A política de Redes de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: contextos de influência e de produção de textos

Luís Fernando Nogueira Tofani Lumena Almeida Castro Furtado Rosemarie Andreazza Arthur Chioro Sobre os autores

Resumo

O artigo tem por objetivo analisar os contextos de influência e de produção de textos da política de Redes de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) no Brasil através da Abordagem do Ciclo de Políticas. Empreendeu-se pesquisa qualitativa através da análise documental de textos legais, publicações técnicas e acadêmicas para análise dos contextos de influência e de produção dos textos da RUE, não sendo objeto deste estudo o contexto da prática. O contexto de influências evidenciou a disputa pela legitimação do SUS, o neoliberalismo, o subfinanciamento, o gerencialismo, a crise dos hospitais e o predomínio do modelo de Redes de Atenção à Saúde. Já os textos expressam valores de cidadania, acesso, qualidade e integralidade; propósitos de nacionalização e melhoria do tempo-resposta; influências da política anterior de urgência e de humanização, da área de administração hospitalar e de conceitos do campo da Saúde Coletiva. O caráter plural e multifacetado da política pode trazer desafios no contexto da prática, a serem pesquisados em estudos futuros, devido à necessidade de desenvolvimento e articulação de distintas ideias e práticas identificadas nos textos e resultantes das múltiplas e diversas influências. Ainda, estas podem ser ressignificadas e atravessadas por vetores e disputas em campos de práticas singulares da gestão descentralizada e diversa no país, nos diferentes serviços, municípios e regiões de saúde.

Palavras-chave:
Assistência à saúde; Serviços de urgência; Política de saúde

Introdução

A Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) foi proposta pelo Ministério da Saúde como uma das redes temáticas constitutivas da política de Redes de Atenção à Saúde (RAS) (Brasil, 2014) entre 2011 e 2013, primeiros anos do primeiro mandato da presidente Dilma Roussef. Essa proposição introduziu o modelo poliárquico para a organização do cuidado em saúde, com o objetivo de proporcionar melhores resultados epidemiológicos, de integralidade e qualidade do cuidado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 2010).

A normativa legal que instituiu a RUE propôs como finalidades a articulação e a integração dos equipamentos de saúde, com o objetivo de ampliar e qualificar o acesso dos usuários em situação de urgência e emergência de forma ágil e oportuna. A RUE foi estruturada a partir dos seguintes componentes: a) Promoção, Prevenção e Vigilância à Saúde; b) Atenção Básica em Saúde; c) Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192) e suas Centrais de Regulação Médica das Urgências; d) Sala de Estabilização; e) Força Nacional de Saúde do SUS; f) Unidades de Pronto Atendimento (UPA 24h) e o conjunto de serviços de urgência vinte e quatro horas; g) componente Hospitalar; e h) Atenção Domiciliar (Brasil, 2011a).

Para Jorge . (2014JORGE, A. O. et al. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulgação em Saúde para Debate, v. 52, p. 125-145, 2014.), a atenção às urgências apresenta-se como pauta fundamental e prioritária, tanto para o governo federal como para os estados e municípios, dada a magnitude dos problemas nesta área e a necessidade de intervenção para a melhoria no atendimento. Os serviços de urgência no SUS, na sua maioria, têm sido marcados pela desorganização, superlotação e baixa integração com os demais pontos de atenção. Nas portas de urgência se misturam pessoas com hipóteses diagnósticas graves - como acidente vascular cerebral (AVC), infarto agudo do miocárdio (IAM), vítimas de acidentes e violência -e pessoas com queixas de baixa gravidade, agravando a superlotação.

A escolha da rede temática de atenção às urgências como objeto de investigação se deu pela relevância e repercussão do tema para a integralidade e qualificação do cuidado em saúde, pela incipiente produção acadêmica identificada e também com vistas a contribuir para a análise e qualificação de políticas públicas de saúde.

Se já é desafiadora a implantação de uma política como a RUE que se propõe a organizar e prestar serviços em diferentes pontos de redes, mais ainda torna-se tomá-la, enquanto política pública, como objeto de investigação e análise. O modelo do Ciclo de Políticas (Howlett; Ramesh, 1995HOWLETT, M.; RAMESH, M. Public Policy. Canada: Oxford University Press, 1995.) tem sido classicamente utilizado para análise de políticas públicas e subdivide o processo em cinco fases: montagem da agenda, formulação da política, tomada de decisão, implementação e avaliação (Pinto ., 2015PINTO, I. C. M. et al. Ciclo de uma Política Pública de Saúde: Problematização, Construção da Agenda, Institucionalização, Formulação, Implementação e Avaliação. In: MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. F. (orgs.). Caminhos para análise de políticas de saúde. Porto Alegre: Rede Unida, 2015.). Entretanto, críticas apontam para uma compreensão fragmentada e baseada na previsibilidade e suposta neutralidade do modelo, frente à complexidade dos processos das políticas públicas que não podem se limitar a fases estanques e sucessivas (Baptista; Rezende, 2015REZENDE, M.; BAPTISTA, T. W. F. A Análise da Política Proposta Por Ball. In: Mattos RA, Baptista TWF (orgs). Caminhos para Análise de Políticas de Saúde. Porto Alegre: Rede Unida, 2015.).

É importante considerar que as políticas - compreendidas em sua complexidade e caracterizadas por elementos instáveis e ambivalentes - estão em permanente movimento através do tempo e do espaço, delineando uma trajetória e mantendo sempre um grau de incerteza. Stephen Ball propõe um método para a análise de políticas que busca compreender o movimento único de cada política por meio da identificação de seus elementos constituintes e da compreensão da interação ímpar destes elementos em sua específica conjuntura histórica (Rezende; Baptista, 2015REZENDE, M.; BAPTISTA, T. W. F. A Análise da Política Proposta Por Ball. In: Mattos RA, Baptista TWF (orgs). Caminhos para Análise de Políticas de Saúde. Porto Alegre: Rede Unida, 2015.). Desta forma, a Abordagem do Ciclo de Políticas (ACP), proposta por Ball (1994), considera a política como texto e como discurso e estuda os contextos de influência, de produção de textos e da prática. Neste artigo não é abordado o contexto da prática. O estudo tem o objetivo de analisar os contextos de influência e de produção de textos da política de Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil a partir do referencial da Abordagem do Ciclo de Políticas.

Metodologia

O desenho de pesquisa tem caráter qualitativo, analítico e foi desenvolvido a partir de análise documental. O período de estudo se situa inicialmente entre 2003 e 2014, compreendendo as primeiras influências identificadas, a formulação e o início da implementação da Política da RUE no país.

O principal referencial teórico-metodológico utilizado é a ACP (Ball, 1994BALL, S. J. What is policy? Texts, trajectories and toolboxes. In: BALL, S. J. (Ed.). Education Reform: a critical and post-structural approach. London: Open University Press, 1994.) que possibilita uma visão não linear e fragmentada da política em estudo, pois a própria ideia de contextos oferece uma possibilidade de leitura não unilateral, mas multidisciplinar e global, sendo que as etapas do ciclo não ocorrem isoladamente. Ao contrário, elas se entrelaçam num movimento de interação e se completam (Jesus, 2014JESUS, R. B. Políticas Públicas e o Ciclo de Políticas: Uma Análise da Política de Educação do Mato Grosso. Rev Cien Eletronic Pedag., v. 24, 2014.). Nesta pesquisa também são agregados outros referenciais teórico-conceituais à medida em que se toma contato com o material empírico. Como refere Ball (Mainardes; Marcondes, 2009), se você quiser desenvolver uma análise mais coerente e articulada do mundo, precisa de diferentes tipos de teoria, ou seja, de um pluralismo teórico.

Após a pesquisa de artigos publicados e análise de documentos oficiais de instituição da política da RUE, também foram coletados materiais de outras fontes como sítios eletrônicos, notícias da imprensa e outras publicações sobre a temática. O material foi analisado através de adaptação das questões norteadoras propostas por Mainardes (2006MAINARDES, J. Abordagem do Ciclo de Políticas: Uma Contribuição para a Análise de Políticas Educacionais. Educ Soc., v. 27, n. 94, p. 47-69, 2006.) para o contexto de influência e o contexto de produção de textos, tendo como referência a ACP (Ball, 1994BALL, S. J. What is policy? Texts, trajectories and toolboxes. In: BALL, S. J. (Ed.). Education Reform: a critical and post-structural approach. London: Open University Press, 1994.).

O estudo foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e dispensou a aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa, pois não envolveu seres humanos, tendo sido desenvolvido a partir de documentos de domínio público e disponíveis virtualmente.

Resultados e Discussão

Os resultados são apresentados e discutidos em duas seções: contexto de influências e contexto de produção de texto na RUE, reconstituindo o cenário à época da decisão e formulação da política, bem como o discurso materializado de forma escrita.

O contexto de influências na formulação da RUE

O contexto de influência é caracterizado pelo início da política pública. É quando os primeiros discursos emergem, juntamente com os interesses dos grupos políticos, a fim de influenciarem na constituição e definição da política. Neste momento, os conceitos e outras referências de base passam a ter legitimidade, por meio da participação dos diferentes grupos de interesse (Jesus, 2014JESUS, R. B. Políticas Públicas e o Ciclo de Políticas: Uma Análise da Política de Educação do Mato Grosso. Rev Cien Eletronic Pedag., v. 24, 2014.).

Ao se reconstituir o processo histórico que culminou na política da RUE, é importante compreender a implantação do SUS no Brasil enquanto política pública. O SUS é definido como um sistema universal de saúde, constituído por uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços (Brasil, 1988), sendo fundamental para efetivação do direito constitucional à saúde no país.

Nas últimas décadas as diretrizes organizacionais da descentralização e regionalização foram materializadas e propiciaram avanços e desafios na estruturação do sistema (Reis ., 2017REIS, A. A. C. et al. Reflexões para a Construção de uma Regionalização Viva. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 4, p. 1045-1054, 2017.). Para Viana et al. (2018), os ciclos políticos de organização do SUS compreenderam dois períodos nos quais prevaleceram a descentralização para os entes subnacionais. O primeiro, entre 1988 e 2000, teve como principal característica o protagonismo da esfera municipal; o segundo, entre os anos de 2000 e 2016, a regionalização, culminando no modelo das RAS. A construção de redes de atenção à saúde no SUS pressupõem uma organização regionalizada, nos moldes dos sistemas nacionais de saúde, com referencial teórico remetendo ao Relatório Dawson, atualizado na proposta da Organização Panamericana da Saúde (Kuschnir; Chorny, 2010KUSCHNIR, R.; CHORNY, A. H. Redes de atenção à saúde: contextualizando o debate. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, p. 2307-2316, 2010.). No modelo de federalismo cooperativo brasileiro, para as regiões de saúde foram instituídas Comissões Intergestores Regionais (CIR) que são instâncias de pactuação consensual entre os entes federativos para definição das regras da gestão compartilhada do SUS (Brasil, 2011b). Estes colegiados prescindem de uma autoridade sanitária regional e para Machado e Palotti (2015MACHADO, J. A.; PALOTTI, P. L. M. Entre cooperação e centralização: federalismo e políticas sociais no Brasil pós-1988. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 30, n. 88, p. 61-82, 2015.) há uma nítida diferenciação dos poderes da União não só na sua capacidade de controle da agenda, mas também de induzir apoio a programas federais que sinalizam com novos recursos financeiros.

O SUS mantém-se como um projeto contra hegemônico enquanto sistema público e universal de saúde desde que foi criado, no final dos anos 80 e início da década de 90, principalmente a partir do crescimento do neoliberalismo enquanto tendência econômica mundial e consequente inflexão de investimentos públicos em políticas sociais, o que se mantém até os dias atuais. Para compreender esse contexto é fundamental conectar as dimensões econômicas, sociais e ideológicas presentes na construção e operacionalização de uma política de saúde. Entender o processo brasileiro de inserção no mundo globalizado, dependente cada vez mais do mercado financeiro no contexto do neoliberalismo, possibilita compreender os entraves e desafios na implantação do SUS (Mendes, 2012).

Segundo Lima (2010SÁ, M. C.; AZEVEDO, C. S. Trabalho, sofrimento e crise nos hospitais de emergência no Rio de Janeiro. In: UGÁ, M. A. D. et al. (orgs.). A gestão do SUS no âmbito estadual: o caso do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.), a partir da década de noventa, o Brasil caminhou no sentido de um amplo consenso neoliberal, favorável à implementação do programa de estabilização, ajuste e reformas institucionais do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, obedecendo suas diretrizes de abertura irrestrita da economia, desregulamentação comercial e financeira, desregulação do mercado de trabalho e enxugamento do Estado. Do ponto de vista social, assiste-se à privatização do financiamento e da produção dos serviços, à precarização das políticas públicas com o corte dos gastos sociais e à focalização dos investimentos nos grupos mais vulneráveis.

Para Mendes (2012), a crise do financiamento do SUS transcorre sobre um longo processo de conflitos e embates entre atores do campo social da saúde pública que defendem a seguridade social e a saúde enquanto um direito de todos e dever do Estado, e atores que advogam uma política econômica restritiva e sustentada pelo princípio da contenção de despesas públicas. No campo governamental são identificadas tensões constantes entre os gestores da saúde e as áreas econômica e de planejamento, enquanto cenário de disputas por recursos para o SUS. Este cenário de subfinanciamento constitui uma importante influência nacional à política de saúde no Brasil.

O crescimento do discurso e das práticas neoliberais não se restringiu apenas ao campo da economia, mas também teve impacto na administração pública, inclusive a brasileira, com a adoção do gerencialismo (Pereira, 1999PEREIRA, L. C. B. Reflexões sobre a reforma gerencial brasileira de 1995. Rev Serv Publico, v. 50, n. 4, p. 5-30, 1999.). A Emenda Constitucional nº 19 de 1998 incluiu o princípio da eficiência e propôs a transição da administração pública burocrática para a administração gerencial, cuja característica principal é o controle por resultados e não por processos (Tofani; Sguarezi, 2016TOFANI, L. F. N.; SGUAREZI, D. O Estado brasileiro e os fundamentos da Administração Pública. In: PEREIRA, A. C. et al. (Orgs.). Gestão pública em saúde: fundamentos e práticas. Águas de São Pedro: Livronovo, 2016.).

Enquanto influência global, a Nova Gestão Pública, também chamada de gerencialismo, além de ampliar a importação de técnicas típicas da gestão privada para o setor público (Menezes; Leite, 2016MENEZES, D. H. L.; LEITE, J. L. A Nova Configuração da Política de Saúde no Brasil: o Rio de Janeiro como laboratório. R Pol Públic., v. 20, n. 1, p. 121-36, 2016.), propõe com grande ênfase eliminação, privatização e terceirização de serviços públicos, tendo como prescrições operacionais: desagregação do serviço público em unidades especializadas e centros de custos; competição entre organizações públicas e privadas; atenção à disciplina e parcimônia; administradores empreendedores com autonomia; avaliação de desempenho; e, avaliação centrada em resultados e produtividade (Secchi, 2009SECCHI, L. Modelos organizacionais e reformas da administração pública. Rev Adm Pública, v. 43, n. 2, p. 347-69, 2009.).

A formulação e instituição da RUE (Brasil, 2011a) deu-se no primeiro ano da gestão de Dilma Rousseff como presidente do Brasil. Sua gestão imprimiu um estilo próprio, caracterizado por ênfase técnica em resultados e maior acompanhamento de metas (Ihohara; Rocha, 2011). Esta concepção de administração pública também se repetiu enquanto influência setorial na área da saúde. Em seu discurso de posse, o Ministro da Saúde Alexandre Padilha se comprometeu, dentre outras prioridades, com a implantação de um indicador nacional de garantia da qualidade e acesso como meta permanente para cada esfera de governo (Padilha, 2011). Portanto, a busca por resultados na área da saúde - de acesso, qualidade e tempo oportuno - sob monitoramento de indicadores e metas, estava presente enquanto influência no período de formulação da política da RUE.

O cenário à época era também composto pela persistente crise de superlotação de hospitais e portas de urgência do SUS, em especial no Rio de Janeiro (Sá; Azevedo, 2010SÁ, M. C.; AZEVEDO, C. S. Trabalho, sofrimento e crise nos hospitais de emergência no Rio de Janeiro. In: UGÁ, M. A. D. et al. (orgs.). A gestão do SUS no âmbito estadual: o caso do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.). A superlotação nos serviços de urgência é um fenômeno mundial e caracteriza-se por ter todos os leitos do serviço ocupados num mesmo espaço e período, pacientes acamados nos corredores, tempo de espera para atendimento acima de uma hora, alta tensão na equipe assistencial e grande pressão para novos atendimentos (Bittencourt; Hortale, 2009BITTENCOURT, R. J.; HORTALE, V. A. Intervenções para solucionar a Superlotação nos Serviços de Emergência Hospitalar: uma Revisão Sistemática. Cadernos de Saúde Pública, v. 25, n. 7, p. 1439-1454, 2009.). No Brasil, este fenômeno aponta para uma desproporção entre a demanda dos usuários que chegam aos serviços e a capacidade de oferta de atendimentos, mas também a insuficiente gestão dos serviços (Coutinho, 2010COUTINHO, A. A. P. Classificação de Risco no Serviço de Emergência: uma análise para além de sua dimensão tecnoassistencial. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.). Esta situação de crise dos serviços de urgência é também compreendida como uma influência na decisão política pela estruturação da RUE devido à demanda da sociedade por soluções, por sua visibilidade através da mídia e pela exploração do tema no processo eleitoral.

Enquanto influências internacionais observam-se as recomendações da Organização Pan-americana da Saúde (OPAS, 2010SÁ, M. C.; AZEVEDO, C. S. Trabalho, sofrimento e crise nos hospitais de emergência no Rio de Janeiro. In: UGÁ, M. A. D. et al. (orgs.). A gestão do SUS no âmbito estadual: o caso do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.) para organização dos sistemas de saúde em Redes Integradas de Serviços de Saúde. Este modelo foi proposto para enfrentar o complexo cenário das necessidades de saúde e para acabar com a fragmentação que enfraquece a maioria dos sistemas de saúde do mundo. No Brasil, foi adaptado para o SUS como Redes de Atenção à Saúde (RAS), cujo desenvolvimento teórico-conceitual deu-se por uma parceria entre o Ministério da Saúde, a OPAS e o Conselho de Secretários de Saúde (CONASS). Utilizou-se como referência a experiência no estado de Minas Gerais, descrita por Mendes (2011MENDES, E. V. As Redes de Atenção à Saúde. Brasília: OPAS, 2011.), determinante na formulação da política, e que define as RAS como redes constituídas por diversos pontos de atenção à saúde, com centralidade da atenção básica, sistemas logísticos e de apoio.

Assim, ao se propor uma genealogia para a construção histórica da Política da RUE no SUS, são identificadas influências globais, nacionais e locais que a fizeram emergir: o contexto de disputa pela implantação e legitimação do SUS, incluindo seu processo organizativo; o cenário econômico do neoliberalismo e subfinanciamento da política pública de saúde; o fortalecimento do gerencialismo e a busca de resultados na administração pública; a necessidade de uma resposta política dos atores que assumiram a condução do governo federal que se iniciava à demanda social pela solução da crise dos hospitais públicos e portas de urgência; e, as influências internacional e nacional para organização do sistema de saúde a partir do modelo conceitual de RAS.

Contexto de produção dos textos da RUE

O contexto da produção do texto de uma determinada política pública compreende o resultado das disputas e dos acordos políticos estabelecidos para que ela seja formulada. Os discursos materializados linguisticamente revelam os jogos de poder e os interesses dos atores diversos envolvidos no e com o processo de formulação da política (Jesus, 2014JESUS, R. B. Políticas Públicas e o Ciclo de Políticas: Uma Análise da Política de Educação do Mato Grosso. Rev Cien Eletronic Pedag., v. 24, 2014.).

Para análise do contexto de produção de textos da RUE, foram definidos como escopo nove normativas legais que a regulamentaram, duas publicações técnicas do Ministério da Saúde e dois artigos publicados por autores que também foram atores estratégicos para sua formulação e implementação (Quadro 1). Foram analisados seus conteúdos, incluindo também as introduções, considerandos, notas, prefácios e anexos.

Quadro 1
Documentos analisados para reconstituição do contexto de produção de textos da RUE

A RUE foi formulada e instituída em 2011 como rede temática no contexto das RAS, enquanto uma das prioridades estabelecidas pelo governo federal (Brasil, 2013a). Seu principal marco legal foi a Portaria GM-MS no 1.600, de 7 de julho de 2011 (Brasil, 2011a), que reformulou a Política Nacional de Atenção às Urgências, definindo os componentes desta rede e os incentivos a serem disponibilizados aos estados e municípios para sua implementação (Jorge ., 2014JORGE, A. O. et al. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulgação em Saúde para Debate, v. 52, p. 125-145, 2014.). A RUE foi formulada pela equipe do Departamento de Atenção Hospitalar e Urgências da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, composta principalmente por quadros técnico-políticos, com experiência em gestão e oriundos principalmente dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais (JORGE ., 2014JORGE, A. O. et al. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulgação em Saúde para Debate, v. 52, p. 125-145, 2014.), de onde trouxeram suas vivências e contribuições. Foi pactuada na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) com as representações dos gestores estaduais (CONASS) e municipais (CONASEMS) (Padilha ., 2018PADILHA, A. R. S. et al. Fragilidade na governança regional durante implementação da Rede de Urgência e Emergência em Região Metropolitana. Saúde debate, v. 42, n. 118, p. 579-93, 2018.) mediante processo de negociação e formulação de consenso, seguindo os fluxos de gestão interfederativa do SUS no país (Brasil, 2011b).

A política, ao ser formulada, foi inicialmente denominada como Rede de Atenção às Urgências (RAU) (Brasil, 2011a). Em 2012 a RAU passou a ser oficialmente denominada, mediante redefinição em portaria, como Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) (Brasil, 2012a), adaptando-se a normativa legal à terminologia mais usual entre gestores e trabalhadores do SUS. Nos documentos analisados, foram identificados como principais valores expressos na política: a cidadania, o acesso, a qualidade e a integralidade.

A cidadania é declarada enquanto compreensão do conceito da saúde como direito social resultante das condições de vida da população e garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos (Brasil, 2011a). Esta concepção atravessa todos os textos como uma premissa conformada na tríade: saúde, direito e cidadania.

O acesso é um valor presente nos textos com grande intensidade e frequência literal. A política da RUE considera que o atendimento aos usuários com quadros agudos deve ser prestado por todas as portas de entrada dos serviços de saúde (Brasil, 2014), ampliando-se o acesso e o acolhimento, contemplando a classificação de risco e a intervenção necessária aos diferentes agravos (Brasil, 2011a), de modo ininterrupto nas 24 horas do dia, em todos os dias da semana (Brasil, 2011c), sendo ofertado a toda a população brasileira (Brasil, 2012b).

A qualidade da assistência à saúde na RUE é declarada como um imperativo devido ao necessário ganho de resolutividade almejado (Brasil, 2011a; 2012b). A conformação de linhas de cuidado (Brasil, 2011a) para os agravos mais prevalentes em situações de urgência e emergência expressam este valor. Além da estruturação e organização dos fluxos, as linhas de cuidado do Infarto Agudo do Miocárdio, do Acidente Vascular Cerebral e do Trauma (Brasil, 2011d; 2012a; 2013b) buscam induzir mudanças no modo de produzir o cuidado a partir da instituição de práticas clínicas qualificadas (Brasil, 2013a). A criação e habilitação de centros hospitalares especializados, como as Unidades Coronarianas, os Centros de Atendimento de Urgência ao Acidente Vascular Cerebral e os Centros do Trauma (Brasil, 2011d; 2012a; 2013b) alocam novos recursos financeiros aos serviços. Também introduzem novos procedimentos (Brasil, 2011d), induzem a implantação de arranjos (Brasil, 2011c; 2011e) e dos Núcleos de Acesso e Qualidade Hospitalar (Brasil, 2011e). A formulação e adoção de protocolos clínicos (Brasil, 2012a; 2011d; 2011e), associados aos necessários processos de formação e educação permanente das equipes de saúde (Brasil, 2011a; 2013a), são colocados como condições obrigatórias para a qualificação dos pontos de atenção (Brasil, 2011c; 2012b) e agregação de novos valores de financiamento, remetendo aos processos de certificação de qualidade e acreditação hospitalar.

A integralidade é um valor expresso nos textos da política sob variadas concepções. Sob a ótica do conceito amplo de saúde, entende-se que o enfrentamento das situações de urgência e emergência e de suas causas requer não apenas a assistência imediata, mas inclui ações de promoção da saúde e prevenção de doenças e agravos, o tratamento contínuo das doenças crônicas, a reabilitação e os cuidados paliativos (Brasil, 2013a). Também é compreendida enquanto articulação e integração dos diversos serviços e equipamentos de saúde, constituindo redes de saúde com conectividade entre os diferentes pontos de atenção (Brasil, 2011a). Isso se expressa na proposta de articulação de unidades básicas de saúde, SAMU 192, portas de urgência, unidades hospitalares, unidades de apoio diagnóstico e terapêutico e outros serviços de atenção à saúde, construindo fluxos coerentes e efetivos de referência e contrarreferência, ordenados por meio de centrais de regulação e complexos reguladores instalados nas regiões de saúde (Brasil, 2011c). Ainda, em relação ao cuidado integral em saúde, propõe-se a organização do trabalho das equipes multiprofissionais de forma horizontal, utilizando-se prontuário único compartilhado por toda a equipe, a implantação de mecanismos de gestão da clínica, a reorganização dos fluxos, dos processos de trabalho e a implantação de equipes de referência para responsabilização e acompanhamento dos casos (Brasil, 2011e).

Enquanto intenções e propósitos, os textos da política da RUE indicam os objetivos de implantação nacional da política e da melhoria do tempo-resposta às condições urgentes de saúde. Indica-se que a RUE deve ser implementada, gradativamente, em todo território nacional, respeitando-se critérios epidemiológicos e de densidade populacional (Brasil, 2011a), devendo cada região de saúde elaborar e pactuar seu Plano de Ação Regional (Brasil, 2013a). Além disso, propõe como meta que o acesso ao sistema de saúde dos usuários em situação de urgência e emergência seja efetuado de forma ágil e em tempo oportuno (Brasil, 2011a; 2013a), pois o acesso em tempo não compatível com as necessidades do primeiro atendimento pode aumentar os óbitos, o período de internação hospitalar e as sequelas decorrentes da ausência de socorro (Brasil, 2014).

Experiências prévias na área de urgência e emergência, como a implantação do SAMU 192 (Brasil, 2004) e da UPA 24h (Brasil, 2009; Konder; & O’Dwyer, 2015KONDER, M. T.; O’DWYER, G. As Unidades de Pronto-Atendimento na Política Nacional de Atenção às Urgências. Physis-Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 525-545, 2015.), são incorporadas e reorientadas no contexto da RUE, assim como a política anterior de Atenção às Urgências (Brasil, 2003) que já previa a organização de redes locorregionais de atenção integral às urgências. São identificados também elementos da Política Nacional de Humanização do SUS nos aspectos ligados aos processos de trabalho nos serviços hospitalares, às diretrizes do acolhimento, da clínica ampliada e ainda a implantação de dispositivos desencadeadores de transformações das realidades dos hospitais (Brasil, 2011f). Ações que buscam garantir a efetivação de um modelo centrado no usuário e baseado nas suas necessidades de saúde (Brasil, 2011a).

Enquanto forte influência teórica identifica-se o modelo conceitual das RAS (Brasil, 2010SÁ, M. C.; AZEVEDO, C. S. Trabalho, sofrimento e crise nos hospitais de emergência no Rio de Janeiro. In: UGÁ, M. A. D. et al. (orgs.). A gestão do SUS no âmbito estadual: o caso do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.; OPAS, 2011). No Brasil, a produção de publicações através de parcerias entre a OPAS, o Ministério da Saúde, o CONASS e o CONASEMS (Silva, 2008SILVA, S. F. (org.). Redes de Atenção à Saúde no SUS: o pacto pela saúde e redes regionalizadas de ações e serviços de saúde. Campinas: IDISA/CONASEMS, 2008.; Mendes, 2011MENDES, E. V. As Redes de Atenção à Saúde. Brasília: OPAS, 2011.) movimentaram atores estratégicos e conformaram diretrizes posteriormente incluídas na política da RUE: um sistema hierarquizado e regulado, organizado em redes regionais de atenção às urgências enquanto elos de uma rede de manutenção da vida em níveis crescentes de complexidade e responsabilidade (Brasil, 2011a).

Outra influência teórica e instrumental observada diz respeito à área de gestão hospitalar e suas práticas administrativas (Farias; Araújo, 2017FARIAS, D. C.; ARAÚJO, F. O. Gestão hospitalar no Brasil: revisão da literatura visando ao aprimoramento das práticas administrativas em hospitais. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 6, p. 1895-1904, 2017.). Identificam-se elementos da atenção gerenciada nas diretrizes enunciadas que indicam: melhor definição dos processos de trabalho e instituição de práticas clínicas cuidadoras baseadas na gestão de linhas de cuidado (Brasil, 2013a), normatização de rotinas e adoção de protocolos (Brasil, 2012a; 2012b; 2013b), além do desenvolvimento de processos de certificação de qualidade dos componentes da RUE (Brasil, 2011c; 2012b;, 2011e). Observa-se, também, a incorporação da metodologia de gerenciamento de projetos, expressa na diretriz de institucionalização da prática de monitoramento e avaliação, por intermédio de indicadores de processo, desempenho e resultado que permitam avaliar e qualificar a atenção prestada (Brasil, 2013a).

Nos textos analisados, também puderam ser identificados alguns conceitos e premissas do campo da Saúde Coletiva, como o uso da epidemiologia, a promoção da saúde e a atenção básica/primária à saúde.

Barata (2013BARATA, R. B. Epidemiologia e políticas públicas. Rev Bras Epidemiol., v. 16, n. 1, p. 3-17, 2013.) reconhece que a epidemiologia não se desenvolveu separadamente do campo da saúde coletiva, seja como disciplina científica, seja como campo de práticas. Esta relação entre epidemiologia e saúde coletiva é identificada na incorporação dos conhecimentos epidemiológicos na formulação, implementação e avaliação de políticas públicas. A política da RUE é influenciada pela epidemiologia ao considerar que para a organização de uma rede que atenda aos principais problemas de saúde dos usuários na área de urgência é necessário considerar o perfil epidemiológico no Brasil. Ou seja, uma alta morbimortalidade relacionada às violências e acidentes de trânsito até os quarenta anos de idade e, acima desta faixa, uma alta morbimortalidade relacionada às doenças do aparelho circulatório (Brasil, 2011a). A política parte, assim, de um diagnóstico epidemiológico que a justifica, embasa e direciona.

A promoção da saúde vincula-se à concepção expressa na Carta de Ottawa, definindo ações de saúde que objetivam a redução das iniquidades, garantindo oportunidade a todos os cidadãos para fazerem escolhas que sejam mais favoráveis à saúde, sendo protagonistas no processo de produção da saúde e melhoria da qualidade de vida (WHO, 1986). No texto que regulamenta a RUE, o componente Promoção, Prevenção e Vigilância à Saúde é incluído com objetivos expressos de estimular e fomentar o desenvolvimento de ações de saúde voltadas para a vigilância e prevenção das violências e acidentes, das lesões e mortes no trânsito e das doenças crônicas não transmissíveis, além de ações intersetoriais, de participação e mobilização da sociedade visando à promoção da saúde, prevenção de agravos e vigilância à saúde (2011a). Partindo do conceito de determinação social do processo saúde-doença, para Malta . (2016MALTA, D. C. et al. Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS): capítulos de uma caminhada ainda em construção. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 6, p. 1683-1694, 2016.), a promoção da saúde, como conjunto de estratégias e formas de produzir saúde, no âmbito individual e coletivo, emerge marcada pelas tensões próprias na defesa do direito à saúde produzidas pelas disputas de sujeitos que almejam colocar determinados interesses e necessidades na agenda das políticas públicas. A promoção da saúde na RUE inclui ações intersetoriais e de mobilização social sobre os determinantes sociais dos acidentes, violências e condições crônicas, muitas vezes se contrapondo a interesses econômicos e do mercado que se sobrepõem às pretensas escolhas individuais saudáveis.

Nos textos normativos que regulamentam a RUE, o componente Atenção Básica tem por objetivo a ampliação do acesso, fortalecimento do vínculo, responsabilização e primeiro cuidado às urgências e emergências em ambiente adequado, até a transferência a outros pontos de atenção quando necessário, prevendo a implantação de acolhimento com avaliação de riscos e vulnerabilidades (Brasil, 2011a).

Aqui, podem ser observadas duas questões: uma de natureza aparentemente semântica e, outra, conceitual. Para Cecílio e Reis (2018CECÍLIO, L. C. O.; REIS, A. A. C. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cad Saude Publica, v. 34, n. 8, p. e00056917, 2018.), a utilização dos termos atenção primária à saúde e atenção básica à saúde, para além de uma questão semântica, implica na disputa de diferentes projetos para o SUS: enquanto o conceito de atenção básica à saúde não é uma pura reprodução de experiências e formulações internacionais, mas fruto de processo político que encontra suas raízes na própria história do Movimento Sanitário Brasileiro e da construção do pensamento da Saúde Coletiva, a atenção primária à saúde teria lugar em sistemas de saúde fundamentados em coberturas pretensamente universais, mas fragmentados e restritivos, que operam uma cesta básica que caberiam no orçamento dos países pobres, deixando o resto para o mercado, como preconizam o Banco Mundial e o FMI. Nos textos da RUE observa-se exclusivamente a utilização da terminologia atenção básica, em detrimento de atenção primária, reiterando os valores da cidadania e integralidade já declarados. A segunda questão que emerge é o papel do componente Atenção Básica na RUE. Pela regulamentação, ele teria por missão principal o acesso e referenciamento a outros pontos de atenção. Não foi reproduzido o discurso hegemônico de coordenação das redes pela atenção básica (ou primária) expresso na normatização das RAS (Brasil, 2010) e nos textos que as fundamentam (Mendes, 2011MENDES, E. V. As Redes de Atenção à Saúde. Brasília: OPAS, 2011.; OPAS, 2011). Tal posição prevista para a atenção básica na RUE, em que não lhe é facultada a ação coordenadora à semelhança do que ocorre em outras redes temáticas, remete a reflexões sobre o modelo organizativo de redes para situações de urgência e urgências, assim como o próprio conceito de RAS (Mendes, 2011) por expressar uma concepção distinta sobre como deveria ser estruturada.

Enquanto construção discursiva, os textos formulados para a política da RUE são bastante prescritivos. Para Mainardes (2006MAINARDES, J. Abordagem do Ciclo de Políticas: Uma Contribuição para a Análise de Políticas Educacionais. Educ Soc., v. 27, n. 94, p. 47-69, 2006.), um texto readerly (ou prescritivo) limita o envolvimento do leitor ao passo que um texto writerly (ou escrevível) convida o leitor a ser coautor do texto, encorajando-o a participar mais ativamente na interpretação do texto. Assim, um texto writerly, seria mais reflexivo e indutor da produção de novas práticas pelos atores envolvidos na implementação da política. Na política da RUE, seus textos a regulamentam e orientam, definindo condições para habilitação e qualificação de seus componentes (Brasil, 2011c; 2012b; 2011e), implantação das linhas de cuidados prioritárias (Brasil, 2012a; 2011d; 2013b), além da normatização dos processos planejamento, pactuação e financiamento (Brasil, 2011a). Enquanto conteúdo menos prescritivo, a normativa traz diretrizes para sua implementação que podem e devem ser ressignificadas nos contextos locorregionais para sua materialização. Para Ball (1994BALL, S. J. What is policy? Texts, trajectories and toolboxes. In: BALL, S. J. (Ed.). Education Reform: a critical and post-structural approach. London: Open University Press, 1994.), é vital reconhecer que estes dois estilos de textos são produto do processo de formulação da política, um processo que se dá em contínuas relações com uma variedade de contextos, incluindo a possibilidade do uso dos dois estilos de redação num mesmo texto.

O contexto amplo e complexo de formulação dos textos da RUE foi materializado em normativas e documentos técnicos que expressam: valores de cidadania, acesso, qualidade e integralidade; propósitos de expansão e nacionalização da política e melhoria do tempo-resposta; influências da política anterior de urgência (implantada em 2003 e que resultou na criação do SAMU e das UPAs), da política de humanização, do modelo conceitual de RAS e da área de administração hospitalar; além de conceitos e práticas do campo da Saúde Coletiva como a epidemiologia, a promoção da saúde e a atenção básica. Enfim, uma produção plural e multifacetada.

Considerações finais

Os textos da política da RUE são densos, complexos, diversos e predominantemente prescritivos, expressando os consensos possíveis entre os atores que a formularam e influenciaram, agregando diferentes valores, intencionalidades, influências, referenciais, conceitos e formas discursivas. A construção da política da RUE deu-se num contexto influenciado por vetores técnicos, políticos, econômicos e sociais como uma proposta de modelo para aperfeiçoamento do SUS, visando maior acesso e qualidade, como resposta às demandas da população. Esta normatividade e pluralidade regulamentam, adensam e enriquecem a política da RUE. Entretanto, podem trazer desafios objetivos no contexto da prática, a serem investigados em estudos futuros, devido à necessidade de desenvolvimento e articulação de distintas ideias e práticas, identificadas nos textos e resultantes das múltiplas e diversas influências. Ainda, estas podem ser ressignificadas e atravessadas por vetores e disputas em campos de práticas singulares da gestão descentralizada e diversa no país, nos diferentes serviços, municípios e regiões de saúde.11 L. F. N. Tofani e A. Chioro: concepção do projeto, análise e interpretação dos dados; redação do artigo; aprovação da versão a ser publicada; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra. L. A. C. Furtado e R. Andreazza: análise e interpretação dos dados; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; aprovação da versão a ser publicada; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra.

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    L. F. N. Tofani e A. Chioro: concepção do projeto, análise e interpretação dos dados; redação do artigo; aprovação da versão a ser publicada; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra. L. A. C. Furtado e R. Andreazza: análise e interpretação dos dados; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; aprovação da versão a ser publicada; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2022
  • Revisado
    15 Ago 2023
  • Aceito
    29 Ago 2023
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