Resumo
Este artigo parte da problematização da concepção de cuidado difundida pelo discurso biomédico, para assim pensar a produção de cuidado entre a população de rua, tendo como objetivo principal dar visibilidade à produção de territórios de cuidado nas ruas. O cuidado é um conceito complexo, tendo em vista sua dimensão ontológica, que nos leva a compreendê-lo como uma condição existencial, uma vez que existimos a partir e por meio do cuidado. Assim, para acompanhar os processos de composição de territórios de cuidado entre pessoas em situação de rua, lançou-se mão da cartografia como método de pesquisa. As cenas cartografadas apresentam a delimitação de territórios existenciais nas ruas, territórios que se caracterizam pelo seu nomadismo, não apenas por seu deslocamento no espaço e no tempo, mas também por suas variabilidades e composições de conexões rizomáticas. No processo cartográfico, foi possível observar produção de redes de cuidado no cotidiano da população de rua, um cuidado que se produz a partir das relações estabelecidas com a alteridade. Nesse sentido, há de se estar atento aos sinais que vêm da rua, conhecer e reconhecer suas linhas de fuga, a fim de aprender outros jeitos de se encontrar no mundo e produzir cuidado.
Palavras-chave:
População em situação de rua; Cuidado; Cartografia
Abstract
This article starts from the problematization of the conception of care disseminated by the biomedical discourse, to think about the care production process among the homeless population, considering that the main objective of this article is to give visibility to the production of care territories on the streets. Care is a complex concept, due to its ontological dimension, which leads us to understand it as an existential condition, considering that we exist from and through care. Thus, cartography was adopted as the research method following the processes of care territories composition among homeless people. The mapped scenes present the delimitation of existential territories in the streets, territories characterized by their nomadism, understood as nomadic not only by their displacement through space and time but also by their variability and rhizomatic connections. In this cartographic process, it was possible to visualize the production of care networks in the daily routine of homeless people, care produced from the relations established with otherness. In this sense, it is necessary to be aware of the signs from the streets, intending to know and recognize their lines of escape, so we can learn other ways to meet ourselves in the world and produce care.
Keywords:
Homeless people; Care; Cartography
Introdução
Era dia 12 de dezembro de 2020, meio-dia de um sábado, quando caminhava pela Praça XV de Novembro durante a pesquisa de campo. Na calçada de frente para a Catedral Metropolitana, estava João Sossego, um senhor de cabelos e barba grisalhos, pele branca, olhos azuis e chinelos surrados. Tinha uma expressão séria, fumava seu cigarro e analisava a região com atenção. Eu o havia conhecido em 2018 quando realizava um estágio no Consultório na Rua, lembrava de seu nome e então tentei puxar uma conversa. Chamá-lo pelo nome certamente abriu um canal de comunicação, e pude me sentar ao seu lado para conversarmos.
Entre um assunto e outro, algumas frases de sua autoria despertavam boas risadas, mas uma delas agenciou o meu corpo-pesquisador. Quando contava de suas experiências vivendo nas ruas de diferentes cidades do Brasil, João Sossego disparou: “Viver é uma arte, morrer é um descuido”. O significante “descuido” abriu o campo de pesquisa, uma pesquisa que se propunha a investigar a produção de cuidado entre as pessoas que vivem nas ruas. Se, para João Sossego, a ausência de cuidado levava à morte, o contrário seria produzir vida a partir e por meio do cuidado. Contudo, o que seria esse cuidado produtor de vida que faz com que para João Sossego a vida seja uma arte?11 A escolha do uso da primeira pessoa do singular se deu em virtude de que os dados utilizados são oriundos do diário de campo do primeiro autor.
Esse questionamento é o ponto de partida deste artigo, fruto da pesquisa-interrogação que questiona o saber biomédico, as práticas de saúde, os trabalhadores da saúde, a formação em saúde. Interrogamos a nós mesmos: no que pensamos quando falamos sobre cuidado? Nosso cuidado é capaz de produzir a vida como arte? (Spinelli, 2018SPINELLI, H. Máquinas y arte-sanos. Salud Colectiva, v. 14, n. 3, p. 483-512, 2018.). Nosso cuidado está direcionado a todos os grupos populacionais em sua heterogeneidade? Temos efetivamente cuidado da população de rua? E se não o fazemos, quem cuida?
O desenvolvimento da medicina moderna como um campo de saber institucionalizado remonta ao período de avanço no capitalismo industrial na Europa do século XVIII. A medicina, fechada em si mesma, passou a operar o controle das instâncias políticas que regulam seu exercício, possibilitando a alta centralização de um saber, pautado em uma prática de observação, comparação, cálculos de previsão e intervenção. O corpo é transformado no grande mapa, um espaço de inquérito sistemático; investigam-se sua normalidade, seus limites, seus desvios (Foucault, 1977FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.).
A norma e seu caráter normativo não se restringiram ao campo biológico, uma vez que a medicina, carregada de força política, derrubou seus limites e passou a definir normas do campo social e dos modos de se levar a vida (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.). O corpo humano é tomado como questão biopolítica, território onde se exercem tecnologias de poder em sobreposição, fazendo com que não somente o corpo individual seja disciplinado, mas, da mesma forma, as populações e seus eventos cotidianos sejam controlados (Foucault, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France I1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.).
Nessa dinâmica de saber e poder, o discurso biomédico tomou a noção de cuidado para si, ligando todas suas intervenções ao mesmo conceito, como se ele fosse um processo de pura objetivação, de retorno a uma norma. Curiosamente, esse cuidado com o outro muitas vezes coloca o sujeito entre parênteses, o foco do cuidado nessa relação é a doença a ser eliminada, combatida, controlada. Maria e João passam a ser “diabéticos”, “hipertensos”, “soropositivos”, “esquizofrênicos”, ou nesse caso, “moradores de rua” (Canguilhem, 2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a Mmdicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.). O avanço da tecnociência tem sido capaz de produzir uma imensidão de possibilidades de intervenção, ao passo que parece perder de vista o interesse pelas próprias pessoas que sustentam a existência da medicina. Por esse motivo, urge a necessidade de resgatarmos o cuidado em sua característica relacional pois, como relembrou Ayres (2001AYRES, J. R. C. M. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Ciên. Saúde Colet., v. 6, n. 1, p. 63-72, 2001.), o cuidado se produz a partir da intersubjetividade, ele está sustentado no “caráter imediatamente relacional e irremediavelmente contingente de nossas identidades e historicidades como indivíduos e grupos”(Ayres, 2001, p. 65).
Desta maneira, propomos pensar sobre o cuidado em sua dimensão ontológica, que antecede a existência dos sujeitos, uma vez que só existimos a partir e pelo cuidado, sendo ele uma estrutura originária da existência humana. O cuidado, nesse sentido, vincula-se ao encontro intersubjetivo com a alteridade (Ayres, 2004aAYRES, J. R. C. M. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface (Botucatu), v. 8, n. 14, p. 73-92, 2004a., 2004b; Boff, 2013BOFF, L. O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ecologia, na ética e na espiritualidade. Petrópolis: Vozes, 2013., 2014). A concepção biomedicalizada de cuidado se ocupa de normalizar os modos de vida e, no que tange à população de rua, as intervenções de saúde são guiadas por condutas de controle e coerção, carregadas de hostilidade e situações discriminatórias (Aguiar; Iriart, 2012AGUIAR, M. M.; IRIART, J. A. B. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saúde Pública, v. 28, n. 1, p. 115-124, 2012.; Barata ., 2015BARATA, R. B. et al. Desigualdade social em saúde na população em situação de rua na cidade de São Paulo. Saúde Soc., v. 24, n. Suplemento 1, p. 219-232, 2015.; Brito; Da Silva, 2022BRITO, C.; SILVA, L. N. População em situação de rua: estigmas, preconceitos e estratégias de cuidado em saúde. Ciênc. Saúde Colet., v. 27, n. 1, p. 151-160, 17 jan. 2022.). Essas situações costumam ser escondidas sob a narrativa dos pacientes de “difícil manejo”, ou que “não aderem” aos tratamentos e orientações. Comumente, essas designações são oriundas de concepções normativas de vida, ideias preestabelecidas sobre como devem ser os comportamentos sociais, muitas das vezes baseadas em uma certa moralidade (Baduy ., 2016BADUY, R. S. et al. “Mas ele não adere!” - O desafio de acolher o outro que é complexo para mim. In: MERHY, E. E. et al. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis, 2016. p. 220-227.).
No entanto, a vida nas ruas é produzida apesar de todas as normas e coerções instituídas, são formas de vida que se guiam por uma demanda constante de inventividade. Durante uma entrevista em que fala sobre Michel Foucault, Deleuze relembra a noção de processos de subjetivação presente no pensamento de Foucault, a qual diz respeito à produção de modos de existência. Como explica Deleuze, em suas pesquisas, Foucault questionava se estaríamos condenados as relações de força, fosse detendo o poder ou submetidos a ele. O filósofo levou muito tempo para chegar ao conceito de processos de subjetivação, o qual se refere a uma ultrapassagem do poder em que se dá a transposição das linhas de força, cria-se uma “dobra”: a linha de força é curvada, fazendo com que ela mesma se afete (Deleuze, 2013).
Essa dobra produz resistências e inventa novas possibilidades de vida, com regras que não são mais formas determinadas pelo saber ou regras coercitivas do poder. Segundo Deleuze, essas regras são facultativas e produzem as existências como obras de arte, uma vez que são regras éticas e estéticas, as quais marcam a composição de um modo de existência cuja constituição se dá a partir da criação de outras regras e outras possibilidades de vida (Deleuze, 2013).
Propomos uma reflexão como fio condutor: se o cuidado dependesse unicamente de intervenções clínicas, de um processo de pura objetivação, poder-se-ia pensar que, diante de tantas experiências negativas e encontros pouco efetivos, não haveria cuidado sendo produzido nas ruas? Se a morte, como nos disse Jorge Sossego, é consequência do descuido, a existência de vida sendo produzida nas ruas é efeito de um cuidado outro. Por esse motivo, apostamos que há uma produção incessante de cuidado nas ruas, uma forma de reafirmação dessas existências invisibilizadas e marginalizadas pelo discurso dominante. Dito isso, este artigo tem o objetivo de acompanhar, traçar e dar visibilidade aos territórios existenciais que estão sendo compostos nas ruas, territórios de produção de cuidado entre a população de rua.
Método
A proposta de acompanhar a produção de cuidado na rua demandou uma forma de pesquisar que ampliasse as possibilidades, compreendendo que o cuidado é um processo que já está em curso e, para acompanhá-lo, foi necessário um método sensível às processualidades e deslocamentos cotidianos desse modo-de-ser. Tendo como perspectiva uma pesquisa em constante movimento, utilizou-se a cartografia como forma de percorrer esse caminho, considerando que esse método propõe a realização de uma pesquisa-experimentação a partir dos encontros. Cartografar não é retratar o objeto de pesquisa ou revelar uma verdade unívoca, mas dar visibilidade aos processos que já estão em curso. Assim, para realizar uma pesquisa que trabalha com o campo da produção de subjetividades, lançou-se mão do método cartográfico (Passos; Kastrup; Escóssia, 2015PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015.).
No primeiro volume de Mil platôs, Deleuze e Guattari apresentam o conceito de rizoma, propondo um modelo de apresentação da realidade que é a-centrado, no qual qualquer ponto pode ser conectado a outro sem derivar de um eixo único, pois há somente a produção incessante de conexões. Nesse sentido, pode-se pensar as existências nas ruas como vidas rizomáticas, ou seja, são vidas compostas por múltiplos agenciamentos: as praças, as calçadas e elevados, as marquises, as pessoas que passam, a polícia, os serviços de saúde e assistência social, as organizações não governamentais etc. Assim, são vidas que se produzem em meio à heterogeneidade da realidade social micropolítica, compostas por um emaranhado de múltiplas conexões, as quais levam a diferentes processos de subjetivação que produzem esses modos de existência em suas singularidades. A cartografia propõe uma experimentação: trata-se de acompanhar a produção de mapas existenciais por meio das experiências do vivido (Deleuze; Guattari, 1995).
Mais do que um olhar externo, no pesquisar-cartográfico o pesquisador está aberto às experiências que se desdobram durante o campo de pesquisa. Parte-se do entendimento de que, nessa abertura, o pesquisador se autoriza a ser afetado pelas processualidades que acompanha, uma vez que reconhece a qualidade que os efeitos dessas experiências podem trazer para a produção de um conhecimento interessado. Por assim dizer, a cartografia procura se distanciar da neutralidade científica, que promove a separação entre um sujeito epistêmico responsável por representar seu objeto (Abrahão ., 2013ABRAHÃO, A. L. et al. O pesquisador in-mundo e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde. Lugar Comum, n. 39, p. 133-144, 2013.). A cartografia realiza um movimento instituinte no campo da pesquisa; ela propõe mais um pesquisar com que um pesquisar sobre, já que aposta nos planos de experimentações comuns a todos os envolvidos na pesquisa (Kasrup; Passos, 2013).
Este artigo faz parte de uma pesquisa de mestrado aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, com parecer número 4.099.819. O campo de pesquisa foi realizado na cidade de Florianópolis, Brasil, entre setembro de 2020 e dezembro de 2021. A entrada em campo levou em consideração a produção de vidas rizomáticas nesse contexto social, configurando-se como uma multiplicidade de entradas, tendo em vista os territórios existenciais que são constituídos nos espaços urbanos, com suas diferentes formas de organização e ocupação (Deleuze; Guattari, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.). Neste sentido, a entrada em campo se deu iniciando pelo rastreio dos espaços urbanos localizados na região central da cidade na busca por pistas de processualidades em curso, até que, durante seu percurso, a atenção do pesquisador foi tocada por João Sossego, pousando naquela cena e reconfigurando o campo de observação (Kastrup, 2015KASTRUP, V. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 32-51.).
As cenas cartografadas e aqui apresentadas são resultantes de anotações sistemáticas em um diário de campo, agrupadas para realizar a discussão deste artigo. A opção de utilizar o diário de campo como fonte principal de dados levou em consideração que o pesquisador estaria inserido em territórios existenciais diversos, com códigos e organizações específicos. Considerou-se que o diário de campo funcionaria como um dispositivo central para sistematização dos encontros, uma vez que permite acompanhar o movimento que a vida nas ruas exige. A escrita posterior aos encontros visou produzir o menor número de interferências possíveis, favorecendo a fluidez dos encontros e a abertura aos agenciamentos (Medrado; Spink; Méllo, 2014MEDRADO, B.; SPINK, M. J.; MÉLLO, R. P. Diários como atuantes em nossas pesquisas: narrativas ficcionais implicadas. In: SPINK, M. J. P. et al. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2014. p. 273-292.).
Os encontros se pautaram no potencial que a escuta tem de suspender os lugares instituídos e dar importância às formas de linguagem que presidem os encontros, as palavras que estão sendo pronunciadas e as histórias contadas. Para isso, utilizou-se da teoria dos quatro “agas” da escuta, sendo eles: 1) hospitalidade: o acolhimento do que o outro diz em sua linguagem e tempo; 2) hospital: cuidar daquilo que foi dito; 3) hospício: abertura ao outro em todas as singularidades e contradições; 4) hospedeiro: carregar, compartilhar e transmitir as experiências. Nesse sentido, o pesquisador acompanhou os processos que encontrava no caminho e colocou-se não em um lugar de mero observador, mas também de escuta, interlocução e troca (Dunker; Thebas, 2019DUNKER, C.; THEBAS, C. O palhaço e o psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.).
Após cada experiência em campo, deu-se a escrita no diário, o que também envolvia certa processualidade, já que eram necessários momentos de recolhimento, nos quais o pesquisador elaborava as experiências, colocando-as em palavras no papel. As anotações incluíram informações objetivas, como data, local, nomes, assim como diálogos, percepções do pesquisador, os agenciamentos sentidos durante o percurso, os incômodos e as contradições inerentes aos encontros. Assim, o diário cartográfico buscou trazer à tona as intensidades experimentadas no trabalho de campo, para assim dar língua aos encontros que compuseram as cartografias, sempre com a aposta de transformar as experiências micropolíticas em um conhecimento implicado (Rolnik, 2011ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011.; Barros; Kastrup, 2015KASTRUP, V. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 32-51.).
Resultados e Discussão
Os encontros frutos desta pesquisa serão apresentados, a seguir, no formato de cenas, trazendo a dinâmica de movimento para o processo de escrita, uma escrita também em deslocamento. As cenas buscam aglutinar questões que agenciaram o processo cartográfico, não havendo uma ordem cronológica estabelecida; todas elas se compõem com o movimento no espaço-tempo, acompanhando o deslocamento dos sujeitos durante a pesquisa.
Cena 1 - Territorializações existenciais
Em 20 de novembro de 2020, o encontro com João Sossego evidenciou a delimitação de territórios na rua. Há certamente a configuração de territórios geográficos, já que cada sujeito costuma “ficar” em algum lugar da região, sendo que nem sempre o lugar onde ficam durante o dia coincide com o local onde dormem. Mais do que espaços físicos de estadia, percebe-se a constituição de territórios existenciais, subjetividades produzidas no decorrer de um percurso de vida nas ruas.
João Sossego tinha um rosto sério e, ao escutar suas histórias, ficava evidente que sua comunicação breve e certeira, ou melhor, “tramontina, corte rápido” como ele mesmo disse, é resultado da composição de sua vida-obra-de-arte, um modo de existência que se produz ao longo do tempo a partir da renúncia ao poder, atravessada por momentos conturbados que demandam a criação de regras que possibilitam sua existência. Aos seus pouco mais de 50 anos, João Sossego já tinha percorrido uma longa trajetória pelas ruas do país, fato que ecoa na maneira como expressa seu saber empírico sobre a situação. Tendo passado por diferentes cidades, gosta muito de Florianópolis, considera que a condição de rua é um pouco melhor quando comparada a outras cidades.
Entre um gole e outro de cachaça, deixa claro que não gosta de ser importunado, segue sua vida de forma tranquila, sem grandes confusões, e por isso gosta de ser respeitado e não deixa que ninguém passe por cima dele, seja lá quem for. Além de viver nas ruas, também já teve a experiência de privação de liberdade, onde também precisou delimitar seu espaço e se posicionar. Em seu deslocamento pelo mundo, foi atravessado por múltiplos agenciamentos, uma subjetividade produzida por componentes heterogêneos, experiências de vida capturadas em um ritornelo existencial. Para Guattari (2012GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012.), os ritornelos existenciais se referem aos modos de subjetivação que têm uma função de marcação, uma singularização dos ritmos que delimitam a forma como cada sujeito se projeta no mundo: trata-se de definir um território, um limite existencial em processos de territorialização.
A territorialização de João está em seu semblante sério, no seu local de estadia, assim como no seu discurso. Quando permite que me sente ao seu lado, o faz se antecipando qualquer possibilidade de invasão de seu território: “senta aí que te conto sobre meus 10 anos na cadeia”. Ao mesmo tempo em que se abre a um território estranho, não deixa de definir seu espaço funcional. Isso acontece quando blocos de espaço-tempo heterogêneos se encontram e se confrontam em processos de singularização. Cada código existencial se produz em contraposição a outro, um território que se produz sobre outro em constante transcodificação. O território existencial de João Sossego é composto por um ritmo - repetições que codificam sua expressão no mundo, mas esse ritmo é marcado a partir da diferença com outro território, o território do pesquisador (Deleuze; Guattari, 1997aDELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 4. São Paulo: Editora 34, 1997a.). Para Deleuze e Guattari (1997a), os territórios se formam quando deixam de ser somente funcionais e se tornam expressivos, são as matérias de expressão de Jorge Sossego que marcam seu território, uma expressividade presente em seu corpo, em seus pertences, em sua linguagem. O empasse territorial evidencia os processos de subjetivação de João Sossego, quando se percebe uma expressividade que cria regras fluídas, um modo de existência em constante criação, um processo de produção de vida como uma obra de arte. Essa expressividade territorial extravasa pelas anotações do diário:
João Sossego estava sentado na calçada, de barba e cabelos grisalhos, um bigode grisalho amarelado (provavelmente queimados pelo cigarro), olhos azuis, usa chinelos porque tem machucados nos pés. Ao seu lado, um cobertor de onde tira sua garrafa de Camelinho e um maço de cigarros. Quando tira a bebida e o cigarro do meio do cobertor já se adianta: “Eu faço o meu corre, magueio pra ter minha bebida e meu cigarro. Quando vem me pedir eu já boto pra correr. Tu não é morador de rua? Eu também sou, então não vem ficar chupinhando!” (Diário de campo (D.C), 20/11/2020).
Assim, os territórios expressam a distância entre modos de existência, são desenhados de modo a marcar a diferença ou o pertencimento, são produzidos como uma assinatura, uma marca instituinte de um domínio singular (Deleuze; Guattari, 1997aDELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 4. São Paulo: Editora 34, 1997a.). O território de João Sossego é efeito de sua vida-obra-de-arte em composição, quando os contornos de sua obra são traçados a partir de seus encontros nas ruas.
Cena 2 - Territórios nômades em composição
A cada ida ao campo de pesquisa, novas configurações do espaço eram encontradas. Os territórios se modificam, e algumas pessoas se mantêm no mesmo lugar, como é o caso de Seu Serafim, um homem negro de cabelo raspado que sempre carrega um rádio. Durante praticamente todo o período desta pesquisa, ele estava sentado no mesmo banco da praça XV de Novembro. De todo modo, Serafim costumava ficar em outro lugar da praça, pois sempre que passei pela região, muito antes de iniciar o campo, via-o no mesmo lugar, e duas coisas sempre me chamaram atenção: o rádio e seus pertences guardados entre as raízes de uma figueira.
Já nas primeiras semanas de pesquisa de campo, percebi a mudança de espaço de Seu Serafim. Um movimento de recomposição territorial, provocado por algum agenciamento desterritorializante, movimentando-o a compor seu território em outra área, ainda que fosse a poucos metros de onde costumava ficar. Esses movimentos que a vida nas ruas nos apresenta expressam a heterogeneidade de agenciamentos que atravessam esses modos de ser. Ainda que fortemente delimitados, os territórios existenciais estão sempre passíveis de desterritorialização e reterritorialização, a depender dos agenciamentos que os compõem. Deleuze e Guattari (1997aDELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 4. São Paulo: Editora 34, 1997a., p. 120) explicam:
Um território está sempre em vias de desterritorialização, ao menos potencial, em vias de passar a outros agenciamentos, mesmo que o outro agenciamento opere uma reterritorialização [...] vemos que uma margem de desterritorialização afeta o próprio território.
Reencontrar João Sossego não foi trabalho fácil, passaram-se semanas indo a campo sem pistas de seu paradeiro. A itinerância da vida nas ruas fez da pesquisa uma cartografia nômade, na qual se pôde acompanhar as mudanças de paisagem da região central, as mudanças climáticas, geográficas-espaciais e de personagens. Mesmo quando os sujeitos já eram conhecidos, não se tinha garantia alguma de que haveria abertura para compor algum processo cartográfico, dada a complexidade daquele contexto social, tão suscetível a mudanças que tensionam a forma de realizar conexões. No caso de João Sossego, o reencontro se deu exatamente no mesmo lugar do primeiro encontro. Quando passava pela Praça XV, o avistei de longe, e ao me aproximar sou recebido com um “bom dia”, apesar de serem 16 horas. De imediato ele se corrige, olhando para o relógio da Catedral diz: “Que bom dia que nada, já são quatro da tarde!”. Entre as risadas da situação, aproveito o momento descontraído e me sento ao seu lado.
De cabelos cortados e barba feita, quando questionado sobre sua ausência durante as últimas semanas, ele se limita a dizer que “estava no trecho” fazendo alguns trabalhos. Havia um fato curioso nessa resposta: logo no primeiro encontro, João contou que no seu percurso nas ruas, sempre teve um pé atrás com os trecheiros, que segundo ele, são pessoas da rua que “estão sempre no trecho”. O termo também apareceu em outros encontros, sempre em referência aos sujeitos que não costumam se fixar em nenhuma cidade, ficam poucos dias e logo vão embora. Há um fluxo singular que mobiliza os sujeitos de volta para o trecho, assim como há um corte em cada período curto de permanência em um lugar. Não há como tentar interpretar esse desejo do trecho, pois nem mesmo aqueles que são mobilizados por ele conseguem explicá-lo. O inconsciente, como entendido por Deleuze e Guattari, é povoado por máquinas desejantes, o desejo não é oriundo da falta, ele é produtor, uma produção de produções que conectam as máquinas-desejantes do inconsciente (Deleuze; Guattari, 2010).
O desejo do trecho enquanto produção é de difícil significação ou explicação. É um desejo que mobiliza o nomadismo, coloca-os em um movimento instaurado pelo incômodo que a fixação em um único lugar gera. Em um dos encontros com Cigana, ela falou sobre o sumiço de seu companheiro de rua, Alemão, quem saiu para o trecho sem dar muita explicação. Nas palavras dela: “O Alemão saltou!! Nem deu tchau... tava louco pra ir para o trecho”.
O trabalho etnográfico de Brognoli (1996BROGNOLI, F. F. Trecheiros e pardais: um estudo etnográfico de nômades urbanos. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 1996.) traz importantes apontamentos sobre a identificação de “trecheiros” e “pardais”, um jogo de representações sobre si e sobre o outro que busca demarcar suas diferenciações, suas singularidades na forma de se inserir nos espaços urbanos. Segundo o autor, essas diferenciações se apoiavam numa certa tradição de práticas sociais, assim como estão ligadas à questão espacial. Os trecheiros são viajantes, andam de uma cidade à outra, sem se fixarem por muito tempo em um mesmo lugar e, não raro, costumam fazer longos deslocamentos. O termo pardal está ligado aos pássaros e sua permanência próxima aos seus ninhos, e nesse sentido, os pardais costumam ficar nos mesmos lugares, ou fazem apenas pequenos itinerários.
Para Cigana, o trecho era carregado de empolgação. Relembra que fez mais de 400 km de trecho com Alemão, o que fazia com que sua relação com o trecho fosse recheada de memórias e certo saudosismo, como ilustrado nas anotações no diário de campo:
Cigana se demonstra muito empolgada com o trecho, tem até pensado em cair no trecho novamente. Ela diz: “Vou cair no trecho, vão demorar pra me ver por aqui. Tô mais velha que a figueira, cara”. Estar mais velha que a figueira se refere ao tempo de estadia em Florianópolis. Para ela, Alemão já dava sinais de que queria voltar para o trecho, como uma necessidade de estar em deslocamento. “Ele já estava agoniado pra voltar para o trecho, eu é que insisti pra ele ficar aqui”. Cigana enfatiza que o trecho envolve uma certa emoção de andar a pé pelas rodovias, fazer paradas em postos de gasolina pra dormir e conseguir comida. Costumam tomar banho em cachoeiras e rios, desbravar os diferentes lugares. O maior empecilho é a chuva: “Caminhar com chuva é horrível!” (D.C 25/06/2021)
A identificação com o trecho, apesar da relação espacial, vincula-se também a uma questão territorial. O território entendido a partir de sua ligação com a ordem das subjetividades produzidas nas ruas, uma perspectiva de delimitação de territórios existenciais, de relações sociais, de comunicação e expressão de subjetividades (Guattari, 1985GUATTARI, F. Espaço e poder: a criação de territórios na cidade. Espaço & Debates, v. 5, n. 16, 1985.). Esses territórios, de maior ou menor grau de nomadismo, atravessam a população de rua, e apesar da delimitação entre aqueles que caem ou não no trecho, essas configurações se combinam e se atravessam, não conformam identidades estanques. João Sossego, apesar de pontuar sua desconfiança em relação aos trecheiros, também tem toda uma história de experiências no trecho. A vida itinerante o atravessa ao ponto de que sua vivência pardal se desterritorializa, ganha um grau de nomadismo e cai na estrada, sumindo da cidade por semanas.
O modo de existência de João Sossego apresenta seu devir existencial, o qual se desloca entre o trecheiro e o pardal a depender do momento e do próprio desejo. Como um artista, João cria e recria sua vida, uma constituição de si a partir de uma dimensão singular que se propõe a desviar do poder e do saber instituídos, delimitando territórios próprios em constante transformação e criação. A vida como obra de arte não cessa de produzir outras possibilidades (Deleuze, 2013DELEUZE, G. A vida como obra de arte. In: DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 122-130.).
De certo modo, os territórios existenciais presentes nas ruas são todos nômades, mesmo que não haja movimento em termos espaciais. O nomadismo existencial se dá por consequência e necessidade, não havendo pontos para serem percorridos a priori, eles são atingidos no trajeto. Além disso, o nomadismo é uma oposição ao modo sedentário de ser, que trata de uma organização em um espaço fechado, estriado, regulado e cercado. Em oposição, o nomadismo propõe o espaço aberto e liso, uma distribuição sem fronteiras. Por esse motivo, não se pode limitar o nomadismo ao movimento no espaço-tempo, o modo-de-ser nas ruas é nômade por sua variabilidade, pela composição de territórios lisos do tipo rizoma, marcados por uma multiplicidade de conexões. São territórios constituídos a partir de processos constantes de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, os quais não acontecem de forma linear, mas se compõem um sobre o outro. Quando João Sossego expressa certa oposição em relação aos trecheiros, mas ao mesmo tempo cai, mesmo que eventualmente, no trecho, ele se reterritorializa na sua própria desterritorialização (Deleuze; Guattari, 1997bDELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 5. São Paulo: Editora 34, 1997b.).
Cena 3 - Vidas-obras-de-arte em composição na produção de cuidado
Quando reencontrei João Sossego, ele estava acompanhado de um outro homem, o Sabino, um sujeito em quem já havia reparado. Ele também costumava ficar naquela região da praça, sempre próximo a uma banca de jornais e carregando uma mala grande de rodinhas onde guardava seus pertences - sua maloca viajante. Nesse novo encontro, fiquei junto dos dois, acompanhando a dinâmica que existia entre eles, posteriormente anotada no diário:
Estavam os dois compartilhando uma garrafa de Camelinho, e alternando no mangueio. Em tom de brincadeira, eles competem para ver quem consegue mais moedas. Fico por ali acompanhando a cena, suas idas e vindas a cada vez que o sinal fechava. Às vezes voltavam com algumas moedas, outras tantas sem nada, sem falar nas vezes que se aproximavam dos carros e os motoristas prontamente fechavam os vidros. Havia uma dinâmica na escolha de qual carro iriam abordar, não iam em todos e tampouco era uma escolha aleatória. Quando questiono sobre os carros que eles não investem, João Sossego responde: “Não vale a pena o mau trato” (D.C, 26/03/2021).
Diferentemente do primeiro encontro, João Sossego se demonstrou mais aberto à minha presença, apesar de não lembrar quem eu era. Ele e Sabino se conheciam há mais de 15 anos, e foram construindo uma relação de amizade ao longo do tempo. Percebia-se que seus territórios se compunham, não se limitavam. Durante os anos de amizade, criaram um forte vínculo de afeto, e naquele momento produziam um modo-de-ser-cuidado: demonstravam construir uma relação intersubjetiva atravessada por afecções, na qual a presença do outro em sua singularidade era de extrema importância. Produziam o comum quando o mangueio ia ser compartilhado, assim como a garrafa de Camelinho e os cigarros. Entre as conquistas, as janelas dos carros se fechando e os olhares de reprovação, eles sobrepunham seus territórios existenciais, demonstravam atitudes de zelo e preocupação um com o outro.
Para Boff (2014BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2014.), o cuidado é inerente ao ser humano, uma forma de se estruturar e se colocar no mundo, e na ausência de cuidado, o ser perde sua dimensão existencial, uma vez que existimos por meio do cuidado. Nesse sentido, o cuidado representa uma postura diante do outro, reconhecendo-o enquanto singularidade e alteridade, compondo conexões com esse outro, conexões essas permeadas pela atenção, preocupação, responsabilização e envolvimento afetivo. O cuidado, portanto, não é um ato em si, tampouco uma intervenção específica, mas uma maneira de compor uma existência com o outro, uma relação com a alteridade (Boff, 2014). João e Sabino teceram uma relação intersubjetiva que funcionou como suporte no contexto das ruas, uma relação que possibilitou a composição de suas vidas a partir de suas singularidades. Os dois tiveram um encontro atravessado por histórias e atitudes de cuidado, percebidas em pequenos gestos:
Entre um gole e o mangueio, eles contam histórias que já viveram nesses anos de amizade. Pequenas atitudes demonstram que a vida nas ruas é uma composição de redes em rizoma, produções de cuidado rizomáticas. O fruto do mangueio é compartilhado, a cachaça e os cigarros são compartilhados, os casacos são compartilhados. Sabino oferece um casaco para João sentar em cima e não ficar em contato com a pedra gelada da calçada. Quando João vai tirar um cochilo garante que Sabino terá bebida e cigarro, e enquanto isso Sabino cuida das suas coisas. Atitudes de preocupação, de zelo, de solidariedade que sustentam esses modos-de-vida (D.C, 26/03/2021)
As vidas em composição nas ruas demonstram que o cuidado compreendido como estruturante da existência humana se expressa nas sutilezas do cotidiano. A medicina comumente reduz o cuidado (nomeado “cuidado em saúde”) estritamente ao uso de tecnologias leve-duras (os saberes técnicos e científicos) e duras (os equipamentos). Opera-se em uma lógica individualizante, na qual o cuidado é referido a uma coleção de atos isolados e protocolados, um encontro no qual se produz uma interseção objetal, quando o outro fica de fora dessa interseção (Merhy, 2014MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2014.). Entretanto, o cuidado é mais do que a mera aplicação de tecnologias, apreendê-lo em sua complexidade exige compreender que o cuidado estrutura a existência do ser, ele é uma relação que possibilita a existência humana (Boff, 2013BOFF, L. O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ecologia, na ética e na espiritualidade. Petrópolis: Vozes, 2013.). O cuidado, entendido como categoria ontológica, inscreve-se constantemente em nossas vidas, produzindo-se sempre em relação com o outro, demandando o uso de tecnologias relacionais (Merhy, 2014). Assim, podemos dizer que o cuidado é antes de tudo, autopoiético, ele é vida produzindo mais vida (Merhy, 2013).
Encontrar João Sossego continuou sendo um trabalho difícil. Após quase dois meses de entradas e saídas do campo, reencontro João exatamente no mesmo lugar. Dessa vez, o motivo de sua ausência foi uma internação hospitalar, que segundo ele seria devido a uma dormência constante em braços e pernas, nomeado por ele como “derrame”. João elogiou o atendimento recebido na instituição, e que saiu de lá com a prescrição de um tratamento medicamentoso e um encaminhamento médico. De forma espontânea, ele tira do seu casaco alguns papeis e me entrega: uma receita de carbamazepina e um encaminhamento por escrito para o Centro de Atenção Psicossocial-álcool e drogas (CAPS-ad). Presumi que a intenção era dar início ao tratamento para uso abusivo de álcool, e questionei se ele já havia procurado o estabelecimento, ou ido a alguma Unidade Básica de Saúde, quando ele prontamente respondeu:
“Não! Pra tomar essa medicação vou precisar parar de beber, e eu não quero parar de beber. Não agora”. Aproveitei e perguntei se ele tinha falado isso para a médica que fez seu atendimento e encaminhamentos: “Não, ela não perguntou. Disse que eu precisava parar de beber antes que eu piore, e me deus os papeis”. Enquanto conversamos, segue bebendo sua garrafa de Camelinho. Conta que quando não se sentiu bem na rua foi prontamente ajudado por outros companheiros, desde o chamamento de socorro até sua estadia no hospital. Um dos companheiros de rua ficou com seus pertences e documentos, acompanhou-o até o hospital e ainda retornou para levar cigarros. Segundo João “Na rua é assim, quando você encontra gente bacana, você pode contar, a gente se cuida, se ajuda”. Sinto que, apesar de ter sido bem atendido no serviço de saúde, o cuidado foi efetivamente produzido fora dele. Qual a função de uma prescrição medicamentosa e um encaminhamento médico nessa cena? As intervenções médicas por si só, não foram nomeadas como cuidado por João, enquanto os laços criados na rua, a preocupação e a mobilização foram acompanhadas da frase “a gente se cuida” (D.C., 14/05/2021).
O campo macropolítico é marcado pela organização dos grupos em torno de instituições e representações: Estado, capitalismo, sindicatos, esquerda, direita. No entanto, os diferentes grupos se organizam no plano micropolítico, que se dá nos encontros intersubjetivos que promovem criações e modificações. Os processos cartografados nas ruas demonstram a existência de forças e intensidades produzindo cuidado no campo micropolítico, o qual é atravessado por linhas de força molares e moleculares. As linhas molares são aquelas codificadas a partir de determinações pré-definidas, são as linhas duras organizadas em torno de instituições (Estado, justiça e universidade, por exemplo) ou marcadores (classe, gênero, raça, por exemplo). Por outro lado, os fluxos moleculares são maleáveis e atuam no plano das relações, dos afetos, das criações e dos processos de subjetivação (Deleuze; Guattari, 1996DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.).
O cuidado como um processo inerentemente relacional é produzido a partir de forças moleculares que atuam nos encontros, gerando conexões existenciais, as quais compõem territórios rizomáticos, marcados por uma multiplicidade de agenciamentos que conformam os modos de existência na rua. Por outro lado, o discurso biomédico captura a noção de cuidado e atua como força molar, quando ações normativas interditam as múltiplas possibilidades que os encontros podem proporcionar, fazendo presidir uma dinâmica empobrecida de possiblidades (Guattari, 1988GUATTARI, F. Notas para uma esquizo-análise. In: GUATTARI, F. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise. Campinas: Papirus, 1988. p. 145-192.). O cuidado se configura como um verdadeiro modo-de-ser, uma postura diante do mundo e das possibilidades de compor bons encontros, uma atitude fundamental, cujo sentido primordial é esvaziado por práticas de repetição, que anulam as singularidades existenciais e operam a gestão biopolítica da vida (Merhy; Feuerwerker; Cerqueira, 2010MERHY, E. E.; FEUERWERKER, L. C. M.; CERQUEIRA, M. P. Da repetição à diferença: construindo sentidos com o outro no mundo do cuidado. In: FRANCO, T. B.; RAMOS, V. C. Semiótica, afecção e cuidado em saúde. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 60-75.; Boff, 2014BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2014.).
João e Sabino colocam em evidência a legítima face do cuidado, um encontro produtor de vida que garantiu suas existências por muito tempo. Ainda, na mesma ocasião que conversamos sobre a experiência de João no hospital, perguntei se ele tinha notícias de Sabino, e a resposta veio de imediato:
Sabino havia falecido. João não sabia exatamente a causa “falaram que foi covid, mas não sei...ele já não andava bem, bebia demais”. A expressão de tristeza tomou conta de João, que logo começou a relembrar sua trajetória com o amigo. Entre idas e vindas nas ruas, os dois compuseram uma rede de suporte e solidariedade, cuidaram um do outro por muito tempo (D.C., 14/05/2021)
Nessa dinâmica de um cuidado rizomático que a rua nos apresenta, as conexões estão em constante produção. João seguiu sua trajetória, e entre composições e conexões, reencontrou Rosalino, um antigo conhecido. Em um novo encontro, quando questiono se João havia melhorado dos formigamentos, quem responde é o próprio Rosalino: “Foi para o hospital de novo, mas fugiu de lá!”. João nega que tenha fugido, mas que na verdade teve alta. Seu companheiro demonstra grande preocupação com a sua situação, e conta que segue fazendo o seu melhor para ajudar seu amigo.
Os encontros e reencontros estabelecidos promovem uma reconfiguração constante, seja dos territórios geográficos ou existenciais. Novas regras éticas são definidas a cada encontro, encontros esses que produzem relações cuidadoras que escapam às formas hegemônicas conhecidas pelo campo da saúde. O cuidado produzido pela população de rua é implicado com a manutenção desses modos de existência que estão em constante devir, vidas-obras-de-arte em constante composição. Nesse sentido, em meio a toda precariedade material que a vida nas ruas impõe, esses sujeitos inventam outras maneiras de se encontrar e produzir vida. O cuidado atravessa o cotidiano dessas pessoas, ainda que o olhar biomédico rígido invisibilize essas conexões. Dessa forma, a população de rua segue produzindo seus modos de existências, inventando outras possibilidades de vida e de relações, pintando suas vidas como verdadeiras obras de arte (Deleuze, 2013DELEUZE, G. A vida como obra de arte. In: DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 122-130.).
Considerações finais
Os processos cartografados no trajeto dessa pesquisa possibilitaram entrar em contato com a população de rua, considerando sua heterogeneidade e complexidade existencial. Os encontros com os sujeitos da investigação demonstraram trajetórias de vida que se compõem e recompõem ao longo do tempo, sendo contornadas pelo cenário que se apresenta. Nesse sentido, a vida nas ruas se orienta por um certo nomadismo, tanto geográfico quanto existencial, o qual se configura como uma existência produzida em linhas de fuga das normas hegemônicas instituídas, são vidas que se constituem como obras de arte em processo constante de criação.
Esses modos de existência nas ruas são compostos a partir de múltiplas conexões entre os sujeitos, os espaços públicos e as instituições, conformando territórios em formato de rizoma, constituídos por uma rede de linhas conectadas, sem um ponto central. Dessa forma, as cenas cartografadas mostram a produção do cuidado a partir das diferentes relações constituídas ao longo do tempo, trazendo o entendimento do cuidado como uma dimensão inerentemente humana, a qual está estruturada nas interrelações existenciais. Assim, as existências nas ruas se constituem por meio dos encontros cuidadores que garantem suas existências.
Portanto, o reconhecimento desses sujeitos, suas histórias de vida e modos-de-ser é imprescindível para que o campo da saúde possa se encontrar de outras maneiras com essas pessoas, de modo a produzir linhas de fuga ao modelo biomédico hegemônico, apostando no cuidado enquanto um encontro potente com a alteridade, um cuidado que se proponha produtor de vidas em constante capacidade de invenção, vidas criativas como obras-de-arte.
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- 1A escolha do uso da primeira pessoa do singular se deu em virtude de que os dados utilizados são oriundos do diário de campo do primeiro autor.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Ago 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
17 Out 2022 - Revisado
12 Set 2023 - Aceito
23 Dez 2023