Laços entre colonialidade e patologização: produção da exclusão e da invisibilidade no cuidado às infâncias

Ties between coloniality and pathologization: the production of exclusion and invisibility in the Childhood’s Care

Claudia Mascarenhas Leny Alves Bomfim Trad Sobre os autores

Resumo

As teorias e concepções dominantes sobre desenvolvimento humano e infância, produzidas a partir de uma ótica moderna-colonial, têm contribuído tanto para invisibilizar as diversas infâncias, quanto para dar sustentação à incessante medicalização no campo do cuidado infantil. Neste ensaio, propõe-se discutir as relações estruturais e invisíveis entre a colonialidade e patologização, problematizando alguns dos efeitos desse processo na prática cotidiana do cuidado à infância. No plano teórico-reflexivo, nutrido através do diálogo com autoras/es contemporâneas/os alinhadas/os com a inflexão decolonial, o texto endossa a crítica à teoria hegemônica de desenvolvimento infantil, fundada nas noções de evolução-progresso-hierarquia e, claramente, na universalização de seus fundamentos. O texto avança apontando evidências de que a reprodução de tais fundamentos tem sido determinante para o processo em curso de patologização da infância. No plano empírico, a análise de uma situação concreta envolvendo a colaboração entre creches e um dispositivo de saúde mental dirigido à infância revelou que a adoção de uma abordagem sensível e contextualizada frente aos “incômodos” produzidos pela criança pode contribuir para romper o ciclo de exclusão, invisibilidade e negatividade, vivenciado por muitas crianças e suas famílias. A experiência relatada demonstrou, ainda, que é possível produzir práticas descolonizadoras nos serviços de atenção às infâncias.

Palavras-chave:
Patologização; Colonialidade; Infância; Desenvolvimento infantil; Exclusão; Invisibilidade

Abstract

The dominant theories, and conceptions of human development and childhood, produced from a modern-colonial perspective, have contributed both to making different childhoods invisible and supporting the incessant medicalization in the field of childcare. In this essay, we propose to discuss the structural and invisible relationships between coloniality and pathologization, problematizing some of the effects of this process on the daily practice of childcare. On a theoretical-reflexive level, nurtured through dialogue with contemporary authors aligned with the decolonial inflection, the text endorses the critique of the hegemonic theory of child development, based on the notions of evolution-progress-hierarchy and, clearly, on the universalization of its foundations. The text goes on to point to evidence that the reproduction of these foundations has been a determining factor in the ongoing process of pathologizing childhood. On an empirical level, the analysis of a concrete situation involving collaboration between nurseries and a mental health service aimed at children revealed that adopting a sensitive and contextualized approach to the "discomfort" produced by children can help break the cycle of exclusion, invisibility, and negativity experienced by many children and their families. The experience also showed that it is possible to produce decolonizing practices in childcare services.

Keywords:
Pathologization; Coloniality; Childhood; Child development; Exclusion; Invisibility

Eu sei que ele melhorou muito,

tudo isso que ele já faz! [...] mas não,

ainda não saímos pra passear,

não vamos na igreja, eu não rezo mais na igreja.

A praia é perto, mas também não vamos.

Introdução

Assegurar a existência de diversas infâncias e reconhecer seu contexto histórico não é suficiente para enfrentar os desafios da atenção à saúde infantil e do manejo das tecnologias de cuidados com crianças. É preciso tornar visível o fio que sustenta, na atenção às infâncias, as relações entre colonialidade e patologização e como estas se reproduzem nos processos e práticas de cuidado infantil, sendo determinantes para a produção de exclusão, invisibilidade e negatividade neste campo.

Cabe reconhecer que tanto na esfera das políticas públicas, quanto no cotidiano das práticas de saúde - coletiva ou clínica - e de educação, os laços entre colonialidade e patologização têm contribuído ativamente para invisibilizar ou negligenciar a dimensão contextual (em seus aspectos históricos, socioculturais e políticos) e para promover a exclusão e a negatividade frente às diferenças ou singularidades que as crianças ou as várias infâncias não cessam de expressar.

Vale observar que, se no plano político-social a invisibilidade em torno de privilégios ou desvantagens associadas às diferenças de gênero, raça, classe social, vem contribuindo para mascarar a relação injustiça social e infância, no plano terapêutico ou pedagógico, a assanha universalizante patologiza a diversidade infantil, assim como também mascara a infância nas suas intersecções. São décadas reiterando a afirmação positivada de uma hegemonia geopolítica e cultural, que sustenta e justifica inclusive os posicionamentos acadêmicos (epistemológicos, ontológicos, teóricos e metodológicos) arraigados sobre como se desenvolvem as crianças (universalismo) e o modo de ser da infância (essencialismo). É preciso considerar a convivência entre as diversas epistemologias contextualizadas para realizar uma crítica de uma “determinada epistemologia” que tem emergido no quadro da ciência moderna como referência para a crítica de todos os saberes (Castro, 2021bCASTRO, L. R. Teorizar sobre a infância desde uma perspectiva descolonial. In: CASTRO, L. R. (org.). Infâncias do sul global: experiências, pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. Salvador: EDUFBA, 2021b. p. 61-78.).

Aprendemos com Quijano (2010QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. 2010.) que a colonialidade se revelou mais profunda e duradoura que o colonialismo, permeando todos e cada um dos espaços de existência social, tornando-se a mais efetiva forma de dominação social (material e intersubjetiva). Dentre os três níveis de poder através do qual opera a colonialidade - do poder, do saber e do ser -, interessa aqui considerar especialmente estes dois últimos, entendendo que são eixos centrais para a constituição da criança, assim como para a construção das representações em torno dela no campo dos cuidados profissionais. Enquanto a colonialidade do saber abrange dimensões epistêmicas, filosóficas, científicas, assim como a relação língua-conhecimento e “permite deslegitimar uns saberes e legitimar a suposta supremacia e superioridade de outros”, a colonialidade do ser opera na subjetividade [...] nos papéis atribuídos” (Martins; Benzaquen, 2017MARTINS, P. H.; BENZAQUEN, J. F. Uma proposta de matriz metodológica para os estudos decoloniais. Revista Cadernos de Ciências Sociais da UFRPE, v. 2, n. 11, p. 10-31, 2017., p. 19); configurando-se como “a experiência vivida da colonização” (Maldonado-Torres, 2007, p. 127).

Referindo-se especificamente à psicologia do desenvolvimento, Burman (2017BURMAN, E. Deconstructing Developmental Psychology. 3 ed. London: Routledge, 2017.) salienta que, a despeito do impacto significativo que esta exerce sobre a vida cotidiana, sobre a cultura e os modos de pensar sobre o que somos ou o que esperamos de nós mesmos, dos outros, de pais, filhos e famílias, seus efeitos na produção de políticas oficiais ou de procedimentos de caráter técnico, paradoxalmente, são muitas vezes imperceptíveis ou naturalizados. Este aspecto tem sido claramente evidenciado no processo incessante de patologização e consequente medicalização da infância, haja visto a institucionalização progressiva de protocolos visando a busca precoce de comportamentos “anormais” ou “de risco” (Trad; Mascarenhas, 2019).

Através do diálogo com a obra de Fanon ou adotando “uma perspectiva fanoniana”, Burman (2019BURMAN, E. Fanon, education, action: Child as method. London: Routledge, 2019., p. 15) avança na crítica decolonial às teorias e práticas no campo da infância, salientando que a retórica ou as noções sobre criança, seja em termos mais abstratos de ‘infância’, seja ao tratar de crianças específicas, expressa-se enquanto ideologia que conecta arenas educacionais, política social e psicologia individual.

A propósito da decolonialidade, pode-se dizer, em termos sucintos, que consiste em um movimento que busca transcender, pela crítica e subversão, as práticas habituais e hegemonizadas de exercício do poder, saber e fazer, associados ao complexo e secular projeto de modernidade/colonialidade eurocêntrica (Restrepo; Rojas, 2010RESTREPO, E.; MARTÍNEZ, A. A. R. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamientos. Popayán: Universidad del Cauca, 2010. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/271506120_Inflexion_decolonial_fuentes_conceptos_y_cuestionamientos>. Acesso em: 18 jun. 2017.
https://www.researchgate.net/publication...
). Tal movimento ganha impulso em um momento no qual o “estreitamento do mundo e repovoamento da terra em decorrência da densidade demográfica agora opera em favor dos mundos do Sul” (Mbembe, 2021MBEMBE, A. Políticas da inimizade. Embaixada da França no Brasil, N-1 edições, 2021., p. 26).

O giro decolonial11 A expressão “giro decolonial” foi cunhada por Nelson Maldonado-Torres no âmbito das discussões do Grupo de Investigação Modernidade/Colonialidade (M/C) e pretende realçar um movimento político e epistêmico de resistência ao modelo eurocentrado pautado nas imbricações entre estes dois termos: modernidade e colonialidade (Escobar, 2003). no campo do estudo e do cuidado às Infâncias começa por reconhecer o impacto da “diferença colonial”, como salienta Moore-Gilbert (2008), processo abrangente de produção de diferença e de alterização, em que as culturas, as pessoas e os modos de viver não europeus - e que são tidos como “outros” - descrevem um “itinerário de silenciamento” e desmerecimento, em paralelo a autoproclamada superioridade econômica, política e científica do Norte Global (Castro, 2021bCASTRO, L. R. Teorizar sobre a infância desde uma perspectiva descolonial. In: CASTRO, L. R. (org.). Infâncias do sul global: experiências, pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. Salvador: EDUFBA, 2021b. p. 61-78.).

O ensaio parte, portanto, da compreensão de que os padrões universalizantes de comportamento humano e normalidade, forjados a partir de uma ótica moderna-ocidental, têm estruturado e agenciado ao longo do processo de colonialidade do ser e do saber a atenção à infância, em seus diferentes espectros; do mesmo modo que a prática socialmente descontextualizada, por sua vez, tem contribuído para uma atuação pouco comprometida com um cuidado inclusivo e culturalmente sensível. Pretende-se, então, chamar atenção para alguns dos efeitos da colonialidade no campo do cuidado à infância, problematizando, por um lado, sua influência na produção das teorias dominantes sobre desenvolvimento humano e, por outro, o modo como tais teorias informam e orientam a prática dos profissionais que atuam com o cuidado de crianças.

A partir desses argumentos iniciais, tem-se duas primeiras reflexões teóricas, que visam, respectivamente: imprimir uma mirada crítica sobre a concepção hegemônica de desenvolvimento humano e desenvolvimento infantil, assentado no modelo moderno-ocidental de progresso, assinalando suas implicações na conformação do cuidado infantil e, em seguida, avançar na análise de tais implicações, focalizando, em termos mais específicos, as imbricações entre decolonialidade e patologização da infância no cotidiano do cuidado de crianças.

Na segunda parte do texto, a atenção se volta para a análise de uma situação concreta envolvendo um dispositivo da rede de saúde mental dirigida à infância, vivenciada por uma das autoras. Procura-se assim realçar a necessária articulação entre avanços teóricos e epistemológicos como impulsionadores de mudanças significativas na práxis e práticas no campo do cuidado à infância.

Espera-se, ademais, contribuir para sensibilizar pesquisadores e profissionais que atuam no campo do desenvolvimento infantil e/ou cuidado à criança quanto à sua responsabilização e implicação no enfrentamento dos processos de exclusão, invisibilidade e negatividade, que têm contribuído para o apagamento dos diversos modos de ser das infâncias.

É precisamente através de uma mirada decolonial que se propõe, neste texto, tecer uma crítica à ideia vigente de desenvolvimento infantil, assim como a uma prática de cuidado que se orienta por uma lógica simplificadora e excludente alicerçada numa noção de normalidade, já que “é a normalização do desenvolvimento que torna a anormalidade possível, e vice-versa” (Burman, 2017BURMAN, E. Deconstructing Developmental Psychology. 3 ed. London: Routledge, 2017., p. 19), promovendo a “naturalização do desenvolvimento”.

A crítica à concepção hegemônica de desenvolvimento humano

A compreensão sobre o sentido de desenvolvimento na modernidade revela-se condição prévia para entender as bases da construção da categoria desenvolvimento infantil no Ocidente. As concepções de infância vistas através das lentes do desenvolvimento construíram uma ideologia que dividiu os mundos em termos de um antes e um depois ao longo de uma escala linear, mesmo na compreensão da diversidade cultural (Nandy, 2011), além da sustentação para a noção de infância universal e ao processo de colonialidade. Castro destaca a ideia de que os sujeitos humanos precisam se desenvolver para adquirir sua total humanidade, que se converteu em uma base epistemológica e moral influenciando um amplo conjunto de práticas sociais e educacionais das sociedades atuais (Castro, 2021a).

A autora complementa, sobre a noção de criança e o lugar reservado para ela na sociedade, que para além da trajetória desejável do desenvolvimento como um percurso natural da espécie, era necessário considerar “o percurso em que os seres humanos tinham que ultrapassar suas próprias formas menores e menos complexas de existência, localizadas na infância” (Castro, 2021aCASTRO, L. R. Os universalismos no estudo da infância: a criança em desenvolvimento e a criança global. In: CASTRO, L. R. (org.) Infâncias do sul global: experiências, pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. Salvador: EDUFBA, 2021a. p. 41-60., p. 46).

A adoção de parâmetros evolucionistas e da subsequente hierarquia entre níveis diferenciados de progresso encontra-se nas origens da produção científica sobre a infância, assim como da criação da categoria “povos primitivos”. Como vai demonstrar a pesquisa de Burman (2017BURMAN, E. Deconstructing Developmental Psychology. 3 ed. London: Routledge, 2017.), o que motivou os estudos sobre a criança na metade do século XIX, assim como dos ‘povos primitivos’, foi a busca das origens e especificidades da mente humana. Mas a finalidade principal de tais estudos era lançar luz sobre os estágios necessários do desenvolvimento subsequente, além de afirmar o caráter universal de seus achados, partindo de uma hierarquia racial (selvagem/não desenvolvido), a qual justificaria o domínio colonial (Burman, 2017).

Seguindo as pistas da história social da Psicologia do desenvolvimento, Burman (2017BURMAN, E. Deconstructing Developmental Psychology. 3 ed. London: Routledge, 2017.) evidencia também uma ativa contribuição desta disciplina aos movimentos sociais relacionados à comparação, regulação e controle de grupos e sociedade e, consequentemente, de construção e sustentação das estruturas de poder assentadas, por suposto, em padrões universalizantes, que abrem espaço para as delimitações diagnósticas e avaliativas da saúde mental para atender às demandas sociais existentes, envolvendo uma estreita ligação entre degenerescência e empobrecimento.

O aparecimento da clínica e da creche como reprodutores dessas unidades universalizantes de pesquisas se tornaram elementos essenciais, sendo, por exemplo, juízes do “desenvolvimento normal’ em sua oposição ao “anormal”. O desenvolvimento foi naturalizado por duas vias principais: pela criação da noção de “vida mental” e pela medicalização da vida mental, através da subordinação do mental ao físico (Burman, 2017BURMAN, E. Deconstructing Developmental Psychology. 3 ed. London: Routledge, 2017.). Desse modo, encontramos em Burman um forte argumento para nossa defesa: o desvelamento necessário às práticas de cuidados dos profissionais que trabalham com as diversas infâncias sobre a reprodução estrutural da exclusão, invisibilidade e negatividade, aí está seu papel preponderante de imprescindível resistência.

O desenvolvimento e seu correlato crescimento no sentido de progresso, também formaram a teleologia catalisadora das emergentes sociedades modernas - europeias e norte americanas - que têm exportado o desenvolvimentismo para outras sociedades como a única visão plausível para acompanhar as concepções de infâncias ou de seu futuro. Tudo isso baseado na retórica de uma posição supostamente mais avançada da primeira (europeia e norte americana) em relação a todas as outras, de modo que a normalização dessa perspectiva tenha se implementado como bastante natural, naturalizada.

Desde uma perspectiva do pensamento crítico decolonial, cabe explicitar os limites de um conhecimento produzido sobre uma infância e uma criança supostamente universal. Converge-se inteiramente com Castro (2021aCASTRO, L. R. Os universalismos no estudo da infância: a criança em desenvolvimento e a criança global. In: CASTRO, L. R. (org.) Infâncias do sul global: experiências, pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. Salvador: EDUFBA, 2021a. p. 41-60., p. 45), quando esta argumenta que o conhecimento produzido nos países do Norte sobre a infância, os quais incluem as formas como as infâncias são constituídas, valorizadas e produzidas subjetivamente, “se mantém política e culturalmente inconsequente em relação a como as diferentes culturas no Sul” entendem questões fundamentais associadas com a exemplo da passagem do tempo e as transformações que ocorrem ao longo dele.

A despeito das limitações apontadas, o conhecimento produzido no Norte e que se pretende universal, tem influenciado teorias e práticas mundo afora. Sua disseminação tem fortalecido na prática de profissionais que lidam com o cuidado infantil, o princípio de hierarquização de saberes que se traduz em: há saberes mais importantes que outros e esses “outros saberes”, considerados inferiores, ficam fora raciocínio sobre aquela criança.

Desenvolvimento e progresso também compõem uma dupla necessariamente moderna edificando, mas, sobretudo, naturalizando e invisibilizando as relações entre colonialidade e patologização. Por mais de um século, o mundo, a vida humana e, consequentemente, as infâncias somaram esforços para atingir os objetivos do desenvolvimento nessa hegemônica padronização, copiaram caminhos para se tornarem desenvolvidas, exigiram das crianças que ultrapassassem as suas próprias infâncias e seus contextos, como uma condição para se tornarem sujeitos adultos racionais e autônomos. Um deslizamento metonímico - desenvolvimento, progresso, eficácia e normalidade - constrói-se desenhando uma radical “naturalidade” de relações.

O conceito de desenvolvimento humano foi ainda legitimado como a compreensão unívoca da trajetória biográfica, segundo o qual a incompletude de ser criança e a superioridade de ser adulto foram estabelecidas e generalizadas como universais desde os trabalhos seminais de psicólogos como Gesell, em 1928, e Buhler, em 1935 (Castro, 2021aCASTRO, L. R. Os universalismos no estudo da infância: a criança em desenvolvimento e a criança global. In: CASTRO, L. R. (org.) Infâncias do sul global: experiências, pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. Salvador: EDUFBA, 2021a. p. 41-60.). A posição adulta, ao se tornar um ideal a ser atingido pela criança em sua posição, tem impactado também num forte estreitamento da delimitação de normalidade. Dentro da ideia de colonialidade, tem-se o rumo ao adulto ideal e suas performances de eficácia e a adultização em cumprir exigências do progresso.

Na esteira do movimento em defesa de uma prática socialmente contextualizada e que coloque à escuta a criança, em sua singularidade, como uma prioridade, temos um desafio epistemológico importante. Não se trata apenas de transpor a teoria do Norte Global. Cumpre legitimar saberes e produzir a partir das outras experiências de infância e de famílias descentrando valores antes tomados como negativos ou desvalorizados (negatividade), colocados à margem (excluídos) ou sequer considerados (invisibilizados). Trata-se certamente de repensar as formas de subjetivação, sem cair nas armadilhas das hierarquias dos modos de ser ou de determinantes socioculturais.

Finalizando essa primeira parte, segue-se a necessidade de um percurso sobre a patologização das infâncias, necessário ao desvelamento de um laço entre ela e a colonialidade, problematizada na temática da infância pela noção de desenvolvimento.

A patologização na valorização da hierarquia normal-anormal

As noções de agência, autonomia, competência e direitos das crianças - condensadas no conceito de criança global - têm sido postuladas como parte integrante das narrativas eurocêntricas contemporâneas sobre a infância. Portanto, tanto as noções de criança em desenvolvimento como a de criança global têm sido postas em destaque como concepções que universalizam a maneira de se representar as crianças em todas as nações e culturas (Castro, 2021aCASTRO, L. R. Os universalismos no estudo da infância: a criança em desenvolvimento e a criança global. In: CASTRO, L. R. (org.) Infâncias do sul global: experiências, pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. Salvador: EDUFBA, 2021a. p. 41-60., p. 44).

É fato que as linhas demarcatórias entre normal e anormal, ao obedecerem a lógica da colonialidade, tem impactos deveras contundentes no que tange as infâncias. É sobre a necessidade de controle rumo à normalidade que no século XXI a medicalização cresce e toma elementos como biomedicina, psiquiatria biológica, cuidado médico, além da governabilidade e biossociabilidade.

Bianchi (2018BIANCHI, E. Saberes, fármacos y diagnósticos. Un panorama sobre producciones recientes en torno a la farmacologización de la sociedad. Psicología, conocimiento y Sociedad, v. 8, n. 2, p. 147-175, 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.26864/pcs.v8.n2.11>
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) nomeia como biomedicalização o estudo de fenômenos da vida que se convertem como médicos, mas são de domínios da história, sociologia, antropologia, saúde pública, economia, bioética. Essa concepção ampliada da medicalização e da patologização, a partir dos anos 70 vai desaguar no que pode ser identificado como “políticas da vida”. Patologização da vida que começa a determinar e controlar a saúde, mas também as noções de risco e vigilância.

A subordinação do tempo da infância a uma hierarquia de valores relacionada ao normal e ao patológico, vai se tornar na modernidade alvo de estratégicas orientadas para estimular capacidade e atributos, tais como inteligência, estabilidade emocional e sociabilidade. A racionalidade instrumental desprezou e desqualificou os dons sensíveis, afetivos, intuitivos e imaginativos da subjetividade humana, e tornou-se possível na medida em que distanciou os humanos do mundo animal e natural e reduziu as capacidades humanas agentivas ao autointeresse e à autonomia (Castro, 2021aCASTRO, L. R. Os universalismos no estudo da infância: a criança em desenvolvimento e a criança global. In: CASTRO, L. R. (org.) Infâncias do sul global: experiências, pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. Salvador: EDUFBA, 2021a. p. 41-60., p. 56).

Há pelo menos duas consequências práticas nesse movimento. A primeira diz respeito à cultura da chamada “estimulação”, que será obediente aos ideais de performances em comportamentos padronizados esperados, e para isso vão sendo prescritas e orientadas recomendações relacionadas, por exemplo, a habilidade pré-definidas como aptidão e eficácia.

A segunda diretamente ligada a criação de certa indissociabilidade entre a técnica e a moral, ou seja, com o pretexto de “fazer o bem da criança”, “indicar o melhor” ou mesmo “mensurar o mais normal”, o controle a partir de recomendações vai traçando as delimitações rumo ao desenvolvimento universalizante. Dentro dessa perspectiva pouco crítica, a necessidade de controle do normal e a subordinação hierárquica colonializada tem se transformado numa tarefa cotidiana para profissionais da atenção às infâncias.

Um outro exemplo disso é o que atualmente tem sido chamado de “risco para o desenvolvimento”, associado à criança que apresenta comportamentos fora do padrão. Esse deslizamento cooptado na esteira de movimentos de vigilância do desenvolvimento, tem impactado também num forte estreitamento na delimitação da normalidade. Os usos dos “mais” e dos “menos” como medidas empíricas no dia a dia das crianças, traçam o caminho do controle nas margens entre o esperado (normal) e o que promove um olhar de alerta (anormal).

São ações diretas que se tornam materializadas nos corpos das crianças, como, por exemplo, a quantidade de horas aula e tarefas escolares, práticas padronizadas e obrigatórias de esportes, formas de se comportar em sala de aula, que são usadas para inocular condutas ou supervisionar, avaliar e retificar patologias (Bianchi, 2016BIANCHI, E. Diagnósticos psiquiátricos infantiles, biomedicalización y DSM: ¿hacia una nueva (a)normalidad? Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, v. 14, n. 1, p. 417-430, 2016. DOI:10.11600/1692715x.14128210715
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).

É preciso chamar à atenção, do ponto de vista dos adultos que trabalham na atenção às infâncias, que esse último mecanismo de ampliação ou deslocamento da noção de desenvolvimento para a ideia de comportamento, não apenas ampliou uma normativa hierárquica patologizante, como redobrou a invisibilidade das relações estruturais entre colonialidade e patologização.

E se teorizar não pode estar separado de condições corpóreas, afetivas, territoriais, e outras condições de produção do saber (Trad; Mascarenhas, 2019), toda práxis ligada às diversas infâncias necessita ser contextualizada, considerando não apenas os determinantes históricos e sociais que permeiam a produção de teorias e práticas nesse campo, mas o jogo de valores que aí estão implicados. Pode-se simplificar a ideia da criança que está dentro do raio de leitura do “normal” e tipificar a criança que fica excluída desse diâmetro, no âmbito do “anormal”. Algo muito fundamental ocorre nesse mecanismo: não apenas então exclui as que fogem do parâmetro global, mas empobrece as que cumprem com os parâmetros universalizantes.

Esse conjunto exigirá uma junção entre governabilidade que molda comportamentos e controla corpos, e ao mesmo tempo articula as técnicas de comunicação, as tecnologias do EU e a biomedicalização. Os fármacos, por exemplo, ao serem associados a um “estilo de vida” ou na busca por um estilo ideal de vida, são prova concreta disso, conjugando a esperança no futuro e prevenção do sofrimento numa espécie de domesticalização da prescrição (Bianchi, 2018BIANCHI, E. Saberes, fármacos y diagnósticos. Un panorama sobre producciones recientes en torno a la farmacologización de la sociedad. Psicología, conocimiento y Sociedad, v. 8, n. 2, p. 147-175, 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.26864/pcs.v8.n2.11>
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).

O debate em torno dos diagnósticos não fica para trás e se torna inflada uma cultura de diagnósticos, de categorias psiquiátricas, que passam a ser usada pelos sujeitos para interpretar, regular e mediar diferentes atividades e formas de autoconhecimento (Bianchi, 2016BIANCHI, E. Diagnósticos psiquiátricos infantiles, biomedicalización y DSM: ¿hacia una nueva (a)normalidad? Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, v. 14, n. 1, p. 417-430, 2016. DOI:10.11600/1692715x.14128210715
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). Portanto, a banalização também pode carregar seus efeitos cruéis numa volta a mais de uma espiral patologizante.

Passar de um campo antes restrito “a doença” para ser englobada numa política da vida cotidiana dos indivíduos, ao ser criadas categorias de autocuidado e autocontrole, ou mesmo, passar ao campo de ações chamadas de “preventivas”, contribui para estabelecer novas modalidades de normalização e de subjetividades normalizadoras, que terminam por se tornarem cúmplices de uma ampliação das hierarquias relacionada a uma colonialidade patologizante. A governabilidade encontrou nesse deslizamento entre saúde, risco e vigilância, não apenas uma forma de moldar comportamentos, mas de sustentar uma estrutura promotora das práticas de cuidado que reinscrevem fenômenos de exclusão, invisibilidade e negatividade.

No caso das crianças, por exemplo, a cultura do diagnóstico irá incluir desenvolvimento social, histórico escolar, vida afetiva familiar, comportamento perigoso. É desse modo que Trad, a partir da perspectiva da saúde coletiva, acrescenta que no nosso contexto brasileiro vale ressaltar “o histórico-social para situar a criança brasileira em seus distintos territórios” (Trad, 2021, p. 37), assim como cabe reconhecer que o cuidado descontextualizado contribui para invisibilizar a complexidade de determinantes sociais do sofrimento psíquico infantil. “Surgem novos critérios, novos formas de avaliações, novas formas de punição, a vigilância se sofistica” (Moysés; Collares, 2021, p. 17), os famosos laudos também não fogem à regra e quanto mais padronizados, mais excludentes se tornam.

Nessa mesma esteira, os eixos de desenvolvimento passam a migrar também para a avaliação de comportamentos, num controle normativo mais rigoroso quanto a condutas dos “iguais”, provocando dois efeitos: a naturalização da patologização nas infâncias no sentido mais explícito e a desabilitação das crianças no sentido implícito. No primeiro caso, mais crianças cooptadas numa patologização da vida cotidiana pela amplitude, por exemplo, dos classificáveis espectros (relativo ao desenvolvimento). No segundo caso, mais crianças inábeis em suas competências pela idealização das performances e eficácias cotidianas (relativo aos comportamentos).

Esse caminho não se faz sem as dissonâncias que se impuseram rumo a uma mudança epistemológica implicada e que promova a problematização de alicerces que sustentam concepções morais disfarçadas de técnicas. Disfarces técnicos adotados para silenciar diferenças culturais e apagar os desvios daí advindos que podem ser mais bem definidos através das noções de medicalização das infâncias e de sua correlata direta, a patologização da vida.

O trabalho de revisão de Cardoso, Lima e Cunha (2021) aponta limitações ou lacunas em estudos de prevalência de transtornos mentais na infância/adolescência, no que se refere à compreensão dos processos de exclusão e desigualdades sociais, vivenciados pelas crianças e adolescentes em sofrimento psíquico e seus familiares. Evidenciou-se que estudos na mesma temática que levaram em conta a dimensão contextual, evidenciam que as manifestações de sofrimento e outras dificuldades de crianças e adolescentes está permeado por um processo que envolve a normatização de comportamentos, o qual tem contribuído para a medicalização da infância e da adolescência. Tais estudos ressaltaram o papel da medicina como agente de normalização dos desvios e problemas de comportamento na infância. Com base na revisão realizada, os autores destacaram, dentre os fatores preponderantes para o incremento a vulnerabilização da população infantil e adolescente, os seguintes: elementos ligados à medicalização, o papel da discriminação e exclusão relacionado ao estigma do adoecimento psíquico e o não reconhecimento das diferenças (p. 10).

A propósito da exclusão: a mudança do olhar sobre a infância numa experiência pontual de giro decolonial

Nesta seção, se compartilha uma experiência vivenciada há alguns anos pela primeira autora em um projeto implantado em um Capsia,22 Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são serviços de saúde de caráter aberto e comunitário voltados aos atendimentos de pessoas com sofrimento psíquico ou transtorno mental. Atua-se em equipes multiprofissionais, que empregam diferentes intervenções e estratégias de acolhimento (psicoterapia, psiquiatria, terapia ocupacional, oficinas terapêuticas, medicação assistida, atendimentos familiares e domiciliares (www.gov.br/saúde, em 11/04/2023). O projeto foi concebido dentro da concepção de clínica ampliada, para além dos muros do próprio CAPSIA. Tratou-se de uma experiência que envolveu diretamente a primeira autora deste artigo e a pedagoga e líder comunitária Valdiria Lopes, que atuaram de forma conjunta no projeto descrito acima. em Salvador, Bahia, cujo objetivo era promover uma mudança de olhar dos profissionais que atuavam em creches locais com relação às denominadas “crianças com problemas” ou, também referidas, como “crianças difíceis”.

Antes de deter-se em um caso específico, envolvendo uma criança, que pode ser considerada uma situação emblemática, convém destacar princípios básicos da abordagem adotada neste projeto, cuja operacionalização foi especialmente desafiadora. Primeiro, cabe esclarecer que a menção à “mudança do olhar” diz respeito à expectativa de conseguir ressignificar a percepção dos profissionais em questão em relação às crianças reconhecidas como problemáticas, assim como de seus contextos de origem (família, comunidade ou bairro, grupo étnico-racial).

Do ponto de vista da metodologia de trabalho, partiu-se do pressuposto básico de que uma abordagem de base decolonial não poderia considerar apenas o rapport com as crianças, uma vez que a colonialidade do ser, do saber e, certamente do poder, incide também sobre o modo com os profissionais são formados e tratados (ou maltratados) no cotidiano de seu trabalho e fora dele. Tal preocupação, é especialmente relevante em um cenário de creches públicas, onde a maior parte dos trabalhadores e quase a totalidade das famílias usuárias provém de bairros periféricos, compostos majoritariamente por população negra.

Movidas por esta preocupação de caráter ético, mas também epistemológico, foram elencadas uma séria de perguntas para orientar as estratégias de atuação, tais como: “como se daria nossa introdução nas creches?”; “como poderíamos valorizar as falas das professoras e, ao mesmo tempo, fazê-las refletir sobre limitações em termos de percepção e abordagem sobre e com as crianças?”; “qual a melhor maneira de incluir a escuta às diretoras?” e, certamente, “como poderíamos considerar e, preferencialmente, nos aproximar das crianças e de suas famílias nos seus contextos?”.

Era preciso, por certo, ter atenção ao repertório linguístico empregado ao longo das intervenções3, evitando palavras ou termos, cujos sentidos, seja no manejo técnico, seja no imaginário popular, reiteram uma visão sobre infância, desenvolvimento infantil e comportamento infantil que gostaríamos justamente de provocar reflexões e problematizar. Ao mesmo tempo, havia a consciência de que não se tratava da construção de um novo léxico para o cuidado infantil, mas sim, fazer ajustes básicos, tais como: ao invés de diagnóstico, risco, patologia, usava-se incômodo, preocupação, dificuldade. Além disso, procurou-se não difundir nenhum tipo de literatura dita especializada em cuidado infantil, cujo foco central são as patologias ou riscos no desenvolvimento da criança e não seus modos de existir e seu contexto social.

Vale ressaltar que a escuta atenta e positivada das/dos profissionais da creche favoreceu e/ou estimulou o compartilhamento de saberes e experiências singulares deste grupo, os quais raramente eram consideradas no cotidiano institucional. Acredita-se, como traz Burman (2019BURMAN, E. Fanon, education, action: Child as method. London: Routledge, 2019.), referindo-se a Fanon, que no trabalho a partir do tema da criança/infâncias, é necessário um tipo de intervenção que vise afastar a abstração das condições sociopolíticas que normalmente acompanham as representações da(s) criança(s), isto é, como abstraídas da família, da comunidade e do contexto histórico e cultural específico. A mobilização em torno da criança em seu contexto narrativo trabalha para afastar essa abstração, leia-se condições sociopolíticas.

Desde o ponto de vista das reflexões em torno da abordagem ou do processo de trabalho adotado na creche, um aspecto central consistia em enfatizar a necessidade de se considerar o contexto sociocultural no qual as crianças e suas famílias estavam inseridas, tanto para lograr uma compreensão mais apurada sobre ambas, quanto para orientar uma prática mais sensível e inclusiva junto a elas.

Tratava-se, por exemplo, de refutar uma análise ou avaliação individualizada da criança a partir de uma curva individual de desenvolvimento, de base comparativa (seguindo os tais parâmetro universais), assim como uma percepção sobre as famílias que não levasse em conta seu perfil étnico racial, suas condições socioeconômicas (incluindo sinais de vulnerabilização social), suas referências culturais e suas potencialidades. Para tanto, foram acionadas ferramentas adequadas para leituras geopolíticas ou cartografia social capazes de apreender a complexidade e singularidades num total de 10 creches públicas no mesmo território no qual estavam inseridas.

Retomando a questão do rol de queixas antes mencionado, não havia dúvidas de que estas expressavam uma leitura da subjetividade infantil claramente apoiada em ideais ou estereótipos, que muitos adultos têm sobre a infância ou sobre o que deveria ser o “bom comportamento” da criança. Vale dizer que tais ideais ou expectativas sobre o comportamento infantil refletem em grande medida o comportamento esperado para os adultos: “pouca movimentação corporal nos espaços sociais”; “capacidade de se concentrar na realização de tarefas”, dentre outros.

Em qualquer caso, era preciso acolher aquelas queixas, permitindo que os profissionais pudessem falar sobre os ‘incômodos’ provocados pelo comportamento das crianças. Esses incômodos, relatados em relação ao comportamento das crianças reuniam elementos tais como: agressividade, falta de limites, problemas de alimentação, comportamentos insuportáveis ou perigosos e pouca interação social. Além disso, era preciso considerar a seguinte questão: como aqueles profissionais poderiam evitar reproduzir práticas excludentes ou pautadas pela negatividade frente à diferença ou invisibilidade social, quando eles vivenciaram ou vivenciam na própria carne tais experiências, incluindo situações de precariedade material?

Neste cenário, nossa aposta foi considerar que, quando há exclusão, negatividade e invisibilidade estruturais geradas pelo laço entre colonialidade e patologização, é preciso desvelar este processo junto aos envolvidos no dia a dia de sua prática, de modo a favorecer tanto a reflexão coletiva (da equipe), quanto a autorreflexão (mais individualizada) sobre estes mecanismos de reprodução e perpetuação de estruturas de poder. Tal incentivo à reflexão permanente sobre a prática vai potencializar o giro necessário para cristalização do “olhar” em relação à infância ou a criança.

Em uma das creches contempladas pelo projeto, chamou especial atenção a situação de uma garotinha de um ano e meio que durante o tempo que permanecia na creche (todo o dia), não comia e quase não bebia água. Os seus “nãos” se desdobravam nos seguintes comportamentos: não interagia, não olhava, não brincava, não reagia.

O pedido de ajuda por parte da creche pública aconteceu quando a instituição estava prestes a também dizer “não” para aquela família, ou seja, se recusar a continuar acolhendo uma criança que não se alimentava, não interagia, não respondia. Caso tal medida se confirmasse, configuraria uma situação que poderia parecer inédita, em se tratando de uma expulsão escolar de uma criança com um ano e meio de idade. Não obstante, episódios de “quase expulsão” de crianças nos seus primeiros três anos de vida não são tão incomuns em creches públicas.

Frente a este quadro, era preciso adotar a estratégia de fazer uma ‘gambiarra’, termo empregado aqui no sentido adotado por Teixeira (2019TEIXEIRA, A. A aura da gambiarra. Mosaico: Estudos em Psicologia, v. 7, n. 1, p. 45-60, 2019. Disponível em: <https://periodicos.ufmg.br/index.php/mosaico/article/view/24821/19637>
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), que visa realçar uma situação na qual a invenção e a criatividade são mobilizadas para fazer frente a uma situação ou contexto claramente marcados pela precariedade. Trata-se de um modo de se haver quando não se dispõe de uma “programação simbólica definida”, pois “quando fazemos uma gambiarra, é porque estamos diante de uma situação de precariedade que nos obriga a nos virarmos com algum objeto não preparado especificamente para nosso objetivo, mas que contingentemente se encontra diante de nós” (Teixeira, 2019, p. 50).

Através do acompanhamento da criança e da escuta aos seus sinais, assim como de uma comunicação igualmente cuidadosa com seus educadores, foi possível encontrar as melhores alternativas para o manejo do problema em questão. Uma ação relativamente simples - dar sopa à menininha -, foi pouco a pouco surtindo efeito. Depois de alguns meses, ela passou a se alimentar, brincar, se defender, interagir. Poderíamos interrogar: o que criança procurava resistir ou tentava denunciar?

Finalizado o processo de acompanhamento deste caso, mais especificamente quando os profissionais deram o feedback para a mãe da menina sobre os avanços conquistados pela criança, além de deixar claro que a creche não tinha mais preocupações com relação ao seu comportamento, ela fez um relato pungente. Contou que quando a criança tinha nove meses, ela havia preparado veneno de rato para matar as duas filhas e a si própria. Esclareceu que aquela decisão drástica foi pensada em um momento de desespero quando já não era possível enxergar condições de sobrevivência para ela e suas filhas e, então, se interrogou: “Se não tinham mais como viver, porque continuar vivas”? Ela contou, por fim, que quando estava preste a preparar os três copos de sucos envenenados, foi, precisamente, o olhar daquela filha em sua direção que a fez mudar de ideia.

Caberia então reconhecer que também neste caso aquela menina provocou um incômodo, um sábio incômodo que salvou a sua vida e da sua família. Poderíamos mesmo concluir que há um “saber” a ser decifrado no incômodo que a criança provoca.

Não fosse os “nãos” daquela criança, o contexto de vulnerabilidade e sofrimento social vivenciada por ela e por sua família, revelado através do relato dramático da mãe, permaneceria na invisibilidade. O que, em princípio, poderia ser lido pelo viés da negatividade - recusa a se alimentar ou interagir - se revelou um farol que apontou um caminho alternativo na trajetória de vida daquela criança e de sua mãe.

Outro fato que nos surpreendeu foi descobrir, ao ver no pequeno e delicado álbum de fotos da menina, compartilhado por sua mãe, que ali constavam fotos dos profissionais que atuaram no manejo do caso. Constatamos que as fotos haviam sido tiradas pela mãe no dia do nosso primeiro encontro, o que nos pareceu indicar que ela depositou confiança sobre nossa atuação desde aquele momento.

O caminho da exclusão, que poderia ter sido materializado se a expulsão da criança pela creche fosse concretizada, conforme mencionado no início desta seção, não é incomum e pode representar apenas mais um episódio na vida de famílias que vivem em uma condição de subcidadania no Brasil. Neste sentido, pode-se dizer que a creche soube aproveitar da oferta do projeto e cabe louvar a sua capacidade em pedir ajuda. O fato de os profissionais da instituição não terem recorrido a ‘protocolos’ que evidentemente caminham na direção da medicalização, desviou radicalmente a recorrente alternativa empregada frente à recusa alimentar ou de interação social por parte da criança. Além de exames e medicamentos, a adoção de tal protocolo implicaria submeter a criança a uma avaliação do desenvolvimento baseada em parâmetros/escalas universalizantes e, certamente, uso de indicadores de alerta de risco.

O caso descrito contribui para demonstrar o benefício de uma estratégia que contraria a ideia da “criança abstrata” (Burman, 2019BURMAN, E. Fanon, education, action: Child as method. London: Routledge, 2019.) o que foi a base para o resultado bem-sucedido não apenas deste caso, mas do projeto como um todo. Trata-se do dispositivo de observação e escuta sensível, continuada e, porque não dizer, paciente, ao longo do trabalho realizado, que foi fornecendo as pistas para encontrar o melhor método a ser empregado.

Sobretudo, foi a partir da escuta sensível à criança, à sua mãe e à produção de um conhecimento situado sobre aquela situação, que se chegou a um desfecho positivo desse caso. Por oportuno, evoca-se aqui as provocações de Burman (2019BURMAN, E. Fanon, education, action: Child as method. London: Routledge, 2019.), quando em seu diálogo com Fanon, traz à tona a proposta/metáfora da “criança enquanto método”. Primeiro, cabe assinalar, como ressalta esta autora, que a “criança” ou a “infância” encontrada nas narrativas de Fanon, em sua trajetória de luta anticolonial e revolucionária, não é um estágio de vida universal, historicamente transcendental ou mesmo uma qualidade afetiva (de espontaneidade, criatividade, nostalgia), o trabalho procurou precisamente afastar essa abstração. “A criança como método - é uma intervenção que visa afastar a abstração das condições sociopolíticas que normalmente acompanham as representações da(s) criança(s), isto é, como abstraídas da família, da comunidade e do contexto histórico e cultural específico [...].

É disso que se trata: uma recusa a teorizar e falar sobre uma “criança abstrata”. Em termos sucintos, poderia se dizer que o giro decolonial no cuidado a infância poderia começar por se questionar “por que a criança incomoda”? O que ela está tentando dizer, inclusive com seu silêncio? O que se apresenta como incômodo, pode se revelar formas genuínas de resistência frente a processos sistemáticos, inclusive ancestrais de invisibilização e silenciamento, numa sabia resistência ao universalismo e ao essencialismo.

Costurando novos laços - à guisa de conclusão

É preciso reconhecer que há sujeitos que são sempre considerados “outros”, assim como aqueles sempre considerados “deficientes” (Angelino, 2009ANGELINO, M. A. Ideología e ideología de la normalidad. In: AFONSINO, A.; ROSATO, A. Discapacidad e ideología de la normalidad: desnaturalizar el déficit. Buenos Aires: Noveduc, p. 133-154, 2009.), e assim, é necessário fazer caber todos: os considerados diferentes, incomuns, estranhos, acanhados, indefesos, mal-educados, dentre outros. Perceber que os fenômenos aqui construídos como exclusão, invisibilidade e negatividade podem costurar de modo invisível a prática dos cuidados às infâncias, é também reconhecer o que impede incluir a todos em suas diferenças.

É imperioso recolher o maior número de efeitos estruturais que trazem prejuízos às crianças em suas diversas infâncias e que podem de tal modo serem transmitidos. Isto implica desfazer esse processo de subjetivação, redução epistêmica e silenciamento rumo a resgate de uma “(re)existência” nas formas de vida que têm existido como primitivas e bárbaras nas bordas do mundo desenvolvido (Pinto; Mignolo, 2015PINTO, J.; MIGNOLO, W. A modernidade é universal? Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 3, p. 381-402, 2015.).

E para tal empreitada não podemos nos eximir de questionar, de modo efetivo, a fronteira entre o cuidador e aquele que está sendo cuidado. Como assinala Porge (2008PORGE, E. Des fondements de la clinique psychanalytique. Érès, 2008.), a ideia de patologia cria uma fronteira entre o cuidador e aquele que está sendo cuidado, deixando a patologia normalmente do lado do doente, e não do cuidador, mas o cuidador participa do enquadre daquele que está sendo cuidado. A noção de patologia e sua hierarquização, sustenta também a proposição de artificializar essa fronteira, como se tratasse de dois lados distintos. De modo ainda mais intenso, podemos considerar que esse deslizamento da clínica das doenças para o acompanhamento e a vigilância do comportamento cotidiano, amplia esse fosso entre o cuidador e aquele que está sendo cuidado.

A culpabilização do indivíduo participa desse recorte quando recai então sobre àquela criança ou àquela família uma suposta “incapacidade” em não corresponder à norma. Esses ideais, as performances e eficácias comportamentais tem sustentado uma “patologização da vida cotidiana” das infâncias e uma clínica dedicada às “doenças do comportamento”.

O movimento de desvelar os laços entre colonialidade e patologização da infância inclui, necessariamente, ações voltadas para o cotidiano das práticas de cuidado das crianças, procurando evidenciar situações nos quais os profissionais/cuidadores, reproduzem, sem que se deem conta, mecanismos de exclusão, invisibilidade e negatividade. Como nos diz Castro, torna-se imperativo “desvincular” ou “desconectar” os estudos da infância ou, dito de outro modo, “desenredá-la da linearidade unívoca do desenvolvimento”, interrogando sobre outras possibilidades de se teorizar a infância (2021a, p. 47-48). O giro decolonial e a direção despatologizante na prática pode ser resumida em: “se seu olhar muda, tudo muda”.

Referências

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  • 1
    A expressão “giro decolonial” foi cunhada por Nelson Maldonado-Torres no âmbito das discussões do Grupo de Investigação Modernidade/Colonialidade (M/C) e pretende realçar um movimento político e epistêmico de resistência ao modelo eurocentrado pautado nas imbricações entre estes dois termos: modernidade e colonialidade (Escobar, 2003).
  • 2
    Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são serviços de saúde de caráter aberto e comunitário voltados aos atendimentos de pessoas com sofrimento psíquico ou transtorno mental. Atua-se em equipes multiprofissionais, que empregam diferentes intervenções e estratégias de acolhimento (psicoterapia, psiquiatria, terapia ocupacional, oficinas terapêuticas, medicação assistida, atendimentos familiares e domiciliares (www.gov.br/saúde, em 11/04/2023). O projeto foi concebido dentro da concepção de clínica ampliada, para além dos muros do próprio CAPSIA. Tratou-se de uma experiência que envolveu diretamente a primeira autora deste artigo e a pedagoga e líder comunitária Valdiria Lopes, que atuaram de forma conjunta no projeto descrito acima.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2023
  • Revisado
    20 Jan 2024
  • Aceito
    04 Fev 2024
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