Resumo
Este artigo pretende analisar a morbimortalidade da Covid-19 no Brasil, segundo quesito raça/cor, problematizando o conceito de raça como estruturante para uma atenção equânime na pandemia. Trata-se de uma pesquisa exploratória e reflexiva, com análise de 43 boletins epidemiológicos e 15 artigos selecionados a partir de uma revisão narrativa de literatura. Discutimos elementos concernentes à epidemiologia social crítica, interseccionalidade e necropolítica, ante as iniquidades em saúde. Os resultados apontam que numa sociedade interseccionalizada por racismo, sexismo e pobreza, o risco, a incidência e a mortalidade da doença são socialmente desiguais, haja vista a população negra, pobre e periférica, apresentar maiores índices epidemiológicos. Desvela-se um Estado com tecnologias necropolíticas governamentais, sendo a pandemia mais um modus de produzir a morte. Conclui-se evocando a insurgência de uma epidemiologia complexa da Covid-19, aliando políticas de saúde à proteção social e ao desenvolvimento econômico.
Palavras-chave:
Covid-19; Sistema de Informações em Saúde; Morbi-mortalidade; Vulnerabilidade social; Racismo
Abstract
This article aims to analyze the morbimortality of COVID-19 in Brazil, according to race/color aspects, problematizing the concept of race as a structuring factor for equitable care in the pandemic. Exploratory and reflective research, with analysis of 43 epidemiological bulletins and 15 articles selected from a narrative literature review. We discuss elements concerning critical social epidemiology, intersectionality, and necropolitics, in the face of health inequities. The results indicate that in a society intersected by racism, sexism, and poverty, the risk, incidence, and mortality of the disease are socially unequal, given that the black, poor, and peripheral city population has higher epidemiological indices. A State with necropolitical technologies is revealed, with the pandemic being another modus to produce death. It concludes by evoking the insurgency of a complex epidemiology of COVID-19, combining health policies with social protection and economic development.
Keywords:
COVID-19; Health information system; Morbimortality; Social vulnerability; Racism
Introdução
Este artigo discute o fenômeno pandêmico a partir de um arcabouço teórico-prático-metodológico, considerando as conexões entre epistemologia da racionalidade epidemiológica, crítica e social dos processos de saúde, no contexto brasileiro, conferindo relevo à questão racial imbricada nesses entrecruzamentos, focalizando o problema numa perspectiva interseccional.
Partimos de uma concepção de saúde como direito social, dialogando com potencialidades e desafios de uma política pública, instituinte do Sistema Único de Saúde (SUS), que privilegia a universalidade do acesso aos serviços de saúde, o olhar integral e humano à população assistida, e ratifica a necessidade de uma atenção justa e equânime (Brasil, 1990). Nesse escopo, problematizamos a conjuntura atual ante a pandemia Covid-19 no Brasil, que em agosto de 2023, diante de um cenário mundial de 769 milhões de casos confirmados e 6,9 milhões de mortes, é o 6º país em casos confirmados (37,7 milhões) e o 2º em número de óbitos, 704 mil (WHO, 2023).
Em uma sociedade estruturada por racismo, sexismo e pobreza, como a brasileira (Carneiro, 2011CARNEIRO, S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.), a pandemia engendra tensionamentos sociais e de saúde em grupos vulnerabilizados, evidenciando estreita articulação com aspectos raciais e socioeconômicos oblíquos à doença. O cenário grave de saúde pública impõe inflexões sobre a mudança paradigmática de ações de controle da pandemia a partir do reconhecimento de uma crise transversalizada por iniquidades.
Eis o desafio de tratar um fenômeno que ocorre no bojo da invisibilidade: o debate racial no campo da saúde, ante uma crise sócio sanitária. É válido ressaltar que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) visa operacionalizar estratégias em cinco eixos: acesso da população negra às redes de atenção; vigilância em saúde; educação permanente e produção do conhecimento em saúde racializada; participação e controle social; e monitoramento e avaliação das ações de saúde para a população negra (Brasil, 2017a).
Com o reconhecimento do racismo em saúde, tornou-se obrigatório o preenchimento protocolar nas notificações de saúde do quesito raça/cor como marcador social de iniquidades (Brasil, 2017a; 2017b). Contudo, em termos de vigilância em saúde, há lacunas e barreiras na visibilidade dos dados racializados, inclusive no contexto pandêmico, demandando ratificar tal obrigatoriedade.
Sobre a população negra, as variáveis epidemiológicas das doenças e a mera quantificação não alcançam explicações dos acometimentos de saúde a este coletivo. A epidemiologia social, assim, ocupa-se em ultrapassar a epidemiologia tradicional, descritiva, de modo a contemplar a determinação social do processo saúde-doença (Barata, 2005BARATA, R. B. Epidemiologia social. Rev. Bras. Epidemiol., v. 8, n. 1, p. 7-17, 2005.).
Alicerçados neste embasamento, nos debruçamos sobre os dados epidemiológicos e impomos uma análise do fenômeno da pandemia Covid-19 no Brasil a partir de referências circunscritas à raça, racismo e racialidades, bem como suas interfaces interseccionais, nos questionando como explicar, por exemplo, que pessoas negras morrem mais por Covid-19 do que as brancas? Que fatores e mecanismos se articulam nos desfechos de vida e morte da população negra e branca?
Pretendemos, portanto, interpretar os indicadores epidemiológicos da Covid-19 e suas interfaces com a produção social da saúde, considerando, ainda, a Teoria da Interseccionalidade, num enfoque analítico (Crenshaw, 2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002.), que desvela os marcadores sociais - raça, classe social e gênero - como elementos constitutivos de uma sociedade, capturando consequências estruturais e dinâmicas entre dois ou mais eixos de subordinação que se entrecruzam e se potencializam. Com isso, constituir um enfoque crítico-epidemiológico.
Ademais, a partir da noção de Necropolítica (Mbembe, 2018MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.), discutimos a instrumentalização da vida subjugada ao poder da morte: que lugar é dado à vida e à morte da população negra e branca? Quem pode viver e quem deve morrer? Como a população negra está inserida na práxis do campo da saúde (coletiva)?
Assim, adotamos como questões norteadoras deste estudo: como a pandemia Covid-19 incide na mortalidade da população negra no cenário brasileiro? Como compreender esse contexto numa perspectiva racializada?
Objetiva-se analisar documentos públicos que demonstram o cenário epidemiológico da Covid-19 na primeira fase da pandemia, em 202011 Essa fase tinha características peculiares: ainda se tinha pouca informação sobre a doença, estratégias terapêuticas pouco definidas, políticas públicas sanitárias, sociais e econômicas frágeis e/ou desarticuladas para o seu combate, ausência de vacinas e pouca informação sobre variantes do vírus e sua transmissibilidade., segundo o quesito raça/cor, tomando como ilustração os números de casos e óbitos confirmados da Covid-19 no Brasil. Em termos mais específicos, debatemos o racismo em saúde como dimensão fundamental para o alcance de um enfrentamento equânime da pandemia Covid-19, utilizando como dispositivo analítico a epidemiologia social crítica, ante as necessidades e as desigualdades sociorraciais em saúde no Brasil.
O artigo trata de um estudo descritivo, exploratório e analítico mediante análise dos dados de morbimortalidade por Covid-19 no Brasil, sob a perspectiva de raça/cor/etnia. Foram analisados Boletins Epidemiológicos divulgados pelo Ministério da Saúde em 2020, Notas Técnicas de enfrentamento à Covid-19, sendo tomados como empiria para o exercício reflexivo, mas extensível a outros contextos. Realizamos, também, uma análise narrativa de literatura acerca do impacto da pandemia sob a perspectiva raça/cor/etnia.
A análise documental contemplou os dados desagregados por quesito raça/cor de casos e óbitos confirmados pela Covid-19 durante o ano de 2020. A coleta de dados aconteceu de maio a agosto de 2021. Foram analisados 43 boletins epidemiológicos, a partir da plataforma https://coronavirus.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos (Brasil, 2020). Os dados com critério raça/cor se referem ao número de casos hospitalizados por Covid-19, óbitos confirmados e índices de mortalidade materna por Covid-19. As informações foram organizadas mensalmente, condensando-se os boletins epidemiológicos semanais referentes a cada mês.
No percurso metodológico, em um segundo momento, procedemos com revisão narrativa de literatura, com artigos científicos publicados a plataforma PubCovid-19, a Biblioteca Virtual de Saúde e EMBASE, operando os descritores em ciências da saúde “Covid-19” AND “Mortalidade” AND “População Negra”. Adotamos como critério de inclusão os estudos com textos completos disponíveis nos idiomas português e/ou inglês que fazem a relação entre Covid-19 e população negra no contexto nacional. Localizamos 22 publicações, das quais selecionamos 15 artigos. Esta revisão foi realizada no período de maio a agosto de 2021.
Buscando um olhar mais refinado para o fenômeno em tela, operacionalizamos elementos da Teoria da Interseccionalidade e da Necropolítica para compor o quadro analítico-reflexivo. Assim, ante o contexto atual de pandemia e a necessidade de constante (re)construção de conhecimento em bases práticas, políticas e no planejamento em saúde para públicos vulnerabilizados, esforços reflexivos se constituem como dispositivos essenciais e estratégicos.
Não foi necessária a submissão do presente estudo ao Comitê de Ética em Pesquisa, conforme estipula a Resolução nº 510, de 7/04/2016 do Conselho Nacional de Saúde, pois o material coletado constitui-se de documentos de domínio público.
A epidemiologia social na pandemia da Covid-19 e o lugar da população negra
A perspectiva da epidemiologia social crítica ratifica a necessidade de investigar os aspectos de determinação social da saúde. Enfatizamos este lócus de reflexão porque, não obstante a profusão de estudos epidemiológicos, “nem toda epidemiologia é social” (Barata, 2005BARATA, R. B. Epidemiologia social. Rev. Bras. Epidemiol., v. 8, n. 1, p. 7-17, 2005., p. 8). Destacamos, aqui, a teoria da produção social do processo saúde-doença alicerçada no materialismo histórico e dialético (Breilh, 2006BREILH, J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.), ao utilizar modelos de explicação dos elementos sócio-políticos e econômicos da distribuição da saúde e da doença, identificando fatores protetores e nocivos na estrutura social. A seguir, demonstramos a importância da exploração dos dados da Covid-19 por raça/cor em uma linha do tempo evolutiva, buscando pistas para compreender como o Brasil se tornou um dos epicentros da doença no mundo.
Segundo o BE-03 (Brasil, 2020), datado de 26 de fevereiro de 2020, foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 no Brasil, um homem, 61 anos, de classe média alta da cidade de São Paulo, recém-chegado da Itália. Nos dois meses seguintes, os primeiros infectados também foram pessoas que viajaram ao exterior. O BE-14 (Brasil, 2020), com dados acumulados até o dia 26 de abril de 2020, verificou que 60,3% das hospitalizações ocorreram pela raça/cor branca, seguida da parda (31,5%) e preta (5,9%). 52,3% dos óbitos ocorreram entre pessoas brancas, seguidas das pardas (38,8%) e pretas (6,4%).
A Covid-19, no início, era uma doença importada, com raça, cor e classe social bem definidas: acometia preponderantemente pessoas de classe média à alta, residentes em áreas nobres dos grandes centros urbanos. Com esse perfil social e econômico, a maior parte dos óbitos e dos infectados, nos primeiros meses da pandemia no Brasil, foi de pessoas brancas. Isso induziu o MS a estabelecer estratégias para diminuir a incidência do novo coronavírus. Os BE-02 e BE-04 (Brasil, 2020) se preocuparam em expor as principais medidas para a diminuição da curva de risco do contágio: frequente higienização das mãos, utilização de máscaras individuais, limpeza e desinfecção de ambientes, distanciamento espacial, isolamento social dos infectados e, em situação gravosa, a estratégia de lockdown, com a suspensão total de atividades não essenciais.
Impõe-se demarcar o distanciamento/isolamento social como experiências socialmente humanas para complementar o discurso biomédico de prevenção do risco com a inserção da historicidade. Mais que isso, interrogar sua exequibilidade, sobretudo, em cidades e periferias urbanas, ladeadas pela escassez de infraestrutura e saneamento básico. Considerando o paradigma da produção social da saúde, quem sofre o impacto biopsicossocial e econômico do Lockdown se este não estiver atrelado a um sistema de proteção social eficaz? Para que as classes mais favorecidas cumpram o isolamento, numa sociedade desigual, é preciso que alguém se arrisque em seu lugar. Ao nos referirmos à possibilidade de distanciamento/isolamento social, é preciso reivindicar o “direito roubado” (Ramos, 2020RAMOS, T. T. Pandemia é pandemia em qualquer lugar - vivendo a crise da Covid-19 de fora dos grandes centros. Espaço e Economia, v. 9, n. 18, p. 1-10, 2020., p. 9) aos que nelas não se incluem.
Por isso, é preciso desnaturalizar as chamadas “medidas de prevenção e proteção” para melhor análise da sua adoção. Torna-se imperativo abrir o campo epidemiológico à investigação dos aspectos complexos do risco e sua determinação. Ao adotar essa abordagem, o conceito de Risco Social explora as condições e as expressões do modo de vida de grupos populacionais que afetam a produção de enfermidades (Almeida Filho, 2020). Quando grupos populacionais vivem a precarização da vida, com baixa ou nenhuma capacidade ativa em seu meio social, é preciso questionar: o imperativo de distanciamento social que impulsiona a hashtag #FicaEmCasa atende a quê e a quem serve?
Oliveira . (2020OLIVEIRA, R. G. et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a Covid-19 e o racismo estrutural. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 9, 2020.) enfatizam que, mais do que a vulnerabilidade do corpo anatomopatológico, o novo coronavírus atinge transmissão exponencial em circunstâncias de risco social, tais como população em contextos de pobreza, miséria e/ou em situação de rua, quilombolas e indígenas. Vale resgatar Foucault (1979FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.), quando afirma ser o corpo uma realidade biopolítica, assim como tudo o que nele intervêm no campo das práticas sanitárias.
Enquanto o primeiro caso confirmado foi de uma pessoa branca, a Nota Técnica 11 - 27/05/2020 (Batista ., 2020BATISTA, A. et al. Análise socioeconômica da taxa de letalidade da COVID-19 no Brasil - Nota Técnica 11. Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, 2020.), que faz uma análise socioeconômica da taxa de letalidade da Covid-19 no Brasil, já retrata a primeira morte pela doença: uma mulher, negra, de 57 anos, empregada doméstica, no Rio de Janeiro, em março de 2020, que estava trabalhando - questiona-se aqui a lógica do serviço (não) essencial - na casa de uma família recém-chegada da Itália.
Ao olharmos para a curva que se desenha a partir dos meses de maio e junho, quando foi considerado o início da primeira onda de Covid-19, vemos os dados de maio do Boletim Epidemiológico Especial (BEE-17), (Brasil, 2020) apontar que 49,0% das hospitalizações foram de pessoas brancas, seguidas das pardas (42,0%) e pretas (7,1%), havendo uma mudança no perfil de óbito, onde 49,6% ocorreram entre pessoas pardas, seguidas pelas brancas (41,0%) e pretas (7,4%). Já em junho, no BEE-20 (Brasil, 2020), os casos hospitalizados mais frequentes eram da cor parda 47,9%, seguidas pelas brancas (43,1%), pretas (7,1%). Em óbitos, os pardos também foram mais frequentes (53,5%), seguidos pelos segmentos branco (36,9%), preto (7,4%), amarelo (1,5%) e indígena (0,7%). Em julho e agosto, de acordo com o BE-29 (Brasil, 2020), vivemos um repique, a curva continuou ascendente e a população negra ainda em primeiro lugar em casos e óbitos.
Nesses meses, o Brasil vivenciou o processo de reabertura econômica. A exemplo, nas capitais nordestinas demonstrou-se que nos 14 dias que antecederam o início das medidas de flexibilização do distanciamento social, a maioria não mostrava tendência decrescente dos casos e óbitos e a situação epidemiológica e capacidade de resposta do sistema de saúde não eram compatíveis com o início da flexibilização (Ximenes et al., 2020).
No intuito de “salvar a economia” houve uma alta incidência da doença, com início de sua transmissão comunitária que avançou nas periferias e no interior do país, além do aumento de internações, com consequente saturação das redes de saúde, principalmente na esfera pública. Vivenciávamos o primeiro pico da doença e 60,9% dos óbitos foram de pessoas pretas e pardas, reconhecidas em sua junção por população negra, segundo o IBGE (2020).
O próprio contato do SARS-CoV-2 com seres humanos está imbricado na contradição entre desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção. E, por isso, não podemos esquecer o funcionamento do capital e seu poder a partir dos elementos da colonialidade e da escravização que imperam nas Américas, revelando como a racialidade opera, ainda hoje, enquanto força motriz do capital global (Silva, 2021), a partir da instrumentalização dos corpos no mercado de trabalho e sua essencialidade na ativação da economia capitalista.
Neste seguimento, a população negra ocupa postos mais precarizados e sem proteção social. De acordo com o IBGE (2020) a população preta e parda é maioria no Brasil (55,8%). Juntos, representam 64,6% dos desempregados. Enquanto 34,6% das pessoas brancas estão em ocupações informais, entre pretos e pardos temos 47,3%. Os piores salários são pagos para trabalhadores dos serviços essenciais, constituído majoritariamente por pessoas negras: telemarketing (64,1%); limpeza urbana (55,4%); segurança (52,9%); e construção civil (50,2%). Por fim, no extremo da miséria, 77% das pessoas em situação de rua são negras.
No fim do ano de 2020, cerca de 7,4 milhões de trabalhadores negros saíram da força de trabalho; deixaram de procurar emprego por não acreditar na possibilidade de recolocação no mercado, entre os brancos, o número foi bem menor: 2,7 milhões (IBGE, 2020).
Sobre a saturação da rede de saúde, dados de uma amostra de 652 hospitais - 403 privados e 249 públicos - do projeto UTIs brasileiras, com informações coletadas de 1º de março de 2020 a 24 de março de 2021 (EPIMED, 2021) revelaram que 29,7% dos pacientes morreram depois de ter Covid-19 nas UTIs de hospitais privados, diferente da rede pública, constituindo 52,9% de óbitos. Uma das razões que o estudo aponta é o fato de os doentes, na rede pública, chegarem mais fragilizados, com mais comorbidades e a doença em um estágio mais avançado. Isto coloca em pauta a concentração da mortalidade por Covid-19 nos serviços públicos de saúde.
Considerando que 67% dos brasileiros que dependem exclusivamente do sistema público de saúde são negros (Brasil, 2017b) e que a maioria de seus atendimentos são de pessoas que se encontram na linha da pobreza, com renda média de um quarto do salário mínimo (IBGE, 2019), o SUS, enquanto política universalista, a despeito do mérito, enseja uma neutralidade racial que remodela as formas de dominação e opressão, não pelas práticas discriminatórias dirigidas, mas pela adoção de um discurso oficial de abstenção da noção de raça, o que constitui aspecto particular do racismo fundante da ficção racial brasileira e de uma identidade nacional universalista e igualitária, sem raça, sem cor e sem história (Munanga, 2019MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 5. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.).
Esta sistemática desconsideração do indispensável processo de racialização do debate público se desdobra numa atenção em saúde conformada numa rede de serviços e políticas para pessoas “imaginadas”, sem fulcro nos marcadores sociais que atravessam os corpos que acessam os cuidados em saúde, acentuando as violências nesse processo (Pires ., 2022PIRES, A. M. et al. Saúde da população negra: biopolítica, necropolítica e racismo estrutural. Estud. Contemp. Subj., v. 12, n. 2, p. 230-243, 2022.).
Nessa discussão, destacamos também os casos e óbitos de gestantes por Covid-19. No BE-43 (Brasil, 2020), de 23 de dezembro de 2020, com quantitativo acumulado do ano, a raça/cor mais frequente foi a parda (57,7%), seguida da branca (33,1%), preta (6,1), indígena (1,9%) e amarela (1,1%). A soma da população negra equivale a 63,8%. Em óbitos, segue a mesma linha: a raça/cor mais frequente é a parda (47,4%), seguida da branca (38,2%), preta (11,1%), amarela (2,3%) e indígena (0,7%).
Takemoto . (2020TAKEMOTO, M. L. S. et al. The tragedy of COVID-19 in Brazil: 124 maternal deaths and counting. Int J Gynecol Obstet., v. 151, n. 1, p. 154-156, 2020.) analisaram 978 gestantes e puérperas que foram diagnosticadas com a doença. Dessas, 124 foram a óbito (taxa de letalidade de 12,7%). O que mais chamou a atenção foram as graves falhas de assistência: 15% das mulheres não tinham recebido qualquer tipo de assistência ventilatória, 28% não tiveram acesso a leito de unidade de terapia intensiva (UTI) e 36% não foram intubadas nem receberam ventilação mecânica. Ademais, Santos . (2020SANTOS, M. P. A. D. et al. População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estudos Avançados, v. 34, n. 99, p. 225-243, 2020.), avaliando os dados com as lentes do racismo estrutural, revelaram que gestantes negras foram hospitalizadas em piores condições, apresentando maior taxa na UTI, de uso de ventilação mecânica e óbito, observando-se um risco de morte duas vezes maior em mulheres negras comparadas às brancas.
A liderança mundial assumida pelo Brasil em número de óbitos de gestantes por Covid-19 - a cada 10 casos no mundo, 8 são do Brasil - (Nakamura-Pereira et al., 2020) não inaugura as altas taxas de mortalidade materna. Nesse prisma, temos um legado histórico de violências acerca dos despojamentos sobre saúde sexual e reprodutiva. Quando se interseccionam gênero, raça e classe, Werneck (2016WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde Soc., v. 25, n. 3, p. 535-549, 2016.) lembra o projeto de eugenia concretizado pela medicina brasileira, a partir de um projeto higienista e de seleção natural, onde pessoas pretas, pobres, com transtornos mentais, deficiência e especialmente sobre aqueles que se distanciam do modelo dominante - branco, rico e heterossexual - deveriam ser eliminados da sociedade. Nisso, a principal estratégia foi a esterilização de mulheres negras, marcada por violências raciais, obstétricas, institucionais e de gênero (Curi ., 2020CURI, P. L. et al. A violência obstétrica praticada contra mulheres negras no SUS. Arq. bras. psicol., v. 72, p. 156-169, 2020.).
Moreira . (2020MOREIRA, L. E. et al. Mulheres em tempos de pandemia: um ensaio teórico-político sobre a casa e a guerra. Psicol. Soc., v. 32, 2020.) intuíram pensar a pandemia a partir da situação das mulheres. Para elas, a pandemia ensejou um triplo combate: contra o coronavírus, estando na linha de frente como trabalhadoras da saúde e em outros serviços essenciais; contra o machismo, na luta em casa, com a violência doméstica e o feminicídio; e contra o patriarcado, na construção de políticas públicas em um Estado que aciona a masculinidade e afasta as mulheres das decisões governamentais.
De setembro a dezembro, o último boletim do ano, BE-43 (Brasil, 2020), confirma que a população negra se manteve numa maior prevalência (49,3%), na soma entre pardos (43,3%) e pretos (6%), seguida da branca (48,8%), amarela (1,3%) e indígena (0,5%). Do mesmo modo, para os óbitos, pretos e pardos somam 52,7%, sendo a população negra a mais frequente no quesito mortalidade, seguida da branca 45,4%, amarela (1,1%) e indígena (0,5%).
Em síntese, esta pesquisa corrobora com estudos epidemiológicos que evocam a contrariedade da premissa de que a Covid-19 é democrática, pois o risco, as formas de contágio, a incidência, a morbimortalidade e o prognóstico são socialmente desiguais, sendo raça, classe e gênero marcadores estruturantes dessas iniquidades (Saito ., 2020SAITO, C. H. et al. O mundo após a Covid-19: vulnerabilidades, incertezas e desafios socioambientais. In: SOBRINHO, L. L. P. et al. Covid-19 e seus paradoxos. Itajaí: Univali, 2020. p. 109-151.).
A análise dos resultados advoga pela pertinência de uma modelagem da pandemia fundada em uma epidemiologia complexa (Almeida Filho, 2020), sobretudo para uma análise de risco social da doença e busca de fatores de proteção e cuidado partindo de uma articulação integradora de políticas sociais, econômicas, de equidade racial e de saúde pública (Oliveira ., 2020OLIVEIRA, R. G. et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a Covid-19 e o racismo estrutural. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 9, 2020.) necessárias para subsidiar o enfrentamento da pandemia da Covid-19.
Desafios para o enfrentamento de uma crise social e sanitária: o fenômeno da pardalização e o (não)lugar da população negra
O debate sobre saúde da população negra no âmbito da pandemia Covid-19 atravessou, neste escrito, uma interlocução com os dados epidemiológicos e seus significados sociais, políticos e epistemológicos. Os Boletins Epidemiológicos que coadunam com a perspectiva da vigilância epidemiológica em saúde são utilizados para difundir informações técnico-científicas e nortear projetos da saúde pública. No cenário pandêmico, o monitoramento epidemiológico é de extrema importância. Neles, a população tem acesso aos dados e encontram estratégias definidas pelo Ministério da Saúde para o enfrentamento da Covid-19.
Não obstante essa importância, há fragilidades em relação aos sub-registros não captados pelos sistemas de informações, como os dados desagregados por raça/cor, que só passaram a ser divulgados a partir do BE-09, da semana epidemiológica nº 15. Somando-se ao início tardio da divulgação das referidas informações, constatamos lacunas significativas nos dados, pois a variável raça/cor é ignorada em número substantivo, não sendo, portanto, incluída na análise. No último boletim de 2020, BE-43 (Brasil, 2020), foram registradas 128.306 informações ignoradas, com dados acumulados do ano.
Além disso, chama atenção também a diferença entre pretos e pardos no grupo da população negra, durante o período evolutivo da doença no Brasil. Por exemplo, nesse mesmo boletim, BE-43 (Brasil, 2020), é oportuno expressar os dados acumulados do quantitativo de pardos durante o ano: em número de casos, 193.454 pardos e 27.019 pretos; em óbitos, 68.210 pardos e 10.340 pretos.
É de fundamental importância problematizarmos o (não)-lugar da saúde da população negra nas agendas públicas, convocando à leitura desta epidemiologia sob o olhar da categoria raça em contraste com as mensurações de pele, cor e etnia; noutras palavras, a entender como o racismo estrutural (Almeida, 2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.) reverbera no contexto pandêmico.
A priori, raça existe? Esta é a indagação que conduz a argumentação de Maio e Santos (2014) acerca do constructo social velado de raça, pois o pensamento racial hegemônico no Brasil, desenvolvido prioritariamente na Saúde Pública e na Medicina, foi sobre sua determinação biológica, tida como inferior na hierarquização das raças, sendo branca a raça dominante e necessária para civilizar a população negra. As principais teorias raciais de cunho biologicista determinante, fomentaram o racismo estrutural, sendo um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade brasileira.
O conceito de raça tem a ver com o modo de dominação dos povos originários e, portanto, é uma categoria socialmente construída. Já o fenômeno de “pardalização” no Brasil reflete uma herança histórica de processos de eugenia, genocídio e branqueamento do povo negro. Há, desse modo, um projeto político de uma identidade social marcada pelo mito da democracia racial, a partir da ficção racial do “pardo” na miscigenação e o ocultamento do preto. Portanto, a pardalização, inclusive nos dados desagregados por quesito raça/cor, se destaca na autoafirmação dos brasileiros e apresenta-se como coringa para indefinição, pois o pardo é uma não-raça e uma não-etnia, habitando um não-lugar entre as populações branca e não-branca (Madeira, 2014MADEIRA, M. Z. A. As desigualdades raciais como expressão da questão social no Ceará. In: CUNHA, A. M.; SILVEIRA, I. M. M. Expressões da Questão Social no Ceará. Fortaleza: EdUECE, 2014. p. 343-378.).
Nascimento (2016) aponta como a mestiçagem foi sistematicamente utilizada como instrumento de genocídio do povo negro brasileiro, instituindo tecnologias coloniais no processo pós-abolicionista para o embranquecimento da população sob a égide de uma pretensa democracia racial. Já Munanga (2019MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 5. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.), aponta como esse processo serviu para a instituição de uma identidade nacional em detrimento de uma identidade negra, por meio de mecanismos sociorraciais de modular as manifestações culturais negras como “cultura brasileira”, além da instituição da classificação de “pardos” na medida em que não se identifiquem como negros em uma estratégia de inclusão pelo embranquecimento.
Ora, quem é o pardo na política de saúde da população negra no Brasil? A partir do desenho deste projeto político identitário, a relação raça-cor confunde os olhos de quem vê, desde o desenho de políticas ao planejamento de atenção e gestão em saúde. Vê-se, por exemplo, a inserção do tema racial como recente e tardio na agenda nacional, como a própria PNSIPN (Brasil, 2009). Além disso, embora em contexto pandêmico, persiste a invisibilização do perfil étnico-racial, pois foi necessário um tensionamento sociopolítico para a divulgação dos dados desagregados por raça/cor/etnia e, por isso, estabelecido de modo tardio. Quando divulgados, estes dados mostraram-se de baixa qualidade com altos índices de dados ignorados (Araújo ., 2020ARAÚJO, E. M. et al. Covid-19-Morbimortalidade pela Covid-19 segundo raça/cor/etnia: a experiência do Brasil e dos Estados Unidos. Saúde em Debate, v. 44, n. 4, p. 191-205, 2020.), demonstrando, por sua vez, uma face do Racismo Institucional que está atrelado ao funcionamento das instituições que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, negação de direitos com base na raça.
O problema das questões estruturais que se retroalimentam advém também de um SUS universalista apostando em um mecanismo de neutralidade racial, que conforma a ação pública e remodela elementos de dominação racista, classista e patriarcal, por meio da sistemática negligência dos necessários debates étnico-raciais e do processo de racialização das políticas públicas, que no caso da saúde brasileira, acaba por produzir um SUS que, não obstante sua importância, violenta (Pires ., 2022PIRES, A. M. et al. Saúde da população negra: biopolítica, necropolítica e racismo estrutural. Estud. Contemp. Subj., v. 12, n. 2, p. 230-243, 2022.), seja no âmbito da atenção e/ou no campo da produção de saberes, tendo em vista uma ordenada deslegitimação dos corpos vulneráveis (Souza ., 2020SOUZA, F. A. et al. “Eu não posso respirar”: asfixiados pelo coronavírus e pelo Estado racializado. Physis: Rev. Saúde Coletiva, v. 30, n. 3, 2020.).
Em síntese, por meio de silenciamentos e ausências estatais revela-se uma lacuna expressiva no combate às desigualdades sociorraciais, apresentando impacto importante no campo da saúde pública, exercendo papel crucial na morbimortalidade da população negra.
Contribuições da perspectiva teórica-política da interseccionalidade
O contexto analítico deste estudo requisita discussões sobre racismo, sexismo e desigualdades sociais no campo da saúde situando os instrumentos epidemiológicos de vigilância em saúde como imprescindíveis em dimensão temporal: os impactos dos desdobramentos de uma pandemia numa policrise sanitária, social, política, econômica e moral (Santos ., 2020SANTOS, M. P. A. D. et al. População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estudos Avançados, v. 34, n. 99, p. 225-243, 2020.) que ocorre de maneira desigual a depender do lugar historicamente definido que ocupamos, num Estado racializado, patriarcal e capitalista-neoliberal (Carneiro, 2011CARNEIRO, S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.).
Nesse sentido, utilizamo-nos das compreensões da interseccionalidade e suas dimensões: as estruturas de poder-dominação e seus efeitos catabólicos no mapa social de inclusão-exclusão; os ângulos interseccionais sobre os fenômenos sociais, produtos da articulação dos marcadores sociais da diferença; e as possibilidades de uma práxis com projetos e políticas de justiça social (Akotirene, 2019AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.).
A interseccionalidade investiga como “as relações interseccionais de poder influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana” (Collins; Bilge, 2021COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021., p. 15). Esta pode ser uma ferramenta compreensiva, analítica e política para pensar e desenvolver estratégias para a equidade. Considerando nossa realidade enquanto saúde pública brasileira, o intercruzamento das diferenças, opressões e vulnerabilidades é um olhar necessário e lentes monofocais são insuficientes para abordar o aspecto das iniquidades (Oliveira , 2020OLIVEIRA, R. G. et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a Covid-19 e o racismo estrutural. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 9, 2020.).
Ao focar na perspectiva de classe e seus intercruzamentos, a interseccionalidade amplia a forma como emprego, renda, riqueza e pobreza podem ser pensadas numa divisão sociossexual e racial do trabalho, lembrando de suas raízes fundantes - racial, classista e patriarcal. Por exemplo: as diferenças de renda que acompanham as práticas de contratação, segurança de trabalho, benefícios relativos às licenças e aposentadorias referem-se a uma escala no mercado de trabalho e não incidem da mesma maneira sobre os grupos sociais (Collins; Bilge, 2021COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.).
Com a evolução da pandemia no país, a população negra foi a mais afetada, atrelada a outros marcadores sociais da diferença. Morreram pobres na linha de frente do tratamento da Covid-19, empregadas domésticas, trabalhadores de serviços essenciais e informais, com acesso desigual ao sistema de saúde e vivendo sob condições per si vulnerabilizadoras. Pessoas negras, jovens, sem documentação, residentes de zonas rurais e periferias estão inseridos na estrutura social e têm experiências cotidianas diferenciadas (Estrela ., 2020ESTRELA, F. M. et al. Pandemia da Covid 19: refletindo as vulnerabilidades a luz do gênero, raça e classe. Cienc. saude coletiva, v. 25, n. 9, p. 3431-3436, 2020.). O fenômeno reflete o que se vê também em outros países, como Estados Unidos, onde a população vulnerabilizada também foi a mais afetada (Araújo ., 2020ARAÚJO, E. M. et al. Covid-19-Morbimortalidade pela Covid-19 segundo raça/cor/etnia: a experiência do Brasil e dos Estados Unidos. Saúde em Debate, v. 44, n. 4, p. 191-205, 2020.).
Sobre gênero, o perfil mais expressivo da população no eixo da morbimortalidade por Covid-19, de acordo com o BE-43 (Brasil, 2020) foi do sexo masculino, acima de 60 anos de idade. Em consonância aos dados citados, Lima (2020LIMA, D. L. F. et al. Covid-19 no estado do Ceará: comportamentos e crenças na chegada da pandemia. Cienc. saude coletiva, v. 25, n. 5, p. 575-1586, 2020.), ao pesquisarem sobre Covid-19, relatam que os homens estão posicionados de forma precária no mercado de trabalho informal principalmente como motoristas, entregadores e ambulantes. Já a população negra idosa é a mais precarizada, por não ter aposentadoria bem estabelecida, por sua vez não tiveram a opção de parar, já que eram a única fonte de renda familiar, o que contribuiu para maior exposição a situações de risco com comorbidades associadas e difíceis manutenção de sobrevivência.
Na dimensão feminina, além da morte negra materna já retratada, também se abordam as tangentes que compõem a crise sanitária. Quando relacionamos as mulheres que ensaiaram a arte de conciliar maternidade, atividades domésticas e trabalho remoto na Covid-19, evidenciamos as raízes da dualidade patriarcal dos papéis sociais de homens e mulheres, e uma consequente sobrecarga elevada e possíveis outros adoecimentos para além da Covid-19, sobretudo com o aumento dos índices de transtornos mentais, violência familiar, feminicídio e suicídio (Moreira ., 2020MOREIRA, L. E. et al. Mulheres em tempos de pandemia: um ensaio teórico-político sobre a casa e a guerra. Psicol. Soc., v. 32, 2020.).
Temos o desafio de olhar a pandemia Covid-19 em seu lócus performático de sociabilidade, identificar quais seus transicionamentos políticos e identitários, sendo um caminho possível para planejamentos e estratégias de ações públicas pautadas nas diferenças.
À luz da interseccionalidade, afirmamos que o argumento de saúde integral vislumbra as várias camadas que estão imbricadas no fenômeno saúde-doença, que ecoa não somente sobre a Covid-19, mas atravessam diversos níveis dos processos de vida, morte e morrer, por vezes, ignorados ou invisibilizados.
A morte na pandemia tem a cor dos “corpos matáveis”: necropolítica no enfrentamento da Covid-19
Até aqui são 704 mil mortes por Covid-19 no país. À luz da necropolítica (Mbembe, 2018MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.), é preciso analisar as conjunturas sociais partindo de suas categorias fundadoras, tais como vida e morte, a partir da lógica neoliberal.
A necropolítica refere-se à capacidade de um Estado que opera com vontade de matar determinados corpos, a fim de manter a vida soberana de outros. É o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. O corpo “matável” é aquele que está em risco de morte a todo instante devido a parâmetros definidores primordiais, como é o caso da raça. A morte é o ponto no qual a destruição, supressão e sacrifício constituem um dispêndio irreversível e radical. Não se trata somente da morte física, mas em seus aspectos simbólicos e existenciais, de corpos que vivem mortificados antes, durante e após a pandemia.
A crise sanitária evidencia uma crise já instalada. Tensiona o aprofundamento da crise sociorracial, historicamente tensionada. Desvela a ação do Estado sobre a gestão da vida e da morte da população, ora deixando-as viver, ora deixando de agir para evitar a sua morte, gerenciando, deste modo, uma política de morte. Neste sentido, o cenário do coronavírus agrega mais um modus de se produzir morte (Santos ., 2020SANTOS, M. P. A. D. et al. População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estudos Avançados, v. 34, n. 99, p. 225-243, 2020.).
A não estruturação de políticas públicas voltadas ao enfrentamento dos graves desdobramentos desta crise, aciona o necropoder a partir de tecnologias de governo que determinam quem pode viver - aqueles que diante de suas capacidades socioeconômicas já estabelecidas, conseguem acesso de qualidade à saúde e à manutenção de medidas de prevenção e controle - e quem deve morrer, aqueles que necessitam de uma maior intervenção do Estado para proteger suas vidas, tendo em contrapartida um estado mínimo de proteção. Esta conjuntura escancara o Estado racializado brasileiro (Souza ., 2020SOUZA, F. A. et al. “Eu não posso respirar”: asfixiados pelo coronavírus e pelo Estado racializado. Physis: Rev. Saúde Coletiva, v. 30, n. 3, 2020.) e sua potência em operar a necropolítica de maneiras diversas.
Na experiência brasileira, no ano de 2020 não houve uma coordenação nacional para o enfrentamento da pandemia, sendo necessária intervenção do Supremo Tribunal Federal para que estados e municípios tivessem autonomia para gerir a crise a depender da necessidade de suas populações. O Estado, por muitas vezes, colocou nas mãos do indivíduo a responsabilidade pela própria saúde, quando deveria ser dele a maior responsabilidade em uma crise sanitária dessa proporção.
Vieira e Servo (2020VIEIRA, F. S., SERVO, L. M. Covid-19 e coordenação federativa no Brasil: consequências da dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde em Debate, v. 44, n. 4, p. 100-113, 2020.) demonstram as dificuldades de uma articulação interfederativa para o enfrentamento da pandemia, em que pese a dialética das disputas de poderes no eixo político-ideológico-sanitário-econômico-social. Por um lado, tínhamos defensores de uma saúde pública atrelada à proteção social; por outro, as camadas ultraneoliberalistas que estavam concentrados em “salvar a economia” do país sem mensurar pluralidade nacional, justificando, com teorias não validadas cientificamente, o não uso de vacinas, de máscaras de proteção e a persistência no uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19, com uso perverso de construtos epidemiológicos como a “imunidade de rebanho”. As dissonâncias apareceram desde a baixa comunicação, informação e disponibilidade de tecnologias em saúde ao descomprometimento da vigilância epidemiológica para e controle de casos e prevenção comunitária, bem como a demora no fornecimento de vacinas.
Essa falta de coordenação das estratégias de prevenção, além de criar dúvidas e angústias na população que já estava assustada com o poder de morbimortalidade da doença, tornou ainda mais vulneráveis aquelas pessoas que já não tinham como adotar as estratégias recomendadas.
Ademais, nas áreas econômica e social poucas políticas públicas foram articuladas para aquelas pessoas que não puderam trabalhar, que perderam empregos ou que ficaram sem renda por ter vínculos de trabalho autônomos ou informais. O “auxílio emergencial”, que pela proposta orçamentária do governo federal inicialmente era de R$ 200,00, foi fixado no valor de R$ 600,00 pelo Congresso Nacional, inicialmente por três meses, depois prorrogado e transformado em outro programa de transferência de renda, o “Auxílio Brasil”, desvinculando-o do Programa Bolsa Família que articulava educação, saúde e alimentação (Costa ., 2023COSTA, D. M. et al. Do Bolsa Família ao Auxílio Brasil: desafios e alcances a partir de uma pesquisa avaliativa baseada na teoria do programa. Cad. Saúde Pública, v. 39, n. 7, 2023.). Dizia-se ser uma forma de promover um mínimo de dignidade às famílias que perderam sua renda no período, mas a alta inflacionária elevou o preço do custo de vida, o que impactou substancialmente essas mesmas famílias.
Com isso, questionamos quais foram os “corpos matáveis” da sociedade brasileira durante a pandemia de Covid-19? Se não são “matáveis” são, pelo menos, morríveis. Mbembe (2018MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.) aponta que a necropolítica pode ser operada por meio de uma “guerra infraestrutural”. Usa a Faixa de Gaza como exemplo, quando Israel deixa o campo de refugiados palestinos sem água, comida, suprimentos, comunicações, tecnologias de infraestruturas diversas. Em um país como o Brasil, onde sabidamente as pessoas mais vulnerabilizadas são pobres, pretas e periféricas, não há um extermínio estatal das mesmas?
Dantas . (2022DANTAS, M. N. P. et al. Reflexões sobre a mortalidade da população negra por covid-19 e a desigualdade racial no Brasil. Saúde e Sociedade, v. 31, n. 3, e200667pt, 2022.), Araújo . (2020ARAÚJO, E. M. et al. Covid-19-Morbimortalidade pela Covid-19 segundo raça/cor/etnia: a experiência do Brasil e dos Estados Unidos. Saúde em Debate, v. 44, n. 4, p. 191-205, 2020.), Santos . (2020SANTOS, M. P. A. D. et al. População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estudos Avançados, v. 34, n. 99, p. 225-243, 2020.), Oliveira . (2020OLIVEIRA, R. G. et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a Covid-19 e o racismo estrutural. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 9, 2020.) e Souza . (2020SOUZA, F. A. et al. “Eu não posso respirar”: asfixiados pelo coronavírus e pelo Estado racializado. Physis: Rev. Saúde Coletiva, v. 30, n. 3, 2020.) refletem a pandemia numa perspectiva racializada e coadunam com nossa análise do período de 2020, em que a mortalidade da população negra reflete uma desassistência, desde condições de acesso aos serviços de saúde às questões econômicas e sociais.
Estes achados também afirmam que a posição trágica das mortes negras não se deve a uma pré-condição genética, mas de diferentes pré-condições sociais, assim se buscou responsabilizar os agentes do Estado que agiram com negligência ocasionando mortes evitáveis no país (Souza ., 2021SOUZA, J. et al. Relatório à CPI da Covid-19 do Senado Federal do Brasil. Humanidades Negociáveis? Impactos da Covid-19 sobre a população negra no Brasil. Brasília, 15 out. 2021.).
Já em maio de 2023, apesar do encerramento oficial da emergência sanitária, resta-nos um saldo gravemente negativo, em que lembramos o conceito de morte social (Mbembe, 2018MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.), pois 61 milhões de brasileiros enfrentaram dificuldades para se alimentar entre 2019 e 2021; e 15 milhões deles passaram fome (PENSSAN, 2022). A fome, em decorrência do desemprego, do alto custo de vida, aliada às trágicas orfandades, perda de moradia e aumento de pessoas em situação de rua, demonstra, no limite, um grave retrocesso.
Souza . (2020SOUZA, F. A. et al. “Eu não posso respirar”: asfixiados pelo coronavírus e pelo Estado racializado. Physis: Rev. Saúde Coletiva, v. 30, n. 3, 2020.) seguem com uma discussão acerca da ideia de Estado racializado e sua relação com o SUS, conclamando a necessidade de a Saúde Coletiva considerar raça como elemento central para se pensar o Estado em tempos de pandemia.
Considerações finais
No Brasil, o complexo vida-saúde não se constitui em uma categoria monolítica, uniforme ou essencialista e, por isso, argumentamos três eixos interligados: pandemia, governamentalidade em Estado de exceção e o projeto necropolítico de gerência da crise sanitária e social. Com isso, percebemos como o racismo, o sexismo, a pobreza e as iniquidades se posicionam também no campo da saúde e é escancarado diante do fenômeno pandêmico.
O lugar de alienação de humanidade constituído por meio da exploração e manutenção da injustiça, é o mesmo do delírio da democracia racial, da invisibilização do racismo estrutural, da operação do racismo institucional e da manutenção das desigualdades. Para a concretização de cidadania e saúde democrática, se faz necessário uma análise da determinação social da saúde e da doença.
Destarte, consideramos oportuno valorar as análises realizadas neste escopo, mediante as conexões entre epidemiologia social-crítica e as teorias que versam sobre raça, classe e gênero com um enfoque interseccional, pois oportunizaram o entendimento de uma saúde pautada no real, a partir da busca pela complementaridade das epistemologias e não pela via de seus antagonismos, postura esta, por vezes, naturalizada nas produções científicas.
A compreensão das diferenças e dos sofrimentos vividos por outros, que morrem devido à cor da sua pele, ao seu lugar no mundo do trabalho, e/ou à sua condição social e de gênero, exige uma leitura histórica, política e afetiva do mundo, que só é possível com o reconhecimento de que toda vida humana importa, inclusive as vidas negras.
Findamos este artigo expressando relevo a uma indagação para o avanço de uma práxis de saúde democrática e antirracista: como manter e produzir a vida frente a um Estado que insiste em matar e promover o genocídio fundado na categoria raça? Nos inscrevemos na luta pela afirmação da saúde coletiva e o direito fundamental à existência.
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- 1Essa fase tinha características peculiares: ainda se tinha pouca informação sobre a doença, estratégias terapêuticas pouco definidas, políticas públicas sanitárias, sociais e econômicas frágeis e/ou desarticuladas para o seu combate, ausência de vacinas e pouca informação sobre variantes do vírus e sua transmissibilidade.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Ago 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
14 Jul 2022 - Revisado
08 Set 2023 - Aceito
23 Nov 2023