Promoção da Saúde: um posicionamento na perspectiva da educação popular no contexto brasileiro

Health promotion: a stance from the perspective of Popular Education in the Brazilian context

José Ivo dos Santos Pedrosa Helena Maria Scherlowski Leal David Maria Rocineide Ferreira da Silva Ricardo Burg Ceccim Sobre os autores

Resumo

O texto discute limites, fragilidades e modos instituintes do conceito de Promoção da Saúde em cruzamento com o conceito de Educação Popular como base para operacionalizar ações no campo da Saúde Coletiva. A Promoção da Saúde, em sua evolução histórico-conceitual e sustentação das práticas sanitárias é analisada, toma como base o pensamento latino-americano, na perspectiva da “produção social da saúde”. São apresentadas considerações acerca das formas concretas que a Promoção da Saúde adquiriu como ferramenta de intervenção em determinados arranjos institucionais do Sistema Único de Saúde, com foco na dimensão educativa das práticas. Parte da perspectiva da Educação Popular como abordagem comprometida com a produção de processos inclusivos na saúde e com a superação das desigualdades e iniquidades que afetam a vida e a construção da democracia, que, no caso brasileiro, se configurou pela “Educação Popular em Saúde”..

Palavras-Chave:
Promoção da Saúde; Educação em Saúde; Saúde Coletiva

Abstract

The text discusses the boundaries, vulnerabilities and instituting modes of the concept of Health Promotion in conjunction with the concept of Popular Education as a basis for operationalizing actions in the field of Collective Health. Health Promotion, in its historical-conceptual evolution and support for health practices, is analyzed based on Latin American thought anchored in the perspective of the “social production of health”. Considerations are presented about the concrete forms that Health Promotion has acquired as a tool for certain institutional arrangements in the Unified Health System, focusing on the educational dimension of practices, starting from the perspective of Popular Education as an approach committed to producing inclusive processes in health and overcoming inequalities and inequities that affect the life and the construction of democracy, which, in the Brazilian context, was configured through “Popular Health Education”.

Keywords:
Health Promotion; Health Education; Collective Health

O conceito de Promoção da Saúde – situando a questão

A ideia de uma “nova saúde pública” (Czeresnia, 2009CZERESNIA, D. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2009. p. 43-57.) circulou nos debates acadêmicos e espaços de práticas em saúde nas décadas de 1980 e 1990, conceitualmente fundamentada em relatórios das conferências internacionais sobre Promoção da Saúde, de Ottawa (1986), Adelaide (1988) e Sundsvall (1991). O conceito de Promoção da Saúde nasce nesse contexto, ligando-se à concepção ampliada de saúde. Está presente no movimento de Reforma Sanitária Brasileira, integrando o léxico das políticas e práticas deste campo.

Alguns autores situam o marco histórico da Promoção da Saúde na década de 1970, embasados no Informe Lalonde, emitido pelo então ministro da saúde canadense Marc Lalonde, primeiro documento oficial a usar o termo (Buss, 2009BUSS, P. M. Uma introdução ao conceito de promoção da saúde. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2009. p. 19-42.), apontando antecedentes históricos a respeito da compreensão dos fenômenos de saúde-doença-cuidado. O caráter positivo e propositivo das formulações afirma a necessidade de enfrentar questões e problemas de saúde desde uma perspectiva além da prevenção, incorporando termos como “ambientes saudáveis” e “desenvolvimento sustentável” ao novo glossário da saúde, destacando-se a “novidade” desta abordagem conceitual.

No Brasil, apesar da incorporação mais tardia, o conceito de Promoção da Saúde é logo articulado ao processo histórico de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Para Carvalho (2008CARVALHO, A. I. Princípios e prática da promoção da saúde no Brasil. Cad. Saúde Pública (Rio de Janeiro), 2008, v. 24, n. 1, p. 4-5. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2008000100001.), a Promoção da Saúde deve ser compreendida como “uma agenda”, sendo esta integrada e interdisciplinar, cujo objetivo primordial seria fomentar mudanças em três âmbitos: “assistência à saúde, gestão local de políticas públicas e proteção e desenvolvimento sociais para todos”. A noção de uma agenda integrada e interdisciplinar, também designada atenção integral, decorreria da procura por “criar e fortalecer elos entre diversos setores e programas, não apenas dentro do chamado setor da saúde, propriamente dito, [...] envolvendo [...] outras agências de governo, organizações não governamentais e movimentos sociais (Carvalho, 2008CARVALHO, A. I. Princípios e prática da promoção da saúde no Brasil. Cad. Saúde Pública (Rio de Janeiro), 2008, v. 24, n. 1, p. 4-5. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2008000100001., p. 4).

Essa perspectiva supõe consenso entre distintas concepções de saúde e doença caracterizando-se como força-tarefa em favor da “qualidade de vida para todos”, conceito polissêmico e genérico. Afinal, quem define qualidade de vida e para quem? A ideia da Promoção da Saúde se construiu balizada por conceitos estruturantes das políticas de saúde e práticas profissionais, influenciou a construção de propostas como a da Vigilância da Saúde (Teixeira; Paim; Vilasbôas, 1998) e os processos de produção das chamadas políticas saudáveis, ganhando concretude na proposta da Estratégia Saúde da Família.

O olhar que lançamos sobre este campo específico e respectivas práticas parte de outro campo conceitual e de práticas, o da Educação Popular, que se constituiu antes da incorporação do conceito de Promoção da Saúde, mas que dialoga com este ideário no sentido de reforçar sua importância e problematizá-lo, dando consistência a um campo particular, o da Educação Popular em Saúde. Deve-se reconhecer saberes e práticas da Educação Popular em Saúde desde os meados dos anos 1960 apoiando o cuidado ampliado em territórios de saúde. A incorporação espontaneísta do ideário da Promoção da Saúde, que se expressa em processos educativos centrados em uma ótica mais tecnicista e individualizada, em detrimento da produção de um diálogo problematizador, criativo e coletivo, a afasta da Educação Popular em Saúde. Para a compreensão ampliada de saúde e dos processos de determinação social do ser saudável e do adoecer humano, precisamos recuperar questões fundamentais da medicina social latino-americana.

Apresentamos, então, sinteticamente, marcos históricos do campo da Educação Popular em Saúde no Brasil, influências do pensamento latino-americano em saúde e entrelaçamentos da Educação Popular com a Promoção da Saúde, promovendo o diálogo entre os conceitos de determinantes sociais de saúde e processo de construção e determinação social da saúde-doença. Estes conceitos representam importantes construções teóricas, ético-políticas e práticas em torno da proposta da Promoção da Saúde nos últimos trinta anos. Não pretendemos aprofundar esta complexa e densa trama conceitual, mas tecer elementos para um debate inicial acerca dos conceitos-base para a Promoção da Saúde, apontando possíveis modos instituintes da Educação Popular em Saúde.

A Educação Popular em Saúde - o caminho, as pedras e flores no percurso

Não há cronologia precisa a respeito do desenvolvimento da Educação Popular em Saúde como campo de reflexões e práticas no Brasil. Os registros referem experiências e processos locais produzidas na década de 1960, articulados a movimentos e grupos de resistência contra a ditadura militar instaurada em 1964, apoiados por setores acadêmicos e de alas progressistas da Igreja Católica, inspiradas pela Teologia da Libertação, incorporando o tema da saúde às formas de organização e resistência política (Stotz; David; Wong-Un, 2005). Reconhecia-se a existência do que Vasconcelos (2017VASCONCELOS, E. M. Redefinindo as práticas de saúde a partir da educação popular nos serviços de saúde. In: VASCONCELOS, E. M.; PRADO, E. V. (Org). A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da Rede de Educação Popular e Saúde. São Paulo: Hucitec, 2017, p. 19-32. Disponível em: https://issuu.com/vepopsus/docs/a_sa_de_nas_palavras_e_nos_gestos_-
https://issuu.com/vepopsus/docs/a_sa_de_...
) denominou “fosso cultural” na relação entre os profissionais de saúde e a população, apesar do comprometimento dos profissionais com as causas populares.

Essas iniciativas contribuíram para compor, na década de 1980, o movimento de Reforma Sanitária Brasileira, focado na ampliação e fortalecimento da participação popular, tendo como marco a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, momento de intensa participação de estudiosos de sistemas e serviços de saúde comprometidos com a mudança desse setor das políticas públicas e grupos populares que vinham se organizando nas periferias das cidades, nos municípios pequenos, com o apoio do Movimento Popular de Saúde (MOPS), marcadamente no nordeste brasileiro (Stotz; David; Wong-Un, 2005STOTZ, E. N.; DAVID, H. M. S. L; WONG-UN, J. Educação popular e saúde: trajetória, expressões e desafios de um movimento social. Rev. aten. primária saúde (Juiz de Fora), v. 8, n. 1, p. 49-60, 2005.).

A década de 1990, em que se esperava a implementação das bases e princípios do Sistema Único de Saúde, foi marcada por governos de orientação político-econômica neoliberal, fortalecendo o modelo e hegemonia da biomedicina no interior do sistema de saúde. Nesta mesma década, militantes e participantes das iniciativas de Educação Popular em Saúde se agregaram e se fortaleceram como coletivo, inicialmente, na primeira Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde (1991), e, posteriormente, na Rede de Educação Popular e Saúde (1998).

Certa “marginalidade” caracterizava a atuação da Rede de Educação Popular e Saúde (REDEPOP), ainda que, paulatinamente, fosse crescendo e se articulando em outros projetos e iniciativas (movimento estudantil e movimentos populares, como o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase). As instituições e o “núcleo duro” da formulação de políticas de saúde eram impermeáveis a debates sobre o popular na educação, sendo exceção algumas administrações públicas municipais e estaduais, nas quais forças de esquerda e centro-esquerda conseguiram se fazer representar pelo voto.

Em seguida à vitória de Lula, em 2002, a Rede de Educação Popular e Saúde produziu, a Carta ao Presidente Lula, apresentando propostas de revisão e revogação de dispositivos legislativos e jurídicos limitadores do alcance da universalidade na saúde, além de informar sobre a necessidade de acirrar o processo participativo no setor, com “a radicalização democrática, com efetiva participação popular na formulação, implementação, gestão e acompanhamento das políticas públicas, o que exigia, dentre outras ações, “o planejamento ascendente e a descriminalização dos movimentos sociais” (REDEPOP, 2003).

No primeiro ano do governo Lula, ocorreram modificações na estrutura do Ministério da Saúde, ao mesmo tempo em que movimentos e organizações populares de âmbito nacional demandaram apoio público às suas reivindicações históricas. Com a criação, no Ministério da Saúde, da Secretaria da Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), foi estruturada uma Coordenação-Geral de Ações Populares de Educação na Saúde, de modo que movimentos e organizações passaram a dispor de um canal de interlocução político-institucional (ANEPS, 2003). Como a Redepop era um coletivo híbrido de pessoas (profissionais, professores, estudantes, pesquisadores e militantes), urgia a estruturação de representações dos movimentos e coletivos de todo o país, incluindo as pessoas que desenvolviam práticas populares de cuidado. Em 2003, em resposta a nova estrutura do Ministério da Saúde, organizou-se a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS), com núcleos estaduais e executiva nacional, tendo em vista fortalecer os coletivos de base e produzir interlocução com o novo governo (ANEPS, 2003).

Até o fim do governo Dilma Roussef, as ações de Educação Popular em Saúde foram desenvolvidas com apoio ministerial, avançando na sua capilarização, tornando-as mais visíveis e plurais, com intensa mobilização e realização de encontros, seminários, participação em eventos, assim como ampliação da sua produção acadêmica. Foi principalmente a militância da Educação Popular em Saúde nordestina que aderiu à ideia de capilarizar seus “princípios e práticas”, contribuindo na construção de ações sustentadas pelo Ministério da Saúde e também “desde baixo”, com base nas organizações populares locais articuladas com coletivos e instituições que foram sendo criados, como o Grupo Temático de Educação Popular em Saúde na Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), a Articulação Nacional de Extensão Popular e Saúde (ANEPOP), vinculada à Universidade Federal da Paraíba, e o projeto de Vivências em Educação Popular em Saúde (VEPOP), dirigido aos estudantes de cursos de graduação.

Do ponto de vista das mudanças no modelo de atenção à saúde, as relações entre gestão, educação, profissionais e população seguiram reproduzindo relações de classe, expressas no conjunto de práticas, dispositivos e formas de organização de serviços e ações que caracterizam o modelo biomédico ou médico-centrado. A incorporação de princípios libertários de educação em saúde e intersetorialidade não significa transformação radical das práticas educativas, contudo viabilizam ações dialógicas e de fortalecimento dos saberes populares. A profundidade fica por conta dos projetos e inciativas locais, que possuem mobilização popular sempre mais forte.

Durante o processo de constituição e estruturação da ANEPS, produziram-se debates importantes, com destaque para a dimensão política deste processo, no horizonte do novo governo:

[...] Falou-se em “resgate da cultura popular”, mas argumentou-se que seria necessário também falar em mudança de crenças e valores a respeito de certos problemas. [...] Por vivermos numa sociedade de classes que é histórica, onde as posições dos diferentes grupos sociais estão sempre se modificando umas relativamente às outras, é importante reconhecer que os saberes alteram as práticas e o fundamental, do ponto de vista da educação popular, é lutar pela transformação da sociedade, pela afirmação dos sujeitos e, portanto, respeitar as diferenças, saber escutar e reconhecer (ANEPS, 2003, p. 3).

Entre 2009 e 2013, as ações educativas com apoio ministerial foram mais visíveis e fortes, priorizando ações que pudessem ser financiadas para fortalecer a Educação Popular em Saúde, necessariamente articuladas ao sistema sanitário, em especial na Atenção Básica. Por meio da constituição de um Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde, com a participação de representações populares, profissionais e governamentais, foi produzida, de forma ascendente, desde as regiões brasileiras, a Política Nacional de Educação Popular e Saúde no SUS (PNEPS-SUS). Tratou-se de um marco político-institucional para fortalecer os princípios da participação popular no SUS. Na conjuntura atual, a PNEPS-SUS foi desconstruída pelo governo Bolsonaro que desarticulou o Comitê Nacional, assim como outros conselhos e comissões setoriais ao tempo em que se agregavam aos coletivos de Educação Popular militantes jovens garantindo sustentabilidade às reflexões coletivas e pautas de luta, tensionando governos locais e universidades para ampliar a participação popular.

Dentro das ações de Educação Popular, a Promoção da Saúde não se separou dos mesmos princípios e bases metodológicas: partir do saber popular, colocar-se em escuta radical das necessidades e reconhecer potencialidades da população e dos territórios para a garantia do direito à saúde. Os processos concretos e sua análise indicaram que era necessário aprofundar a compreensão sobre o conceito de determinantes sociais da saúde e avançar para compreensão dos processos de construção e determinação da saúde-doença como base para a ação.

Sobre determinantes e processos de determinação – escolhas e caminhos

Na constituição da Saúde Coletiva, o referencial teórico e político da Reforma Sanitária Brasileira, notadamente a partir do final dos anos 1970, tinha como premissas básicas a produção social da saúde e da doença, a distribuição dos agravos e enfermidades na população e a organização social dos serviços de saúde. Essas premissas encontravam fundamentos epistemológicos nos preceitos marxistas no campo da saúde, mediados pela análise de categorias como modo de produção, classe social, mais-valia e força de trabalho. Nessa perspectiva, situam-se estudos sobre desnutrição proteico-calórica infantil, que passou a ser explicitada como fome e como insegurança alimentar, e sobre saúde da população trabalhadora alinhada às condições de produção e reprodução da força de trabalho (Pedrosa, 1984PEDROSA, J. I. Desnutrição infantil e trabalho materno: notas para uma investigação. 1984. 105 p. Dissertação (Mestrado em Saúde Comunitária) – Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1984.).

As referências bibliográficas básicas se destacam no livro Saúde e sociedade, de Cecília Donnangelo (1979)DONNANGELO, M. C. F.; PEREIRA, L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1979. e na tese de doutorado O dilema preventivista, de Sérgio Arouca (2003AROUCA, S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo: Editora Unesp; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.). No cenário latino-americano, tiveram grande relevo as produções de Asa Cristina Laurell (2013), do México, e Jaime Breilh (1989)DONNANGELO, M. C. F.; PEREIRA, L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1979., do Equador, voltadas para a relação saúde e sociedade e para a produção e reprodução da força de trabalho, além da contribuição de Giovanni Berlinguer (1978BERLINGUER, G. Medicina e política. São Paulo: Cebes/Hucitec, 1978.), italiano, sobre sistemas de saúde e proteção social.

Borghi, Oliveira e Sevalho (2018BORGHI, C. M. S. O.; OLIVEIRA, R. M.; SEVALHO, G. Determinação ou determinantes sociais da saúde: texto e contexto na América Latina. Trab. Educ. Saúde (Rio de Janeiro), 2018, v. 16, n. 3, p. 869-897. http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00142), refletindo sobre a historicidade dos conceitos de determinação e determinantes da saúde, afirmam que o significado de determinação se encontra no modelo explicativo histórico-social, tendo por base a constituição das sociedades modernas a partir do desenvolvimento do modo capitalista de produção. É esse referencial que orienta a produção científica brasileira e latino-americana, que assume posicionamento mais radical, exigindo de estudiosos e instituições de pesquisa atitudes políticas proativas, diferentes do discurso tecnicista delineado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em que se revela uma neutralidade capturada pela acepção do modelo multicausal, em que múltiplos fatores envolvidos na causação da saúde e da doença se apresentam com o mesmo peso, sejam relativos aos agentes, hospedeiros e/ou ambiente.

No Brasil, particularmente, os sujeitos epistêmicos (Testa, 1992TESTA, M. Pensar em saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.) que circulavam no incipiente campo da Saúde Coletiva rompiam as barreiras políticas, promovendo intersetorialidade, superando os limites epistemológicos das fronteiras científicas tendo expressão na luta política, como o Movimento de Renovação Médica (REME), a Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e outros movimentos sociais organizados no período pós-ditadura. Nesse momento, cruzavam pelo Brasil e América Latina lutas políticas de movimentos de caráter nacional, como sindicatos de várias categorias de trabalhadores, movimentos de base popular e comunitária que se desenvolviam em comunidades. Nesse contexto, o significado de saúde e enfermidade ganha dimensões de disputa de narrativas entre distintos grupos e concepções políticas, sendo entendidas, a saúde e a enfermidade, na vertente crítica, como resultado das condições de produção e reprodução da força de trabalho sob o capitalismo, tendo como bandeira de luta mais radical as transformações da estrutura material da organização social.

Nessa perspectiva, o Estado e as estruturas institucionais da sociedade eram compreendidos como instâncias nas quais predominavam ações de “aparelhos ideológicos”, cuja disposição era fomentar mecanismos de conformação, aceitação e explicação do status quo. Assim, a proposta inicial de Promoção da Saúde emergente de países economicamente desenvolvidos, respaldada por organismos internacionais como a OMS, não foi aceita sem estranhamento e pacificamente por estudiosos, cientistas e militantes do chamado mundo em desenvolvimento.

Isso posto, configurava-se a incompatibilidade teórica e metodológica entre o avanço da Saúde Coletiva, em termos da explicação da causação da doença trazida pela epidemiologia e seus reflexos e a diferente distribuição das doenças na população. Para superar esta fragmentação conceitual, Almeida Filho, em “Epidemiologia sem números: uma introdução crítica à ciência epidemiológica”, recorre ao epistemólogo argento-canadense Mario Bunge (El principio de la causalidad en la ciencia moderna. Buenos Aires, Eudeba, 1969), relatando:

El enfoque alternativo presentado por Bunge (1969) ve a la causalidad no

“como una categoría de relación entre ideas, sino como una categoría de conexión y determinación que corresponde a una característica real del mundo fáctico, de modo que tiene índole ontológica, por más que, como cualquier otra categoría de esa naturaleza, suscite problemas gnoseológicos”. Según él, el término determinación también designa conceptos distintos: a) el de propiedad: determinado es aquello que adquiere caracteres propios y definidos; b) el de conexión necesaria: “conexión constante y unívoca entre casos o eventos, o entre estado o cualidad de las cosas, así como entre objetos ideales”; c) el de proceso, modo de venir-a-ser a través del cual un objeto llegó a ser lo que es o adquirió sus determinaciones. Bunge habla del determinismo en general, sugiriendo la existencia de diferentes tipos de determinación, irreductibles entre sí, sin embargo, jerárquicamente relacionados, si bien ningún tipo de ellos opera en forma pura. En su propuesta, el espectro de las categorías de determinación que ocurren en la ciencia moderna comprendería lo siguiente: a) autodeterminación cuantitativa: del consecuente por el antecedente; b) determinación causal o causación: del efecto de la causa eficiente (externa); c) interacción o causación recíproca: por acción mutua; d) determinación mecánica: por la adicción de causas eficientes y acciones mutuas; e) determinación estadística: por la función conjunta de variables independientes o semiindependientes en el interior de un modelo matemático; f) determinación estructural: de las partes por el todo y viceversa; g) determinación teleológica: de los medios por los fines; h) determinación dialéctica: “de la totalidad del proceso por la lucha interna y por la eventual síntesis subsiguiente de sus componentes esenciales opuestos” (ALMEIDA FILHO, 1992, p. 95-96).

Apesar da aparente divergência, a busca de diálogos acontecia tanto em espaços acadêmicos como de mobilização social, em torno de “conceitos-amálgamas” que alimentavam a discussão, como equidade e educação em saúde. O termo equidade, no campo da saúde, remonta à Carta de Alma-Ata (Mendes, 2004MENDES, I. A. C. Desenvolvimento e saúde: a declaração de Alma-Ata e movimentos posteriores. Rev Latino-am Enfermagem, 2004, v, 12, n. 3, p. 447-448. https://doi.org/10.1590/S0104-11692004000300001), na qual se ressalta que padrões de desenvolvimento mundial geraram imensa desigualdade entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, entre regiões e entre grupos sociais em termos de oportunidades de levar uma vida mais saudável, evidenciando-se grande disparidade entre países pobres e países ricos. A referência inicial de equidade emerge das concepções políticas no plano da justiça social, em que se questiona quem e como deveria ser protegido pelo Estado constituído à luz dos direitos humanos, centrado na justa distribuição da riqueza entre os cidadãos (Barros; Souza, 2016BARROS, F. P. C.; SOUSA, M. F. Equidade: seus conceitos, significações e implicações para o SUS. Saúde Soc. São Paulo, 2016, v. 25, n. 1, p. 9-18. https://doi.org/10.1590/S0104-12902016146195).

Ao considerar que o Estado é partícipe das determinações essenciais do modo econômico de produzir a vida, reconhecemos em quase toda a história republicana do país que as desigualdades têm sido objeto das políticas sociais, justificadas pela pobreza estrutural, ou seja, pela renda familiar em termos de salário mínimo que, de certa forma, homogeneíza aqueles que vivem abaixo da linha da pobreza. Com a trajetória democrática no país de 2003 a 2017, movimentos sociais que se organizavam independentemente de seu lugar na produção (classicamente, diz-se que o lugar na produção define proletários, capitalistas e trabalhadores informais) buscavam afirmação como sujeitos sociais na cena política, apresentando a questão da equidade na perspectiva do direito, ampliada pelo direito a ter direitos (Cohn; Nunes; Jacobi; Karsch, 1981COHN, A. et al. A saúde como direito e como serviço. São Paulo: Cortez, 1991.).

Movimentos como das populações negra; LGBTQIAPN+;11A sigla LGBTQIAPN+ corresponde às chamadas identidades dissonantes do padrão masculino-feminino, homem-mulher, abrangendo pessoas Lésbicas, Gays, Travestis, Transgêneros, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais, Pansexuais, Não Binárias, dentre outras identidades ou expressões de gênero e diversidades de orientação sexual. ciganos; pessoas em situação de rua; povos das florestas, dos campos e das águas; vítimas de barragens e outros cidadãos ocuparam os espaços públicos para enunciar (e denunciar) as particularidades de sua situação, no que concerne às condições de vida e saúde. A polifonia de vozes desses movimentos resultou na formulação da Política Nacional de Promoção da Equidade em Saúde, em 2013, pelo Ministério da Saúde, considerando a iniquidade como efeito da imensa desigualdade social no país, com expressão em específicos grupos sociais. O conceito de equidade também considera os impactos na saúde das diferentes formas de preconceito e discriminação social, como o racismo, a misoginia, a LGBTQIAPN+fobia e a exclusão social de populações que vivem em situação de rua ou em condições de isolamento territorial, como as do campo, da floresta, das águas e dos quilombos e em nomadismo, como no caso dos ciganos (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Políticas de Equidade em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2017. Disponível em: https://www.saude.gov.br/participacao-e-controle-social/gestao-participativa-em-saude/politicas-de-equidade-em-saude. Acesso em: 13 mar. 2020.
https://www.saude.gov.br/participacao-e-...
).

Para Pedrosa (2006PEDROSA, J. I. Educação e promoção da saúde. In: CASTRO, A.; MALLO, M. SUS: ressignificando a promoção da saúde. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 77-95), as ações de educação na condição de estratégias para promoção da saúde alcançam simultaneamente três dimensões: a) a geral, de expressão do fenômeno saúde/doença, a partir da qual se buscam adeptos para formulação de intervenções pautadas no projeto utópico de evolução da humanidade; b) a particular, em que a promoção da saúde cristaliza sua interface com a formulação das políticas públicas saudáveis, mediante a vontade coletivamente definida de defesa do direito à vida; c) a dimensão das singularidades dos sujeitos sociais e das respectivas representações sobre saúde e doença, em que, por meio da ação comunicativa, é possível imprimir direção e sentido para as ações voltadas para construção de uma vida mais saudável.

Na dimensão mais geral, quando a Educação para a Promoção da Saúde se expressa nas relações sociais como amalgamadoras da interação entre os indivíduos, nascem propostas libertadoras, como democracia, participação e direitos de cidadania. Nesta direção, emergem novas referências conceituais e relacionais, como a solidariedade, o acesso às oportunidades e o direito de ser diferente. Na dimensão particular das políticas de saúde em cada contexto, a proposta de promoção incorpora princípios como intersetorialidade, equidade, participação e controle social, cujas especificidades da educação em saúde decorrem da acepção de Educação para a Cidadania, ou seja, instrumentalização da sociedade para participar de intervenções na realidade, buscando qualidade de vida.

Na dimensão da singularidade do viver de cada sujeito, a Educação para a Promoção da Saúde aglutina “velhos e novos” princípios como orientadores de suas ações. “Velhos”, aqueles que já estão presentes no saber/fazer das práticas de educação em saúde, que falam de ambiente, dos hábitos, das crenças, das atitudes, das práticas que objetivam os “comportamentos saudáveis”, como o cuidado com a água, com o solo etc. E “novos” princípios, aqueles que consideram intervenções sociais como elementos desencadeantes da ação participativa de cada ator em determinado cenário, em que a educação em saúde se traduz em práticas que objetivam a introjeção da vontade de mudar, de fazer algo, produzindo novos sentidos para as experiências vividas. No velho, a Educação em Saúde da tradicional Saúde Pública. No novo, a Educação Popular em Saúde, da Saúde Coletiva. Finalmente, para o campo da Educação Popular em Saúde, determinação ou determinantes implicam postura política engajada com ação crítica e reflexiva de sujeitos sociais comprometidos em construir o futuro, no qual agem como protagonistas.

Experiências educativas concretas para pensar Educação Popular e Promoção da Saúde

Algumas experiências expõem intersecções importantes da Educação Popular com o campo da Saúde Coletiva e que constituíram trilhas potentes para a produção da Promoção da Saúde como Educação Popular em Saúde, no caso brasileiro. Como primeiro exemplo, o Curso de Educação Popular em Saúde para Agentes Comunitários e de Vigilância em Saúde (EdPopSUS), uma ação pautada estrategicamente na Política Nacional de Educação Popular e Saúde, que incentivou a atuação dos trabalhadores nos processos de conquista de direitos em saúde da população e o fortalecimento da participação social. Estabeleceu como público prioritário agentes comunitários de saúde e agentes de combate a endemias, contribuindo para o fortalecimento das referidas categorias profissionais, e também formadores, dentre profissionais de saúde do nível superior (Bornstein; Caetano, 2020BORNSTEIN, V. J.; CAETANO, A. P. A trajetória do EdPopSUS 2: divulgando a educação popular e fortalecendo a PNEPS-SUS. In: NESPOLI, G. et al. Saberes da experiência: sistematização do curso de aperfeiçoamento em educação popular em saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2020. p. 15-43. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/livro_saberes.pdf
https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/defau...
; Dantas, 2020DANTAS, M. A. et al. “Uma semente abrindo a terra para germinar”: o processo formativo com educadores/as populares do EdPopSUS. Saúde debate, Rio de Janeiro, 2020, v. 44, n. 125, p. 322-334. http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104202012503.). Inicialmente, foi realizado um curso de sensibilização, com carga horária de 53 horas, e, na sua segunda edição, o curso passou a ser de aperfeiçoamento, com carga horária de 160 horas, ambos no formato de ensino remoto.

Na primeira edição (de 2013 a 2014), o EdPopSUS foi promovido pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (SGEP/MS), com coordenação executiva da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/FIOCRUZ). Contou com intensa participação dos membros do GT de Educação Popular e Saúde da ABRASCO e da Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde. O curso de sensibilização qualificou mais de 11 mil agentes. O curso de aperfeiçoamento qualificou mais de 8 mil educandos.

Um outro conjunto de experiências se articulou ao projeto de “Vivências de Educação Popular em Saúde” (VEPOP), com o propósito de apoiar e produzir redes, enquanto, com isto, fortalecia a produção de experiências de extensão norteadas pelo referencial da educação popular em saúde. A PNEPS-SUS adotou, a seguir, como uma de suas estratégias, o VEPOP-SUS, por meio da cooperação e colaboração entre o Ministério da Saúde e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), entre os anos de 2013 e 2018. Como articulação da extensão universitária no país, o VEPOP contribuía para agenciar reflexão crítica sobre a realidade de seus territórios, estimulando a construção de trilhas para a constituição de novas práticas de cuidado, tanto aquelas protagonizadas no campo popular como na esfera dos serviços públicos (Botelho, 2021BOTELHO, B. O. et al. Experiências de formação no contexto da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde. Interface (Botucatu), 2021, v. 25, e200195. https://doi.org/10.1590/interface.200195).

O VEPOP-SUS contou com equipe executiva composta por docentes e pesquisadores da UFPB, com acompanhamento de técnicos do Ministério da Saúde e do Comitê Nacional de Educação Popular e Saúde (CNEPS), além da Articulação Nacional de Extensão Popular (ANEPOP). Para sua operacionalização, foram criadas frentes, entre as quais se destacaram: mapeamento de experiências de extensão em Educação Popular em Saúde em todas as regiões do país; apoio à promoção de encontros e eventos na área de formação e extensão em saúde, com ênfase na Educação Popular; realização semestral do Estágio Nacional de Extensão em Comunidades (ENEC), produção, impressão e distribuição de publicações de Educação Popular. Botelho (2021) e Cruz . (2019CRUZ, P. J. S. C. et al. Mapeamento de experiências de extensão popular nas universidades públicas brasileiras: um estudo descritivo em escala nacional. Revista Conexão UEPG (Ponta Grossa), 2019, v. 15, n. 1, p. 7-16. https://doi.org/10.5212/Rev.Conexao.v.15.i1.0001), consideram que as 11 edições realizadas do ENEC com estudantes advindos de 11 estados brasileiros e de outros dois países (Haiti e Benin), motivaram o reconhecimento dos projetos e movimentos extensionistas a partir do mapeamento realizado e da produção e distribuição de 36 obras, visibilizando a contribuição da Educação Popular em Saúde com interfaces e interseccionalidades necessárias para apropriação do campo da Saúde Coletiva.

Outra experimentação foram as Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde (VER-SUS). A iniciativa de Vivências e Estágios na Realidade do SUS vem sendo implementada desde 2004 e, a partir de 2012, significativa parcela da execução foi realizada pela Associação Científica Rede Unida, podendo ser referenciada como uma criação da política nacional de educação e desenvolvimento de trabalhadores para o setor da saúde, conhecida como “caminhos da Educação Permanente em Saúde”, orientada aos estudantes de graduação e sua presença interprofissional nas instâncias de gestão, formação, atenção e participação, esta última uma condição de experimentação dos grupos estudantis junto aos movimentos populares e aos conselhos de saúde, com discussão dos princípios e valores da educação popular. As iniciativas de estágios e vivências surgiram com a intenção de suprir parte da lacuna existente na formação de profissionais de saúde (Ferla; Schweickardt; Baptista, 2018FERLA, A. A.; SCHWEICKARDT, J. C.; BAPTISTA, G. C. Relatório executivo de projeto de pesquisa: vivências e estágios na realidade do Sistema Único de Saúde (VER-SUS) como dispositivo da política de educação na saúde e de mudanças na formação e no trabalho. Porto Alegre, 2018.).

Em meio à pandemia por covid-19, desenhou-se um outro projeto cujo referencial da Educação Popular foi a base para o diálogo com a população e lideranças populares. No período, foi produzido em articulação com lideranças, moradores e pesquisadores um processo pedagógico, partindo da realidade cotidiana, com oficinas educativas em bairros populares. A sistematização da experiência no estado de Pernambuco gerou o curso de “Formação de Agentes Populares de Saúde: ajudando minha comunidade no enfrentamento da pandemia de covid-19”. Essa experiência, iniciada em 2020, teve a parceria de vários movimentos, entre os quais, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimentos de Médicas e Médicos Populares e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES).

Estas, dentre outras experiências, muitas não sistematizadas, seguem se produzindo a partir de diversas iniciativas, como forma de superar processos voluntaristas e pré-concebidos em torno de temáticas que tendem a reproduzir eternamente o enfoque individual e moderador dos “maus hábitos das pessoas, famílias e comunidades”, tal como acontece nas formas tradicionais de educação para a saúde, ainda presentes nas práticas dos profissionais e na sua formação. Permeadas pelas contradições entre as necessidades de saúde dos diversos grupos populacionais e a capacidade de resposta dos serviços, a Educação Popular em Saúde representa possibilidade de ruptura com os modos instituídos, apresentando uma perspectiva animadora do ponto de vista teórico e metodológico.

Considerações finais

À guisa de conclusão, pode-se resumir que se discorreu brevemente sobre algumas experiências concretas que tecem processos nos quais se pode viver a saúde produzida, e não apenas promovida. São experiências que reforçam a discussão do poder e potência da comunidade e da formação de cidadãos pautada pelas vivências intensivas do cotidiano. Com as vivências acumuladas, se pode projetar maior autonomia dos corpos e maior aprendizagem dos determinantes sociais da saúde-doença-cuidado. Spivak (2020SPIVAK, C. G. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2020.) ilumina nesse caminho, ao inserir em seus escritos do campo da decolonização o livro-questionamento “Pode um subalterno falar?”. Afirma que essas pessoas, os subalternos, não se calaram, tampouco silenciaram por estruturas constituídas, tiveram suas vozes silenciadas, reduzindo o volume para os ouvintes hegemonizados, tomadores de decisão.

Valla problematizava essa realidade, chamando-a por “equação capenga”, ao afirmar a força necessária às classes menos favorecidas para realizar o enfrentamento das situações limite apresentadas. No texto, de provocativo título, “A crise de interpretação é nossa: procurando entender a fala das classes subalternas”, publicado originalmente na década de 1990 (Valla, 2017VALLA, V. V. A crise de interpretação é nossa: procurando compreender a fala das classes subalternas. Educ Real (Porto Alegre), v. 21, n. 2, 2017 https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71626), o pesquisador nos aponta que a dificuldade de leitura compartilhada do mundo (pelos educadores) desqualifica, em termos analíticos, a fala produzida pelas pessoas que habitam e realizam movimentos locais de produção da saúde e construção da vida. A incapacidade de leitura estaria relacionada à incapacidade de escuta e, consequentemente, produzir-se-iam visibilidades borradas acerca daquilo que é vivenciado e narrado por povos e populações que são categorizados como minoritários e/ou periféricos.

A negação das diferenças tem interferido fortemente nos perfis de fortalecimento da construção da vida e reafirmam as situações de desigualdade e tudo aquilo que não é capaz de promover saúde. Saúde, como conceito engravidado, gestado nas décadas de 1970-1980 e parido no acontecimento que foi a 8ª Conferência Nacional de Saúde (primeira Conferência que permitiu a vocalização dos movimentos sociais e populares, ecoando de vários lugares longínquos desse nosso país continental), afirma a importância da teoria da construção social, articula determinantes e condicionantes aos modos de viver e adoecer, aponta os processos de produção da saúde. A reflexão sobre a Educação Popular em Saúde empreendida no contexto brasileiro, faz ver da reunião entre Promoção da Saúde e Educação Popular no caso brasileiro, resultando na emergência de uma epistemologia em disruptura com os parâmetros de uma clínica da anatomopatologia e de uma educação paa a Saúde. A Educação Popular em Saúde, própria do contexto brasileiro, ao cotejar Promoção da Saúde e Educação Popular inova no plano do conhecimento e das práticas em prol de um compromisso integrado e interdisciplinar dos profissionais com seus usuários, dos serviços com seu território, dos sistemas de saúde com sua população.

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    A sigla LGBTQIAPN+ corresponde às chamadas identidades dissonantes do padrão masculino-feminino, homem-mulher, abrangendo pessoas Lésbicas, Gays, Travestis, Transgêneros, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais, Pansexuais, Não Binárias, dentre outras identidades ou expressões de gênero e diversidades de orientação sexual.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2023
  • Aceito
    27 Dez 2023
  • Revisado
    06 Dez 2023
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