Resumo
A legitimação do cuidado à saúde LGBT passa pela instituição e implementação de políticas públicas. Assim, objetivou-se compreender as percepções dos gestores sobre a atenção à saúde da população LGBT em Pernambuco, desde a formação, gestão dos serviços e quanto às potencialidades e fragilidades encontradas. Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo, exploratório e transversal. A coleta de dados foi realizada por meio de registro em diário de campo e entrevistas semiestruturadas com gestores de serviços de saúde voltados à assistência da população LGBT. Os dados foram analisados a partir da análise de conteúdo. Como principais resultados, destaca-se a ausência das discussões de identidade de gênero e sexualidade na graduação, que tem gerado impactos na atuação profissional e, consequentemente, no acolhimento da população LGBT nos serviços. A instituição da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais representou um marco na legitimidade do cuidado à saúde desta população; entretanto, sua efetivação perpassa a superação do preconceito, da discriminação e das barreiras impostas na concretização dos princípios e diretrizes da política, que geram adoecimentos e afastam essa população dos serviços de saúde. Nesse sentido, a educação permanente em saúde representa uma das estratégias para enfrentamento dessas barreiras.
Palavras-chave:
Atenção à saúde; Política de saúde; Assistência Integral à Saúde; Acolhimento; Minorias sexuais e de gênero
Abstract
The legitimation of LGBT healthcare involves establishing and implementing public policies. Thus, it aimed to understand managers’ perceptions about the healthcare of the LGBT population in Pernambuco, from training, service management, and the strengths and weaknesses found in healthcare. This is a qualitative, descriptive, exploratory, and cross-sectional study. Data was collected from May to September 2022 through a field diary and semi-structured interviews with health service managers to assist the LGBT population. Data were analyzed using content analysis. As the main results, we highlight the absence of gender identity and sexuality discussions in graduation, which has had impacts on professional performance, and consequently on the reception of the LGBT population in the services. The institution of the National Comprehensive Health Policy for Lesbians, Gays, Bisexuals, Transvestites, and Transsexuals represented a milestone in the legitimacy of healthcare for this population, however, its implementation permeates overcoming prejudice, discrimination, and barriers imposed in the implementation of the principles and guidelines of the policy, which, concomitantly, generate illnesses and distance this population of health services. In this sense, permanent health education represents one of the strategies to face these barriers.
Keywords:
Delivery of Healthcare; Health Policy; Comprehensive Healthcare; User Embracement; Sexual and Gender Minorities
Introdução
A saúde da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) entrou em debate no cenário nacional na década de 80, a partir do combate à epidemia do Vírus da Imunodeficiência Humana/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (HIV/Aids), à época relacionada principalmente a homens gays (Lima ., 2019LIMA, T. N. B. et al. Atenção à Saúde da População LGBT numa capital nordestina. Revista Eletrônica Acervo Saúde, n. 34, p. e1410, 23 out. 2019. Disponível em: <acervomais.com.br>
acervomais.com.br... ). Atualmente, entende-se que a vulnerabilidade ao HIV/Aids não está ligada às identidades sexuais e de gênero, diversas, mas sim às desigualdades sociais que essas identidades ou experiências engendram (Carvalho; Menezes, 2021CARVALHO, M. F. L.; MENEZES, M. S. Violência e saúde na vida de pessoas LGBTI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.).
A visibilidade do tema e a atuação dos movimentos LGBT proporcionaram avanços para o cuidado a essa população, anos de acúmulo de conhecimentos levaram a discussão para além do combate à Aids, fomentando a criação de políticas públicas de enfrentamento ao preconceito e à discriminação. Nesse sentido, foi instituída em 2011 a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais e Travestis (PNSILBGT), que reconhece os efeitos da discriminação, da violência e da exclusão sobre a população LGBT e aponta caminhos para a sua superação (Brasil, 2011; Cardoso; Ferro, 2012CARDOSO, M. R.; FERRO, L. F. Saúde e população LGBT: demandas e especificidades em questão. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 32, n. 3, p. 552-563, 2012.).
A implementação da PNSILGBT, ainda que de maneira incipiente, foi precursora para o avanço da diversificação da oferta de serviços, qualificação da rede e institucionalização de programas e projetos relacionados à diversidade sexual e de gênero (Bezerra, 2021BEZERRA, M. V. DA R. et al. Condições históricas para a emergência da Política Nacional de Saúde Integral LGBT no espaço social da saúde no Estado da Bahia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 37, n. 8, p. e00221420, 2021.). Dado que a eficiência da implementação de políticas públicas está diretamente ligada aos interesses políticos e socioeconômicos dos governos vigentes, a alternância entre governos democráticos ou o ataque à democracia, influenciam diretamente as fases de desenvolvimentos das políticas de saúde (Lorenzo, 2006LORENZO, C. Vulnerabilidade em Saúde Pública: implicações para as políticas públicas. Revista Brasileira de Bioética. v. 2, n. 3. p. 299-312, 2006.). Nesse sentido, é imprescindível a presença de gestores sensíveis à causa, visto que eles possuem um papel determinante nas tomadas de decisões referentes à promoção e ao acesso de qualidade aos serviços de saúde (Gomes ., 2018GOMES, S. M. et al. O SUS fora do armário: concepções de gestores municipais de saúde sobre a população LGBT. Saúde e Sociedade, v. 27, n. 4, p. 1120-1133, out. 2018.).
Seguindo as diretrizes da PNSILGBT, o governo do estado de Pernambuco instituiu, por meio da Portaria n° 060, de 10 de março de 2015, a Política Estadual de Saúde LGBT de Pernambuco, com o objetivo de tornar equânime e qualificar a atenção à saúde, bem como contribuir para a produção de conhecimento sobre a saúde integral LGBT, tendo como eixos de atuação a atenção, a educação e a vigilância em saúde. (Cardoso; Barros, 2012CARDOSO, M. R.; FERRO, L. F. Saúde e população LGBT: demandas e especificidades em questão. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 32, n. 3, p. 552-563, 2012.).
O presente estudo objetivou compreender as percepções dos gestores sobre a atenção à saúde da população LGBT no estado de Pernambuco, entendendo sua trajetória até a chegada na gestão dos serviços e refletindo sobre as potencialidades e fragilidades encontradas na prestação do cuidado.11 O presente trabalho faz parte de um projeto de pesquisa financiado pela FACEPE sob o edital PPSUS PE 2020 Processo n°: APQ 0357 4.06/20, intitulado “População LGBTQ+ e os desafios na construção de uma saúde integral”.
Material e Métodos
Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, do tipo descritivo e exploratório, com recorte transversal.
O trabalho foi desenvolvido no Estado de Pernambuco, que conta com uma população estimada em 9.674.793 habitantes. Sua organização se dá por meio de 185 municípios, divididos em cinco mesorregiões e 18 microrregiões (IBGE, 2020; BDE, 2020). No âmbito da saúde, Pernambuco se organiza em 12 Gerências Regionais de Saúde (GERES), que integram cidades limítrofes com características socioculturais e de infraestrutura semelhantes para o planejamento e execução dos serviços e ações de saúde.
O Estado de Pernambuco possui 11 serviços de saúde voltados ao cuidado da comunidade LGBT, distribuídos em nove municípios. Desses serviços, 10 ofertam cuidado em nível ambulatorial e um em nível hospitalar, sendo este um dos cinco serviços do país que realizam a cirurgia do processo transexualizador. As equipes mínimas são compostas por profissionais de enfermagem, psicologia, serviço social e medicina. O acesso dos usuários se dá por demanda espontânea, quando é realizado o acolhimento e são direcionados os cuidados e encaminhamentos.
A coleta de dados foi realizada de maio a setembro do ano de 2022, a partir da produção sistemática de um diário de campo e de entrevistas semiestruturadas conduzidas com gestores de serviços de saúde voltados especificamente à assistência da população LGBT e gestores municipais da Política de Atenção à Saúde LGBT atuantes no estado de Pernambuco no período do desenvolvimento do estudo. Foram contempladas questões de ordem socioeconômica e de formação, conhecimento sobre a temática e vivência nos serviços. As entrevistas foram realizadas por meio da Plataforma Zoom ou de forma presencial no próprio local de trabalho do gestor, a depender do que o participante julgasse mais conveniente, sendo estas gravadas e transcritas na íntegra.
A entrevista semiestruturada combinou perguntas fechadas e principalmente abertas para possibilitar ao entrevistado falar livremente sobre o tema (Guerra, 2014GUERRA, E. L de A. Manual Pesquisa Qualitativa. Grupo Ânima Educação, 2014. Disponível em: <https://docente.ifsc.edu.br/luciane.oliveira/MaterialDidatico/P%C3%B3s%20Gest%C3%A3o%20Escolar/Legisla%C3%A7%C3%A3o%20e%20Pol%C3%ADticas%20P19%C3%BAblicas/Manual%20de%20Pesquisa%20Qualitativa.pdf > Acesso em: 25 abr. 2023.
https://docente.ifsc.edu.br/luciane.oliv... ). O roteiro da entrevista realizada contou com as seguintes perguntas condutoras:
Durante a graduação, houve algum componente curricular que abordasse a temática de saúde LGBT?
Conhece a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde LGBT? Se sim, fale um pouco sobre ela.
Conhece alguma iniciativa do governo federal, estadual ou municipal com foco na saúde da população LGBT?
Sabe o que significa a sigla LGBT?
Fale sobre a sua percepção acerca de serviços de saúde específicos para essa população.
Quais dificuldades enfrentam na gestão do serviço para a população LGBT?
Foi oferecido pela gestão algum curso de formação específico para acolhimento dessa população?
Já presenciou alguma situação de violência, constrangimento e/ou preconceito ao público LGBT por parte de algum colega, gestão ou outros pacientes? Se sim, fez alguma intervenção?
Existe algum protocolo para manejo de vítimas de violência? Qual a conduta diante de um caso de violência?
Para a análise dos dados obtidos nas entrevistas semiestruturadas, utilizou-se a metodologia de análise de conteúdo, executada a partir de três fases: pré-análise, exploração do material e interpretação inferencial (Bardin, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.).
Na fase de pré-análise, foram realizadas a organização do material e a leitura das entrevistas para apropriação do conteúdo, organização não estruturada dos aspectos importantes e seleção dos corpora a serem analisados. A segunda fase consistiu na exploração do material, sendo realizada a codificação do texto para separar os dados por recortes, obtendo-se as unidades de registro, que foram posteriormente separadas por categorias temáticas de acordo com sua semântica, gerando as categorias finais, aquelas que mais se repetiram ao longo do texto ou criadas por relevância implícita foram discutidas. A partir das categorias advindas da exploração do material, foi realizada a terceira fase de interpretação inferencial para compreender os fenômenos a partir dos materiais estudados. Os resultados foram organizados nas categorias e subcategorias a seguir:
O presente trabalho faz parte de um projeto de pesquisa maior, intitulado “População LGBTQ+ e os desafios na construção de uma saúde integral”, pesquisa que foi apreciada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade de Pernambuco sob o CAAE: 35945620.3.0000.5191. A equipe de pesquisa atuou de acordo com a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), utilizando os dados obtidos apenas para o desenvolvimento do estudo, sem identificação de participantes, e com o propósito de gerar benefícios para a comunidade estudada. Todos os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) antes do início da entrevista, garantindo-lhes o direito de ausentar-se da pesquisa a qualquer momento.
Entendendo o teor político do uso da sigla para o movimento e que outras nomenclaturas podem estar disponíveis na literatura, a opção pelo uso da sigla LGBT deu-se pelas publicações em saúde, em especial a PNSILGBT, a utilizarem para designar as dissidências de gênero e sexualidade.
Resultados e Discussão
Entre os resultados, obteve-se a participação de 9 (nove) gestores (nomeados de P1 a P9), contemplando as seguintes regiões e municípios do estado de Pernambuco: Região Metropolitana do Recife (Cabo de Santo Agostinho, Camaragibe, Ipojuca, Jaboatão dos Guararapes, Recife e Olinda), e Sertão (Serra Talhada).
Quanto às características sociodemográficas dos entrevistados, todos (100,0%) se declararam cisgêneros, sendo 8 (88,9%) deles pertencentes à população LGBT, sendo 5 homens e 4 mulheres com idades entre 29 e 53 anos. Seis entrevistados (66,7%) declararam sua raça/cor como preta ou parda e todos (100,0%) sem participação em grupo religioso.
Quanto à categoria profissional, os entrevistados(as) eram 3 enfermeiras(os), 3 psicólogas(os), 1 assistente social, 1 farmacêutico e 1 médico, todos com algum tipo de pós-graduação, sendo quatro deles (44,4%) em Saúde Coletiva. Dos entrevistados(as), 5 são trabalhadores efetivos, enquanto 4 são contratados. A média de tempo de serviço foi de 2 anos e 7 meses, com a profissional com mais tempo de serviço ocupando o cargo há 10 anos, enquanto o com menor tempo com 4 meses de atuação.
Percurso acadêmico e formativo dos gestores
Nesta categoria, buscou-se analisar o percurso profissional dos entrevistados e suas aproximações e/ou distanciamentos com a temática de saúde LGBT até a chegada na gestão dos serviços. Para tanto, vale salientar os objetivos da formação em saúde proposto por Ceccim e Feuerwerker (2004CECCIM, R. B.; FEUERWERKER, L. C. M. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004., p. 43):
A formação para a área da saúde deveria ter como objetivos a transformação das práticas profissionais e da própria organização do trabalho, e estruturar-se a partir da problematização do processo de trabalho e sua capacidade de dar acolhimento e cuidado às várias dimensões e necessidades de saúde das pessoas, dos coletivos e das populações.
Silva, Paulino e Raimondi (2020SILVA, J. M. N.; PAULINO, D. B.; RAIMONDI, G. A. Gênero e Sexualidade na Graduação em Saúde Coletiva do Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 6, p. 2335-2346, jun. 2020. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020256.25822018.
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320202... ) trazem na sua discussão sobre as graduações em saúde coletiva que a sensibilização dos profissionais, a partir das discussões sobre gênero e sexualidade para aprimoramento do acesso e cuidado em saúde, são essenciais para possibilitar um olhar qualificado para os usuários, permitindo reavaliar suas necessidades em saúde.
Na contramão do que apontam os autores citados quanto à orientação da formação em saúde voltada para a discussão da orientação sexual e da identidade de gênero como determinantes sociais da saúde que justificam um cuidado específico para a população LGBT, os gestores não vivenciaram essa discussão nos seus cursos de graduação, como fica evidente nas falas a seguir:
Não tive formação médica para lidar com esse tipo de acolhimento, lamentavelmente. (P1)
Na graduação eu não vi nada, tinha umas discussões, mas nada em específico. (P5)
Não. Considerando que eu me formei em 2011, então teve uma reforma curricular após isso, que hoje se trabalha, mas na minha época não se trabalhava. (P8)
Apenas um entrevistado apontou ter discutido a temática na graduação, de forma interseccional dentro da disciplina de saúde da mulher:
Teve a disciplina saúde da mulher, discutiu sobre gênero, aí dentro dessa temática, a gente falou um pouquinho da população LGBT. (P2)
Verifica-se uma barreira na formação desses profissionais pela inexistência de currículos que tenham abrangido as questões relacionadas à saúde LGBT durante a graduação. Para Silva . (2020SILVA, J. M. N.; PAULINO, D. B.; RAIMONDI, G. A. Gênero e Sexualidade na Graduação em Saúde Coletiva do Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 6, p. 2335-2346, jun. 2020. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020256.25822018.
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320202... , p. 11), “é essencial a inclusão desta temática nos currículos da saúde, para que todos os profissionais da saúde tenham o conhecimento dos fundamentos necessários para proporcionar acolhimento, prevenção, promoção e terapêutica de qualidade à população LGBT.”
Diante da incipiência dos currículos dos cursos de graduação, os gestores apontaram caminhos nas suas formações para o acolhimento da população LGBT, iniciado em suas próprias vivências como pessoas gays, lésbicas, bissexuais ou pansexuais e pela aproximação com os movimentos sociais, permitindo a discussão das pautas relacionadas à saúde da população LGBT e suas especificidades.
Eu já venho dos movimentos sociais, desde o movimento estudantil e essas formações acontecem com a gente de forma contínua, a gente já participou de vários momentos, de vários locais, quando a gente chega aqui já tem mais ou menos essa bagagem referente a quem são essas pessoas LGBT, que identidades são essas que vão estar chegando aqui, que orientações sexuais são essas, forma de abordar, forma de lidar. (P7)
Não, eu que provocava isso lá dentro, já vinha dos movimentos estudantis e a gente provocava muito a pauta LGBT e as discussões direcionadas às políticas, às demandas de áreas. (P7)
Eu cheguei aqui realmente, na verdade, pela minha atuação desde a graduação, no qual eu construía um coletivo LGBT dentro da Universidade e enfim dessa época a gente participava do movimento nacional e sempre culminava em um encontro, que era o Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual e Gênero, então foi aí que começou minha história. (P3)
O histórico de formação dos gestores nos movimentos sociais reforça o caráter essencial do controle social na construção de políticas públicas para a garantia do acesso aos serviços de saúde. Isso fica evidente na criação da Política Nacional de Saúde Integral da população LGBT e, posteriormente, na Política Estadual de Saúde da População LGBT, que surgiram justamente da luta desses movimentos organizados em articulação com os órgãos governamentais (Lima, 2019LIMA, T. N. B. et al. Atenção à Saúde da População LGBT numa capital nordestina. Revista Eletrônica Acervo Saúde, n. 34, p. e1410, 23 out. 2019. Disponível em: <acervomais.com.br>
acervomais.com.br... ). Outro caminho percorrido pelos gestores na busca de capacitação técnica para atuação com a população do estudo foi a formação oferecida pelas instituições.
Quando eu entrei no serviço, teve esse curso. Esse curso também foi ofertado para os profissionais que atuam no serviço, do recepcionista, à técnica de enfermagem, todos que atuam no ambulatório, porque assim… o nosso ambulatório funciona como uma linha de cuidado, então a gente não tem um local específico para o atendimento dessa população. (P8)
Foi, a gente antes de implementar o serviço, a gente passou por um processo de formação, com vários profissionais durante um mês, foram quatro eixos, durante o processo que estava se pensando o serviço, que foi discutir sobre saúde de mulheres lésbicas, saúde mental, saúde da população trans e o cuidado e acolhimento à população LGBT. (P2)
A falta da discussão sobre saúde LGBT na formação dos profissionais da saúde, bem como a falta de capacitação na área, podem produzir e alimentar estigmas e preconceitos contra essa população, indo na contramão dos princípios norteadores do Sistema Único de Saúde (SUS) (Paranhos; Willerding; Lapolli, 2021PARANHOS, W. R.; WILLERDING, I. A. V.; LAPOLLI, É. M. Formação dos profissionais de saúde para o atendimento de LGBTQI+. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 25, p. e200684, 2021.).
Apesar das dificuldades encontradas no percurso formativo, todos os gestores demonstraram conhecimento quanto ao significado da sigla LGBT que representa lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis e buscaram vias alternativas de formação, a partir das lacunas percebidas em suas graduações.
A formação em saúde voltada para o entendimento das vulnerabilidades da população LGBT ainda é uma lacuna a ser preenchida nos cursos de graduação em saúde. Negreiros (2018) aponta que as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos de medicina não ordenam conteúdos que abordem a temática de forma aprofundada. Já Silva, Paulino e Raimondi (2020SILVA, J. M. N.; PAULINO, D. B.; RAIMONDI, G. A. Gênero e Sexualidade na Graduação em Saúde Coletiva do Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 6, p. 2335-2346, jun. 2020. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020256.25822018.
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320202... ), ao analisarem os Projetos Pedagógicos Curriculares (PPC) de 16 cursos de graduação em Saúde Coletiva do país, identificaram que 12 deles possuíam componentes curriculares que discutiam gênero e/ou sexualidade.
Sendo assim, fica explícito que a inserção dessas discussões nas DCN dos cursos de graduação em saúde é necessária para superação desta lacuna e corroboram a saída apontada em relatórios da Conferência Nacional de Saúde e Conferência Nacional de Saúde Mental, que passa pela formação/capacitação continuada dos profissionais (Duarte, 2014DUARTE, M. J. de O. Diversidade sexual, políticas públicas e direitos humanos: saúde e cidadania LGBT em cena. Temporalis, v. 14, n. 27, p. 77-98, 2014. DOI: 10.22422/2238-1856.2014v14n27p77-98. Acesso em: 10 maio 2023.
https://doi.org/10.22422/2238-1856.2014v... ). Enquanto se caminha a passos lentos para melhoria da formação em saúde, módulos EaD da PNSILGBT são ofertados no Sistema Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS), numa tentativa de mitigar os problemas vigentes (Sena; Souto, 2017).
Atenção à Saúde da População LGBT
Nesta categoria, discutiu-se a Atenção à Saúde da População LGBT a partir de três subcategorias.
A legitimação do cuidado a partir da instituição das políticas públicas
A criação de políticas públicas para grupos específicos gera grandes debates, a princípio por ir na contramão da universalidade preconizada pelo SUS. Entretanto, é uma medida necessária, como apontado por Lionço (2008LIONÇO, T. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde e Sociedade, v. 17, n. 2, p. 11-21, abr. 2008., p. 12): “a focalização de ações e políticas específicas é um recurso necessário, muitas vezes, para a própria efetivação da universalidade, mediante promoção da equidade entre grupos em situação desigual”.
Quando aqui se discute como a orientação sexual e a identidade de gênero podem ser determinantes para o processo de saúde, entendendo saúde como um conjunto de fatores biopsicossociais, está se considerando a saúde não apenas como uma prática terapêutica individual e curativa e sim, consideramos essa política como algo coletivo, que deve ser fortalecer no campo da prevenção, educação, e de mudanças de atitudes, o que deixa por vezes de ser considerado pelo próprio desmonte das políticas sociais que atualmente vivemos (Lima; Souza; Dantas, 2016LIMA, M. D. A.; SOUZA, A. da S.; DANTAS, M. F. Os desafios à garantia de direitos da população LGBT no Sistema Único de Saúde. Revista Interfaces: Saúde, Humanas e Tecnologia, v. 3, n. 11, 2016. DOI: 10.16891/315. Acesso em: 7 maio 2023.
https://doi.org/10.16891/315... , p. 121).
Nesse sentido, os entrevistados apontam a necessidade do cuidado específico para a saúde LGBT, como visto na fala de P2, justificada nos próprios princípios do SUS. Diante dos marcadores de identidade de gênero e sexualidade como determinantes sociais da saúde, entende-se a importância de ações e serviços voltados a este público específico que tem suas vidas marcadas por processos de discriminação e preconceito com relação direta com sua condição de saúde, juntamente com outras vulnerabilidades que acometem os LGBT (Duarte, 2014DUARTE, M. J. de O. Diversidade sexual, políticas públicas e direitos humanos: saúde e cidadania LGBT em cena. Temporalis, v. 14, n. 27, p. 77-98, 2014. DOI: 10.22422/2238-1856.2014v14n27p77-98. Acesso em: 10 maio 2023.
https://doi.org/10.22422/2238-1856.2014v... ).
Considerando que a população LGBT sofre um processo de discriminação e preconceito, principalmente no acesso aos serviços de saúde, na atenção primária, que seria a porta de entrada principal dessa população e de outras populações para a rede de atenção à saúde no SUS, se trata de uma estratégia, que tem sido pensada para garantir o acesso, desse público ao serviço de saúde, mas também atuado como um ponto de convergência para que essa população comece a adentrar outros pontos da rede de atenção à saúde. (P2)
Esse cuidado avançou fruto da luta política dos movimentos sociais, como por meio do Brasil sem Homofobia (2004), da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (2006), do Processo Transexualizador (2008), e possuindo como marco a instituição da PNSILGBT em 2011, Portaria nº 2.836 (Duarte, 2014DUARTE, M. J. de O. Diversidade sexual, políticas públicas e direitos humanos: saúde e cidadania LGBT em cena. Temporalis, v. 14, n. 27, p. 77-98, 2014. DOI: 10.22422/2238-1856.2014v14n27p77-98. Acesso em: 10 maio 2023.
https://doi.org/10.22422/2238-1856.2014v... ).
No governo anterior, mais progressista, o governo Lula e Dilma, a gente teve, antes mesmo do lançamento da política LGBT, a gente teve o lançamento da portaria que garante o nome social para a população trans e travesti no SUS, na confecção do cartão SUS, posteriormente a gente teve a publicação em portaria da política, tivemos também o Programa Brasil Sem Homofobia, né, a portaria do processo transexualizador no SUS. (P2)
Em 2015, foi aprovada a Política Estadual de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, indo de acordo com as diretrizes da PNSILGBT na responsabilização conjunta dos três entes federativos para a garantia de sua implementação. Isso pode ser visto na fala de P2 e P9.
Estadual, né, a gente teve o lançamento da Política Estadual de Saúde LGBT em 2015, também fruto do controle social pernambucano, com a aprovação do conselho estadual de saúde. Foi o primeiro estado do Brasil, a publicar em portaria, lei, uma política estadualizada para a população LGBT, essa política estadual segue as mesmas estratégias da política nacional, atuando sobre três eixos, educação, vigilância e atenção à saúde. (P2)
Aqui no estado de Pernambuco, a gente além das iniciativas já clássicas, a gente tem uma Política Estadual de Saúde da População LGBT, então acho que isso é bem significativo do compromisso estadual de cuidado e de buscar ampliar tanto os serviços quanto a própria lógica de cuidado, capilarizando em todos os equipamentos de saúde. (P9)
A instituição dessas políticas legitima as demandas da população LGBT, bem como documenta as especificidades desse grupo, seguindo o pressuposto da equidade do cuidado. A partir do Plano Operativo da PNSILGBT, destacam-se quatro eixos estratégicos: acesso; promoção e vigilância; educação permanente e educação popular; e monitoramento e avaliação (Brasil, 2011). A fala de P9 salienta a importância da Política:
É bastante significativa, tem elementos que são bastantes caros para o cuidado da população LGBT, principalmente o princípio da integralidade, em que a gente acaba relembrando, retomando os princípios do próprio SUS e não circunscrevendo esse cuidado apenas a transformações biomédicas né, então essa, inclusive um ponto bastante importante, eu acho no cuidado, da gente lembrar a integralidade do cuidado e não apenas dirigida a especificidades da transformação, eu particularmente que lido com a população T. (P9)
A partir das orientações publicadas, o trabalho para sua implementação e efetivação acontece ainda de maneira incipiente, mas com ações que apontam no sentido de ampliação do cuidado, apesar das fragilidades e dos problemas encontrados.
Entre as principais ações do estado de Pernambuco para garantia do cuidado à população LGBT, destacam-se os espaços específicos para o acolhimento em saúde, sendo possível identificar esses elementos nos discursos de P2 e P7.
Para poder promover prevenção, promover a saúde de fato, poder mostrar para essas pessoas, que todas elas, a saúde é enxergada integralmente, através dos princípios que consolidam o SUS e não por suas características. (P7)
Então acaba sendo um serviço que garante o acesso e acolhimento da população LGBT nos municípios, pensando a equidade em saúde. (P2)
Os espaços de cuidado, espalhados pelos municípios na forma de ambulatórios, representam uma estratégia para garantir o acesso dos usuários aos serviços de saúde do SUS, uma vez que o estigma e o preconceito afastam ainda mais os usuários (Silva ., 2020SILVA, J. M. N.; PAULINO, D. B.; RAIMONDI, G. A. Gênero e Sexualidade na Graduação em Saúde Coletiva do Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 6, p. 2335-2346, jun. 2020. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020256.25822018.
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320202... ).
Um lugar de segurança e de primeiro acesso da maioria dessa população que chega para a gente, então isso é estratégico, ou seja, o ponto de vista que a gente pensa uma política que tá pensando equidade, então a gente oferta um serviço específico sim, para que essas pessoas possam utilizar o sus pela primeira vez na vida muitas vezes. (P3)
Uma forma de direitos em geral, de acesso, de equidade, da forma integral que a população LGBT merece, tendo em vista o acolhimento da população LGBT, que a gente sabe que, infelizmente, muitas pessoas não têm o acesso, e não é por não ter o acesso, é por não ter o acolhimento de qualidade no serviço de saúde, então acaba se afastando, acaba não frequentando e assim tendo sua saúde, que é direito, não exercida. (P6)
Vale destacar que as pessoas com identidade de gênero transexuais e travestis acabam sendo as que mais encontram dificuldades no acesso direto a serviços de saúde, uma vez que historicamente são vistas pela sociedade cis-heteronormativa como experiências sem humanidade, “inaptas” para serem respeitadas como sujeitos (Veras; Andreu, 2015VERAS, E. F.; ANDREU, O. G. A invenção do estigma travesti no Brasil (1970-1980). História, histórias, v. 3, n. 5, p. 39-52, 2015. DOI: 10.26512/hh.v3i5.10829. Acesso em: 25 maio 2023.
https://doi.org/10.26512/hh.v3i5.10829... ).
Apesar da sua importância na garantia do acesso aos serviços, os gestores apontaram que os serviços específicos não devem ser o único meio para esta população adentrar os serviços de saúde, reforçando a ideia da Atenção Básica como ordenadora do cuidado.
A gente tem que reforçar a importância da atenção primária enquanto coordenadora desse cuidado e os ambulatórios acabar servindo também como um ponto para referenciar e fazer a vinculação de usuários que são dos territórios cobertos pela estratégia de saúde da família. (P2)
A fala de P2 representa o cenário ideal de funcionamento da atenção à saúde da população, com os ambulatórios servindo de referência para o cuidado e a atenção básica por meio da Estratégia de Saúde da Família, porta de entrada e responsável pelo acolhimento de forma humanizada dos usuários (Lima, 2019LIMA, T. N. B. et al. Atenção à Saúde da População LGBT numa capital nordestina. Revista Eletrônica Acervo Saúde, n. 34, p. e1410, 23 out. 2019. Disponível em: <acervomais.com.br>
acervomais.com.br... ).
A construção e o fortalecimento de uma rede de cuidados à população LGBT que garanta o acesso e a integralidade do cuidado, desde a atenção primária até os serviços de alta complexidade, é fundamental para incentivar a cultura de cuidado em saúde à população LGBT (Lima; Souza; Dantas, 2016LIMA, M. D. A.; SOUZA, A. da S.; DANTAS, M. F. Os desafios à garantia de direitos da população LGBT no Sistema Único de Saúde. Revista Interfaces: Saúde, Humanas e Tecnologia, v. 3, n. 11, 2016. DOI: 10.16891/315. Acesso em: 7 maio 2023.
https://doi.org/10.16891/315... ).
Gomes (2018GOMES, S. M. et al. O SUS fora do armário: concepções de gestores municipais de saúde sobre a população LGBT. Saúde e Sociedade, v. 27, n. 4, p. 1120-1133, out. 2018.) aponta duas estratégias identificadas para a ampliação do acesso e da legitimação do cuidado, são elas: o apoio da participação social de movimentos LGBT nos Conselhos de Saúde, Conferências de Saúde e demais espaços deliberativos de participação social; e o fomento para a criação de grupos LGBT nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), com a intenção de diminuir as desigualdades e garantir o acesso aos serviços.
O preconceito como barreira: os desafios encontrados na prestação dos serviços
Apesar dos avanços conquistados pela luta dos movimentos, marcada pela institucionalização de políticas públicas que visam ao combate ao preconceito e à discriminação como alicerce para a garantia de acesso aos serviços de saúde, ainda se encontram inúmeros desafios nesse percurso.
O primeiro e mais latente problema identificado pelos gestores, como visto na fala de P4, é o próprio preconceito contra as dissidências de gênero, que não usufruem do reconhecimento recíproco na sociedade, implicando em desigualdades sociais que geram desigualdades em saúde (Carvalho; Menezes, 2021CARVALHO, M. F. L.; MENEZES, M. S. Violência e saúde na vida de pessoas LGBTI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.).
Esse espaço aqui é uma resistência diária, porque, não só nesse município, vivemos em uma sociedade que não enxerga a população LGBT, se a gente for partir por cunho religioso, que isso aguça mais, não a negação desses direitos e desse espaço. (P4)
A maior dificuldade que a gente enfrenta é, infelizmente, o preconceito. Eu queria ter outra fala para poder expor, mas infelizmente a gente ainda se depara com preconceito, com acolhimento sem qualidade. (P6)
O preconceito é alimentado por discursos de ódio, muitas vezes respaldado em um fundamentalismo religioso que prega um conteúdo moralista e higiênico, enquadrando a população LGBT como "pecaminosa” (Duarte, 2014DUARTE, M. J. de O. Diversidade sexual, políticas públicas e direitos humanos: saúde e cidadania LGBT em cena. Temporalis, v. 14, n. 27, p. 77-98, 2014. DOI: 10.22422/2238-1856.2014v14n27p77-98. Acesso em: 10 maio 2023.
https://doi.org/10.22422/2238-1856.2014v... ). Isto aparece claramente no depoimento abaixo:
Então, o maior problema, a maior dificuldade que a gente encontra ainda é ter que lidar com pessoas que utilizam da fé para resguardar um preconceito, uma ignorância, que infelizmente se sentem validada por esse governo que valida mesmo o preconceito e a discriminação, então acho que a maior dificuldade no geral é essa mesmo. (P6)
Os discursos de invalidação acabam por refletir no interesse dos governos no investimento e na qualificação dos equipamentos de saúde para a população LGBT, a falta de profissionais e o subfinanciamento dos serviços são barreiras na prestação dos serviços LGBT, como apontam as falas de P3 e P9, corroborando o estudo de Lima, Souza e Dantas (2016LIMA, M. D. A.; SOUZA, A. da S.; DANTAS, M. F. Os desafios à garantia de direitos da população LGBT no Sistema Único de Saúde. Revista Interfaces: Saúde, Humanas e Tecnologia, v. 3, n. 11, 2016. DOI: 10.16891/315. Acesso em: 7 maio 2023.
https://doi.org/10.16891/315... ), que levantaram os principais problemas na garantia de direitos a esta população no SUS.
A dificuldade no desfinanciamento, o próprio sistema de saúde, como um todo, então a gente vai tendo cada vez menos dinheiro para dar conta de todas as demandas e acaba ficando que, como não há uma legitimidade. (P9)
Destinar verba para execução da política por exemplo, seja ela para fazer campanha, junto às redes de saúde, ou com a população do município em si, então é uma política que existe na força e na fé, digamos assim, porque não existe um direcionamento de recurso para que a gente possa estar trabalhando, para que a gente possa estar incrementando algumas coisas, para que a gente possa estar dando visibilidade a própria política e consequentemente a população que vai ser atendida por ela. (P3)
O preconceito se apresenta como um dos desafios a serem combatidos e permeia vários campos da atenção à saúde para esta população, como colocam os entrevistados ao abordarem a questão do desrespeito pelo uso do nome social em alguns serviços, problema este que é apontado por Rocon . (2016ROCON, P. C. et al. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 8, p. 2517-2526, ago. 2016.) como um dos principais entraves para o cumprimento dos princípios doutrinários do SUS, juntamente com a transfobia. Vale destacar que a Carta dos Direitos do Usuário da Saúde (2009) garante o uso do nome social por transexuais e travestis, porém ainda é apontada pelos entrevistados com uma barreira a ser enfrentada.
É uma das coisas que a gente mais enfatiza lá é isso, nome social precisa ser respeitado, ninguém está fazendo favor para ninguém não, é um direito. (P6)
Então é uma grande dificuldade que a gente encontra, entre os técnicos inclusive. Então legitimar o nome social, legitimar o uso dos pronomes e das formas de referência ao gênero que a pessoa se identifica, ainda é uma grande dificuldade. (P9)
O desrespeito ao uso do nome social também é institucionalizado quando o Sistema de Cadastro de Usuários do SUS (CADSUS) possui uma área para inserção do nome social com seu preenchimento suspenso, sem nenhuma justificativa ou informação sobre.
[...] a política de saúde LGBT ela traz a garantia, através da portaria do nome social e dentro do CADSUS, a gente ganhou esse direito da possibilidade de ter um espaço lá, para incluir o nome social e diante de todos os ícones que tem dentro do CADSUS, todos estão funcionando e desde novembro do ano passado a gente está sem ícone do nome social funcionando, então é um exemplo mínimo que a gente já encaminhou para o estado, o estado já encaminhou para o Ministério da Saúde e o que o estado diz para a gente até hoje é que não recebeu nenhum retorno do Ministério da Saúde, então assim é uma política de desmonte, muitas vezes enxergada pela falta de sensibilidade do gestor, do poder executivo a nível nacional. (P7)
Esse fato vai de acordo com a afirmação de Melo . (2020MELO, I. R. et al. O direito à saúde da população LGBT: desafios contemporâneos no contexto do sistema único de saúde. Rev. Psicol. Saúde, Campo Grande, v. 12, n. 3, p. 63-78, set. 2020. Acesso em: 10 maio 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.vi.1047.
http://dx.doi.org/10.20435/pssa.vi.1047... ) de que a invisibilização impede e fragiliza a discussão sobre diversidade sexual, fruto de uma agenda conservadora, que atingiu o seu auge em 2019.
Os desafios aqui postos estão intrinsecamente relacionados à maneira como foi pensada a política de saúde no país, que apesar do aparato técnico para a garantia da equidade do acesso, isonomia e respeito à diversidade, ainda falha no que se refere à garantia de qualidade (Lima; Souza; Dantas, 2016LIMA, M. D. A.; SOUZA, A. da S.; DANTAS, M. F. Os desafios à garantia de direitos da população LGBT no Sistema Único de Saúde. Revista Interfaces: Saúde, Humanas e Tecnologia, v. 3, n. 11, 2016. DOI: 10.16891/315. Acesso em: 7 maio 2023.
https://doi.org/10.16891/315... ).
Na garantia dos direitos e do reconhecimento das demandas de saúde LGBT é necessária uma reafirmação do que já foi conquistado, no sentido de tentar efetivá-las, rompendo com o preconceito e a discriminação. Para tanto, é preciso agir a partir de um modelo educativo que caminhe no sentido de desconstrução dos ideais conservadores que marginalizam a população LGBT, tirando a sua condição de ser humano e os colocando em situação de vulnerabilidade que causam iniquidades em saúde como a violência e muitas vezes a morte (Lima; Souza; Dantas, 2016LIMA, M. D. A.; SOUZA, A. da S.; DANTAS, M. F. Os desafios à garantia de direitos da população LGBT no Sistema Único de Saúde. Revista Interfaces: Saúde, Humanas e Tecnologia, v. 3, n. 11, 2016. DOI: 10.16891/315. Acesso em: 7 maio 2023.
https://doi.org/10.16891/315... ).
Educação Permanente em Saúde como saída
O preconceito é apontado como um dos principais problemas na prestação do cuidado à saúde da população LGBT. Para ser enfrentado, são necessárias mudanças de ordem cultural e social, promovendo a redução dos efeitos negativos, que essa população sofre dentro dos serviços públicos de saúde (Paranhos; Willerding; Lapolli, 2021PARANHOS, W. R.; WILLERDING, I. A. V.; LAPOLLI, É. M. Formação dos profissionais de saúde para o atendimento de LGBTQI+. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 25, p. e200684, 2021.).
A Educação Permanente em Saúde (EPS) pode ser uma ferramenta eficaz para minimizar esses problemas, pois tais efeitos geram iniquidades em saúde que interferem negativamente na atenção integral à saúde. Segundo a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (Brasil, 2013, p. 13), a EPS é “uma estratégia político-pedagógica que toma como objeto os problemas e necessidades emanadas do processo de trabalho em saúde e incorpora o ensino, a atenção à saúde, a gestão do sistema e a participação e controle social no cotidiano do trabalho com vistas à produção de mudanças neste contexto.”
A capacitação profissional a partir da educação permanente deve ser pautada na humanização, de maneira a se distanciar da lógica biologicista que reproduz os estigmas. Paranhos, Willerding e Lapolli (2021PARANHOS, W. R.; WILLERDING, I. A. V.; LAPOLLI, É. M. Formação dos profissionais de saúde para o atendimento de LGBTQI+. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 25, p. e200684, 2021.) colocam a necessidade de formação e capacitações permanentes para todos os profissionais, incluindo aqueles que se consideram LGBT.
Quando o preconceito é reproduzido na instituição de saúde que deveria ofertar o cuidado, há claramente uma violação de direitos para uma população que já chega nos serviços com outros direitos básicos violados, como no depoimento abaixo.
A gente teve a dificuldade de alguns setores do hospital, que ainda quando iam fazer ultrassom, ou fazer algum exame de imagem, ou fazer alguma coisa de laboratório: -Há mais você é um menino, você tá fazendo esse exame por quê? Então, assim, no começo isso foi difícil. (P1)
Desse processo de reconhecimento do preconceito como problema emanado do processo de trabalho, surge a necessidade da educação permanente dos profissionais de saúde, especialmente os que trabalham em serviços específicos para a população LGBT. Para que isto seja efetivado, de acordo com os princípios do SUS, é de extrema importância que haja a articulação e o intercâmbio entre os profissionais da assistência, da gestão e o controle social, no planejamento, na execução, no monitoramento e na avaliação das ações e serviços de saúde ofertados para essa população. Promove-se, assim, um espaço humanizado e acolhedor que propicia a efetivação do cuidado à saúde integral.
Os trechos citados abaixo corroboram que essa estratégia é eficaz para o enfrentamento do preconceito e seus rebatimentos no acesso à saúde:
E essa expansão da nossa educação permanente, falando sobre saúde LGBT, sobre direitos, sobre acesso, sobre, enfim, acolhimento e todo esse processo junto, para que a gente possa cada vez mais proporcionar espaços que a população seja acolhida. (P3)
Quando a gente começou tendo essas abordagens, esse ponto negativo, a gente capacitou, então a gente se reuniu, eu, o serviço social e psicologia, nós fizemos um grande trabalho, a gente capacitou todo mundo do Hospital. (P1)
Para Paulino, Rasera e Teixeira (2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. do B. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 23, p. e180279, 2019., p. 12), o desafio da equipe de saúde vai além da superação do preconceito e discriminações e passa
[...] antes de qualquer coisa, o seu reconhecimento como humano, sujeito de direitos, com demandas específicas e necessidade de serviços de saúde que só ele pode dizer, mas que só dirá, se for acolhido no serviço de saúde.
O preconceito e a discriminação relacionados às dissidências de gênero sempre existiram, e ainda que a educação permanente seja um caminho para minimizar o problema na atenção à saúde, existem lacunas que só serão preenchidas a partir da problematização do processo de trabalho, de forma contínua.
Considerações finais
A partir do exposto, foi possível caracterizar o perfil formativo dos gestores em saúde. Especialmente no que diz respeito às suas formações profissionais, verificou-se a ausência das discussões de identidade de gênero e sexualidade nos perfis curriculares dos cursos de graduação, gerando impactos na atuação profissional e, consequentemente, no acolhimento da população LGBT nos serviços.
A instituição da PNSILGBT representa um marco na legitimidade do cuidado à saúde da população LGBT. Apesar disso, a luta por sua efetivação perpassa a superação do preconceito, da discriminação e das barreiras impostas na concretização dos princípios e diretrizes da política que, concomitantemente, geram adoecimentos e afastam essa população dos serviços de saúde. Nesse sentido, a EPS surge como estratégia para minimização dos problemas apontados.
Com o presente trabalho, pretende-se fomentar a produção científica voltada para as questões de saúde da população LGBT, contribuindo para refletir sobre o acesso à saúde dessas pessoas e os impactos do preconceito e da discriminação, apontando a EPS como uma estratégia possível diante do cenário de retrocessos e avanço do conservadorismo na sociedade.
Uma vez que o próprio estudo não consegue esgotar todas as discussões relacionadas ao processo de saúde que envolvem essa população, novas pesquisas são necessárias, para aprofundar a avaliação da PNSILGBT nos estados e nos municípios, de modo a direcionar a garantia do acesso à atenção integral à saúde da população LGBT.
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- 1O presente trabalho faz parte de um projeto de pesquisa financiado pela FACEPE sob o edital PPSUS PE 2020 Processo n°: APQ 0357 4.06/20, intitulado “População LGBTQ+ e os desafios na construção de uma saúde integral”.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
29 Nov 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
10 Jul 2023 - Revisado
13 Mar 2024 - Aceito
10 Abr 2024