Percepções de chefes de famílias de baixa renda sobre os efeitos da pandemia de Covid-19 em suas vidas cotidianas

Perceptions of heads of low-income families on the effects of the Covid-19 pandemic on their daily lives

Érika da Silva Santos Cláudio Lorenzo Sobre os autores

Resumo

A pandemia de Covid-19 produziu uma série de agravos sociais, como crescimento exponencial da pobreza e da fome, aumento nas taxas de desemprego, interrupção de atividades de trabalhadores informais, piora das condições de moradia da população de baixa renda e transtornos psíquicos. No Brasil, essa realidade foi enfrentada de forma insuficiente no que se refere às ações minimizadoras do governo, incluindo programas de transferência de renda. Ainda assim, apenas no primeiro ano de pandemia, a concessão dos chamados benefícios eventuais passou de 3 para 7,8 milhões de pessoas. Apesar da existência de muitos estudos estatísticos sobre a piora das condições socioeconômicas da população, ainda são raros os estudos que investigam o problema na perspectiva das pessoas socioeconomicamente mais atingidas. A pesquisa ouviu 27 chefes de família de baixa renda, atendidos em um CRAS do DF, sobre os efeitos da pandemia em suas vidas. Os resultados permitiram compreender, em profundidade, os sofrimentos e dificuldades vividas em aspectos como: trabalho e renda; alimentação; educação de crianças; sofrimentos psíquicos; obtenção e uso de benefícios eventuais e apontam para novas estratégias, programas e políticas capazes de mitigar os efeitos da pandemia que perdurarão ainda por longo tempo.

Palavras-Chave:
Pandemia de Covid-19; Pobreza; Insegurança alimentar; Proteção social; Discursos

Abstract

The Covid-19 pandemic produced a series of social problems, such as the exponential growth of poverty and hunger, an increase in unemployment rates, interruption of activities of informal workers, worsening of the housing conditions of the low-income population and psychological disorders. In Brazil, this reality has been insufficiently addressed in terms of minimizing government actions, including income transfer programs. Even so, only in the first year of the pandemic, the granting of so-called occasional benefits went from 3 to 7.8 million people. Despite the existence of many statistical studies on the worsening of the socioeconomic conditions of the population, studies that investigate the problem from the perspective of the most socioeconomically affected people are still rare. The research heard 27 low-income family heads, assisted at a CRAS in the DF, Brazil, about the effects of the pandemic on their daily lives. The results made it possible to understand, in depth, the sufferings and difficulties experienced in aspects such as: work and income; food; children's education; psychic sufferings; obtaining and using eventual benefits and point to new strategies, programs and policies capable of mitigating the effects of the pandemic that will last for a long time.Resumo: A pandemia de Covid-19 produziu uma série de agravos sociais, como crescimento exponencial da pobreza e da fome, aumento nas taxas de desemprego, interrupção de atividades de trabalhadores informais, piora das condições de moradia da população de baixa renda e transtornos psíquicos. No Brasil, essa realidade foi enfrentada de forma insuficiente no que se refere às ações minimizadoras do governo, incluindo programas de transferência de renda. Ainda assim, apenas no primeiro ano de pandemia, a concessão dos chamados benefícios eventuais passou de 3 para 7,8 milhões de pessoas. Apesar da existência de muitos estudos estatísticos sobre a piora das condições socioeconômicas da população, ainda são raros os estudos que investigam o problema na perspectiva das pessoas socioeconomicamente mais atingidas. A pesquisa ouviu 27 chefes de família de baixa renda, atendidos em um CRAS do DF, sobre os efeitos da pandemia em suas vidas. Os resultados permitiram compreender, em profundidade, os sofrimentos e dificuldades vividas em aspectos como: trabalho e renda; alimentação; educação de crianças; sofrimentos psíquicos; obtenção e uso de benefícios eventuais e apontam para novas estratégias, programas e políticas capazes de mitigar os efeitos da pandemia que perdurarão ainda por longo tempo.

Keywords:
Covid-19 pandemic; Poverty; Food Insecurity; Social Protection; Speeches

Introdução

O crescimento exponencial da pobreza e da fome é sem dúvida um dos maiores agravos sociais ocasionados pela pandemia de Covid-19. O relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura mostrou o grave estado da segurança alimentar e nutricional no mundo, estimando um acréscimo de 150 milhões de pessoas em situação de fome, desde que foi iniciada a pandemia, atingindo um total de 828 milhões de pessoas (FAO, 2022Food and Agriculture Organization of the United Nations. In Brief to The State of Food Security and Nutrition in the World, 2022. Disponível em: https://www.fao.org/documents/card/en/c/cc0640en . Acesso em: 11 out. 2022.
https://www.fao.org/documents/card/en/c/...
).

No Brasil, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstraram que em 2019, a população que possuía renda baixa o suficiente para se enquadrar no programa social Bolsa Família, era de 16,2 milhões de pessoas e que essa população triplicou no primeiro ano de pandemia, chegando a 51 milhões no país. O instituto alertou sobre a importância de se delimitar o universo de pessoas abaixo das linhas de pobreza e conhecer suas características, visando formular políticas públicas direcionadas à melhoria das suas condições de vida e a ampliação de oportunidades para viver fora da pobreza (IBGE, 2021). O DIEESE (2021DIEESE. Boletim de Conjuntura. Desigualdades sociais e econômicas se aprofundam. São Paulo, jul. 2021. (Boletim, 29). Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimdeconjuntura/2021/boletimconjuntura29.html#:~:text=DIEESE%20%2D%20boletim%20de%20conjuntura%20%2D%20N%C2%BA,econ%C3%B4micas%20se%20aprofundam%20%2D%20julho%2F2021&text=vinha%20de%20antes%20da%20pandemia . Acesso em: 11 out. 2022.
https://www.dieese.org.br/boletimdeconju...
) também revelou que entre março de 2020 e março de 2021, houve crescimento de 5,8% da população em situação de extrema pobreza, atingindo no período cerca de 800 mil pessoas, e um inquérito da Rede PENSSAN, recentemente publicado, mostrou que mais da metade da população brasileira, ou seja, cerca de 125,2 milhões de pessoas estavam vivendo com algum grau de insegurança alimentar. Entre 2021 e 2022, 14 milhões de novos brasileiros passaram a viver situação de fome (PENSSAN, 2022PENSSAN - REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR. Vigisan: II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Rede Penssan, 2022. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/ . Acesso em: 11 out. 2022.
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).

Além dos relatórios de organismos não governamentais, pesquisas realizadas em vários países da América Latina demonstraram, por meio de metodologias diversas, que além do impacto da pandemia sobre o crescimento da pobreza (Poy, 2021; Reyes et al., 2022) e da segurança alimentar (BurigoBURIGO, A. C. e P.; FIRPO, M. Agenda 2030, saúde e sistemas alimentares em tempos de sindemia: da vulnerabilização à transformação necessária. Ciência & Saúde Coletiva. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320212610.13482021. Acesso em: 26 set. 2022.
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; Porto, 2022), houve aumento nas taxas de desemprego e interrupção de atividades de trabalhadores informais (Poy, 2021), piora nas condições de moradia e dos territórios de convivência (CastroCASTRO.S, C. R.; IANNI, A. F. E. Desigualdades e subjetividade: construção da práxis no contexto da pandemia de covid-19 em território vulnerável. Saúde e Sociedade [online]. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902021210029 . Acesso em: 27 set. 2022.
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-Silva et al., 2021), insuficiência, inadequação e fragilidade das ações minimizadoras dos efeitos, incluindo as políticas de transferência de renda, por governos neoliberais (Cavalcante, 2021CAVALCANTE, A. A. Proteção social e pandemia da Covid-19: o lugar da transferência de renda. Temporalis, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.22422/temporalis.2021v21n41p205-218 . Acesso em: 11 out. 2022.
https://doi.org/10.22422/temporalis.2021...
; Boschetti; Behring, 2021BOSCHETTI, I.; BEHRING, E. R. Assistência Social na pandemia da covid-19: proteção para quem? Serviço Social & Sociedade, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-6628.238 . Acesso em: 26 set. 2022.
https://doi.org/10.1590/0101-6628.238...
). No Brasil, de acordo com a SNAS (2020), apenas no primeiro ano de pandemia, a concessão de benefícios eventuais passou de 3 para 7,8 milhões de pessoas (SNAS, 2021SNAS. Atuação da Política de Assistência Social no Contexto da Pandemia do Novo Coronavírus.2021. Disponível em: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/servicos/sagi/relatorios/DE_OLHO_NA_CIDADANIA_v6_12.05.pdf p.59 Acesso em: 05 abr. 2022.
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). Alguns benefícios sociais foram criados especificamente para o contexto pandêmico, como o Auxílio Emergencial, outros já existiam e foram utilizados durante o momento da pandemia, tais como o Auxílio Calamidade e o Auxílio Vulnerabilidade. Esses três em especial interessam ao nosso estudo.

O Quadro 1 apresenta uma descrição condensada desses benefícios.

Quadro 1
Tipificação dos benefícios

Para Amartya Sen (1999), a pobreza pode ser definida como uma privação das capacidades básicas de um indivíduo para seu pleno desenvolvimento e satisfação de necessidades e não apenas como uma renda inferior a um patamar preestabelecido. Nesse sentido, pobreza inclui a privação a serviços públicos, como saneamento básico e atenção à saúde, uma luta cotidiana contra condições evitáveis de morbidez e violência e ainda uma redução da liberdade para mobilidade, realização das necessidades mais básicas, e até da própria liberdade para sobreviver. Tudo isso vem ao encontro da realidade das taxas de mortalidade por Covid-19 muito maiores nos grupos populacionais de baixa renda (OrellanaORELLANA, J. D.Y. et al. Excesso de mortes durante a pandemia de COVID-19: subnotificação e desigualdades regionais no Brasil. Cadernos de Saúde Pública [online], v. 37, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00259120 Acesso em: 08 out. 2022.
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et al., 2020). Assim sendo, em uma perspectiva fundamentada no pensamento de Sen, seria preciso conhecer mais profundamente os efeitos socioeconômicos da Pandemia de Covid-19 sobre famílias em situação de pobreza, para além da questão de renda, se quisermos intervir de forma adequada nas realidades dessas pessoas e seus contextos.

Castro-Silva et al. (2021), ao pensarem formas de intervenções com participação popular para melhoria de políticas e programas de enfrentamento à pandemia, destacaram a necessidade de buscar novas ferramentas de análise para dados produzidos em campo por meio das falas dos sujeitos atingidos, que possibilitassem maior profundidade na interpretação da realidade vivida por pessoas, grupos e comunidades.

Apesar de muitos estudos estatísticos virem demonstrando a piora das condições socioeconômicas das populações de baixa renda, em países periféricos, são escassos os estudos que investigam a perspectiva das pessoas atingidas, dando-lhes voz sobre suas vivências de sofrimento no curso dos efeitos devastadores provocados pela pandemia de Covid-19.

O presente artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que analisou a percepção de chefes de famílias de baixa renda, em sua maioria mulheres, atendidas em um Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) do Distrito Federal sobre os efeitos da pandemia em suas vidas cotidianas.

Materiais e Métodos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de análise de conteúdo discursivo realizada em um CRAS localizado na Região Administrativa do Riacho Fundo I, região delimitada pelo plano de contingência para enfrentamento da pandemia de Covid-19 pela Secretaria de Desenvolvimento Social do Governo do Distrito Federal.

Dois procedimentos metodológicos principais foram realizados: 1) Análise documental de prontuários e Cadastro Único; 2) Realização de entrevistas semiestruturadas com chefes de famílias atendidas no CRAS Riacho Fundo I.

Foram selecionados, por conveniência, 27 participantes com base na completude dos dados registrados em seus prontuários e no atendimento aos critérios de inclusão e exclusão definidos. Os critérios de inclusão foram: participantes cujos prontuários e Cadastro Único fossem referentes a famílias atendidas entre julho de 2020 e maio de 2022; que as famílias dos participantes tenham sido classificadas como de baixa renda (renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo ou renda familiar mensal de até três salários mínimos); que as famílias tivessem recebido um desses três tipos de benefícios durante o período de pandemia: Auxílio Emergencial, Auxílio Calamidade, Auxílio Vulnerabilidade. Os critérios de exclusão foram: famílias estrangeiras cujas(os) chefes não conseguissem uma boa comunicação em português; quando as atuais condições físicas ou mentais das(os) chefes tornassem a entrevista prejudicial ou de difícil execução; quando as(os) chefes tenham sido atendidos para obtenção dos benefícios pela pesquisadora principal (buscando evitar influências de relações preestabelecidas).

As (Os) participantes foram codificados utilizando-se o número de ordem na realização da entrevista, seguido da abreviatura de gênero, idade e abreviatura de raça como apresentada na autodeclaração dos participantes (P para pardo, N para negro e B para branco). Ex: 01F31P.

Os prontuários e cadastro únicos foram analisados a partir da construção de um instrumento de extração de dados sociodemográficos. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas por telefone (devido ao isolamento), entre janeiro e maio de 2022. Elas foram gravadas e transcritas com posterior análise de conteúdo nas formas propostas por Laurence Bardin, tomando-as em perspectiva qualitativa.

O estudo seguiu integralmente as recomendações das resoluções que disciplinam a realização de pesquisa com seres humanos no Brasil e teve aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa (Parecer nº 5.318.626, CAAE: 52285821.9.0000.0030). Todas (os) as (os) participantes assinaram o TCLE.

Resultados e Discussões

O Quadro 2 apresenta o perfil sociodemográfico dos 27 participantes.

Quadro 2

Chama atenção que, entre os 27 participantes, 25 são mulheres solteiras e, portanto, chefes de famílias monoparentais. O perfil dos participantes desta pesquisa ilustra a realidade rotineira de busca de atendimento aos serviços do CRAS Riacho Fundo I, onde a maioria dos usuários tem perfil parecido.

Outro dado importante é o fato de 12 participantes declararem ser trabalhadoras informais, principalmente vinculadas à prestação de serviços domésticos como diaristas, atividade que foi duramente atingida pela pandemia, sendo totalmente suspensa por algumas famílias, sem manutenção dos honorários.

No que se refere à autodeclaração de raça, 21 declaram raça que se enquadram na denominação de raça negra, pelo IBGE, correspondendo aproximadamente a 78% dos participantes. O termo “preto(a)” não foi utilizado. Eles usaram as definições “pardo”, “negro” e “branco”.

Vale notar que na última Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios – PDAD (2021), a proporção da população negra no DF foi de 57%. Assim, apesar de o estudo não ter pretensão de amostragem de significância estatística, vale notar que encontrar 78% de negros vai ao encontro dos dados que têm demonstrado que os efeitos negativos da pandemia foram significativamente maiores para a população negra.

Segundo relatório do IBGE (2022)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Conheça o Brasil – Cor ou Raça. 2020 Disponível em https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-ou-raca.html#:~:text=De%20acordo%20com%20dados%20da,1%25%20como%20amarelos%20ou%20ind%C3%ADgenas . Acesso em: 15 set. 2022.
https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca...
, foi nessa parcela da população que incidiram as maiores taxas de desemprego e trabalho informal. Vale ressaltar que, no momento das entrevistas, 15 dos 27 participantes não possuíam qualquer outra fonte de renda que não os auxílios e benefícios sociais concedidos. Chaves-AlmazanCHAVEZ-ALMAZAN, L. A.; DIAZ-GONZALEZ, L.; ROSALES-RIVERA, M. Determinantes socioeconómicos de salud y COVID-19 en México. Gac. Méd. Méx, Ciudad de México. 2022. Disponible en: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0016-38132022000100004&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 11 out. 2022.et al. (2022), estudando comunidades no Piauí, destacaram também que o racismo ambiental envolvendo populações negras das periferias foi mais um fator potencializador das mortes por Covid-19, enquadrando o fenômeno como resultado de uma necropolítica que, segundo os autores, expõe o que chamaram de “genocídio escancarado produzido pela presidência da república”. Essa visão da gestão da pandemia no Brasil como uma necropolítica foi também apontada por Castilho e Lemos (2021CASTILHO, D. R.; LEMOS, E. L. de S. Necropolitics and the Jair Bolsonaro government: repercussions on Brazilian social security Rev katálysis, v. 24, n. 2, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-0259.2021.e75361 Acesso em: 26 set.2022.
https://doi.org/10.1590/1982-0259.2021.e...
) e CarnutCARNUT L. “What the bourgeois does complaining... the fascist does smiling”: neo-fascism, international capital, associated bourgeoisie and the Brazilian Unified Health System Civitas. Rev Ciênc Soc., v. 22, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2022.1.41512. Acesso em: 26 set. 2022.
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et al. (2022). Mbembe (2016MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Revista Arte e Ensaios. Rio de Janeiro, n. 32, dez. 2016. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/
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) invertendo propositadamente o conceito foucaultiano de biopolítica, definiu necropolítica como uma forma de gestão da morte e não apenas da vida, por governos, sobretudo, neoliberais autoritários que estabelecem valores distintos do direito à vida das classes econômicas inferiores, população negra, povos tradicionais e outros grupos socialmente desqualificados por eles. Essa gestão da morte se concretiza tanto pela atuação dos aparelhos repressores do Estado como as polícias, quanto por negligência no cuidado com essas vidas. Como no Brasil estavam claras as iniquidades no acesso tanto às medidas de prevenção como ao tratamento para as formas graves, esses autores arguem que a forma de gestão da pandemia se pelo governo passado se adéqua perfeitamente ao conceito.

A escuta dos participantes aprofundou a compreensão das dificuldades vividas. Foi possível elencar cinco categorias temáticas principais presentes nas percepções dos participantes sobre os efeitos da pandemia em suas formas cotidianas de vida: 1) Efeitos sobre Trabalho e Renda; 2) Efeitos sobre a Segurança Alimentar; 3) Dificuldades Ocasionadas pelo Fechamento das Escolas; 4) Efeitos Psicológicos e Comportamentais em um Contexto de Isolamento e Luto; e 5) Avaliação dos Benefícios e Auxílios sociais.

Efeitos sobre o trabalho e renda

Os relatos exibem a angústia quase ao nível de desespero, sobretudo das mulheres envolvidas nos trabalhos domésticos, interrompidos no “auge” da pandemia, prejudicando drasticamente as famílias que tinham como sua única fonte de renda o valor recebido, por exemplo, pela realização de uma faxina.

Ah mudou né, porque eu fazia uma faxina, uma coisa, aí o pessoal começou a não querer né, eu passava roupa né, cuidava de uma criança né, aí o pessoal já não quis né então, então isso aí tudo prejudicou a gente né [...]. Foi sim por conta da pandemia, porque ninguém queria ninguém dentro de casa né, até pra falar com a gente só falava só por telefone, né? (19F52N)

[...] eu fui mandada embora justamente por conta da pandemia, então mudou totalmente a minha vida [...]. Trabalhava em uma escola, eu era monitora e por conta disso a escola fechou, porque era uma escola creche, fechou e então eles mandaram todo mundo embora [...]. (27F31P)

Olha afetou muito a parte financeira, da forma que, eu estou desempregada né, sem trabalhar e meu esposo [...] trabalha em um escritório de contabilidade né, aí com a COVID afetou diretamente os comerciantes eles fecharam as lojas, a primeira pessoa que eles não pagaram foi o contador. (24F35B)

Praticamente pedinte, esse é o resumo [...]. A pandemia veio e avassalou tudo[...]. Quando minha mãe faleceu ela tinha a pensão dela, sabe, do governo, só que aí é cortado, quando tem óbito de imediato [a pensão da mãe era única fonte de renda familiar]. (4F42P)

Os dados do IBGE mostram que entre os grupos mais afetados estavam as mulheres e pessoas com menor escolaridade e apontavam o crescimento para 10,1 milhões de pessoas desempregadas durante a pandemia (IBGE, 2022)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desemprego. 2022 Disponível em https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php . Acesso em: 20 set. 2022.
https://www.ibge.gov.br/explica/desempre...
. TokarskTOKARSK, C.; PINHEIRO, C. Trabalho Doméstico Remunerado e Covid-19: aprofundamento das vulnerabilidades em uma ocupação precarizada. Repositório de Conhecimento do IPEA, 2021. p. 55-64. 2021. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10521 . Acesso em: 7 out. 2022.
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i e Pinheiro (2021) destacaram que, no último censo realizado pelo IPEA em 2019, algo em torno de 5,7 milhões de mulheres tinham como ocupação o trabalho doméstico, sendo 3,8 milhões mulheres negras. Eles arguem que, enquanto categoria marcada historicamente por condições precarizadas de trabalho e onde é comum a chefia de famílias monoparentais, três aspectos teriam agudizado a vulnerabilidade delas na pandemia: a própria natureza do trabalho que não pode ser realizado remotamente; a sistemática violação de direitos fundamentais; e a falta de proteção social da categoria. É possível perceber que esses três aspectos apontados puderam ser confirmados em nosso estudo pelas experiências cotidianas relatadas pelas mulheres.

Efeitos sobre a segurança alimentar

É impactante ver como a insegurança alimentar marca a realidade das famílias pesquisadas. Aqui também ilustram de forma muito clara os sofrimentos vivenciados pelos milhões de pessoas que passaram por essa situação e que os números sozinhos não conseguem demonstrar. A falta de acesso a alimentos com qualidade nutricional e em quantidade suficiente, além da fome, propriamente dita, esteve presente nos relatos de 22 dos 27 participantes.

Sem ter o que comer, nem farinha pra comer, não ter nada teve um momento que a gente teve que dividir um Miojo pra três pessoas, que é pra mim e para os meus dois filhos[...], eu não tenho nenhum pão pra dar pros meus filhos, nem leite, eu pensei que eles iam acordar ia tomar só água. (20F28P)

[...] tipo hoje, eu só comi dois ovos cozidos e arroz, essas coisas muito cara, quem tem dinheiro pra ficar comprando carne, né? Ninguém tem dinheiro, negócio tá difícil minha filha. (14F37P)

Fiquei mais em casa e a gente começou a comer mal, mal, né?[...], uai porque está tudo muito caro [...], aproveitaram a pandemia pra aumentar tudo. (22F49P)

Afetou total, eu cheguei a passar fome e necessidade mesmo, de não ter o que comer[...], porque assim, se você não vende, você não tem o que comer, se a pessoa não recebe ela não compra, [...]você vende o almoço para comer no jantar. (1F47P)

Segundo o último relatório da Rede PENSSAN (2022) sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, houve um avanço exponencial da fome no segundo ano de pandemia, chegando a atingir 33,1 milhões de pessoas. Esse contingente não revela apenas os efeitos do isolamento social na geração de renda, mas também a omissão do Estado brasileiro na geração de programas de assistência à vulnerabilidade social potencializada pela pandemia.

Para Amartya SenSEN, A. K. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. (1999), a fome é um fenômeno que envolve política, história, economia, e sociedade em geral. Neste mesmo sentido, Reyes et al. (2022), estudando a insegurança alimentar e seus efeitos sobre a vulnerabilidade social na Cidade do México, durante a pandemia, concluíram tratar-se de um fenômeno tanto material quanto imaterial com consequências econômicas, socioculturais e ambientais, que só poderiam ser mitigadas pelo desenvolvimento de estratégias pelo Estado e pela Sociedade como um todo, na direção de uma efetiva proteção social.

Os nossos resultados ilustram, por meio dos conteúdos dos discursos, tanto a complexidade do fenômeno destacado por esses autores, quanto a inexistência e ou insuficiência de programas e recursos visando ao enfrentamento da gravidade da situação. A participante 22F49P, além das dificuldades relatadas para obter uma alimentação segura, afirma: “aproveitaram a pandemia para aumentar tudo...”; percebe, também, a ausência da intervenção do Estado para controle de preço, nas circunstâncias especiais representada pela pandemia.

Efeitos psicológicos e comportamentais vivenciados em um contexto de pandemia e luto

O estudo mostra, de forma clara, as mudanças comportamentais e psicológicas nos participantes com relatos de medo, ansiedade, tristeza, depressão relacionadas à falta de convivência social e ao luto frequente pela perda de amigos e familiares.

Fiquei muito tempo trancada e ficava muito triste, às vezes, minha filha, quando eu levantava e pisava o pé no chão, meu Deus do céu, eu começava a chorar do nada assim[...], ficava pensando besteira e até hoje assim de vez em quando eu não consigo dormir, agora to indo pra escola, fico muito preocupada, fico ansiosa, minha cabeça começa a doer, eu sei lá minha irmã, é uma coisa assim que nem eu entendo [...] meu filho teve começo de depressão e chorava todo dia. (14F37P)

[...] minha filha teve crise de ansiedade né, eu passei por muitos perrengue [...], eu me pegava chorando direto, direto me pegava chorando...porque ...com medo, né? (19F52N)

[...] ficou mais em casa, mais retraído, agora que normalizou tudo, ele continua com o mesmo comportamento, pensando que a gente ainda está com o lockdown, não gosta mais de sair, só quer ficar dentro de casa trancado dentro do quarto, então afetou bastante (se referindo ao filho). (23F30B)

[...] minha mãe tinha 71 anos, ia fazer 72 anos agora dia 11 de janeiro se ela tivesse viva, tinha muitas coisas pra fazer, o idoso tem muita coisa pra fazer[...] o meu filho de 4 anos, né? Ele só era ninado nos braços dela, até hoje ele chama vovó, cadê a vovó? [...] minha mãe não é só mais um número, você está me entendendo? “[...] ficou os sintomas psicológicos, eu começo a tremer, me dar dor de cabeça, eu passo mal, né? (4F42P)

[...]a minha prima foi o caixão dela, foi todo enrolado naquele papel filme, e a gente ficou de longe, não pode nem, nem despedi tá! Foi muito triste. (19F52N)

Em uma revisão integrativa da literatura sobre os efeitos psicológicos do isolamento social, PereiraPEREIRA, M.D et al. Pandemia de COVID-19, isolamento social, consequências na saúde mental e estratégias de enfrentamento: uma revisão integrativa. Pesquisa, Sociedade e Desenvolvimento, v. 9, n. 7. 2020. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/4548 . Acesso em: 20 out. 2022.et al. (2020) demonstraram que ansiedade e depressão foram os transtornos mais comuns e que condições de privação potencializavam esses sintomas, apontando para a necessidade de ampliação da rede de atenção com uso de novas estratégias de assistência que considerassem os riscos de contaminação.

Além do isolamento social, muitos outros fatores, como a perda do emprego e dificuldades para gerar renda, contribuem para a instabilidade psíquica deste grupo social. Muito antes da pandemia, Sen (1999) já afirmava que o desemprego, por exemplo, representa uma fonte de efeitos debilitadores muito abrangente sobre a liberdade, a iniciativa e as habilidades dos indivíduos, o que acaba por ocasionar perda da autoestima, da autoconfiança e da saúde física e psicológica.

SilvaSILVA, D. A. R.; PIMENTEL, R. F. W.; MERCES, M. C. das. Covid-19 and the pandemic of fear: reflections on mental health. Revista de Saúde Pública [online], v. 54, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rsp/article/view/169518 Acesso em: 9 out. 2022.et al. (2020), no início da pandemia, já alertavam que o isolamento social e a disseminação do medo da própria morte e de familiares, chamada por eles de “epidemia do medo”, tenderia a aumentar a incidência de transtornos mentais e piora do quadro mental de pessoas já com transtornos diagnosticados. Além disso, as situações de luto frequente e repetitivos nessa camada da sociedade também contribuiriam para uma maior fragilidade psíquica. Almazan et al. (2022), ao compararem a morbimortalidade da Covid-19 considerando o índice de desenvolvimento humano e seus indicadores, bem como o tipo de população atingida, demonstraram a existência de correlações inversamente proporcionais entre essas variáveis.

Em locais com desenvolvimento moderado e baixo, houve risco significativamente maior de ocorrência de mortes por Covid-19, identificando razões multifatoriais que envolviam, além das privações alimentares, a falta de acesso aos serviços de saúde e a vulnerabilidade de renda. Sathler e Leiva (2022SATHLER, D.; LEIVA, G. A cidade importa: urbanização, análise regional e segregação urbana em tempos de pandemia de Covid-19. Revista Brasileira de Estudos de População [online]. 2022, v. 39. Disponível em: https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0205 . Acesso em: 4 Out. 2022.
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) destacaram as condições de moradia das classes economicamente mais pobres, como proximidade, densidade e aglomeração, constituindo uma espécie de vulnerabilidade urbana que favorecia a contaminação viral e, consequentemente, mais casos e mortes entre familiares e vizinhança, o que também contribuía para o surgimento de quadros de ansiedade e depressão com maior frequência nessas camadas sociais.

Já para Ferreira e Melo (2022FERREIRA, J. P.; MELO, C. V. “É difícil temer aquilo que não podemos ver”: o trabalho representacional da Covid-19 e a pedagogia do medo entre vírus e animações. Physis: Revista de Saúde Coletiva [online]. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312022320206. Acesso em: 17 out. 2022.
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), diante da experiência social da pandemia de Covid-19, as mortes não podem ser interpretadas como exclusivamente associadas a fatores como idade, gênero, raça, etnia ou localidades específicas. O que se revelou no episódio foi também a falta de capacidade de controle das doenças infecciosas, provocando, de forma ampla, a existência de um pânico social, conciliado a um sentimento de “perigo coletivo”. Segundo CrepaldiCREPALDI, M. A et al. Terminalidade, morte e luto na pandemia de Covid-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas. Estudos de Psicologia (Campinas) [online]. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e200090. Acesso em: 05 set.2022.
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et al. (2020), é importante reconhecermos os processos de terminalidade, morte e luto, considerando que tais processos são vividos de forma singular; a ocorrência de uma sequência estanque mediada por normas, apresentando rigidez relacionada às possibilidades rituais de despedida e de elaboração de sentido para as perdas no contexto da pandemia, potencializa os sofrimentos. Sunde e Sunde (2020SUNDE, R.; SUNDE, L. Luto familiar em tempos da pandemia da covid-19: dor e sofrimento psicológico. Revista Interfaces, v. 8, p. 703-710, 2020. Disponível em https://doi.org/10.16891/787 Acesso em: 22 set. 2022.), em uma revisão sistemática da literatura sobre dor e sofrimento provocads pelo luto decorrente da pandemia, chamaram atenção para que um dos fatores agravantes era a angústia por não poderem organizar e prestar as últimas homenagens aos familiares e amigos mortos; reivindicam, assim, a necessidade do planejamento de atendimento psicológico aos parentes enlutados, como forma de prevenção aos transtornos psíquicos. A fala da participante 19F52N ilustra bem essa dimensão do problema.

Silva et al. (2020) alertavam para a necessidade de desenvolver estratégias de apoio psicológico para promover a saúde mental, enfatizando também o uso de tecnologias on-line para manter o distanciamento físico necessário, enquanto MariMARI, J. J. et al. Translating science into policy: mental health challenges during the COVID-19 pandemic. Brazilian Journal of Psychiatry [online]. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1516-4446-2020-1577. Acesso em: 20 set. 2022.
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et al. (2021) destacaram a pouca atenção foi dada ao impacto psicológico e comportamental da pandemia, pois, se antes dela já estava havendo acesso limitado à atenção de saúde mental dado o desmonte progressivo do sistema público, o problema só se agravou durante o período pandêmico.

A forma multifatorial como a pandemia afetou as famílias de baixa renda e que nossos resultados demonstram de forma evidente, permite compreender em maior profundidade o nível de sofrimento imposto por essas condições e a clara necessidade de programas especiais de atenção psicossocial para o período pandêmico. Mas o que ocorreu foi exatamente o contrário. Vale destacar, que nenhum das(os) participantes da pesquisa que relatou sofrimento psíquico em si ou em familiares, referiu atendimento por essa razão nas unidades de atenção básica ou CAPS.

Dificuldades ocasionadas pelo fechamento das escolas

A necessidade de cumprir o isolamento social trouxe como consequência o fechamento das escolas e a implantação urgente de novas práticas de ensino, iniciando-se o uso emergencial do ensino remoto sem considerar as condições socioeconômicas da população. O governo de Brasília propôs o ensino remoto, para todos. Nos relatos colhidos, fica clara a enorme diversidade dos problemas enfrentados pelas famílias de baixa renda devido ao fechamento das escolas.

[...] eu perdi as clientes porque eu tinha que ficar em casa com eles [...]. (22F49P)

[...] foi horrível, porque a gente não tem internet, né, onde tem internet aqui é do vizinho, a gente não tinha internet esse menino precisava fazer dever, tinha vez que dava pra fazer esse dever, tinha vez que não dava pra fazer, e a gente não tem muito estudo né, também não tinha como ajudar né, pra fazer naquela plataforma e era horrível, horrível. (19F52N)

Foi estressante, né. [...]. É aí acaba sendo estressante né, porque eu não tenho a mesma didática que a professora né, então tem muita coisa a gente esquece, outras a gente não consegue explicar com a linguagem que eles estão acostumados na escola. (27F31P)

Sim, faltou, oh se não faltou [...]. Ficaram em casa, por isso que ficou com dificuldade, porque ele se alimenta, ele se alimentava na escola né? (22F49P)

Foi péssimo, pior ainda, porque assim, ela tem déficit de inteligência também, então assim, eu diria, que o que era ruim ficou pior, na escola ela estava na sala de recursos né, e sem a sala de recursos ela regrediu muito, mas muito, então assim eles não fizeram a adequação curricular nas atividades que eles mandaram para casa. (1F47P)

Para o meu filho mais velho foi muito chato, ele não aprendeu nada, né, foi como se fosse, tipo não tivesse aula pra ele, foi muito complicado pra ele entrar em aula, para assistir né, eu não posso ficar muito tempo com ele[...]. (11F38B)

Nossos resultados vão ao encontro das reflexões apresentadas por CoutoCOUTO, E. S.; COUTO, E. S.; CRUZ, I. M. P. #fiqueemcasa: educação na pandemia da Covid-19. Educação, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.17564/2316-3828.2020v8n3p200-217 . Acesso em: 11 out. 2022.
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et al. (2022), quando afirmam que as condições socioeconômicas foram determinantes para a possibilidade de continuidade das práticas educacionais durante a pandemia, uma vez que populações vulneráveis vivem precariamente a inclusão digital, tornando impossível qualquer nível de aprendizado remoto e tornando-se mais um fator de sofrimento, além dos provocados pelas condições econômicas. Eles também ilustram bem os achados da mais recente revisão da literatura internacional sobre os impactos na aprendizagem da interrupção do ensino presencial na educação básica (BarbosaBARBOSA, A. L. A.; ANJOS, A. B. L.; AZONI, C. A. S. Impactos na aprendizagem de estudantes da educação básica durante o isolamento físico social pela pandemia do COVID-19. Serviço Social & Sociedade, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-1782/20212020373. Acesso em: 26 set. 2022.
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et al., 2022). Os autores encontraram como principais problemas a falta de acesso à internet e aos equipamentos de informática, o baixo nível de educação digital, ausência de um ambiente adequado para o estudo e o despreparo dos pais para acompanhar o desempenho nas tarefas, que foram claramente relatados por nossos participantes. A revisão mostrou ainda a dificuldade das mães para conseguirem trabalhos esporádicos pela necessidade de cuidar das crianças em casa (vide relato de 22F49P); que os estudantes de escola pública, realidade de todas as crianças e adolescentes nas famílias envolvidas em nosso estudo dedicavam menos tempo ao estudo, e que estudantes com necessidades especiais tiveram dificuldades ainda maiores para o atendimento de suas necessidades, como ilustrado pelo relato de 1F47P. Entretanto, a partir da voz dos próprios sujeitos, são mais bem percebidas as nuances e as particularidades de cada contexto.

Avaliação de benefícios e auxílios sociais

Segundo a Secretaria Nacional de Assistência Social (2021), “a concessão de benefícios eventuais integra o rol dos atendimentos realizados pelo Sistema Único de Assistência Social, visando à proteção e a mitigação de riscos sociais” (SNAS, 2021SNAS. Atuação da Política de Assistência Social no Contexto da Pandemia do Novo Coronavírus.2021. Disponível em: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/servicos/sagi/relatorios/DE_OLHO_NA_CIDADANIA_v6_12.05.pdf p.59 Acesso em: 05 abr. 2022.
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, p. 59). As percepções sobre os benefícios recebidos foram expressas tanto sob o aspecto de “tábua de salvação”, enquanto única possibilidade de manutenção das necessidades básicas, quanto sob um aspecto de caridade do governo ou ação da providência divina. Foram inexistentes percepções do benefício enquanto um dever do Estado e um direito à reparação. No mesmo sentido, estiveram ausentes perspectivas críticas sobre os valores distribuídos. Alguns participantes referiram a demora na efetivação do benefício e outras demonstraram saber que nem todos conseguiam o benefício e estavam vivendo da solidariedade de outras pessoas.

Porque a gente, por exemplo, que depende dos auxílios, eu minha filha, se não fosse esses auxílios aí pelo amor de Deus, eu não estava nem comendo [...]. Assim, deveria demorar menos né [...], depois de dar entrada, é três meses mais ou menos, né? (25F51B)

[...] com o Prato Cheio eu consegui fazer compras pra casa, o Vulnerabilidade e o Calamidade [...] me ajudava, eu consegui fazer muita coisa, e eu consegui me sustentar, consegui dá um grande passo pra frente, porque se não fosse eles, provavelmente ou eu teria passado fome ou eu não teria onde morar [...]. (12F25B)

É, eu não posso reclamar muito né, porque graças a Deus, eu recebi os benefícios né, eu não tive tanto sofrimento, mas assim, muitas pessoas assim, que perderam emprego né, que estão em situação, que estão sobrevivendo de ajuda de outras pessoas, né? (8F54B)

Aí ficou muito difícil, depois que eu vi que tava apertando, aí eu recorri aquele Auxílio Calamidade [...], só que demorou, nossa eu já até tinha esquecido já, demorou demais a ajuda do Auxílio Calamidade [...]. (18M41P)

No Brasil, Boschettie e Behring (2021BOSCHETTI, I.; BEHRING, E. R. Assistência Social na pandemia da covid-19: proteção para quem? Serviço Social & Sociedade, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-6628.238 . Acesso em: 26 set. 2022.
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) analisaram os programas e ações de assistência social durante a pandemia e arguiram que diante da orientação ultraliberal do governo brasileiro que já provocava uma progressiva perda de direitos sociais, expressos na “reforma fiscal” e contrarreforma trabalhista. Por exemplo, a proteção social oferecida à população durante o isolamento social, além de ter sido retardada pela resistência do governo em implantá-las, estruturou-se a partir de programas de transferência monetária, sempre com valores muito abaixo do necessário e insuficientes para alcançar toda a parcela da população afetada. Foram, portanto, ineficazes em mitigar os efeitos da pandemia em dimensões coletivas. Em muitos relatos, como o de 8F54B, fica claro o reconhecimento de que os benefícios não chegam a todos e em outros como o 18M41P a demora para o início da efetivação do benefício.

Cavalcante (2021CAVALCANTE, A. A. Proteção social e pandemia da Covid-19: o lugar da transferência de renda. Temporalis, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.22422/temporalis.2021v21n41p205-218 . Acesso em: 11 out. 2022.
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), a partir de um estudo documental de literatura, legislações e base de dados, sobre os impactos da pandemia de Covid-19 na Política de Assistência Social do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), concluiu que o contexto pandêmico referendou uma continuidade da inacessibilidade a direitos e da desigualdade social, demonstrando, de forma evidente, um baixíssimo nível de proteção oferecida às parcelas mais vulneráveis da população, confirmadas pelo crescimento exponencial da pobreza e da insegurança alimentar.

SorattoSORATTO, J.; SOUZA, D. F. Interfaces entre austeridade, necropolítica e o mito da pandemia democrática: provocações à brasileira. Physis: Revista de Saúde Coletiva [online]. v. 31, n. 3, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312021310310 . Acesso em: 17 out. 2022.
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et al. (2021) demonstraram também que no enfrentamento da pandemia pelo governo brasileiro não foram apresentadas propostas interventivas estratégicas que abrangessem os povos mais vulneráveis atingidos. Para eles, portanto, o contexto pandêmico vivido no Brasil não permite considerá-lo como democrático, na medida em que a exposição ao vírus não ocorreu na mesma intensidade pela população, como também não se alcançaram condições para sua proteção nas dimensões biológica e social. Ney e Gonçalves (2020NEY, M. S.; GONÇALVES, C. A. G. A bipolaridade da crise sanitária: sofismas economicistas e impactos sociais na pandemia do coronavírus. Physis: Revista de Saúde Coletiva [online]. 2020, v. 30, n. 02. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312020300212 . Acesso em: 17 out. 2022.
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), por outro lado, destacam que as políticas públicas de saúde e assistência social, já existentes, vinham sofrendo danos progressivos com perda de investimentos e de implementação, antes mesmos de passarem a ser consideradas como essenciais no período pandêmico. Os autores ilustram esses dados com o exemplo da emenda constitucional que congelou por 20 anos os gastos em Saúde e Assistência Social, na aplicação do que chamaram “critérios de miserabilidade dos benefícios mínimos” (p. 4).

No momento em que este artigo estava sendo escrito, a imprensa estava noticiando o fato de pessoas estarem dormindo na fila dos CRAS no DF para obter os benefícios, em uma demonstração de que eles eram, claramente, insuficientes para todos (Eleutério; Marra, 2022ELEUTÉRIO, J.; MARRA, P. Mulher morre de infarto no Paranoá enquanto esperava na fila do Cras. 2022. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2022/08/5029980-mulher-morre-no-paranoa-ao-esperar-atendimento-na-fila-do-cras.html . Acesso em: 11 out. 2022.
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).

A categorização das narrativas demonstra diferentes aspectos da vulnerabilidade social e como ela potencializou os efeitos da pandemia sobre a vida das pessoas. O conceito de vulnerabilidade social porta um sentido de susceptibilidade, características que nos deixam aptos a sermos lesados por um evento externo qualquer, e um sentido de risco, representando diferentes frequências e magnitudes com que esse evento pode ocorrer em diferentes grupos sociais. Esses componentes da vulnerabilidade não se distribuem ao acaso no conjunto da sociedade. A partir desses parâmetros, vulnerabilidade social em saúde pode ser conceituada como “o estado de sujeitos e comunidades nos quais a estrutura de vida cotidiana, determinada por fatores históricos ou circunstanciais momentâneos tem influência negativa sobre os fatores determinantes e condicionantes de saúde” (Lorenzo, 2006LORENZO, C. Vulnerabilidade em Saúde Pública: implicações para as políticas públicas. Revista Brasileira de Bioética, v. 2, n. 3, p. 299-312, 2006., p. 300).

Algumas das condições que integram essa vulnerabilidade, como raça, gênero feminino, desemprego e pobreza, se apresentavam na quase totalidade do grupo recrutado em nossa pesquisa. Ainda que, pelos nossos dados, não tenha sido possível determinar com que frequência os participantes puderam seguir recomendações de isolamento social, uso constante de álcool em gel e máscaras, considerando as características sociodemográficas do grupo, suas formas de vida cotidianas e seus locais de moradia em conglomerados urbanos não planificados, deduz-se facilmente que a manutenção dessas medidas era extremamente difícil ou mesmo impossível. Dessa forma, fica claro que as próprias violências estruturais a que essas parcelas das populações estão submetidas elevam tanto a susceptibilidade ao vírus, quanto o risco em contrair formas graves.

A Política de Assistência Social no Distrito Federal, como as dos demais estados, se dirigem, sobretudo, a essa parcela socialmente vulnerável da população. Ela foi duramente atingida pela pandemia, seus efeitos podem ser ilustrados no grande aumento de demanda de atendimento nos CRAS apresentada na introdução desse artigo. Os CRAS são vistos como locais onde é possível para a população obter uma escuta qualificada das muitas e muitas falas de pessoas sofrendo fome, doença, desemprego. Obviamente, o sistema consegue apenas mitigar esses sofrimentos, cujas origens estão na estruturas socioeconômicas e políticas mais profundas do país. Dadas as complexidades dessas diversas demandas, é imperioso que os CRAS trabalhem de forma intersetorial, buscando realizar articulações com diversos órgãos de poder e políticas públicas, fundamentada em uma compreensão multidimensional da pobreza.

Ademais, essas demandas são sempre superiores à capacidade de respostas do sistema, em parte devido à escassez de recursos orçamentários e humanos, o que foi, como demonstrado, agravado de forma significativa pela pandemia. Dessa forma, as imensas filas acabam por ser os principais entraves e obstáculos à realização de um trabalho de excelência, submetendo as famílias a situações indignas como a de passarem dias dormindo nas filas para obter um benefício, que depois de solicitados podiam durar meses para se efetivarem. É imprescindível, portanto, que as concessões dos benefícios eventuais e programas de transferência de renda sejam realizadas de maneira mais célere para melhoria da proteção a essas famílias socialmente vulneráveis.

Considerações finais

Os resultados deste estudo demonstram, em maior profundidade, por meio das vozes daqueles atingidos pelo flagelo da pobreza e da insegurança alimentar provocados ou agravados pela pandemia, a grave situação social que os estudos estatísticos já revelavam em sua grandeza. Nossa pequena amostra de 27 pessoas, apesar de adequada à metodologia escolhida, foi representativa do grupo social que mais acessa o sistema dos CRAS em busca dos benefícios sociais, formado por mulheres negras chefes de famílias monoparentais de classes socioeconomicamente desfavorecidas.

Extrapolando as experiências descritas nesses relatos pelos enormes contingentes revelados por esses estudos quantitativos, tem-se uma ideia mais concreta do sofrimento disseminado por todo o território nacional, e muitas vezes mantido invisibilizado. Entretanto, estudos de maior extensão podem ser necessários para uma caracterização mais minuciosa e representativa do fenômeno que os limites da nossa amostragem não permitem. Outro limite do estudo é que, sendo uma das pesquisadoras servidora do CRAS, ainda que se tenha tido o cuidado de não recrutar participantes que houvessem sido atendidas por ela, isso poderia ter induzido participantes a omitir algumas estratégias de sobrevivência, outras fontes de recursos obtidas, trabalhos esporádicos etc., por receio de influenciar na manutenção de seus benefícios.

A maioria dos participantes desta pesquisa procurou a Política de Assistência Social, por meio do CRAS, para tentar resolver, sobretudo, o problema de insegurança alimentar e da fome. Os benefícios emergenciais que obtiveram, apesar da importância que tiveram para suas famílias naquele momento específico, estão longe de serem suficientes para permitirem que as famílias atravessassem suas dificuldades em condições de maior respeito pela dignidade humana. Faz-se necessário desenvolver novas estratégias intersetoriais de geração de emprego e transferência de renda, por meio de ações intersetoriais e maior articulação entre políticas já existentes, para que o país possa enfrentar os desastrosos efeitos socioeconômicos da pandemia, que perdurarão ainda por muitos anos.1

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2022
  • Aceito
    31 Jul 2023
  • Revisado
    23 Maio 2023
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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