Resumo
O emprego de histórias na educação em saúde não é novo, servindo basicamente para disseminar informações e influenciar comportamentos e hábitos, com foco em resultados clínicos, como o controle dos níveis de glicose no sangue. Da crítica às limitações do modo como têm sido exploradas quanto às finalidades a que têm servido, propõe-se incorporar abordagens narrativas na educação em saúde, no âmbito de processos pedagógicos críticos. Tomaram-se como referências a Pedagogia Crítica de Paulo Freire e a apreensão ontológica do pensador Paul Ricoeur acerca da narrativa, como possibilidade de conhecimento de si na relação com o outro. Considerando que o texto narrativo expressa uma apreensão de mundo, o mundo do texto, ressalta-se seu sentido existencial, ensejando a construção e a reconstrução de modos de ser-no-mundo. A linguagem assume papel de destaque para essa compreensão do mundo-texto pelo leitor-educando, que pode concordar ou discordar com os enredos, simpatizar ou não com os personagens, conformar-se ou estranhar as situações. As narrativas podem incitar a problematização do curso das tramas apresentadas e a reconfiguração das histórias e de suas próprias histórias, em suma, estimulando reflexões sobre vulnerabilidades e potencialidades no cuidado à saúde.
Palavras-chave:
Educação em saúde; Narrativas; Pedagogia crítica
Introdução
As diferentes abordagens pedagógicas que informam as práticas de educação em saúde expressam, ainda que não explícita ou conscientemente, a adesão a distintos horizontes epistemológicos, políticos e éticos (Bordenave, 1983BORDENAVE, J. E. D. La transferencia de tecnologia apropiada al pequeño agricultor. Revista Interamericana de Educação de Adultos, v.3, n. 1-2, p. 19-26, 1983.; Becker, 2001BECKER, F. Modelos Pedagógicos e Modelos Epistemológicos. Educação e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2001. p. 15-32.; Silva, 2010SILVA, C. M. C. Educação em Saúde: uma reflexão histórica de suas práticas. Ciência e Saúde Coletiva, v. 15, n. 5, p. 2539-2550, 2010.).
Sob diferentes matizes, de modelos mais prescritivos aos mais dialógicos, têm prevalecido aqueles centrados na transmissão de informações e/ou na mudança de comportamento das pessoas e que, por vezes, tomam a adesão às prescrições como simples ato da vontade dos indivíduos, sendo pouco sensíveis a outras dimensões do cuidado, como os contextos sociais, experiências pessoais e comunitárias e mesmo os recursos disponíveis para viabilizar o cuidado à saúde.
Nessa perspectiva, as finalidades da educação em saúde já são bem definidas pelos profissionais de saúde, seja visando a mudanças em estilos de vida, como os hábitos alimentares, seja alcançando-se resultados conforme parâmetros laboratoriais. A gama de meios para se atingir esse tipo de finalidade é bastante abrangente, incluindo desde os tradicionais folhetos educativos até recursos tecnológicos, como o uso de aplicativos.
Dentre esses recursos, algumas iniciativas têm-se pautado no uso de narrativas para mediar intervenções educativas, principalmente em abordagens sobre câncer, diabetes e hipertensão e os estudos versando sobre o tema procuram validar o uso de narrativas, por meio da comprovação de seus efeitos clínicos e/ou comportamentais, obtidos por estratégias como ensaios clínicos randomizados (Lipsey; Waterman; Balliet, 2020).
Nessa linha, os Centers for Disease Control and Prevention - CDC, EUA (CDC, 2017) produziram fotonovelas, dentre as quais uma publicação bilíngue (espanhol/inglês), na qual os personagens das histórias transmitem lições a serem seguidas ou que sirvam de alerta e encorajamento para os leitores adotarem estilos de vida saudáveis, evidenciando o cunho moral subjacente às mesmas.
Uma das justificativas apresentadas para esse tipo de iniciativa é que as fotonovelas, ao fazerem parte da cultura popular dos latinos, são importante veículo para a aquisição de comportamentos saudáveis, por meio de seu forte apelo emocional (Goddu; Raffel; Peek, 2015GODDU, A. P.; RAFFEL, K. E.; PEEK, M. E. A story of change: The influence of narrative on African-Americans with diabetes. Patient Educ Couns, v. 98, n. 8, p. 1017-1024, 2015.; CDC, 2013).
No caso de pessoas vivendo com diabetes, o sucesso das intervenções com emprego de histórias tem sido avaliado com base no controle dos níveis glicêmicos - ou seja, muda-se o tipo de estratégia, por exemplo, de folhetos educativos para o uso de narrativas, mas as finalidades perseguidas permanecem as mesmas.
A despeito desse caráter imediatamente utilitário com que as narrativas têm figurado na educação em saúde, antecipando-se resultados e prescrições de hábitos e comportamentos, vale lembrar que o recurso a histórias na saúde também tem sido explorado de outro modo, com objetivos mais reflexivos, como é o caso da Medicina Narrativa.
Na esfera das chamadas Humanidades Médicas, a Medicina Narrativa é principalmente voltada para a educação e formação de médicos, visando desenvolver competências narrativas que permitam estreitar a sua relação com os pacientes e familiares, em uma perspectiva mais humanizada e clinicamente mais eficaz (Fernandes, 2014FERNANDES, I. A pertinência da Medicina Narrativa na prática clínica. Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, v. 5, n. 30, p. 289-290, out. 2014.).
A pesquisadora considerada idealizadora desse movimento da Medicina Narrativa, Rita Charon, propôs um método envolvendo tanto a leitura/escuta atenta quanto à escrita criativa, baseando-se em teoria literária, filosofia, ética narrativa e artes criativas. A autora parte do pressuposto de que a capacidade de “imersão” do leitor nas histórias, assim como a de (re)construir histórias, podem ajudar os profissionais a melhorarem as suas práticas, auxiliando-os a apoiarem os pacientes em suas experiências de adoecimento, para além do diagnóstico e tratamento (Charon, 2016).
Em uma linha semelhante, destaca-se a talvez menos divulgada proposta da Pedagogia Narrativa, que se apresenta como nova abordagem pedagógica para a formação de enfermeiros, cujo foco é o aprendizado e prática do pensamento interpretativo, baseado na hermenêutica de Gadamer e na pedagogia do brasileiro Paulo Freire (Ironside, 2006IRONSIDE, P. M. Using narrative pedagogy: learning and practising interpretive thinking. J Adv Nurs, v. 55, n. 4, p. 478-486, 2006.).
Ao lado dessas propostas, vale mencionar aquela que aposta no caráter terapêutico de narrativas de experiências com a doença, como modo de elaborar o sofrimento e as feridas que elas causam na vida das pessoas, pressupondo-se que cada ferimento produz uma história (Frank, 1995FRANK, A. The wounded storyteller. Body, illness and ethics. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.).
Inspirando-se nessas iniciativas e buscando alternativas às clássicas apreensões de cunho imediatamente utilitário das narrativas na educação em saúde, pretende-se discutir as possibilidades de incorporação da narração de histórias nos processos pedagógicos voltados a pacientes, como um meio para incitar reflexões sobre o cuidado à saúde e, na esfera de uma pedagogia crítica, promover processos de identificação e de problematização sobre situações que vulnerabilizam esse cuidado e como superá-las.
A partir da crítica aos limites de uma apreensão meramente utilitária de histórias na educação em saúde, tomou-se como referências as abordagens do pensador Paulo Freire, norteando os horizontes e o percurso pedagógico críticos e do filósofo Paul Ricoeur, para quem as narrativas são tomadas como modo de nos orientarmos no mundo.
A educação em diabetes foi eleita como fio condutor da investigação, dada a característica de suas abordagens pedagógicas, que seguem proposições preponderantemente tradicionais, ou seja, com finalidades voltadas a mudanças de hábitos e consequente impacto na redução dos níveis glicêmicos de pessoas com diabetes (McBain et al., 2016; O’Donnell et al., 2018; Lamanna 2019LAMANNA, J. et al. Diabetes Education Impact on Hypoglycemia Outcomes: A Systematic Review of Evidence and Gaps in the Literature. Diabetes Educ, v. 45, n. 4, p. 349-369, 2019.; Caro-Bautista et al., 2020; Vitale 2020VITALE, M. X. U. C et al. Impact of diabetes education teams in primary care on processes of care indicators. Prim Care Diabetes, v. 14, n. 2, p. 111-118, 2020.).
Ao mesmo tempo, vale lembrar que o campo da educação em diabetes, embora dominado por uma lógica biomédica, guiada por parâmetros de resultados laboratoriais ou mudanças comportamentais, também tem incorporado importantes iniciativas que, ao dialogarem com outras matrizes teóricas, indicam outros caminhos para pensar e agir nesse campo (Funnel 1991FUNNEL, M. M. et al. Empowerment: An Idea Whose Time Has Come in Diabetes Education. Diabetes Educ., v. 17, n. 1, p. 37-41, 1991.; Anderson; Funnel, 2005ANDERSON, R. M., FUNNEL, M. M. Patient empowerment: Reflections on the challenge of fostering the adoption of a new paradigm. Patient Educ Couns., v. 57, n. 2, p. 153-157, 2005.; Cyrino; Schraiber; Teixeira, 2009CYRINO, A. P. Entre a ciência e a experiência. Uma cartografia do autocuidado no diabetes. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.).
Esse tipo de abertura no campo da educação em diabetes permite pensar em outros arranjos pedagógicos para o uso de narrativas, nos quais as histórias não estariam restritas à autorreflexão dos profissionais ou dos pacientes, isoladamente, mas como mote para o Cuidado, ou seja, mediando os encontros entre ambos. Com tal expectativa e pensando na operacionalidade de uma proposta dessa natureza, cogita-se recorrer a narrativas que, embora possam ser ficcionais, contenham elementos que expressem mais diretamente os contextos e vulnerabilidades ao cuidado, daqueles que vivem com diabetes.
Pedagogia crítica e problematizadora e o reconhecimento de vulnerabilidades no Cuidado à saúde
À proposição de uma abordagem alternativa ao tradicional modelo de educação em diabetes, subjaz a intenção de situá-la no escopo de um projeto ético e político que parte de uma postura crítica quanto aos limites de abordagens circunscritas à formulação e à aplicação de um conjunto de técnicas, cujas finalidades não são reconhecidas ou mostram-se desprovidas de valor para os seus destinatários.
Parte-se do pressuposto de que a produção de conhecimentos e as práticas de educação em saúde são compromissadas por posicionamentos éticos, políticos e epistemológicos que se situam no gradiente que oscila, grosso modo, entre aqueles alienadas da realidade social, como as que focalizam exclusivamente a veiculação de informações sobre as doenças (pedagogias não críticas), e aqueles que tomam a capacidade de leitura dos contextos sociais e sua crítica como substratos para as transformações necessárias (pedagogias críticas) (Monteiro; Donato, 2012MONTEIRO, P. H. N.; DONATO, A. F. Contribuições teórico-práticas do campo da educação para as ações de prevenção em DST/AIDS. In: PAIVA, V.; PUPO, L. R.; SEFFNER, F. (Eds.). Vulnerabilidade e direitos humanos - prevenção e promoção da saúde: pluralidade e vozes e inovação de práticas. Curitiba: Juruá, 2012. p. 77-111.).
Ao advogar por uma pedagogia crítica na educação em diabetes, pretende-se buscar modos de promover abordagens que permitam reconhecer os obstáculos ao cuidado à saúde e formas de superá-los, reconhecimento por vezes obstaculizado por certos modos prescritivos de formas de vida, subsumidas, por exemplo, ao controle de resultados de exames laboratoriais. Mais que isso, tal controle pode deslizar para uma tentativa de controlar o próprio paciente, cujas experiências, dificuldades, temores e suas possibilidades de agência são secundarizados ou mesmo ignorados pelos serviços e profissionais de saúde (Broom; Whittaker, 2004BROOM, D.; WHITTAKER A. Controlling diabetes, controlling diabetics: moral language in the management of diabetes type 2. Soc Sci Med, v. 58, n. 11, p. 2371-2382, 2004.).
A educação baseada na pedagogia crítica propõe-se a facilitar a compreensão da realidade, entendida como algo inacabado e passível de mudança. Tal entendimento se dá pelo processo de problematização a ser desenvolvida pelos próprios educandos, a partir da observação da realidade social em sua dinamicidade e complexidade (Berbel, 1998BERBEL, N. A. N. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos? Interface comum. saúde educ., v. 2, n. 2, p. 139-154, fev. 1998.).
Uma das mais importantes contribuições inseridas nessa vertente remete-nos às proposições do educador brasileiro Paulo Freire, para quem a educação, para além da apreensão de conteúdos - geralmente reprodutora da realidade social - também deveria se preocupar com a leitura crítica da realidade, carreando o potencial político e emancipatório de operar transformações nesta realidade (Freire, 2016).
Em suma, a crítica aos modelos pedagógicos verticalizados ou de participação restrita, remete às lições de Freire, dentre as quais podem-se destacar: 1) não se “transmite” conhecimento: ele é produto de uma co-construção que envolve diferentes saberes e atores; 2) “todos sabem”, não apenas técnicos ou experts; 3) o educando é ativo participante no processo de conhecimento, a partir de suas experiências concretas (Freire, 2001).
No caso da educação em diabetes, tal aspiração significaria que o processo pedagógico crítico almejado visaria o reconhecimento de potencialidades e vulnerabilidades no cuidado à saúde das pessoas vivendo com diabetes. Tal reconhecimento não diz respeito a um mero processo de identificação de condições que dificultam ou impedem o cuidado, a partir de critérios preestabelecidos ou “externos” às experiências dessas pessoas.
A compreensão das especificidades de viver com diabetes, relativas à própria doença ou ao seu cuidado, requer perscrutar a intimidade de suas experiências. O diagnóstico pode significar uma ruptura na vida e, por vezes, na própria identidade das pessoas, levando-as a negá-los, sobretudo se assintomáticas. Já o incômodo causado pelos sintomas e pelas imposições relativas ao autocuidado, envolvendo dietas controladas, prática de exercícios físicos e medições da glicose e aplicações de insulina, também podem se configurar como problemáticas (Cyrino, 2009CYRINO, A. P. Entre a ciência e a experiência. Uma cartografia do autocuidado no diabetes. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.).
Tais situações, embora comuns, não são generalizáveis. As experiências não são capturadas como algo já pronto, que estejam apenas à espera de serem descobertas, seja pelos pacientes, seja pelos profissionais de saúde. Compreender a intimidade das experiências e as vulnerabilidades no cuidado à saúde é um empreendimento complexo, posto que envolve um processo de interpretação sobre o que pode ser problemático, naquele momento, envolvendo aqueles indivíduos, naquelas circunstâncias.
No campo da educação em diabetes, ainda que não abordando diretamente as narrativas, destaca-se o trabalho de Cyrino (2009CYRINO, A. P. Entre a ciência e a experiência. Uma cartografia do autocuidado no diabetes. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.), que, a partir da crítica ao binômio conhecimento-comportamento, debruçou-se sobre competências para o autocuidado, articulando a proposta pedagógica freiriana ancorada no processo envolvendo problema-saber-ação. Iniciativas como essa reforçam as possibilidades de inovação nesse campo, enquanto uma questão “ética, técnica e epistemológica [orientando a busca] de um outro modo de articular comunicação e práticas de saúde” (p. 215).
Os contextos que vulnerabilizam o cuidado à saúde e as possibilidades de superá-los são intersubjetivamente delineados, no seio dos quais imperam sentidos práticos das experiências: de um lado, os valores, temores, percepções que ameaçam a saúde, e de outro, os horizontes que informam as expectativas e as possibilidades de ações dos indivíduos e comunidades.
Assim como o reconhecimento de vulnerabilidades no cuidado à saúde é um procedimento interpretativo, o próprio cuidado, como aqui abordado, também implica um processo compreensivo envolvendo diferentes experiências, conhecimentos e saberes que tenham como norte a vida boa.
Confrontando o foco exclusivo no tratamento médico e medicamentoso, tal abordagem problematiza a centralidade do controle fisiopatológico na atenção à saúde da pessoa com diabetes, mediada pela mensuração dos níveis de glicose no sangue. Em contraste, busca ampliar suas finalidades para práticas que integrem de modo produtivo e criativo essa perspectiva de êxito técnico ao horizonte concreto de seu sucesso prático, isto é, aos “sentidos atribuídos a necessidades e demandas de atenção, conforme as experiências vividas de indivíduos e grupos populacionais” (Ayres, 2014AYRES, J. R.C. M. Vulnerabilidade, Direitos Humanos e Cuidado: aportes conceituais. In: BARROS, S.; CAMPOS, P. F. DE S.; FERNANDES, J. J. S. (Eds.). Atenção à Saúde de Populações Vulneráveis. Barueri: Manole, 2014. p. 1-25., p. 17).
No âmbito de uma atenção à saúde ativamente interessada no sucesso prático de suas ações, designada aqui pelo conceito de Cuidado (Ayres, 2009AYRES, J. R. C. M. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC; UERJ/IMS; ABRASCO, 2009. 284p.), reforça-se o caráter dinâmico das experiências dos indivíduos e grupos populacionais, posto que não apenas seus sentidos, mas elas próprias, configuram-se e reconfiguram-se no tempo, configurando e reconfigurando, por sua vez, posições e ações diante de si mesmos e do mundo. Não o tempo cronológico (Chronos), mas o tempo vivido (Kairós) (Ricoeur, 2019RICOEUR, P. Tempo e Narrativa III. O tempo narrado. São Paulo: Martins Fontes, 2019.).
Da importância da experiência vivida para o Cuidado, bem como para o reconhecimento de vulnerabilidades que o afetam, é que emerge o papel das narrativas, como uma possibilidade de caminho para o exercício de uma prática pedagógica crítica.
Narrativas como pontes para o Cuidado
Não sendo possível uma apreensão exaustiva da complexa e densa produção de Ricoeur, privilegiaram-se alguns aspectos de livros e textos do autor, além de alguns de seus comentaristas que auxiliassem na compreensão de como as narrativas poderiam servir de elo para o desenvolvimento de uma prática pedagógica ancorada nos pressupostos da pedagogia freiriana.
Os horizontes que orientam a obra de Ricoeur apontam para as possibilidades do ser humano, tanto no sentido dos empreendimentos e das conquistas quanto dos sofrimentos, dos padecimentos, dos obstáculos à sua existência. Por isso a questão desse pensador, considerando o esforço humano para existir, é: “o que posso esperar, a despeito de minha finitude insuperável, a despeito do mal e do trágico da condição humana?” (Grondin, 2015GRONDIN, J. Paul Ricoeur. São Paulo: Edições Loyola, 2015., p. 13). Ricoeur responde a esse tipo de questão com esperança, abrindo-se ao inédito da iniciativa humana, por meio de um pensamento marcado pelo diálogo e confrontação de ideias.
O autor destaca quatro atividades “básicas” de toda a vida humana, quais sejam: as capacidades de falar, de agir, de contar a sua história e de ser moralmente imputável (Ricoeur, 1991RICOEUR, P. O si mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.). Tais capacidades são tomadas a partir dos pressupostos da liberdade e de que o homem se orienta no mundo por meio da atividade fundamental de interpretação. A partir do sujeito que interpreta o mundo e interpreta a si mesmo e ao outro através do desenrolar da sua existência no mundo, Ricoeur se apropria da hermenêutica em uma perspectiva filosófica, a qual conduz a:
[...] uma escuta racional e refletida das narrativas e abordagens que reconhecem um sentido e uma direção ao esforço humano para existir. O homem é um ser que “pode” interpretar seu mundo e se interpretar a si próprio. (Grondin, 2015GRONDIN, J. Paul Ricoeur. São Paulo: Edições Loyola, 2015., p. 15).
A interpretação sobre o mundo, sobre si e sobre os outros permite vislumbrar as condições necessárias para uma vida realizada, uma vida boa, podendo responder à questão do sentido, essencial, como apontado acima, à noção de Cuidado.
Transitando da análise estrutural para uma abordagem hermenêutica da linguagem, Ricoeur destaca que o sentido construído e posto em movimento em qualquer narrativa só pode ser adequadamente compreendido se levamos em conta o referente que sustenta as relações entre seus significantes e significados na sua textualidade e a sua aplicação, ou apropriação, por quem o interpreta. Por isso é fundamental na hermenêutica de Ricoeur os conceitos de mundo do texto e mundo do leitor. Tais noções assinalam “espaços” e “temporalidades” que permitem explorar tanto o texto quanto seus “efeitos” no leitor. A concepção de que o texto projeta um “mundo”, o mundo do texto (Ricoeur, 2001), dá a dimensão da consubstancialidade entre o texto narrativo e a existência humana. Por seu lado, a capacidade de compreender um texto, escrito ou falado, significa não apenas a inteligibilidade de sua estrutura formal, mas um compartilhamento que resulta do diálogo possível entre o mundo do texto, aberto pela narrativa ali construída, e o mundo do leitor, ou o que Gadamer (2004GADAMER, H. G. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2004. 631p.) denominará “fusão de horizontes”.
Tal consubstancialidade eleva a condição do texto, de mero instrumento para fins predeterminados, ao patamar de um modo de apreender a própria existência humana. Em outros termos, isso significaria rejeitar o uso de histórias para influenciar comportamentos, em favor do recurso às histórias como modo de “dar o que pensar” e abertura para decidir o que e como fazer (Ricoeur, 2011RICOEUR, P. O problema da hermenéutica. In: RICOEUR, P. Escritos e conferências 2: hermenéutica. São Paulo: Loyola, 2011, p. 15-68.).
Ao tratar da dialética entre o texto e seu leitor, Ricoeur (2019RICOEUR, P. Tempo e Narrativa III. O tempo narrado. São Paulo: Martins Fontes, 2019.) critica uma certa tipologia construída por uma aproximação retórica a esta relação, que reduz a implicação do autor e seus efeitos sobre o leitor a duas posições polares: a do leitor manipulado, “seduzido e pervertido pelo narrador” e do “leitor aterrorizado pelo decreto da predestinação de sua própria leitura”. De modo alternativo, Ricoeur recusa essa determinação fechada na textualidade e defende, em sintonia com Gadamer, a perspectiva de uma abertura do texto, infinita, uma liberdade relativa do texto em sua “inquietante indeterminação”.
[...] no mesmo momento em que o texto parece se fechar sobre o leitor num gesto terrorista, o desdobramento dos destinatários reabre um espaço de jogo que a releitura pode transformar em espaço de liberdade. (p. 284).
Tal abertura se situa na passagem de uma retórica da leitura para uma estética da leitura, no sentido da aísthesis grega, na medida em que se exploram as múltiplas maneiras como uma obra, na interação com um leitor, o afeta. A combinação entre passividade e atividade leva a uma experiência particular em que a recepção do texto coincide com a própria ação de lê-lo.
Tomando a hermenêutica de obras literárias como situação paradigmática, Ricoeur (2019RICOEUR, P. Tempo e Narrativa III. O tempo narrado. São Paulo: Martins Fontes, 2019.) distingue a primeira leitura (leitura inocente), de uma leitura distanciada (operada na releitura). A primeira leitura fornece a compreensão primária do texto, que corresponde à recepção da obra, mediando o horizonte de expectativas do passado e o horizonte de expectativas do presente, ou seja, uma recepção percepcionante. Já a releitura “suscita expectativas de sentido não satisfeitas, que a leitura reinscreve na lógica da pergunta e da resposta” (p. 301), com foco nas perguntas deixadas em aberto depois da primeira leitura (quais eram as perguntas de que a obra era a resposta?), acarretando a desvantagem de fornecer apenas uma interpretação, entre outras. “A expectativa é aberta, porém mais indeterminada; e a pergunta é determinada, mas mais fechada” (p. 301). A terceira leitura visa elucidar a parcialidade da segunda leitura, indagando “que me diz o texto e que digo eu ao texto?” (p. 301), como ele me interpela?
Aqui, a ideia de aplicação, ou apropriação, revela-se mais claramente como o processo de reconfiguração das histórias, no modo como elas nos afetam, transportando-nos para outros tempos e lugares, onde experimentamos as coisas de outro modo, suscitando no aqui e agora da leitura a liberação de emoções, como uma descarga emocional provocada pela situação dramática da narrativa. Tal processo corresponderia à noção aristotélica de katharsis, originária da Grécia Antiga e tomada como o despertar de piedade e temor, as quais resultariam em um estado de purificação ou de purgação. Ricoeur (2019RICOEUR, P. Tempo e Narrativa III. O tempo narrado. São Paulo: Martins Fontes, 2019.) também acrescenta à katharsis o sentido de clarificação, esclarecimento, que produziria o efeito de tornar o leitor
[...] livre para novas avaliações da realidade que tomarão forma na releitura [...] [encetando] um processo de transposição não só afetiva, mas também cognitiva, que pode ser relacionada com a allegorese [...]. Há alegorização sempre que nos pomos a traduzir o sentido de um texto de seu primeiro contexto para um outro contexto, o que equivale a dizer: dar-lhe uma nova significação que extrapola o horizonte de sentido delimitado pela intencionalidade do texto no seu contexto originário. (p. 304).
Em analogia aos sentimentos de temor ou piedade suscitados pela katharsis trágica, Ricoeur debruça-se nos efeitos da recepção da obra pelo leitor, como um processo de identificação, no seio de uma economia de afetos (Ricoeur, 2019).
Ricoeur (2006RICOEUR, P. La vida: um relato em busca de narrador. Ágora: Papeles de Filosofia, v. 25, n. 2, p. 9-22, 2006.), portanto, trata a ideia de texto não como uma entidade fechada sobre si mesma, mas como a projeção de um novo universo diferente daquele em que vivemos. Para ele não faz sentido de distinguir um “dentro” e um “fora” do texto:
Apropriar-se de uma obra pela leitura é desdobrar o horizonte implícito do mundo que circunda as ações, os personagens, os acontecimentos da história narrada. O resultado é que o leitor pertence tanto ao horizonte de experiência da obra de forma imaginativa quanto ao horizonte de sua ação. Horizonte de espera e horizonte de experiência não cessam de se encontrar e se fundir. Gadamer fala neste sentido de "fusão de horizontes", fusão essencial à arte de compreender um texto. (p. 15).
Assim, fala-se em experiência literária na qual o texto é uma mediação entre o homem e o mundo, entre o homem e o homem, entre o homem e si mesmo, mediação essa correspondente a referencialidade, comunicabilidade e compreensão de si, respectivamente. Diz ainda o autor que o problema hermenêutico começa onde para a linguística, ou seja, explorando na obra literária características de referencialidade não descritivas, de comunicabilidade não utilitária e de reflexividade não narcisista. A hermenêutica seria a dobradiça entre a configuração (interna) da obra e a refiguração (externa) da vida (Ricoeur, 2006RICOEUR, P. La vida: um relato em busca de narrador. Ágora: Papeles de Filosofia, v. 25, n. 2, p. 9-22, 2006.).
A fragilidade da ligação entre dois mundos ontologicamente distintos, o “mundo imaginário do texto e o mundo efetivo do leitor”, evidencia o paradoxo de que “quanto mais o leitor se irrealiza na leitura, mais profunda e mais longínqua será a influência da obra sobre a sua realidade social”. O autor arremata: “Não é a pintura menos figurativa que tem mais chances de mudar nossa visão de mundo?” (Ricoeur, 2019RICOEUR, P. Tempo e Narrativa III. O tempo narrado. São Paulo: Martins Fontes, 2019., p. 309).
Quanto mais se adentra à obra de Ricoeur, mais se é levado a afastar-se de qualquer intento meramente instrumental em relação às narrativas aplicadas ao agir em saúde, na medida em que o foco se situa na dimensão compreensiva do processo de leitura, que foge a qualquer possibilidade de fechamento sentido de a priori. E é nessa perspectiva mesma de abertura se sentido que se enxerga a relação entre narrativa e Cuidado, incluindo a educação em saúde.
Segundo Ayres (2004AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde Soc., v. 3, n. 13, p. 16-29, 2004.; 2014), a ideia de Cuidado pode ser compreendida no contraste com a de tratamento pelo modo distinto como neles se articulam os dois polos indissociáveis de toda prática de atenção à saúde: sucesso prático e êxito técnico. O tratamento, tal como tradicionalmente entendido, designa intervenções técnicas que dizem respeito a finalidades já bem consolidadas e em geral validadas tanto por profissionais de saúde, quanto pelos pacientes e população: perder peso, controlar o colesterol, corrigir um desvio de septo nasal etc. - finalidades dependentes de arsenal de conhecimentos das ciências biomédicas, das tecnologias para diagnóstico e tratamento, além de meios que possam “medir” seu êxito, isto é, o alcance das finalidades pré-fixadas. O polo prático é aqui indevidamente subsumido ao êxito técnico, como se as tecnologias pudessem ser universais e atemporais (Mendes-Gonçalves, 2017), como se finalidades amalgamadas a certas técnicas pudessem garantir seu propósito final de produzir saúde, ou controlar o adoecimento.
Já o convite (técnico e ético) do quadro do Cuidado é o resgate da dimensão prática das ações de saúde, isto é, a busca pelas possibilidades concretas de qualquer intervenção técnica de responder às legítimas aspirações dos sujeitos frente aos sentidos do adoecimento e de modos de lidar com ele no seu cotidiano. Com o quadro conceitual do Cuidado ressalta-se a dimensão prático-moral envolvida na atenção à saúde, propiciada pelo encontro entre sujeitos, a partir dos quais os saberes acionados (técnicos e não técnicos) e os fazeres podem ser acordados e postos em operação.
Com essa preocupação, de afastar-se da volúpia por finalidades definidas unilateralmente, e seguindo o pensamento ricoeuriano, o encontro do leitor com o texto, no âmbito de sua aplicação no campo da saúde, merece ser apreendido e desenvolvido sobre bases que superem a tradicional vocação prescritiva da educação em saúde e o tipo de objetivo (produto) que tem perseguido, de estrito alcance de êxitos técnicos. O tipo de finalidade proposto para a educação em diabetes converge com aquele esperado para a atenção à saúde enquanto Cuidado, mirando as experiências de saúde de indivíduos e grupos, inseridos dinamicamente em múltiplos contextos e modos de vida (Ayres, 2004AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde Soc., v. 3, n. 13, p. 16-29, 2004.). Aposta-se que as narrativas, tanto aquelas produzidas por esses indivíduos e grupos, quanto aquelas recebidas por eles em nossas ações educativas, podem propiciar tanto a expressão de suas singularidades e interesses quanto o reconhecimento dos obstáculos materiais e existenciais ao bem viver, assim como às possibilidades de responder a esses obstáculos.
Ao localizar a educação em diabetes no plano do Cuidado, reposiciona-se também o papel das narrativas nas práticas pedagógicas, na medida em que se rejeita um uso meramente instrumental e moralizador das mesmas, reforçando seu caráter intersubjetivo. Nesses termos, o recurso às narrativas propiciaria um exame reflexivo e crítico sobre os obstáculos ao cuidado da saúde, ao suscitar questões sobre os sujeitos envolvidos e os sentidos das histórias de vida e do viver com diabetes.
Narrar as experiências é como construir um mosaico da existência; as peças podem ser dispostas de diferentes maneiras, criando uma obra constituída por múltiplas cores, tamanhos, formas e disposição das partes. As narrativas emolduram experiências, mas não as aprisionam. Assim, poderão ser configuradas e contadas de maneiras diversas, por exemplo, a experiência do diagnóstico de diabetes pode ser um evento traumático, com consequências deletérias para a vida. Mas também pode ser vista como um evento positivo, como um elemento organizador da vida: “um trauma que trouxe disciplina e certa responsabilidade precoces” (Villas-Boas, 2015, p. 27). A experiência amplia o conhecimento sobre si e sobre a doença e, consequentemente, modos de lidar com as diferentes situações impostas pelo diabetes.
Nessa linha, Cyrino (2009CYRINO, A. P. Entre a ciência e a experiência. Uma cartografia do autocuidado no diabetes. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.) evoca a valorização dos saberes da experiência de quem vive com diabetes, não como modo de oposição com os saberes técnico-científicos, nem tampouco para examinar isoladamente as representações de pacientes sobre o adoecimento. O autor toma os saberes da experiência como pontes para fortalecer o diálogo entre sujeitos especialistas e sujeitos pacientes, explorando-se outras possibilidades de reconhecer, disponibilizar e partilhar esses saberes, a partir de um exame autorreflexivo.
As narrativas, enquanto modo de configurar as experiências, favorecem esse exame crítico e reflexivo do conhecimento de si próprio, por meio de um processo de interpretação. Ricoeur desenvolve esse processo de compreensão de si, por meio da narrativa, em termos de identidade narrativa, o ponto de chegada do quadro teórico-conceitual proposto e o principal “efeito” que o texto poderia proporcionar ao leitor-educando.
Parte-se da premissa de que, ainda que não sejamos os autores diretos das histórias que lemos, podemos “aplicar a nós mesmos os enredos que recebemos de nossa cultura e, assim, vivenciar os diferentes papéis assumidos pelos personagens favoritos nas histórias que nos são queridas” (Ricoeur, 2006RICOEUR, P. La vida: um relato em busca de narrador. Ágora: Papeles de Filosofia, v. 25, n. 2, p. 9-22, 2006., p. 22).
Ricoeur (2019RICOEUR, P. Tempo e Narrativa III. O tempo narrado. São Paulo: Martins Fontes, 2019.) esclarece que o termo identidade é tomado no sentido de uma categoria prática, na medida em que “dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é responder à pergunta: quem fez tal ação? Quem é seu agente, seu autor?” (p. 418). Ao designar o sujeito da ação por meio de um nome próprio, fica uma questão acerca da permanência desse sujeito ao longo de sua vida. Como essa questão só pode ser respondida localizando a ação no tempo, no espaço e no âmbito de um enredo (um sentido para a ação) que evolve outros cenários e personagens, essa identidade do quem é uma identidade substantivamente narrativa.
O construto ricoeuriano da identidade narrativa mostra-se especialmente interessante para refletirmos sobre o uso de narrativas na prevenção e cuidado em relação a condições como o diabetes. A emergência da identidade narrativa oportunizada no e pelo encontro de um texto com seu leitor é um processo reflexivo, combina aprendizagem e inovação.
Por um lado, os “desígnios”, “destinos” e ações dos personagens dos textos podem ser aceitos nos limites de uma identidade substancializada ou formal, como “o diabético”, assistindo-se a um processo de identificação, de reprodução do mesmo, idêntico a si, substancializado e imutável através do tempo, processo esse que Ricoeur denomina de identidade-idem. Tal situação pode carrear e cristalizar sentimentos como culpa, por falta de controle sobre a alimentação ou comportamentos, como o isolamento social, a fim de evitar eventos cujas guloseimas restringem-se a “não-diabéticos”. Por outro lado, tais “desígnios”, “destinos” e ações podem ser tematizados, questionados e cotejados com próprios modos de vida do leitor, ensejando a dinâmica construção do “si mesmo”, relativo à identidade-ipse. A identidade-ipse pertence ao domínio da ação, pressupondo, como visto, um agente - autor, ator e leitor. Plasma-se um jogo interativo de agências, que incita o estranhamento, a problematização e as possibilidades de reconfiguração das histórias, momento em que “a leitura se torna uma provocação a ser e a agir de outro modo” (Ricoeur, 2019, p. 423). A listagem de “saberes da experiência”, enunciados por Cyrino (2019) a partir de depoimento de pessoas com diabetes, ilustram exemplos de ação frente a campos problemáticos, como o saber partilhar com amigos as restrições dessa condição, a fim de se contrapor ao isolamento e ao sentimento de vitimização.
O autor lembra que a narrativa, embora seja uma categoria da ação, pode comportar um exercício de imaginação, mais que de vontade (estase). Mas a leitura também pode abrigar um momento de remissão, “quando a leitura se torna uma provocação a ser e a agir de outro modo” (p. 423). Essa remissão só se transforma em ação por uma decisão, evidenciando a responsabilidade ética como fator supremo da ipseidade.
A intencionalidade ética subjacente à identidade narrativa coincide com a busca de uma vida realizada, que o autor alinha ao horizonte da vida boa com e para outrem em instituições justas (Ricoeur, 2006RICOEUR, P. La vida: um relato em busca de narrador. Ágora: Papeles de Filosofia, v. 25, n. 2, p. 9-22, 2006., p. 176). Sob esse entendimento, demarca-se o caráter intrinsecamente interativo das narrativas, que regula o horizonte da vida boa e conforma a noção de um sujeito ético e político, nos termos da phronesis aristotélica, como expressão da sabedoria prática capaz de considerar a universalidade dos valores voltados às ações humanas e ao mesmo tempo a singularidade das situações. Assim como contar histórias não é uma ação neutra, não há ação narrada que não envolva algum tipo de julgamento por parte dos leitores.
A história não se confina apenas à mente de seu autor (a falácia romântica da primazia das intenções originais do autor). Nem ela é confinada à mente de seu leitor. Nem tampouco às ações narradas de seus atores. A história existe no jogo interativo entre todos eles [...]. Por esta razão a narrativa é um convite em aberto à responsividade ética e poética. (Kearney, 2012KEARNEY, R. Narrativa. Educ. Real. v. 37, n.2, p. 409-438, 2012., p. 429).
Sob o horizonte da vida boa, não restrito aos êxitos técnicos, as narrativas podem suscitar a autocompreensão de si, como uma reconfiguração do enredo das histórias e das próprias histórias no processo de educação em saúde.
Encontros de “Paulos”, à guisa de conclusão
Sem a pretensão de esquadrinhar as convergências entre as obras de Paulo Freire e Paul Ricoeur, as aproximações aqui enunciadas visam tão somente colocar em relevo as possibilidades de se empreender uma educação em saúde baseada na pedagogia crítica, por meio de narrativas.
Ainda que considerando as possíveis distinções quanto às bases epistemológicas que orientam cada uma das propostas, ambos os autores convergem quanto aos horizontes éticos que apostam nas possibilidades humanas, envolvendo a esperança, o diálogo, a práxis, com mote na capacidade de agir e na emancipação.
Embora nem Freire nem Ricoeur tenham se debruçado diretamente sobre o papel pedagógico de narrativas, chama a atenção a ideia de leitura do mundo, estabelecendo a relação entre a linguagem e a realidade, situando a leitura da palavra como sempre precedida da leitura do mundo e por sua infinita abertura à ressignificação.
[...] a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente. (Freire, 1989FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989., p. 13).
Ao destacarem a linguagem na compreensão do mundo, equiparam o texto à condição de mundo - o mundo do texto, ou o texto do mundo. Esse mundo só pode ser compreendido a partir da sua leitura e daí a importância do ato de ler, não enquanto mera tradução literal de signos, mas como ato de interpretação desse mundo. Esse processo interpretativo, cujas leituras se abrem a diferentes possibilidades de releituras, implica uma ativa relação envolvendo alteridade e dialogia.
As narrativas oportunizam um distanciamento de situações por vezes já incorporadas ao cotidiano e não tematizadas, na medida em que, ao adentrarem nas histórias, os leitores-educandos podem concordar, discordar dos enredos, criar empatia ou não com os personagens, propiciando reações de conformismo ou de estranhamento das situações, enfim, problematizando os cursos das ações.
As narrativas assumem papel mediador, permitindo certa “aplicação” do texto à vida, entretanto, não no sentido de simples transposições das histórias para a vida, mas na sua abertura a outras configurações, por meio de um processo interpretativo, que evidencia uma interpretação de si próprio.
Sob o horizonte pedagógico crítico, as histórias não teriam o caráter instrumental e moral de influenciar comportamentos ou estilos de vida, mas o de promover sua problematização, nos limites do que o leitor possa reconhecer como obstáculos à saúde, no jogo entre identidades e alteridades instigado por meio de um processo interpretativo, que pode culminar na reconfiguração dessas histórias.
Não se ignora que, na disputa entre abordagens pedagógicas que reproduzem relações hierárquicas de poderes e saberes na saúde e aqueles que buscam interações mais horizontalizadas, a primazia da racionalidade tecnocientífica/biomédica e seus discursos de verdade têm feito a balança pender a favor dos primeiros. Mas desde uma perspectiva crítica, é também digna de nota nossa imaturidade na incorporação de outras lógicas que fujam do modelo transmissional e verticalizado que incide nas comunicações e na educação em saúde (Teixeira, 1997TEIXEIRA, R. R. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 1, n. 1, p. 7-40, 1997.). A educação popular em saúde, talvez uma das propostas mais democráticas e inclusivas no campo da educação em saúde, tem mostrado suas potencialidades, mas, também, tem sido alvo de interpretações e práticas que apenas se travestem sob seu manto, estando longe de assumirem as raízes da participação e engajamento em sua radicalidade.
Outra armadilha ou ilusão que recai sobre iniciativas pedagógicas e comunicacionais críticas é a de que a sua implementação é ansiosamente esperada por seus destinatários, em tese, cansados de se verem envoltos em folhetos explicativos e palestras que oscilam entre o jargão técnico, de difícil compreensão para o público não especializado, e o uso de uma comunicação muitas vezes infantilizada para uma plateeia de adultos. Mas é importante considerar que tanto quanto os profissionais de saúde foram “socializados” em práticas pedagógicas tradicionais, baseadas na transmissão de conteúdos, como a população também o foi. Romper com essa lógica não é uma questão simples, exigindo mais que a vontade dos sujeitos. Quantas vezes ficamos impacientes diante de uma abordagem problematizadora? Quantas vezes não preferimos ser o “pote do Paulo Freire”, depositários passivos de um conhecimento já “pronto”, cultivando nossa alienação?
Por isso, ao buscar outras alternativas pedagógicas para a educação em saúde, espera-se tão somente contribuir para a valorização das experiências concretas das pessoas e dos projetos que guiam nossos modos de ser e estar no mundo. Talvez os níveis de insulina no sangue não alcancem os patamares desejados após um tipo de intervenção com esse referencial, mas almeja-se que as pessoas possam, por exemplo, assumir conscientemente a adesão ou não à prática de exercícios físicos, a partir de um exame em que aspectos da vontade pessoal sejam cotejados com outras condições que facilitam ou dificultam tal prática. E que possam, se for o caso, construir estratégias para mobilizar recursos pessoais e coletivos a fim de reivindicar o direito de ter um espaço para essa prática no bairro.
Buscar interação horizontal entre educadores e educandos, promover a ação em saúde como Cuidado, fazendo fecundar-se mutuamente os referentes de êxito técnico e sucesso prático, explorar as narrativas como recurso hermenêutico, abandonando pretensões instrumentais em benefício de seus potenciais reflexivos e dialógicos e, finalmente, assumir radicalmente a ipseidade da identidade dos sujeitos com os quais trabalhamos na saúde - isto é, seu caráter sempre reconstruído na ação e na intersubjetividade: todas essas são propostas contrafáticas, utópicas no bom sentido do termo. Trata-se, portanto, de um processo de aprendizagem, que cotidianamente nos pôe à prova nos encontros com cada colega de trabalho, com cada usuário que atendemos nos serviços, com cada pessoa com quem interagimos na comunidade.11 N.E.K. e Silva: concepção e redação do artigo. J.R.C.M. Ayres: revisão crítica do conteúdo e aprovação da versão final do artigo.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Out 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
15 Jan 2022 - Revisado
10 Mar 2023 - Aceito
04 Fev 2024