psychopharmacology. J Psychopharmacol, Oxford, v. 30, n. 12, p. 1259-1267, dez 2016.). Outros autores ainda incluem ao set a técnica utilizada para orientação durante a sessão com o psicodélico e a concepção do guia ou do terapeuta sobre a experiência com a droga (Phelps, 2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.). Apesar de ser de extrema importância para a pesquisa sobre o uso de psicodélicos, essa teoria foi marginalizada com a ascensão dos estudos controlados randomizados, visto que seus protocolos padronizados eram considerados conflitantes com os princípios do set and setting, trazendo mais obstáculos para as pesquisas da época (Hartogsohn, 2016HARTOGSOHN, I. Set and setting, psychedelics and the placebo response: an extra-pharmacological perspective on psychopharmacology. J Psychopharmacol, Oxford, v. 30, n. 12, p. 1259-1267, dez 2016.). Atualmente, tais princípios são referência na retomada das pesquisas psicodélicas, como base para o cuidado em emergências com psicodélicos em festivais e, recentemente, para demonstrar os efeitos antagônicos relatados pelas pesquisas com LSD nas décadas de 1950 e 1960 (Danforth ., 2016DANFORTH, A. L. et al. MDMA-assisted therapy: a new treatment model for social anxiety in autistic adults. Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry. Oxford, v. 64, p. 237-249, jan 2016.; Hartogsohn, 2016HARTOGSOHN, I. Set and setting, psychedelics and the placebo response: an extra-pharmacological perspective on psychopharmacology. J Psychopharmacol, Oxford, v. 30, n. 12, p. 1259-1267, dez 2016.).

Entraves decorrentes do proibicionismo à investigação científica

Simultaneamente às dificuldades para cumprir com as exigências das novas regulações, o uso de psicodélicos se generalizou e, com isso, acumularam-se evidências de casos em que seus efeitos psicológicos foram considerados nocivos e, apesar de raros, os casos trágicos foram intensamente explorados pela mídia em divulgações sensacionalistas (Bonson, 2018BONSON, K. R. Regulation of human research with LSD in the United States (1949-1987). Psychopharmacology. Berlim, v. 235, n. 2, p. 591-604, nov 2018.; Carhart-Harris ., 2018CARHART-HARRIS, R. L. et al. Psychedelics and the essential importance of context. J Psychopharmacol, Oxford, v. 32, n. 7, p. 725-731, jul 2018., Rucker; Iliff; Nutt, 2017). Esse movimento criou uma descrença em relação aos psicodélicos que era consequência mais do apelo midiático do que das propriedades das substâncias em si (Blainey, 2015BLAINEY, M. G. Forbidden therapies: Santo Daime, ayahuasca, and the prohibition of entheogens in Western society. J Relig Health. Nova York, v. 54, n. 1, p. 287-302, fev 2015.). Com isso, a Sandoz deixou de investir em pesquisas com LSD e cientistas e o governo se distanciaram dos psicodélicos devido às suas associações negativas (Bonson, 2018BONSON, K. R. Regulation of human research with LSD in the United States (1949-1987). Psychopharmacology. Berlim, v. 235, n. 2, p. 591-604, nov 2018.; Rucker; Iliff; Nutt, 2017).

Foram difundidos mitos e informações infundadas para manipular a opinião pública e legitimar uma mudança política que levou à classificação dos psicodélicos como Schedule I pela UN Convention on Drugs de 1967 (Blainey, 2015BLAINEY, M. G. Forbidden therapies: Santo Daime, ayahuasca, and the prohibition of entheogens in Western society. J Relig Health. Nova York, v. 54, n. 1, p. 287-302, fev 2015.; Carhart-Harris ., 2018CARHART-HARRIS, R. L. et al. Psychedelics and the essential importance of context. J Psychopharmacol, Oxford, v. 32, n. 7, p. 725-731, jul 2018.; Rucker; liff; Nutt, 2017). Essa convenção classificou legalmente os psicodélicos “[...] como tendo nenhum uso médico e potencial máximo de danos e de dependência.” (Rucker; Iliff; Nutt, 2017, p. 6, tradução nossa). Com a impossibilidade de prescrevê-los, o uso médico foi interrompido e as pesquisas reduzidas (Rucker; Iliff; Nutt, 2017). Apesar de as pesquisas não terem sido totalmente proibidas, o acesso às substâncias foi inviabilizado pelas barreiras regulatórias, pois, sendo classificadas como Schedule I, sofrem exigências burocráticas e de segurança que aumentam o custo dos estudos, já elevados (Mucke, 2016MUCKE, H. A. M. From psychiatry to flower power and back again: the amazing story of lysergic acid diethylamide. Assay Drug Dev Technol. Larchmont, v. 14, n. 5, p. 276-281, jul 2016.; Rucker; Ilif; Nutt, 2017). Além disso, sendo ilegais, presumia-se que eram perigosas, ideia que era um entrave para financiadores e causava receio nos comitês de ética das universidades e hospitais, dificultando o processo de aprovações (Rucker; Iliff; Nutt, 2017RUCKER, J. J. H.; ILIFF, J.; NUTT, D. J. Psychiatry & the psychedelic drugs. Past, present & future. Neuropharmacology, Oxford, v. 142, p. 1-19, nov 2017.).

Foi construído, então, um estigma que afetou profundamente o desenvolvimento das pesquisas, desde a quantidade de participantes até a reputação dos profissionais envolvidos, prejudicando o avanço de pesquisas em neurociências e de tratamentos psiquiátricos (Nutt; King; Nichols, 2013; Perry, 2016PERRY, J. Mending Invisible Wounds: The Efficacy and Legality of MDMA-Assisted Psychotherapy in United States’ Veterans Suffering with Post-Traumatic Stress Disorder. J Law Health, Boston, v. 29, p. 272-301, dez 2016.). Com todas as dificuldades para se pesquisar, era improvável demonstrar o potencial de uso médico que a classificação em Schedule I indicava não existir, criando uma lógica circular que impediu pesquisas durante décadas (Nutt; King; Nichols, 2013NUTT, D. J.; KING, L. A.; NICHOLS, D. E. Effects of Schedule I drug laws on neuroscience research and treatment innovation. Nat Rev Neurosci, Londres, v. 14, n. 1, p. 577-585, ago 2013.).

Retomada das pesquisas

A partir de questionamentos dos benefícios e danos da chamada “guerra às drogas”, que combate drogas específicas por razões econômicas e políticas, e não de saúde, o interesse científico pelos psicodélicos tem crescido desde o início do século (Nutt; King; Nichols, 2013; Rucker; Iliff; Nutt, 2017). Com o esforço de cientistas e instituições sem fins lucrativos, que têm se dedicado profundamente ao desafio de retomar essas pesquisas, têm sido utilizadas tecnologias de neuroimagem e padrões metodológicos mais rigorosos do que os empregados nas pesquisas pré-proibicionistas (Bonson, 2018BONSON, K. R. Regulation of human research with LSD in the United States (1949-1987). Psychopharmacology. Berlim, v. 235, n. 2, p. 591-604, nov 2018.; Phelps, 2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.). Mesmo não sendo o desenho ideal para essas investigações, os estudos controlados randomizados têm sido considerados viáveis e válidos e, mesmo que o interesse comercial pareça improvável, há evidências indicando que pelo menos existe (Rucker; Iliff; Nutt, 2017).

Para retomar as pesquisas evitando entraves morais, as instituições que as conduzem escolheram as substâncias menos estigmatizadas e com maior probabilidade de efetividade nos tratamentos (Phelps, 2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.). Seguindo diretrizes de segurança para se precaver da ocorrência de eventos adversos que, considerando o cenário desfavorável, são mais do que necessárias, é possível investigar as aplicações terapêuticas dessas substâncias de maneira segura (JohnsonJOHNSON, M. W.; RICHARDS, W. A.; GRIFFTHS, R. R. Human hallucinogen research: guidelines for safety. J Psychopharmacol. Oxford, v. 22, n. 6, p. 603-620, ago. 2008.; Richards; Griffths, 2008). Assim, pesquisas têm tido resultados promissores e, com isso, os tratamentos que utilizam psicodélicos poderão ser uma via de acesso à saúde para pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas e com condições como ansiedade, depressão, cefaleia em salvas ou enxaqueca, que não conseguem se tratar (AnderssonANDERSSON, M.; PERSSON, M.; KIELLGREN, A. Psychoactive substances as a last resort: a qualitative study of self-treatment of migraine and cluster headaches. Harm Reduct J. Londres, v. 14, n. 1, p. 60-70, set 2017.; Persson; Kjellgren, 2017; Carhart-Harris ., 2018CARHART-HARRIS, R. L. et al. Psychedelics and the essential importance of context. J Psychopharmacol, Oxford, v. 32, n. 7, p. 725-731, jul 2018.; Majic; Schmidt; Gallinat, 2015; Rucker; Iliff; Nutt, 2017). O tratamento de transtorno obsessivo compulsivo com psilocibina, por exemplo, também já foi estudado (Rucker; Iliff; Nutt, 2017). No entanto, o uso de psicodélicos é contraindicado para pessoas que usam continuamente certos psicofármacos como inibidores seletivos de recaptação da serotonina, grávidas, com histórico familiar ou pessoal de esquizofrenia, transtornos psicóticos e transtorno bipolar, o que implica a necessidade de seleção cuidadosa de participantes dos estudos clínicos (Johnson; Richards; Griffths, 2008; Rucker; Iliff; NuttNUTT, D. J.; KING, L. A.; NICHOLS, D. E. Effects of Schedule I drug laws on neuroscience research and treatment innovation. Nat Rev Neurosci, Londres, v. 14, n. 1, p. 577-585, ago 2013., 2017). Em contextos não clínicos que também utilizam psicodélicos, como cerimônias religiosas ou outras intervenções terapêuticas, também é necessária avaliação minuciosa de participantes como precaução e prevenção de riscos.

Consentimento, autonomia e respeito à vulnerabilidade: segurança na ciência psicodélica

Nenhum tipo de pesquisa científica e intervenção deve ser realizado sem o consentimento prévio da pessoa envolvida (Phelps, 2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.). Se há consentimento, é necessário garantir que a pessoa tenha o direito de retirá-lo sem perdas e impedimentos (Johnson; Richards; Griffths, 2008; Phelps, 2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.). Além disso, para consentir, é preciso que ela seja informada adequadamente e esteja isenta de restrições à liberdade de escolha, isto é, capaz de exercer sua autonomia (Nery Filho; Lorenzo; Diz, 2014NERY FILHO, A.; LORENZO, C.; DIZ, F. Usos e usuários de substâncias psicoativas: considerações bioéticas. In: BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Prevenção dos problemas relacionados ao uso de drogas: capacitação para conselheiros e lideranças comunitárias. Brasília: SENAD-MJ, 2014. p. 125-141.; Phelps, 2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.).

Ao levar em conta a vulnerabilidade humana, que caracteriza todos a partir da suscetibilidade de ser ferido na relação com o outro, e que pode ser agravada devido a várias condições, exige-se responsabilidade de participantes de pesquisas, cerimônias e intervenções terapêuticas que não se limita à obtenção do consentimento (Nery Filho; Lorenzo; Diz, 2014; Neves, 2006NEVES, M. P. Sentidos da vulnerabilidade: característica, condição, princípio. Rev Brasileira de Bioética. Brasília, v. 2, n. 2, p. 157-172, set 2006.). Com isso, não se deve considerar que pessoas saudáveis, por definição, estão em capacidade plena de exercer a autonomia e de exprimir consentimento, assim como muitas vezes se pressupõe na vertente principialista da bioética (Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Rev Bioet. Brasília, v. 13, n, 1, p. 125-134, jan 2005.). Por exemplo, autores chamam atenção para o fato de que há evidências de que as pessoas podem ter suas capacidades e sua autoeficácia percebida diminuídas devido à depressão, “[...] especialmente quando estão desesperadas pela cura.” (Zhang; Harris; HoO, 2016ZHANG, M. W.; HARRIS, K. M.; HO, R. C. Is off-label repeat prescription of ketamine as a rapid antidepressant safe? Controversies, ethical concerns, and legal implications. BMC Med Ethics. Londres, v. 17, n. 1, p. 1-8, jan 2016., p. 5). Além de condições de saúde vulneradoras, o nível socioeconômico e a escolaridade também podem afetar a autonomia e a capacidade de consentir (Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Rev Bioet. Brasília, v. 13, n, 1, p. 125-134, jan 2005.). Nesses casos, pode ser necessário consultar a terceiros, além da pessoa, para a proteção dos sujeitos vulnerados (Nery Filho; Lorenzo; Diz, 2014).

Quando se trata de psicodélicos, há algumas especificidades. Por exemplo, pode haver dificuldades ao informar sobre seus efeitos por serem difíceis de descrever e por variarem muito, dependendo do contexto e da pessoa (Johnson; Richards; Griffths, 2008; Letheby, 2016LETHEBY, C. The epistemic innocence of psychedelic states. Conscious Cogn. San Diego, v. 39, p. 28-37, jan. 2016.). Também, ao ingerir substâncias psicodélicas, produz-se um estado de sugestionabilidade aumentada que deixa a pessoa mais suscetível ao contato com outras e faz com que a obtenção do consentimento seja mais complexa (Das ., 2016DAS, S. et al. Lysergic acid diethylamide: a drug of ‘use’? Ther Adv Psychopharmacol. Londres, v. 6, n. 3, p. 214-228, mar 2016.; Hartogsohn, 2016HARTOGSOHN, I. Set and setting, psychedelics and the placebo response: an extra-pharmacological perspective on psychopharmacology. J Psychopharmacol, Oxford, v. 30, n. 12, p. 1259-1267, dez 2016.; Phelps, 2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.; Talin; Sanabria, 2017TALIN, P.; SANABRIA, E. Ayahuasca’s entwined efficacy: An ethnographic study of ritual healing from ‘addiction’. Int J Drug Policy. Liverpool, v. 44, p. 23-30, abr 2017.). Há ainda o risco de que as informações dadas a participantes em pesquisas duplo-cego sobre os efeitos das substâncias afetem o “cegamento”, facilitando a identificação dos efeitos e interferindo nos resultados, em razão da sugestão (Johnson; Richards; Griffths, 2008). Mesmo assim, a segurança do participante deve ser prioridade, pois essas informações podem ajudá-lo a lidar com os efeitos (Johnson; Richards; Griffths, 2008). É pertinente também informar, no processo de obtenção do consentimento, sobre os benefícios e riscos epistêmicos dos estados induzidos por psicodélicos (Majic; Schmidt; Gallinat, 2015MAJIĆ, T.; SCHMIDT, T. T.; GALLINAT, J. Peak experiences and the afterglow phenomenon: when and how do therapeutic effects of hallucinogens depend on psychedelic experiences? J Psychopharmacol. Oxford, v. 29, n. 3, p. 241-253, mar 2015.).

Acompanhamento de pessoas que fazem uso de psicodélicos

As especificidades do uso de psicodélicos trazem outras responsabilidades relativas ao acompanhamento de participantes de pesquisas e cerimônias, um dos fatores para garantir a segurança. Por exemplo, no Santo Daime, religião brasileira que recorre, em seus rituais, ao consumo da bebida psicoativa chamada Daime, também nomeada Ayahuasca em outros contextos, há fiscais treinados para cuidar das pessoas que passem por desconfortos (Blainey, 2015BLAINEY, M. G. Forbidden therapies: Santo Daime, ayahuasca, and the prohibition of entheogens in Western society. J Relig Health. Nova York, v. 54, n. 1, p. 287-302, fev 2015.; Talin; Sanabria, 2017TALIN, P.; SANABRIA, E. Ayahuasca’s entwined efficacy: An ethnographic study of ritual healing from ‘addiction’. Int J Drug Policy. Liverpool, v. 44, p. 23-30, abr 2017.). Em contextos clínicos, o apoio emocional ou psicológico durante o uso de psicodélicos é exigência ética, mesmo que haja diferentes opiniões sobre como esse deve ser fornecido (Rucker; Iliff; Nutt, 2017).

Alguns pesquisadores consideram antiético administrar LSD ao paciente sem psicoterapia extensiva e preparação, já que essas medidas têm sido tomadas como necessárias para a segurança e eficácia do tratamento (Oram, 2014). Esses procedimentos são realizados por profissionais, mais comumente chamadas de terapeutas, que têm como função preparar o participante para a sessão assistida pelo psicodélico, dar suporte durante a sessão e ajudá-lo na integração dos conteúdos psicológicos emergentes no tratamento (Phelps, 2017). Contudo, não há consenso sobre a quantidade de sessões preparatórias e de acompanhamento após a sessão assistida pelo psicodélico. Uma posição defende que se deve fornecer pelo menos uma sessão preparatória e uma sessão de acompanhamento, sugerindo que o apoio seja mínimo, já que a maioria dos profissionais de saúde prioriza o custo-benefício dos tratamentos (Rucker; Iliss; Nutt, 2017). Porém, se esse apoio mínimo diminuir os efeitos benéficos aumentando riscos, pode-se contrariar princípios bioéticos, mesmo que em favor do acesso, visto que “gozar da melhor saúde que se possa alcançar constitui um dos direitos fundamentais de qualquer ser humano [...]” (UNESCO, 2005, p. 8) e

Na aplicação e no avanço dos conhecimentos científicos, da prática médica e das tecnologias que lhe estão associadas, devem ser maximizados os efeitos benéficos directos e indirectos para os doentes, os participantes em investigações e os outros indivíduos envolvidos, e deve ser minimizado qualquer efeito nocivo susceptível de afectar esses indivíduos. (UNESCO, 2005, p. 6).

Há consenso sobre a necessidade de treinamento especializado de terapeutas, pois são necessárias competências e habilidades específicas (Carhart-Harris ., 2018CARHART-HARRIS, R. L. et al. Psychedelics and the essential importance of context. J Psychopharmacol, Oxford, v. 32, n. 7, p. 725-731, jul 2018.). Apesar de ter sido um tema negligenciado nas pesquisas psicodélicas, Phelps (2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.) realizou uma revisão da literatura para construir diretrizes e coligir competências necessárias para o treinamento de terapeutas. Aponta-se a importância de terapeutas saberem colocar-se somente no momento necessário, respeitando e apoiando – e não conduzindo – o processo da participante, postura fundamental dada a suscetibilidade à sugestão, acentuando-se o dever ético de respeito à integridade pessoal. Além disso, a autora sustenta que o profissional deve fazer análise das relações transferenciais e contratransferenciais no processo terapêutico, pois há o risco de perturbar a vivência do paciente e desestabilizá-lo, caso o terapeuta não analise suas reações e personifique papéis a partir dos conteúdos inconscientes do participante, que podem emergir principalmente durante a sessão com o psicodélico. Essa questão também é relevante para os contextos de uso não clínicos, já que há riscos nos processos de transferência amorosa entre participantes e pessoas que conduzem cerimônias (Labate; Cavnar, 2011). Phelps (2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.), a esse respeito, acrescenta ser relevante que terapeutas estejam conscientes das dinâmicas de poder potencialmente presentes na relação com pessoas que se identificam com estratos sub-representados como a população negra e LGBTQ.

Entretanto, é preciso assegurar que o uso de psicodélicos com fins terapêuticos seja realizado por profissionais com capacitação em treinamentos especializados, garantindo a segurança e eficácia da prática, mas sem afetar a liberdade dos usos tradicionais. Uma estratégia sugerida por informantes de uma pesquisa etnográfica no contexto do Santo Daime é a adoção de medidas regulatórias que diferenciem os sets e os settings seguros dos inseguros para o consumo de psicodélicos, podendo servir de orientação para usos em contextos não-clínicos (Blainey, 2015BLAINEY, M. G. Forbidden therapies: Santo Daime, ayahuasca, and the prohibition of entheogens in Western society. J Relig Health. Nova York, v. 54, n. 1, p. 287-302, fev 2015.).

Igualdade, justiça e equidade: acesso na ciência psicodélica

Na clínica, recomenda-se a presença de pelo menos dois monitores durante sessões de uso assistido de psicodélicos, uma mulher e um homem, tanto para evitar deixar o paciente sozinho, quanto para um melhor manejo da transferência (Danforth ., 2016DANFORTH, A. L. et al. MDMA-assisted therapy: a new treatment model for social anxiety in autistic adults. Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry. Oxford, v. 64, p. 237-249, jan 2016.; Johnson; Richards; Griffths, 2008). Porém, há críticas apontando que esse modelo parte da ideia de que a equipe de terapeutas precisa refletir os pais biológicos de participantes e, assim, acaba por reproduzir uma concepção específica de família, sexista e não inclusiva. Além disso, as críticas apontam que esse protocolo não considera as preferências e questões pessoais de pacientes e também questionam se nesse modelo haveria espaço para terapeutas transgêneros ou não binários (Sevelius, 2018). Essa questão evidencia a necessidade de diversidade entre terapeutas e no movimento da ciência psicodélica, que tem sua história construída principalmente por homens brancos de classe média (Phelps, 2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.; Sessa, 2018SESSA, B. The 21st century psychedelic renaissance: heroic steps forward on the back of an elephant. Psychopharmacol. Berlim, v. 235, n. 2, p. 551-560, fev 2018.). Sem diversidade, dificilmente o potencial terapêutico dos psicodélicos em contexto seguro será acessível a todos que possam necessitar.

Mesmo diante de evidências que apontam para eficácia e rapidez muitas vezes ímpares para o alívio de sofrimentos, o uso controlado de psicodélicos é praticamente inacessível a quem poderia dele se beneficiar, sendo as exceções os contextos cerimoniais e de investigação científica (Letheby, 2016LETHEBY, C. The epistemic innocence of psychedelic states. Conscious Cogn. San Diego, v. 39, p. 28-37, jan. 2016.). No modelo de psicoterapia assistida por psicodélicos (PAP), a necessidade de um contexto de proteção intensiva, facilitado por dois profissionais especializados, é enfatizada. Mesmo que sua viabilidade temporal e econômica sejam questionáveis, essa tem sido a norma nos desenhos clínicos (Carhart-Harris ., 2018CARHART-HARRIS, R. L. et al. Psychedelics and the essential importance of context. J Psychopharmacol, Oxford, v. 32, n. 7, p. 725-731, jul 2018.). Assim, como esse modelo dificilmente será reproduzível em serviços de saúde comuns, o acesso ao recurso poderá ser restrito.

Se a comunidade psicodélica se pretende eticamente responsável, mesmo não sendo monolítica devido à divergência de valores, não bastará avaliar somente estudos clínicos (Garrafa, 1998GARRAFA, V. Bioética e ciência: até onde avançar sem agredir. In: COSTA, S. I. F.; OSELKA, G.; GARRAFA, V. (orgs.). Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 99-110.; Sevelius, 2018). Será necessário avaliar também os fins, os usos e as consequências sociais desses estudos, pois a responsabilidade ética se caracterizará quando os benefícios alcançados forem acessíveis a todas as pessoas que necessitem, sem distinção, democraticamente, mesmo sendo um desafio diante dos entraves (Garrafa, 1998GARRAFA, V. Bioética e ciência: até onde avançar sem agredir. In: COSTA, S. I. F.; OSELKA, G.; GARRAFA, V. (orgs.). Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 99-110.).

Custos do tratamento e equidade

Um dos entraves é relativo ao fornecimento do tratamento, pois a PAP tem custos maiores do que os tratamentos tradicionais devido à preparação do contexto, às longas sessões e ao acompanhamento profissional especializado (Carhart-Harris ., 2018CARHART-HARRIS, R. L. et al. Psychedelics and the essential importance of context. J Psychopharmacol, Oxford, v. 32, n. 7, p. 725-731, jul 2018.). Porém, em relação à ação terapêutica, a terapia psicodélica é econômica, visto que poucas sessões são suficientes para resultados potencialmente duráveis, contrastando com os tratamentos tradicionais que necessitam de medicamentos diários, como o tratamento de TEPT (Carhart-Harris ., 2018CARHART-HARRIS, R. L. et al. Psychedelics and the essential importance of context. J Psychopharmacol, Oxford, v. 32, n. 7, p. 725-731, jul 2018.; Danforth ., 2016DANFORTH, A. L. et al. MDMA-assisted therapy: a new treatment model for social anxiety in autistic adults. Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry. Oxford, v. 64, p. 237-249, jan 2016.; Perry, 2016PERRY, J. Mending Invisible Wounds: The Efficacy and Legality of MDMA-Assisted Psychotherapy in United States’ Veterans Suffering with Post-Traumatic Stress Disorder. J Law Health, Boston, v. 29, p. 272-301, dez 2016.). Entretanto, para que o tratamento seja menos custoso, serão necessárias mudanças nas leis que exigem licenças caras e demoradas e praticamente impossibilitam o acesso às substâncias (Nutt; King; Nichols, 2013). No caso da metilenodioximetanfetamina (MDMA) – substância proibida na década de 1980 em processo semelhante aos outros psicodélicos–, há argumentos que sustentam que sua classificação mude de Schedule I para Schedule III, para que seja entendida como tendo baixo potencial de abuso e uso medicinal aceito nos EUA, evitando atrasos burocráticos e possibilitando que veteranos de guerra que sofrem de TEPT tenham acesso aos seus benefícios (Danforth ., 2016DANFORTH, A. L. et al. MDMA-assisted therapy: a new treatment model for social anxiety in autistic adults. Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry. Oxford, v. 64, p. 237-249, jan 2016.; Perry, 2016PERRY, J. Mending Invisible Wounds: The Efficacy and Legality of MDMA-Assisted Psychotherapy in United States’ Veterans Suffering with Post-Traumatic Stress Disorder. J Law Health, Boston, v. 29, p. 272-301, dez 2016.).

Por se tratar de recurso terapêutico com potencial de possibilitar o acesso à saúde, Leivas (2006LEIVAS, P. G. C. Princípios de direito e de justiça na distribuição de recursos escassos. Rev Bioet. Brasília, v.14, n. 1, p. 9-15, 2006.) aponta que o princípio da justiça deve ser acionado, pois a saúde é um direito de todas as pessoas e deve ser cumprido da forma mais abrangente possível – e o Estado tem papel fundamental nessa direção. Segundo o autor, como os recursos para o cumprimento do direito à saúde são escassos, são necessários critérios normativos para distribuição justa. Também será exigida uma análise da reserva do possível, ou seja, de quem será beneficiado mais imediatamente, para que se avalie em que grau esse direito será realizado. Leivas (2006LEIVAS, P. G. C. Princípios de direito e de justiça na distribuição de recursos escassos. Rev Bioet. Brasília, v.14, n. 1, p. 9-15, 2006.) explicita aspectos dessa análise e também um conjunto de fórmulas e “[...] critérios para decisões acerca da concessão ou não de bens e serviços que satisfaçam os direitos sociais, em especial o direito à saúde [...]”, chamado de proporcionalidade em sentido amplo (Leivas, 2006LEIVAS, P. G. C. Princípios de direito e de justiça na distribuição de recursos escassos. Rev Bioet. Brasília, v.14, n. 1, p. 9-15, 2006., p. 10). O autor ainda aponta que é necessário aplicar princípios concretos de justiça que, como refletem a ideia de igualdade, pressupõem que o Estado tem o dever de tratar a todas as pessoas igualmente na distribuição dos recursos de saúde. E nessa questão, a igualdade deve ser entendida a partir do princípio de justiça “a cada um segundo suas necessidades” (Leivas, 2006LEIVAS, P. G. C. Princípios de direito e de justiça na distribuição de recursos escassos. Rev Bioet. Brasília, v.14, n. 1, p. 9-15, 2006., p. 14).

Nesse entendimento de justiça está contido o conceito de equidade que propõe que, para alcançar a igualdade de direitos, as diferenças entre as pessoas devem ser consideradas. E isso implica “[...] que o Estado proporcione mecanismos compensatórios para os menos aquinhoados historicamente [...]” (Garrafa; Manchola-Castillo, 2017GARRAFA, V.; MANCHOLA-CASTILLO, C. Releitura crítica (social e política) do princípio da justiça em bioética. Rev Direitos e Garantias Fundamentais. Vitória, v. 18, n. 3, p. 11-30, dez 2017., p. 19). Na garantia do direito à saúde, a equidade requer que os recursos mais diversos possíveis sejam disponibilizados, visto que pessoas diferentes têm necessidades diferentes. Tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs a Estratégia da OMS sobre Medicina Tradicional (2002-2005)ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos. Paris: UNESCO, 2005., reconhecendo a necessidade de pluralidade de cuidados e envolvendo o máximo de opções possível para países em desenvolvimento (Apud; Romaní, 2016APUD, I.; ROMANÍ, O. Medicine, religion and ayahuasca in Catalonia. Considering ayahuasca networks from a medical anthropology perspective. Int J Drug Policy. Liverpool, v. 39, p. 28-36, out 2016.). Também é reconhecida a necessidade de tratamentos para pessoas que sofrem de condições para as quais os tratamentos tradicionais são ineficazes, têm muitos efeitos colaterais ou são caros demais (Belouin; Henningfield, 2018BELOUIN, S. J.; HENNINGFIELD, J. E. Psychedelics: Where we are now, why we got here, what we must do. Neuropharmacology, Oxford, v. 142, p. 7-19, nov 2018.). Diante disso, fica clara a razão pela qual o uso eticamente responsável de psicodélicos com fins terapêuticos não deve ser restrito a quem pode pagar e, sim, deve ser acessível principalmente às pessoas que já têm seu direito à saúde impedido.

Nesse sentido, é justo que os estudos sobre o potencial terapêutico de psicodélicos foquem em pessoas com condições de saúde “associadas a altos encargos socioeconômicos, morbidade e mortalidade e onde os tratamentos são escassos ou custosos” (Rucker; Iliff; Nutt, 2017, p. 14, tradução nossa). Porém, como muitos que também poderiam se beneficiar dessas substâncias não se encaixam nos critérios para participação dos estudos, há a possibilidade através dos programas de acesso expandido, que podem possibilitar o uso assistencial de medicamentos ainda em fase experimental (Goldim, 2008GOLDIM, J. R. O uso de drogas ainda experimentais em assistência: extensão de pesquisa, uso compassivo e acesso expandido. Rev Panam Salud Publica. Washington, v, 23, n. 3, p. 198-206, ago 2008.).

Acesso e proteção para populações não clínicas

Pesquisas científicas têm demonstrado que, se usados prudentemente, psicodélicos também são úteis como ferramentas seguras de autodesenvolvimento pessoal para populações não clínicas, de modo que sua regulamentação não poderá restringir o uso às populações clínicas (Sessa, 2018SESSA, B. The 21st century psychedelic renaissance: heroic steps forward on the back of an elephant. Psychopharmacol. Berlim, v. 235, n. 2, p. 551-560, fev 2018.). Caso isso ocorra, além de impedir o acesso legal às experiências que têm sido consideradas um direito nato, a regulamentação não protegerá quem usa dos riscos aumentados pelo uso ilegal (Phelps, 2017PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.).

Em razão disso, é imprescindível que a partilha das informações das pesquisas sobre o potencial terapêutico dessas substâncias seja cautelosa e prudente, pois se os riscos não forem devidamente apresentados, essas pessoas estarão ainda mais vulneradas. Visto que o acesso à informação é um direito social, é dever do Estado regulamentar o modo como esse deve ser cumprido (Zancanaro, 2007ZANCANARO, L. Bioética, Direitos Humanos e Vulnerabilidade. In: BARCHIFONTAINE, C. P.; ZOBOLI, E. (orgs.). Bioética, Vulnerabilidade e Saúde. Aparecida: Ideias & Letras, 2007. p. 46-60.). Além disso, a disponibilização de informações sobre os riscos e como evitá-los é uma forma de proteger os que utilizam psicodélicos muitas vezes como uma prática terapêutica que, mesmo que considerada proibida, na perspectiva da antropologia médica pode ser entendida como um agente conectado ao sistema de saúde das sociedades (Apud; Romaní, 2016APUD, I.; ROMANÍ, O. Medicine, religion and ayahuasca in Catalonia. Considering ayahuasca networks from a medical anthropology perspective. Int J Drug Policy. Liverpool, v. 39, p. 28-36, out 2016.).

Independentemente da legitimidade dessa prática, a consideração do princípio da vulnerabilidade leva a entender que as pessoas que usam, pela exposição aos riscos aumentados, encontram-se vulneradas e, por isso, o Estado tem o dever de protegê-las. Além de informar sobre os riscos, sugere-se, por exemplo, oferecer espaços que garantam o acompanhamento por profissionais com capacitação para que a integração da experiência faça sentido para as pessoas, já que essas experiências costumam ser buscadas em culturas que podem não ser familiares para elas (Labate; Cavnar, 2011LABATE, B. C.; CAVNAR, C. The expansion of the field of research on ayahuasca: Some reflections about the ayahuasca track at the 2010 MAPS “Psychedelic Science in the 21st Century” conference. Int J Drug Policy. Liverpool, v. 22, n. 2, p. 174-178, 2011.). Com a qualificação de profissionais da saúde mental para esse acompanhamento, demandas como essa podem ser acolhidas. Outra forma de proteção seria a regulamentação das práticas de uso assistido por profissionais com capacitação.

Considerando-se ainda a questão da partilha das informações sobre as pesquisas, é necessário cautela e prudência também para não exagerar o potencial terapêutico dessas substâncias e acabar criando “[...] expectativas irrealistas nos doentes e na sociedade em geral, agravando-se o processo de medicalização da sociedade” (Neves, 2006NEVES, M. P. Sentidos da vulnerabilidade: característica, condição, princípio. Rev Brasileira de Bioética. Brasília, v. 2, n. 2, p. 157-172, set 2006., p. 170). Por mais que os psicodélicos possam contribuir para aliviar a sobrecarga dos sistemas de saúde, a legitimação do uso dessas substâncias com fins terapêuticos não resolverá os desafios que a saúde mental enfrenta mundialmente, principalmente se não forem acessíveis ou utilizadas adequadamente (Belouin; Henningfield, 2018BELOUIN, S. J.; HENNINGFIELD, J. E. Psychedelics: Where we are now, why we got here, what we must do. Neuropharmacology, Oxford, v. 142, p. 7-19, nov 2018.; Sessa, 2007SESSA, B. Is there a case for MDMA-assisted psychotherapy in the UK? J Psychopharmacol. Oxford, v. 21, n. 2, p. 220-224, mar 2007.). Mesmo que essas práticas possibilitem um alívio para o sofrimento, é necessário atentar para as condições históricas e culturais que contribuem para a produção desse sofrimento e das doenças relacionadas (Cruz; Trindade, 2006CRUZ, M. R.; TRINDADE, E. S. Bioética de Intervenção - uma proposta epistemológica e uma necessidade para sociedades com grupos sociais vulneráveis. Rev Brasileira de Bioética. Brasília, v. 2, n. 4, p. 483-500, dez 2006.). É possível, pelo menos, pensar em formas de utilizar os psicodélicos na prevenção dessas doenças. Ou, mesmo, pensar em maneiras de fazer com que os psicodélicos contribuam para a justiça social. Mas para isso, é preciso que a própria comunidade psicodélica seja justa, para que seja a versão menor do que se quer produzir na sociedade (Sevelius, 2018SEVELIUS, J. Psychedelic justice: disrupting the cultural default mode network. Chacruna Institute for Plant Medicines. Northern California, 12 set. 2018. Disponível em: <https://chacruna.net/psychedelic-justice-disrupting-cultural-default-mode-network/>. Acesso em: 22 mar. 2019.
https://chacruna.net/psychedelic-justice...
).

Considerações finais

Este artigo buscou identificar e sistematizar aspectos bioéticos envolvidos no uso de psicodélicos com fins terapêuticos, presentes nas publicações acerca do tema, partindo, principalmente, dos referenciais da Bioética de Intervenção e da Bioética de Proteção. Diante do fracasso das políticas proibicionistas – que, ao invés de proteger a população, como se propôs, acabaram expondo quem usa a diversos riscos evitáveis, uma vez que esse uso ocorre clandestinamente, fora de qualquer controle e regulamentação – espera-se colaborar com a discussão sobre a reforma das políticas de drogas psicodélicas, compreendendo as implicações e contribuições que as pesquisas sobre o tema podem ter para todos contextos de uso.

Para que as questões aqui levantadas sejam consideradas nas reformas contemporâneas das políticas sobre drogas, inclusive as psicodélicas, será de extrema importância que o Estado promova espaços de debate com todos os setores envolvidos, a fim de que as decisões tomadas sejam inclusivas e possibilitem “[...] a expressão de todas as opiniões pertinentes [...]” garantindo, assim, o acesso aos direitos à saúde e à informação (UNESCO, 2005, p. 9). Porém, enquanto esse acesso ainda encontra barreiras, a própria comunidade psicodélica pode utilizar ferramentas como a bioética para fortalecer e balizar suas reivindicações.

Temas bioéticos tais quais empoderamento, libertação e emancipação, que não foram abordados nesta oportunidade, são relacionados ao princípio de justiça e direitos humanos e podem trazer contribuições significativas para o progresso da ciência psicodélica (Garrafa; Manchola-Castillo, 2017GARRAFA, V.; MANCHOLA-CASTILLO, C. Releitura crítica (social e política) do princípio da justiça em bioética. Rev Direitos e Garantias Fundamentais. Vitória, v. 18, n. 3, p. 11-30, dez 2017.). Com eles, será possível compreender melhor, por exemplo, como associações como a Associação Psicodélica do Brasil (APB) podem contribuir para o empoderamento de populações vulneráveis que poderiam se beneficiar do uso de psicodélicos, mas que sozinhas não têm força política suficiente (Cruz; Trindade, 2006CRUZ, M. R.; TRINDADE, E. S. Bioética de Intervenção - uma proposta epistemológica e uma necessidade para sociedades com grupos sociais vulneráveis. Rev Brasileira de Bioética. Brasília, v. 2, n. 4, p. 483-500, dez 2006.). Também podem ser temas relevantes de pesquisa as questões bioéticas relativas aos públicos, substâncias e condições específicas que, apesar de não terem sido aqui abordadas, precisam ser consideradas nas intervenções.

Agradecimento

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), pelo financiamento desta pesquisa de iniciação científica. Declaramos não haver conflitos de interesse.

Referências

  • ANDERSSON, M.; PERSSON, M.; KIELLGREN, A. Psychoactive substances as a last resort: a qualitative study of self-treatment of migraine and cluster headaches. Harm Reduct J. Londres, v. 14, n. 1, p. 60-70, set 2017.
  • APUD, I.; ROMANÍ, O. Medicine, religion and ayahuasca in Catalonia. Considering ayahuasca networks from a medical anthropology perspective. Int J Drug Policy. Liverpool, v. 39, p. 28-36, out 2016.
  • BELOUIN, S. J.; HENNINGFIELD, J. E. Psychedelics: Where we are now, why we got here, what we must do. Neuropharmacology, Oxford, v. 142, p. 7-19, nov 2018.
  • BLAINEY, M. G. Forbidden therapies: Santo Daime, ayahuasca, and the prohibition of entheogens in Western society. J Relig Health. Nova York, v. 54, n. 1, p. 287-302, fev 2015.
  • BONSON, K. R. Regulation of human research with LSD in the United States (1949-1987). Psychopharmacology. Berlim, v. 235, n. 2, p. 591-604, nov 2018.
  • BRAGAZZI, N. et al. Ancient Shamanism and Modern Psychotherapy: From Anthropology to Evidence-Based Psychodelic Medicine. Cosmos and History, Melbourne, v. 14, n. 1, p. 142-152, 2018.
  • CARHART-HARRIS, R. L. et al. Psychedelics and the essential importance of context. J Psychopharmacol, Oxford, v. 32, n. 7, p. 725-731, jul 2018.
  • COSTA, A. B.; ZOLTOWSKI, A. P. C. Como escrever um artigo de revisão sistemática. In: KOLLER, S. H.; COUTO, M. C. P. P.; HOHENDORFF, J. V. (orgs.). Manual de produção científica. Porto Alegre: Penso, 2014. p. 55-70.
  • CRUZ, M. R.; TRINDADE, E. S. Bioética de Intervenção - uma proposta epistemológica e uma necessidade para sociedades com grupos sociais vulneráveis. Rev Brasileira de Bioética. Brasília, v. 2, n. 4, p. 483-500, dez 2006.
  • DANFORTH, A. L. et al. MDMA-assisted therapy: a new treatment model for social anxiety in autistic adults. Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry. Oxford, v. 64, p. 237-249, jan 2016.
  • DAS, S. et al. Lysergic acid diethylamide: a drug of ‘use’? Ther Adv Psychopharmacol. Londres, v. 6, n. 3, p. 214-228, mar 2016.
  • GARRAFA, V. Bioética e ciência: até onde avançar sem agredir. In: COSTA, S. I. F.; OSELKA, G.; GARRAFA, V. (orgs.). Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 99-110.
  • GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Rev Bioet. Brasília, v. 13, n, 1, p. 125-134, jan 2005.
  • GARRAFA, V.; MANCHOLA-CASTILLO, C. Releitura crítica (social e política) do princípio da justiça em bioética. Rev Direitos e Garantias Fundamentais. Vitória, v. 18, n. 3, p. 11-30, dez 2017.
  • GOLDIM, J. R. O uso de drogas ainda experimentais em assistência: extensão de pesquisa, uso compassivo e acesso expandido. Rev Panam Salud Publica. Washington, v, 23, n. 3, p. 198-206, ago 2008.
  • HARTOGSOHN, I. Set and setting, psychedelics and the placebo response: an extra-pharmacological perspective on psychopharmacology. J Psychopharmacol, Oxford, v. 30, n. 12, p. 1259-1267, dez 2016.
  • JOHNSON, M. W.; RICHARDS, W. A.; GRIFFTHS, R. R. Human hallucinogen research: guidelines for safety. J Psychopharmacol. Oxford, v. 22, n. 6, p. 603-620, ago. 2008.
  • LABATE, B. C.; CAVNAR, C. The expansion of the field of research on ayahuasca: Some reflections about the ayahuasca track at the 2010 MAPS “Psychedelic Science in the 21st Century” conference. Int J Drug Policy. Liverpool, v. 22, n. 2, p. 174-178, 2011.
  • LEIVAS, P. G. C. Princípios de direito e de justiça na distribuição de recursos escassos. Rev Bioet. Brasília, v.14, n. 1, p. 9-15, 2006.
  • LETHEBY, C. The epistemic innocence of psychedelic states. Conscious Cogn. San Diego, v. 39, p. 28-37, jan. 2016.
  • MAJIĆ, T.; SCHMIDT, T. T.; GALLINAT, J. Peak experiences and the afterglow phenomenon: when and how do therapeutic effects of hallucinogens depend on psychedelic experiences? J Psychopharmacol. Oxford, v. 29, n. 3, p. 241-253, mar 2015.
  • MUCKE, H. A. M. From psychiatry to flower power and back again: the amazing story of lysergic acid diethylamide. Assay Drug Dev Technol. Larchmont, v. 14, n. 5, p. 276-281, jul 2016.
  • NERY FILHO, A.; LORENZO, C.; DIZ, F. Usos e usuários de substâncias psicoativas: considerações bioéticas. In: BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Prevenção dos problemas relacionados ao uso de drogas: capacitação para conselheiros e lideranças comunitárias. Brasília: SENAD-MJ, 2014. p. 125-141.
  • NEVES, M. P. Sentidos da vulnerabilidade: característica, condição, princípio. Rev Brasileira de Bioética. Brasília, v. 2, n. 2, p. 157-172, set 2006.
  • NUTT, D. J.; KING, L. A.; NICHOLS, D. E. Effects of Schedule I drug laws on neuroscience research and treatment innovation. Nat Rev Neurosci, Londres, v. 14, n. 1, p. 577-585, ago 2013.
  • ORAM, M. Efficacy and enlightenment: LSD psychotherapy and the drug amendments of 1962. J Hist Med Allied Sci. Oxford, v. 69, n. 2, p. 221-250, abr 2014.
  • ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos. Paris: UNESCO, 2005.
  • PEREIRA, L. C. et al. Legalização de drogas sob a ótica da bioética da proteção. Rev Bioet. Brasília, v. 21, n. 2, p. 365-374, ago 2013.
  • PERRY, J. Mending Invisible Wounds: The Efficacy and Legality of MDMA-Assisted Psychotherapy in United States’ Veterans Suffering with Post-Traumatic Stress Disorder. J Law Health, Boston, v. 29, p. 272-301, dez 2016.
  • PHELPS, J. Developing guidelines and competencies for the training of psychedelic therapists. J Humanist Psychol. Beverly Hills, v. 57, n. 5, p. 450-487, jun 2017.
  • RUCKER, J. J. H.; ILIFF, J.; NUTT, D. J. Psychiatry & the psychedelic drugs. Past, present & future. Neuropharmacology, Oxford, v. 142, p. 1-19, nov 2017.
  • SCHRAMM, F. R. A bioética de proteção: uma ferramenta para a avaliação das práticas sanitárias? Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, p. 1531-1538, jan. 2017.
  • SESSA, B. Is there a case for MDMA-assisted psychotherapy in the UK? J Psychopharmacol. Oxford, v. 21, n. 2, p. 220-224, mar 2007.
  • SESSA, B. The 21st century psychedelic renaissance: heroic steps forward on the back of an elephant. Psychopharmacol. Berlim, v. 235, n. 2, p. 551-560, fev 2018.
  • SEVELIUS, J. Psychedelic justice: disrupting the cultural default mode network. Chacruna Institute for Plant Medicines. Northern California, 12 set. 2018. Disponível em: <https://chacruna.net/psychedelic-justice-disrupting-cultural-default-mode-network/>. Acesso em: 22 mar. 2019.
    » https://chacruna.net/psychedelic-justice-disrupting-cultural-default-mode-network/
  • TALIN, P.; SANABRIA, E. Ayahuasca’s entwined efficacy: An ethnographic study of ritual healing from ‘addiction’. Int J Drug Policy. Liverpool, v. 44, p. 23-30, abr 2017.
  • ZANCANARO, L. Bioética, Direitos Humanos e Vulnerabilidade. In: BARCHIFONTAINE, C. P.; ZOBOLI, E. (orgs.). Bioética, Vulnerabilidade e Saúde. Aparecida: Ideias & Letras, 2007. p. 46-60.
  • ZHANG, M. W.; HARRIS, K. M.; HO, R. C. Is off-label repeat prescription of ketamine as a rapid antidepressant safe? Controversies, ethical concerns, and legal implications. BMC Med Ethics. Londres, v. 17, n. 1, p. 1-8, jan 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2021
  • Aceito
    02 Ago 2023
  • Revisado
    11 Maio 2023
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br