Resumo
Após 15 anos de promulgação da política nacional, muitas unidades de saúde ainda não implantaram as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. As razões para esse afastamento da Atenção Primária à Saúde na Região Metropolitana de Goiânia-GO, Brasil, ainda são desconhecidas. Assim, este estudo objetiva compreender como os gerentes percebem as dificuldades de implantação e implementação das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde na Atenção Primária à Saúde. Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo e exploratório, realizado com 24 gerentes de unidades básicas de saúde mediante entrevistas semiestruturadas e analisadas segundo a estrutura de conteúdo de Bardin. Os gerentes imputam a impossibilidade da oferta a fatores como sobrecarga do trabalho, falta de apoio financeiro, material e organizacional por parte das secretarias de Saúde, preconceito, infraestrutura inadequada, inexistência de recurso financeiro e insuficiência de formação em serviço. Portanto, concluímos que a implementação das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde é incipiente na Atenção Primária à Saúde por conta, principalmente, de barreiras estruturais, organizacionais, culturais e educacionais. Esses resultados podem colaborar na resolução desses obstáculos, para que as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde possam ser oferecidas aos usuários do Sistema Único de Saúde de forma mais equânime.
Palavras-chave:
Terapias Complementares; Atenção Primária à Saúde; Gestor de Saúde; Saúde Pública
Abstract
After 15 years of promulgating the national policy, many health units still have not implemented the Integrative and Complementary Practices. The reasons for this departure from Primary Health Care in the Metropolitan Region of Goiania-GO, Brazil, remain unknown. Thus, this study aims to understand how managers perceive the difficulties of implementing and implementing Integrative and Complementary Health Practices in Primary Health Care. This qualitative, descriptive, and exploratory study was carried out with 24 managers of basic health units through semi-structured interviews, transcribed and analyzed according to Bardin's content structure. Managers attribute the absence of Integrative and Complementary Practices in Primary Health Care to factors such as work overload, lack of support from the health secretariats, prejudice, inadequate infrastructure, lack of financial resources, and insufficient in-service training. Therefore, we conclude that Integrative and Complementary Practices are absent from Primary Health Care, mainly due to structural and organizational barriers. These results may imply the resolution of these obstacles so that Integrative and Complementary Practices can be offered to users of the Unified Health System more equitably.
Keywords:
Complementary Therapies; Primary Health Care; Health Manager; Public Health
Introdução
Nas últimas décadas, documentos oficiais brasileiros legitimaram a oferta de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) no Sistema Único de Saúde (SUS) em âmbitos federal, estadual e municipal. Em 2006, a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) foi aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2006; 2015). A PNPIC foi fundamental para a aprovação da Política Estadual de Práticas Integrativas e Complementares por meio da Lei nº 16.703 em todos os níveis da rede de atenção à saúde do estado de Goiás (Goiás, 2009). Da mesma forma, a prefeitura de Goiânia promulgou a Lei Complementar nº 195, em 2009, incluindo as PICS no rol dos serviços de saúde oferecidos e prestados pela capital goiana (Goiânia, 2009).
Com base nesse contexto, nos últimos quatro anos, importantes avanços legislativos e educacionais, provenientes das esferas federal e municipal, ocorreram com o objetivo de expandir a implantação e implementação das PICS no SUS. Em 2017 e 2018 (Brasil, 2017; 2018), o governo federal incluiu outras 24 práticas terapêuticas e abordagens médicas à lista de procedimentos oferecidos pela rede de atenção à saúde, ampliando as cinco PICS já adotadas desde a implementação da PNPIC, a saber: Medicina Tradicional Chinesa, Fitoterapia e Plantas Medicinais, Homeopatia, Medicina Antroposófica e Crenoterapia/Termalismo Social. Além disso, foi disponibilizado o curso de Gestão de PICS no Ambiente Virtual de Aprendizagem do SUS (Brasil, 2017a). Simultaneamente, em colaboração com a Universidade Federal de Santa Catarina, o Ministério da Saúde introduziu a capacitação semipresencial em Auriculoterapia para profissionais de saúde de todo o Brasil (Brasil, 2017). Nesse período, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Goiânia-GO também passou a oferecer um curso presencial de Auriculoterapia aos servidores municipais (Ferreira, 2018FERREIRA, P. Auriculoterapia Chinesa é tema de capacitação para profissionais do SUS de Goiânia. 2018. Disponível em: http://www4.goiania.go.gov.br. Acesso em: 01 nov. 2021.
http://www4.goiania.go.gov.br... ), visando fortalecer a oferta do serviço nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).
De fato, existe uma interface entre a Atenção Primária à Saúde (APS) e as PICS (Tesser; Sousa, 2018TESSER, C. D.; SOUSA, I. M. C.; NASCIMENTO, M. C. Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde brasileira. Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, v. 42, n. esp. 1, p. 174-188, 2018.). Os sistemas de informações em saúde corroboram essa afirmação. Em 2018, segundo o Sistema de Informação de Saúde para a Atenção Básica (SISAB), as PICS estavam presentes em 4.159 municípios, sendo que 90% delas foram implementadas na APS (Barbosa ., 2020BARBOSA, F. E. S. et al. Oferta de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde na Estratégia Saúde da Família no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, e00208818, 2020.). De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), em 2020, 78% das ofertas estavam na APS (Amado ., 2020AMADO, D. M. et al. Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. APS em Revista, v. 2, n. 3, p. 272-284, 2020.). Essa afinidade pode ser explicada pela convergência de princípios norteadores e ferramentas de cuidado compartilhadas pela APS e PICS, como a integralidade do cuidado, o acolhimento centrado na pessoa, o estímulo à autonomia do indivíduo em seu autocuidado, o fortalecimento do vínculo, a escuta acolhedora, a comunicação horizontal, o resgate do toque e do afeto, e a valorização da orientação comunitária (Ribeiro; Marcondes, 2021RIBEIRO, L. G.; MARCONDES, D. A interface entre a atenção primária à saúde e práticas integrativas e complementares no sistema único de saúde: formas de promover as práticas na APS. APS em Revista, v. 3, n. 2, p. 102-109, 2021.).
No entanto, apesar desses avanços, um estudo baseado em dados do Inquérito Nacional de Práticas Integrativas e Complementares e do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ) analisou a oferta de PICS na Estratégia de Saúde da Família (ESF) brasileira e revelou que elas estavam presentes em apenas 1,2% dos municípios goianos (Barbosa ., 2020BARBOSA, F. E. S. et al. Oferta de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde na Estratégia Saúde da Família no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, e00208818, 2020.). Segundo o CNES, em 2017, havia 277 serviços de APS na Região Metropolitana de Goiânia (RMG), sendo que apenas 70 deles ofereciam PICS. Isso significa que somente 2,5% das unidades da Estratégia de Saúde da Família (ESF), Núcleos Ampliados à Saúde da Família (NASF) e Academia da Saúde ofereciam alguma PICS. Mesmo com a base legal em níveis federal, estadual e municipal, esses dados sugerem que a oferta de abordagens médicas alternativas à biomedicina continua limitada e incipiente em Goiás.
Nesse sentido, se, nos últimos anos, aconteceram subsequentes atualizações da PNPIC e capacitações em PICS no âmbito local e nacional, então, como os gerentes percebem as dificuldades de implantação e implementação das PICS na APS na Região Metropolitana de Goiânia (RMG)?
As revisões integrativas da literatura de Silva . (2021SILVA, J. F. T. et al. Os desafios para a implementação das Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde. Revista de Casos e Consultorias, v. 12, n. 1, e26298, 2021.) e de Reis, Esteves e Greco (2018REIS, B. O.; ESTEVES, L. R.; GRECO, R. M. Avanços e desafios para a implementação das práticas integrativas e complementares no Brasil. Revista de APS, v. 21, n. 3, p. 355-64, 2018.), que buscaram identificar os principais desafios e dificuldades enfrentados na implementação das PICS, tanto na APS quanto no Brasil, podem oferecer pistas para uma resposta provisória a essa pergunta. Esses estudos apontaram a falta de capacitação, a ausência de apoio da gestão, a deficiência no ensino das PICS durante a graduação, a escassez de recursos financeiros e infraestrutura, e a fragilidade do trabalho em equipe como os principais obstáculos para a oferta das PICS na APS.
Embora esses estudos forneçam insights sobre as percepções dos gerentes das UBS em relação às PICS, ainda há uma necessidade de pesquisas adicionais para preencher as lacunas existentes nesse campo. Uma das principais lacunas reside na falta de pesquisas contextualizadas que analisem as dificuldades específicas encontradas em diferentes sistemas de saúde e contextos regionais. A implementação das PICS pode ser influenciada por fatores culturais, políticos, econômicos e sociais únicos em cada localidade. Portanto, estudos que investiguem as barreiras específicas em diferentes cenários são essenciais para compreender e superar esses desafios (Barros ., 2020BARROS, N. F.; FRANCISCO, P. M. S. B.; SOUSA, L. A. Desapoio dos gerentes e desinstitucionalização das Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, v.36, n.6, e00062320, 2020.; Silva ., 2021SILVA, J. F. T. et al. Os desafios para a implementação das Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde. Revista de Casos e Consultorias, v. 12, n. 1, e26298, 2021.).
Além disso, estudos realizados em outros países também evidenciaram obstáculos para a adoção das PICS pelos profissionais de saúde. No Japão (Sugito; Son, 2019SUGITO, R.; SON, D. Obstacles to the use of Complementary and Alternative Medicine by Primary Care physicians: Preliminary study. Traditional & Kampo Medicine, v. 6, n. 3, p. 173-177, 2019.), médicos que utilizam as PICS apontaram a falta de ensino e a incompatibilidade com a organização dos serviços como fatores limitadores para sua inclusão na APS. Nos Estados Unidos (Penney ., 2016PENNEY, L. S. et al. Primary care physicians, acupuncture and chiropractic clinicians, and chronic pain patients: a qualitative analysis of communication and care coordination patterns. BMC Complementary Alternative Medicine, v. 16, p. 30, 2016.; Taylor III et al., 2020) e na Nova Zelândia (Roberts ., 2020ROBERTS, K. et al. Why are we hiding? A qualitative exploration of New Zealand acupuncturists' views on interprofessional care. Complementary Therapies in Medicine, v.52, p.102419, 2020.; 2021), a falta de comunicação entre médicos alopáticos, acupunturistas e quiropatas foi o principal obstáculo para a implementação das PICS. A dificuldade de uma linguagem comum, o contexto organizacional, as interações interprofissionais e a falta de evidências científicas foram apontadas como os principais desafios no manejo das PICS por médicos e osteopatas envolvidos no cuidado de pacientes pediátricos na APS no Canadá (Morin; Desrosiers; Gaboury, 2018MORIN, C.; DESROSIERS, J.; GABOURY, I. Enablers and barriers to the development of interprofessional collaboration between physicians and osteopaths: A mixed methods study. Journal of Interprofessional Care, v. 32, n. 4, p.463-472, 2018.).
Nesse sentido, a hipótese desta pesquisa é que os gerentes das UBS podem citar a falta de apoio institucional e governamental, bem como a insuficiência de recursos financeiros e infraestrutura adequados, como obstáculos para a implantação e implementação das PICS nas UBS. É importante destacar que os fatores que contribuem para a fragilidade na oferta das PICS nas UBS da RMG ainda são pouco compreendidos, o que torna este estudo ainda mais relevante. Portanto, o objetivo deste estudo é compreender como os gerentes percebem as dificuldades de implantação e implementação das PICS na APS na RMG.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, de abordagem qualitativa, realizado entre os meses de novembro e dezembro de 2018. É um recorte da dissertação de mestrado intitulada Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde: percepções de gestores sobre os serviços na Região Metropolitana de Goiânia.
Em nosso estudo, é fundamental distinguir entre gestores de saúde e gerentes de serviços de APS, pois suas funções e responsabilidades diferem significativamente. Gestores de saúde ocupam cargos de alta hierarquia, como secretários municipais ou estaduais de Saúde, desempenhando um papel estratégico na administração do sistema de saúde como um todo (Bloise; Santos, 2017BLOISE, M.; SANTOS, R. A gerência de unidades básicas de saúde: limites, possibilidades e desafios dentro do modelo de gestão compartilhada. Chisinau: Novas Edições Acadêmicas, 2017.). Em contraste, os gerentes de serviços de APS estão mais envolvidos nas operações diárias de unidades de saúde específicas, gerenciando recursos, indicadores de desempenho e o atendimento direto aos pacientes (Henrique, 2017HENRIQUE, F. Competência de gestores de unidades básicas de saúde. Tese (Doutorado em Ciências) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 2017.).
Optamos por entrevistar gerentes de APS em nosso estudo devido à sua proximidade com a operação e seu conhecimento prático das atividades diárias. Eles possuem uma compreensão mais profunda das necessidades da comunidade, das dinâmicas da unidade e estão bem conectados com a equipe de saúde local. Além disso, esses gerentes têm experiência prática na implementação de políticas de saúde e desempenham um papel crucial na promoção das PICS na APS (Vanderlei; Almeida, 2007VANDERLEI, M. I. G.; ALMEIDA, M. C. P. A concepção e prática dos gestores e gerentes da estratégia de saúde da família. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 2, p. 443-453, 2007.; Bloise; Santos, 2017BLOISE, M.; SANTOS, R. A gerência de unidades básicas de saúde: limites, possibilidades e desafios dentro do modelo de gestão compartilhada. Chisinau: Novas Edições Acadêmicas, 2017.; Henrique, 2017HENRIQUE, F. Competência de gestores de unidades básicas de saúde. Tese (Doutorado em Ciências) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 2017.).
Além disso, logisticamente, é mais viável entrevistar os gerentes dos serviços, uma vez que estão presentes e geralmente têm disponibilidade para participar de pesquisas. Embora os gestores de nível mais alto possam fornecer informações valiosas sobre políticas gerais de saúde, os gerentes desempenham um papel fundamental na implementação prática dessas políticas e suas perspectivas são cruciais para compreender os desafios específicos enfrentados no nível do serviço de saúde e identificar possíveis soluções para a promoção das PICS na APS (Barros 2020BARROS, N. F.; FRANCISCO, P. M. S. B.; SOUSA, L. A. Desapoio dos gerentes e desinstitucionalização das Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, v.36, n.6, e00062320, 2020.).
Realizamos, inicialmente, uma análise dos serviços de APS da RMG através do CNES. Identificamos 274 serviços de APS registrados nos vinte municípios da RMG (Brasil/MS, 2017). No entanto, três municípios não participaram do estudo: dois secretários municipais de saúde não autorizaram a pesquisa, e um não respondeu.
Nos 17 municípios participantes, identificamos 234 serviços de APS. Em seguida, realizamos um censo entre os gerentes ou profissionais responsáveis pela coordenação desses serviços para identificar a presença ou ausência de oferta de PICS. Conseguimos contatar 180 gerentes via telefone, enquanto 54 serviços de APS estavam temporariamente indisponíveis devido a reformas ou não responderam às chamadas.
É importante mencionar que esse censo faz parte de um projeto de pesquisa mais amplo, do qual esta pesquisa faz parte. Este projeto inclui a análise das percepções dos gerentes de serviços que oferecem PICS, cujos resultados foram apresentados em outra publicação (Barros 2020BARROS, N. F.; FRANCISCO, P. M. S. B.; SOUSA, L. A. Desapoio dos gerentes e desinstitucionalização das Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, v.36, n.6, e00062320, 2020.).
Nos 180 serviços de APS, 21 deles ofereciam PICS, incluindo práticas terapêuticas como Auriculoterapia, Acupuntura, Terapia Comunitária, Reiki, Fitoterapia e Shantala. Portanto, esses 21 serviços não foram incluídos no estudo. Com isso, restaram 156 gerentes que poderiam ter sido entrevistados. É importante notar que esses 21 serviços que ofereciam PICS estavam concentrados em apenas 5 municípios da RMG. Em contrapartida, as outras 12 cidades não tinham oferta de PICS em nenhum dos serviços de APS disponíveis.
Para a pesquisa, selecionamos os gerentes dos serviços de APS desprovidas de PICS e próximas às unidades que ofereciam esses serviços, definindo proximidade em um raio de até 10 quilômetros. Nos municípios onde não havia oferta de PICS, a seleção foi por conveniência da pesquisadora. Todos os gerentes selecionados estavam ativos, e nenhum recusou a participação.
Optamos por incluir serviços de saúde que não ofertavam PICS em municípios nos quais outras unidades já ofereciam esses serviços por algumas razões fundamentais. Isso pode nos permitir estabelecer uma comparação significativa entre gerentes de saúde que enfrentavam realidades distintas dentro do mesmo contexto regional, capturando nuances locais. Além disso, essa abordagem pode colaborar a identificar as barreiras específicas que possam impedir a expansão das PICS, levando em conta possíveis fatores como recursos, políticas locais e aceitação da comunidade. Adicionalmente, ao não aprofundar a pesquisa em todos os municípios sem oferta de PICS, levamos em consideração limitações de recursos e a necessidade de obter uma visão geral das percepções dos gerentes de saúde em diferentes partes da RMG, garantindo a representatividade geográfica e estabelecendo uma base para futuros estudos mais específicos.
Os gerentes foram convidados a participar por telefone, e as entrevistas foram realizadas em seus locais de trabalho, com garantia de anonimato e sigilo. As entrevistas realizadas neste estudo foram guiadas por um roteiro semiestruturado que continha diferentes pontos de discussão. No entanto, para a análise e os resultados específicos deste artigo, optamos por utilizar predominantemente as respostas obtidas de uma questão específica presente no roteiro: “Quais os motivos, elementos ou fatores negativos para a ausência das PICS neste serviço de saúde?” Esta abordagem foi adotada para direcionar nosso foco de pesquisa para um tópico específico e garantir a profundidade necessária na análise das respostas relacionadas a essa questão específica. As respostas de outras perguntas no roteiro foram destinadas a futuras publicações ou análises complementares que ampliarão a compreensão do tema em questão. Portanto, nosso método de entrevista combinou elementos de um roteiro semiestruturado com uma ênfase particular em uma única questão relevante para este estudo.
Durante a entrevista, realizada em consultórios médicos ou na sala destinada ao gerente da UBS, foram audiogravadas, transcritas na íntegra e tiveram duração média de 30 minutos. As transcrições não foram devolvidas aos participantes para comentários e/ou correção. Notas sobre o campo de pesquisa eram registradas após a realização da entrevista. Utilizamos as duas primeiras entrevistas com o objetivo de verificar possíveis inconsistências ou complexidades das questões. Não houve a necessidade de alteração do instrumento da pesquisa. Após 24 entrevistas, a amostra foi fechada por saturação teórica, quando alcançamos uma compreensão abrangente do tema (Fontanella; Ricas; Turato, 2011FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimento para constatar saturação teórica. Cadernos de Saúde Pública, v. 27, n. 2, p. 389-394, 2011.).
Dessa forma, os entrevistados pertenciam aos cinco municípios localizados nas proximidades dos serviços que já haviam sido identificados com a oferta de PICS no censo de 2017. Esses municípios incluem Abadia de Goiás, Aparecida de Goiânia, Hidrolândia, Inhumas e Goiânia. Adicionalmente, entrevistamos gerentes de mais 12 municípios que não ofereciam PICS em nenhum dos serviços de APS disponíveis. Esses municípios são: Bela Vista de Goiás, Bonfinópolis, Brazabrantes, Caldazinha, Caturaí, Goianira, Guapó, Nerópolis, Nova Veneza, Santo Antônio de Goiás, Senador Canedo e Terezópolis de Goiás. Entre os entrevistados, havia profissionais que atuavam na assistência e coordenação da APS, bem como gerentes exclusivos de serviços de saúde.
Nossa abordagem de análise qualitativa seguiu o método proposto por Bardin (2016BARDIN, L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.), que delineia um processo estruturado em etapas consecutivas. Iniciamos com a pré-análise, dedicando tempo para uma imersão inicial nos dados coletados. Essa fase incluiu leituras exploratórias das entrevistas, permitindo-nos familiarizar com o material e identificar potenciais categorias. Essa etapa forneceu uma visão geral do conteúdo das entrevistas.
Em seguida, avançamos para a codificação das entrevistas usando o software NVivo versão 12, o que nos possibilitou organizar e categorizar sistematicamente as respostas dos participantes. Esse processo tornou a análise mais eficiente e organizada.
Na exploração do material, identificamos os núcleos de sentido presentes nas respostas dos participantes. Esses núcleos representam os elementos centrais e relevantes emergentes das entrevistas. A partir desses núcleos de sentido, desenvolvemos códigos que capturaram os principais temas relacionados ao nosso objetivo de pesquisa.
Posteriormente, avançamos para a definição de categorias temáticas, que representam a síntese e a integração dos códigos estabelecidos. Essas categorias foram formuladas com base na análise das relações entre os códigos e nos objetivos da pesquisa, proporcionando uma compreensão mais profunda dos significados presentes nas respostas dos entrevistados.
Finalizamos o processo com o tratamento dos resultados e interpretação dos dados, incorporando as concepções teóricas e conceituais discutidas em nossa revisão bibliográfica. A análise dos dados envolveu dois codificadores, a entrevistadora e um egresso do mesmo programa de pós-graduação. Suas análises individuais foram comparadas, resultando na definição de um conjunto final de seis códigos e duas categorias, detalhadamente descritos no Quadro 1.
Para preservar o anonimato, os entrevistados foram identificados pela letra G (Gerentes), seguida de uma numeração (1 a 24) correspondente à ordem de realização do convite. A proposta do estudo foi apreciada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás e aprovada sob o parecer nº 2.057.783.
Resultados
Participaram do estudo 24 gerentes de UBS, 58% deles enfermeiros. Predominaram participantes do sexo feminino (87%), com média de idade de 41 anos. Em relação à cor da pele, 54% se autorreferenciaram como pardos, seguidos de brancos e um de cor preta. A respeito do estado civil, 45% dos gerentes era casada. Quanto à religião, identificamos metade do número total de participantes como católicos, seguidos de evangélicos e espíritas. Do total, 22 entrevistados tinham ensino superior e 58%, vínculo empregatício mediante concurso público. Mais da metade tinha uma experiência menor ou igual a 3 anos (62,5%) no cargo de gestor de UBS.
Barreiras organizacionais e estruturais
O primeiro grupo de fatores percebidos pelos gerentes para a dificuldade da oferta das PICS incluiu obstáculos estruturais e organizacionais. Esta categoria temática é mais ampla e englobou quatro códigos, dois deles relacionados aos fatores organizacionais e outros dois a questões de cunho estrutural.
A sobrecarga de trabalho, de gerenciar e assistir, concorrentemente, é muito comum quando o gerente é o enfermeiro. Grande parte dos entrevistados compõe esta categoria profissional e isso é percebido como um entrave para a oferta das PICS no serviço, tal como observado no seguinte discurso:
No momento que estou agora, vejo as práticas como uma função a mais! Porque a minha demanda é muito grande, e tem programa o tempo inteiro. Então, toda hora tenho que ficar saindo, apagando fogo! (G10)
As notas de campo da entrevistadora reforçam essa sobrecarga de funções dos pesquisados. Durante a coleta de informações, as entrevistas precisaram ser interrompidas diversas vezes para atendimento de alguma solicitação dos usuários e/ou de algum membro da equipe da UBS.
A falta de apoio material e financeiro por parte das SMS foi outro elemento recorrente nas narrativas dos gerentes para que as PICS não sejam implementadas nas UBS. Esse fator também de ordem organizacional do trabalho é marcadamente um dos obstáculos para execução de novos programas ou propostas de ação nos serviços públicos de saúde. A descontinuidade da implantação de outras propostas de ação já foi experienciada pelos entrevistados. Essa história pregressa e problemática vivenciada na APS faz com que os gerentes coloquem a falta de apoio das secretarias como uma dificuldade para a oferta. Essa falta de apoio vai além das questões materiais, mas também tem um significado de validação simbólica ou moral em relação às PICS. O discurso abaixo evidencia tal percepção:
A falta de apoio da gestão que vem lá de cima [da SMS]. Por exemplo, em outros programas que a gente já tentou colocar em prática aqui, a gente acaba se desestimulando a fazer algo a mais, por falta de incentivo mesmo. (G3)
A infraestrutura inadequada e os recursos financeiros inexistentes e/ou insuficientes também foram apontados como fatores limitadores para a execução das PICS. O espaço físico insuficiente e a escassez de recursos não proporcionam uma atenção acolhedora, tampouco permitem uma construção efetiva para a continuidade dessas práticas. Esses aspectos foram ressaltados pelos gerentes:
A questão da estrutura também. Essa unidade tem uma estrutura muito ruim. É pequeno o espaço. (G2)
Acredito que o fato de não existir um financiamento, pois isso é importante para implantação e continuidade de qualquer programa de saúde, é uma das grandes barreiras para a sua efetivação. (G8)
As anotações do diário de campo da pesquisadora revelam a precariedade estrutural de algumas UBS. O funcionamento da APS se dá em casas alugadas, improvisadas e, dificilmente, comportaria mais uma atividade como é o caso das PICS. Em resumo, nosso estudo fornece insights consideráveis sobre as percepções estruturais e organizacionais para não se implementar as PICS. Essas descobertas validam a utilidade dessas percepções, não só para o desenvolvimento das práticas, mas também para quaisquer atividades que se queira implantar na UBS. Nossas entrevistas ressaltam os problemas crônicos da APS que podem ser agravados caso as PICS estejam disponíveis nesses serviços de saúde. Isso sublinha a imprescindibilidade da resolução das condições precárias do trabalho em saúde para que as PICS possam ser ofertadas por esses serviços.
Barreiras culturais e educacionais
Esta segunda categoria temática compreende o segundo grupo de códigos, os quais reúnem percepções para as dificuldades de execução das PICS de ordem cultural e formativa. O primeiro código faz referência ao preconceito em relação às PICS. A maioria dos gerentes mencionou atitudes incrédulas por parte dos profissionais que compõem as equipes de saúde, predominantemente, os pertencentes à categoria médica, como uma barreira ao uso das PICS na UBS, conforme expressam as narrativas a seguir:
A falta de credibilidade dos médicos quanto às práticas. (G10)
Além disso, os médicos ainda são muito resistentes. Eles não vão aceitar muito, não! (G11)
Nesse tocante, encontra-se no relato de um dos gerentes, que declara concordar com a implantação da PICS em seu serviço de saúde. Contudo, ele diz não ter estudo envolvendo a temática. Nos parece que o discurso desse gerente se molda a uma questão contraditória e acentua uma visão preconceituosa acerca das PICS. Em suas palavras,
Acho que contribuiria, principalmente, para o idoso. Eles são muito ligados a isso. E, realmente, ajuda. Eles acreditam que ajudam, e ajuda mesmo. Infelizmente não tem estudo nessa área. (G16)
Além disso, a barreira educacional apontada pelos entrevistados é a falta de formação em PICS. Muitos gerentes afirmaram claramente que a educação continuada sobre as PICS não é disponibilizada pelas SMS, o que poderia conferir visibilidade ao tema e ampliar o conhecimento a esse respeito. Os profissionais têm assumido os custeios com a sua formação e capacitação para os processos de trabalho na APS. Em suas palavras,
Falta de incentivo [de formação] da secretaria, da gestão. Geralmente, quando vamos fazer alguma coisa, por exemplo, temos que tirar do próprio bolso para fazer. (G6)
Falta de capacitação. Essa falta de capacitação pela secretaria é muito falha. (G1)
Por outro lado, duas gerentes de UBS da cidade de Goiânia, onde foi disponibilizado um curso presencial de Auriculoterapia, mencionam tal capacitação. Curiosamente, as narrativas ainda revelam os motivos para que os profissionais não se interessassem em realizá-la. Uma delas explica:
Me lembrei que algum tempo atrás a Secretaria de Saúde de Goiânia até ofereceu um curso de acupuntura auricular para os profissionais de saúde, ou seja, para quem tivesse interesse, mas ninguém na equipe se interessou em fazer. Na época, a secretaria enviou um e-mail para os gerentes repassarem aos profissionais que tivesse interesse. Mas, não explicaram nada e não apresentaram nada no e-mail [...]. No e-mail havia colocado que esse curso seria para implantar na unidade como forma de atendimento [...] daí os profissionais não tiveram interesse, pois quem fizesse o curso teria que oferecer essa prática na unidade. (G3)
Em suma, parece-nos haver, com base nos relatos apresentados nesses dois códigos, primeiramente, um certo poder institucional relacionado aos profissionais médicos. Tais discursos deixam transparecer que a presença ou ausência das PICS está condicionada a uma determinada categoria profissional. Em segundo lugar, as evidências em relação à inexistência de formação em serviço voltada para as PICS se confundem com os problemas educacionais da APS, de modo geral. De outro modo, existem gerentes que conhecem a existência da capacitação em PICS oferecida pela SMS e denunciam as dificuldades para a baixa procura dos profissionais para a realização dessas ferramentas educacionais e descontinuidade da sua oferta por aqueles que implementaram as PICS em suas UBS. Isso sublinha a importância das entrevistas com os gerentes, pois pode servir como um parâmetro para a implantação das PICS nas UBS. Desse modo, nosso estudo oferece suporte adicional para que a sua oferta possa ser algo satisfatório e planejado. Do contrário, sem considerar os resultados aqui apresentados, o uso das PICS pode ser descontinuado e seguir distante da APS.
Discussão
A sobrecarga do trabalho, sinalizada como um dos aspectos para a dificuldade de implantação, também foi evidenciada nos estudos de Silva (2019SILVA, P. H. B. Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde: Percepções dos profissionais sobre a oferta dos serviços na Região Metropolitana de Goiânia. Dissertação (Mestrado Profissional em Saúde Coletiva) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, Brasil, 2019.) com os profissionais ofertantes de PICS nas RMG. As UBS sofrem com a alta rotatividade e o reduzido número de integrantes da equipe de saúde, o que gera acúmulo das atividades realizadas dentro do serviço. Além disso, alguns entrevistados acumulam as funções gerenciais e assistenciais dos serviços de saúde, sobretudo, os enfermeiros. Então, implantar um “novo” procedimento na UBS pode representar para esse gerente um risco para as atividades preexistentes na cesta de serviços ofertados pela APS.
No Reino Unido (Sharp 2018SHARP, D. et al. 'Trying to put a square peg into a round hole': a qualitative study of healthcare professionals' views of integrating complementary medicine into primary care for musculoskeletal and mental health comorbidity. BMC Complementary and Alternative Medicine, v. 18, n. 1, p. 290, 2018.), as imposições para o desempenho de tarefas tidas como primordiais do trabalho no sistema de saúde inglês também foram apontadas pelos profissionais biomédicos como uma das razões para que não fossem realizadas nos serviços, fazendo com que sentissem que a integração das PICS estava além de suas capacidades. Realçaram que as PICS teriam que atenuar sua sobrecarga de trabalho, em vez de aumentá-la. Logo, isso também pode ser uma explicação para não se ter a oferta de PICS presentes de uma maneira expressiva na região metropolitana goiana.
A falta de apoio das SMS também foi apontada por outros estudos como elemento que contribui para o distanciamento das PICS das UBS (Aguiar; Kanan; Masiero, 2019AGUIAR, J.; KANAN, L.; MASIERO, A. Práticas Integrativas e Complementares na atenção básica em saúde: um estudo bibliométrico da produção brasileira. Saúde em Debate, v. 43, n. 123, p. 1205-1218, 2019.; Barros; Francisco; Sousa, 2020BARROS, N. F.; FRANCISCO, P. M. S. B.; SOUSA, L. A. Desapoio dos gerentes e desinstitucionalização das Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, v.36, n.6, e00062320, 2020.; Barros et al., 2020; Jales 2020JALES, R. D. et al. Conhecimento e implementação das práticas integrativas e complementares pelos enfermeiros da atenção básica. Revista de Pesquisa, v. 12, p. 808-813, 2020.; Soares; Pinho; Tonello, 2020SOARES, R. D.; PINHO, J. R. O.; TONELLO, A. S. Diagnóstico situacional das Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde do Maranhão. Saúde em Debate, v. 44, n. 126, p. 749-761, 2020.; Soares et al., 2019). A desinstitucionalização das PICS nos sistemas nacionais de saúde e as consequências desta falta de apoio também foram mencionadas em estudos desenvolvidos na Índia (Sheikh; Nambiar, 2011SHEIKH, K.; NAMBIAR, D. Government policies for traditional, complementary and alternative medical services in India: from assimilation to integration? The National Medical Journal of India, v. 24, p. 245-246, 2011.) e na Europa (Wiesener; Salamansen; Fonnebo, 2018WIESENER, S.; SALAMONSEN, A.; FONNEBO, V. Which risk understandings can be derived from the current disharmonized regulation of complementary and alternative medicine in Europe? BMC Complementary and Alternative Medicine, v. 18, p. 11, 2018.). No Brasil, isso pode ser explicado pela falta de recurso financeiro indutor para a oferta das PICS. Desde a aprovação da PNPIC, não existe financiamento por parte do Ministério da Saúde para a sua implantação nos serviços de saúde. Com isso, a oferta depende dos profissionais ofertantes, pois, na prática, são eles que arcam com os custos para implementá-las (Barbosa 2020BARBOSA, F. E. S. et al. Oferta de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde na Estratégia Saúde da Família no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, e00208818, 2020.). Essa falta de apoio gerencial culmina na fragilidade e instabilidade das PICS nos serviços (Barros; Francisco; Sousa, 2020) é acentuada pela dificuldade do repasse financeiro e subnotificação (Silva, 2019SILVA, P. H. B. Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde: Percepções dos profissionais sobre a oferta dos serviços na Região Metropolitana de Goiânia. Dissertação (Mestrado Profissional em Saúde Coletiva) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, Brasil, 2019.) dos serviços prestados, além de uma coordenação específica para as PICS (Soares et al., 2019) e uma discussão sobre sua viabilidade ou participação social (Soares; Pinho; Tonello, 2020). Produz-se, então, invisibilidade pública (Oliveira, 2018OLIVEIRA, M. C. S. As (in)visibilidades do Lian Gong na Atenção Primária em Saúde. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil, 2018.; Silva et al., 2022) de suas ações de cuidado assentadas em outras racionalidades médicas diferentes da biomédica.
O preconceito como fomentador das dificuldades de implementação das PICS, sobretudo pela categoria médica, também foi mencionado por parte dos médicos generalistas em relação à Acupuntura na Nova Zelândia (Roberts 2020ROBERTS, K. et al. Why are we hiding? A qualitative exploration of New Zealand acupuncturists' views on interprofessional care. Complementary Therapies in Medicine, v.52, p.102419, 2020.; 2021). Tal como evidenciado em outras pesquisas (Barros; Fiuza, 2014BARROS, N. F.; FIUZA, A. R. Evidence-Based Medicine and prejudice-based medicine: the case of homeopathy. Cadernos de Saúde Pública, v. 30, n. 11, p. 2368-2376, 2014.; Matos 2018MATOS, P. C. et al. Práticas Integrativas Complementares na Atenção Primária à Saúde. Cogitare Enfermagem, v. 23, n. 2, e54781, 2018.; Taylor III et al., 2020), notamos a existência de uma visão preconceituosa em decorrência da medicina baseada em evidência, pois é considerada o paradigma central do modelo biomédico e comumente citada como uma das principais barreiras para inclusão de PICS na biomedicina.
No entanto, Almeida . (2012ALMEIDA, J. et al. The differential incorporation of CAM into the medical establishment: the case of acupuncture and homeopathy in Portugal. Health Sociology Review, v. 21, n. 1, p. 5-22, 2012.) afirmaram que a falta de evidências científicas é um argumento meramente conveniente para rejeitar uma racionalidade médica. Tornou-se bastante comum justificar a ausência da sua execução no cuidado em saúde por não existir evidência suficiente para que se legitime sua oferta nos sistemas públicos de saúde. Obviamente, todo procedimento médico deve ser testado pela segurança de seus adeptos e usuários, independentemente da racionalidade médica na qual se fundamente. Porém, essa preocupação e argumento é mais usado com as práticas terapêuticas diferentes da biomedicina.
A questão do preconceito pode estar relacionada à territorialidade na oferta das PICS na APS. A territorialidade refere-se ao estabelecimento de laços, vínculos e identificação dos indivíduos com determinado território, seja ele geográfico, social ou cultural (Kirst; Oliveira, 2018OLIVEIRA, M. C. S. As (in)visibilidades do Lian Gong na Atenção Primária em Saúde. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil, 2018.). Esse conceito é amplamente relevante nos estudos de Saúde Coletiva e APS, pois reconhece que as características e necessidades de uma comunidade estão intrinsecamente relacionadas ao espaço físico em que vivem.
A influência da territorialidade na oferta das PICS na APS pode ser analisada sob diferentes perspectivas. Primeiramente, as disparidades regionais podem ser observadas, uma vez que estudos indicam que a oferta de PICS na APS varia significativamente entre as diferentes regiões do Brasil, sendo mais comum no Sudeste e Sul e menos comum no Norte (Valente ., 2022VALENTE, M. A. et al. Análise Espacial da Oferta de Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde no Brasil. Saúde e Desenvolvimento Humano, v. 10, n. 1, p. 1-12, 2022.).
Em segundo lugar, a acessibilidade e a disponibilidade dos serviços de PICS também podem ser impactadas pela territorialidade. A localização geográfica das unidades de saúde que oferecem PICS pode afetar o acesso e a disponibilidade desses serviços para a população. Se essas unidades estão concentradas em áreas urbanas ou distantes das comunidades mais vulneráveis, isso pode dificultar o acesso e limitar a oferta desses serviços (Valente ., 2022VALENTE, M. A. et al. Análise Espacial da Oferta de Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde no Brasil. Saúde e Desenvolvimento Humano, v. 10, n. 1, p. 1-12, 2022.).
Outro fator relevante é o modelo de atenção à saúde adotado pelas unidades de saúde. Se essas instituições seguirem um modelo mais centrado na biomedicina e na prescrição de medicamentos, pode haver menos espaço para a inclusão de PICS. Por outro lado, se adotarem um modelo mais integrativo e centrado no cuidado integral, pode haver mais espaço para a incorporação das PICS (Diniz ., 2022DINIZ, F. R. et al. Práticas integrativas e complementares na atenção primária à saúde. Ciência, Cuidado e Saúde, v. 21, e60462, 2022.). Nesse sentido, nossos achados indicam que a resistência por parte de alguns membros das equipes de saúde em incluir as PICS nos processos de trabalho da APS pode ser justificada por esse terceiro elemento.
Os resultados sinalizaram ainda a infraestrutura e recursos financeiros precários, tal como identificado em outras pesquisas (Assis 2018ASSIS, W. C. et al. Novas formas de cuidado através das práticas integrativas no Sistema Único de Saúde. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, v. 32, n. 2, p. 1-6, 2018.; Jales 2020JALES, R. D. et al. Conhecimento e implementação das práticas integrativas e complementares pelos enfermeiros da atenção básica. Revista de Pesquisa, v. 12, p. 808-813, 2020.; Oliveira, 2018OLIVEIRA, M. C. S. As (in)visibilidades do Lian Gong na Atenção Primária em Saúde. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil, 2018.; Padilha; Oliveira, 2012PADILHA, C. S.; OLIVEIRA, W. F. Terapia comunitária: prática relatada pelos profissionais da rede SUS de Santa Catarina, Brasil. Interface (Botucatu), v. 16, n. 43, p. 1069-1086, 2012.; Silva, 2019SILVA, P. H. B. Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde: Percepções dos profissionais sobre a oferta dos serviços na Região Metropolitana de Goiânia. Dissertação (Mestrado Profissional em Saúde Coletiva) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, Brasil, 2019.). É bastante comum encontrar na RMG as UBS sediadas em casas alugadas, sem sede própria, alocadas em ambientes que não foram destinados para o funcionamento de um serviço de saúde. Diante dessa situação, Cruz e Sampaio (2016CRUZ, P. L. B.; SAMPAIO, S. F. As práticas terapêuticas não convencionais nos serviços de saúde: revisão integrativa. Revista de APS - Atenção Primária à Saúde, v. 19, n. 3, p. 483-494, 2016.) explicam que os gerentes, por visarem somente os gastos suficientes para reorganizar os serviços e almejarem apenas os resultados a curto prazo, esquecendo-se dos benefícios a médio e longo prazo (prevenção de doenças e promoção da saúde), acabam por adiar a inserção das PICS nos serviços de saúde, preferindo permanecer no modelo convencional.
Nossos entrevistados destacaram a formação em serviço como um dos principais motivos para as dificuldades na implementação das PICS em suas UBS. Essa dificuldade está relacionada à falta de oportunidades de capacitação dos profissionais de saúde em PICS (Cruz; Sampaio, 2016CRUZ, P. L. B.; SAMPAIO, S. F. As práticas terapêuticas não convencionais nos serviços de saúde: revisão integrativa. Revista de APS - Atenção Primária à Saúde, v. 19, n. 3, p. 483-494, 2016.; Dalmolin; Heidemann, 2017DALMOLIN, I. S.; HEIDEMANN, I. T. S. B. Práticas integrativas e complementares e a interface com a promoção da Saúde: revisão integrativa. Ciência, Cuidado e Saúde, v. 16, n. 3, p. 1-8, 2017.; Dalmolin; Heidemann; Freitag, 2019; Tesser; Sousa; Nascimento, 2018TESSER, C. D.; SOUSA, I. M. C.; NASCIMENTO, M. C. Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde brasileira. Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, v. 42, n. esp. 1, p. 174-188, 2018.; Silva ., 2021SILVA, J. F. T. et al. Os desafios para a implementação das Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde. Revista de Casos e Consultorias, v. 12, n. 1, e26298, 2021.; Reis; Esteves; Greco, 2018REIS, B. O.; ESTEVES, L. R.; GRECO, R. M. Avanços e desafios para a implementação das práticas integrativas e complementares no Brasil. Revista de APS, v. 21, n. 3, p. 355-64, 2018.). Além disso, muitos profissionais de saúde não recebem treinamento adequado em PICS durante a sua educação formal e podem não ter acesso a oportunidades de treinamento nessas áreas ao longo de suas carreiras. Isso pode criar uma barreira para a implementação dessas práticas na APS (Sugito; Son, 2019SUGITO, R.; SON, D. Obstacles to the use of Complementary and Alternative Medicine by Primary Care physicians: Preliminary study. Traditional & Kampo Medicine, v. 6, n. 3, p. 173-177, 2019.; Penney ., 2016PENNEY, L. S. et al. Primary care physicians, acupuncture and chiropractic clinicians, and chronic pain patients: a qualitative analysis of communication and care coordination patterns. BMC Complementary Alternative Medicine, v. 16, p. 30, 2016.; Taylor III et al., 2020; Morin; Desrosiers; Gaboury, 2018MORIN, C.; DESROSIERS, J.; GABOURY, I. Enablers and barriers to the development of interprofessional collaboration between physicians and osteopaths: A mixed methods study. Journal of Interprofessional Care, v. 32, n. 4, p.463-472, 2018.; Jales ., 2020JALES, R. D. et al. Conhecimento e implementação das práticas integrativas e complementares pelos enfermeiros da atenção básica. Revista de Pesquisa, v. 12, p. 808-813, 2020.).
A formação em PICS é claramente considerada um dos pontos mais críticos para a ampliação efetiva dessas práticas. De forma curiosa, as narrativas dos entrevistados evidenciaram o descaso da gestão municipal em oferecer processos formativos aos profissionais de saúde em PICS. Entretanto, existem iniciativas educacionais, como o caso do curso em Auriculoterapia, com o propósito de ampliar o escopo das PICS nas UBS. É provável que o alcance dessa capacitação esteja restrito a Goiânia, visto que sua SMS foi a responsável pelo planejamento, divulgação e execução do curso, não abrangendo outras cidades integrantes da RMG.
O estudo de Silva (2021SILVA, J. F. T. et al. Os desafios para a implementação das Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde. Revista de Casos e Consultorias, v. 12, n. 1, e26298, 2021.b) identificou que os profissionais responsáveis pela execução das PICS na Rede de Atenção à Saúde da RMG também reconhecem a carência de alternativas formadoras em PICS oferecidas pelo SUS. Essa pesquisa destaca a necessidade de que os próprios profissionais de saúde arquem com os custos de sua formação em PICS, recorrendo a instituições privadas. Além disso, outros meios informais, como vídeos, revistas e livros, são utilizados para obter informações sobre as PICS que pretendem oferecer nas UBS. Nossos resultados também evidenciam a necessidade de ampliação das estratégias educacionais que englobem a totalidade das práticas terapêuticas contempladas na PNPIC. Isso indica a necessidade de promover a capacitação e formação dos profissionais de saúde de maneira abrangente, a fim de fortalecer a implementação das PICS na RMG.
De outro modo, concordando com os achados de Silva . (2021SILVA, J. F. T. et al. Os desafios para a implementação das Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde. Revista de Casos e Consultorias, v. 12, n. 1, e26298, 2021.b), alguns gerentes desvelaram, embora exista a oferta do curso de capacitação pela SMS aos profissionais ofertantes de Auriculoterapia na RMG, o custeio do material para a implementação seria de responsabilidade do profissional. Essa situação desfavorece a oferta e não é a melhor maneira de se ampliar os serviços na APS. A formação em serviço oferecida pela gestão deve ser planejada de modo a prever a aquisição dos materiais necessários para que os procedimentos aconteçam sem depender do desejo do profissional pluralizar seus arsenais terapêuticos. Dessa forma, será possível contemplar as necessidades dos usuários atendidos pela UBS.
Considerações finais
Os gerentes identificaram barreiras organizacionais, estruturais, culturais e educacionais que dificultam a implementação das PICS na APS na RMG. Essas barreiras incluem a precariedade da estrutura dos serviços de APS e a sobrecarga de tarefas biomédicas. Os resultados ainda sugerem que tais problemas são enfrentados de forma geral na APS devido ao subfinanciamento do SUS. Mesmo com evidências de redução de custos, a oferta de PICS sem planejamento adequado preocupa os gerentes das UBS.
A inclusão seletiva de serviços de APS pode ter introduzido um viés nos resultados, pois unidades sem oferta de PICS podem enfrentar realidades distintas das que já adotaram essas práticas. Para reduzir esse viés em futuras pesquisas, recomendamos uma amostra diversificada que inclua unidades com e sem oferta de PICS em todos os municípios. Isso possibilitará uma análise abrangente das percepções dos gerentes de saúde em diferentes contextos. Além disso, estudos futuros podem explorar o impacto das políticas locais e regionais na oferta de PICS, fornecendo evidências adicionais e reduzindo o viés de seleção.
Ainda com essas limitações, nosso estudo conseguiu desnudar importantes elementos que dificultam a implementação das PICS na APS. Os resultados podem subsidiar o direcionamento das ações a serem consideradas pela gestão dos serviços de saúde para esse fim. As evidências reveladas nas narrativas dos entrevistados orientam para a definição orçamentária e financeira para a efetivação das políticas nacional, estadual e municipal; para que a articulação intrasetorial com a oferta seja de responsabilidade das SMS e da gerência da UBS; em prol da extensão dos processos educacionais dos profissionais de saúde.
Seria difícil para os municípios se responsabilizarem sozinhos pela capacitação e formação, bem como pela aquisição de insumos e organização dos serviços num país tão diversificado e discrepante cultural e economicamente como o nosso. Para que sejam percebidas, valorizadas e aceitas por esses gerentes locais, a oferta das PICS perpassa pela resolução dos problemas da APS. Portanto, para que elas façam parte da pluralidade terapêutica de modo contínuo e fortificado, é imprescindível um planejamento estratégico, ou seja, com o estabelecimento de objetivos, metas e resultados, tornando o acesso dos usuários a essas práticas resolutivo, equânime e realizado de forma adequada no SUS.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Ago 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
10 Nov 2022 - Revisado
12 Set 2023 - Aceito
15 Mar 2023