Resumo
O suicídio é um fenômeno mundial que constitui um grave problema de saúde pública, observado em todas as culturas, gêneros e camadas sociais. Nesse sentido, a Atenção Primária à Saúde assume papel fundamental na abordagem, tratamento e prevenção dos casos de ideação ou tentativas, tendo em vista o acolhimento, vínculo e responsabilização pelo cuidado das pessoas no território. Objetivou-se analisar estratégias de prevenção ao suicídio que são realizadas na Atenção Primária à Saúde de um município do Rio Grande do Norte. Trata-se de estudo descritivo, exploratório e com abordagem qualitativa. A coleta de informações foi composta por observação direta não participante nos equipamentos sociais da Rede de Atenção Psicossocial e por aplicação de entrevistas semiestruturadas com médicos e enfermeiros atuantes na atenção primária do município. As informações coletadas foram transcritas e submetidas ao processo de análise temática. Os resultados expõem que a demanda de saúde mental é atravessada por questões relativas à alta demanda, carência e despreparo dos profissionais, bem como pela desarticulação da rede. Portanto, evidenciou-se a necessidade de qualificação dos profissionais e de diálogo entre os serviços que compõem a rede para a elaboração de estratégias efetivas de prevenção ao suicídio na Atenção Primária à Saúde.
Palavras-chave:
Suicídio; Prevenção ao suicídio; Atenção Primária à Saúde
Abstract
Suicide is a worldwide phenomenon that constitutes a serious public health problem, observed in all cultures, genders, and social strata. In this sense, Primary Healthcare assumes a fundamental role in the approach, treatment, and prevention of cases of ideation or attempts, intending to welcome, bond and take responsibility for the care of people in the territory. It aimed to analyze the attention to people with ideation and suicide attempts in Primary Care in a city of the state of Rio Grande do Norte. This is a descriptive, exploratory study with a qualitative approach. Data collection consisted of non-participant direct observation in the social equipment of the Psychosocial Care Network and the application of semi-structured interviews with doctors and nurses working in Primary Care in the municipality. The collected information was transcribed and submitted to the thematic analysis process. The results show that the demand for mental health is crossed by issues related to the high demand, lack, and unpreparedness of professionals, as well as the disarticulation of the network. Therefore, the need for the qualification of professionals and dialogue between the services that make up the network for the elaboration of effective suicide prevention strategies in Primary Healthcare was evidenced.
Keywords:
Suicide; Suicide prevention; Mental health; Primary healthcare
Introdução
O suicídio é considerado um fenômeno complexo e multidimensional que considera a interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, políticos e culturais. O ato intencional de matar a si mesmo é um grave problema de saúde pública, com impactos nas esferas interpessoais, familiares, econômicas e sociais (Ribeiro, 2018RIBEIRO, J. F. et al. Perfil sociodemográfico da mortalidade por suicídio. Revista de Enfermagem da UFPE, v. 12, n. 1, p. 44-50, 2018.; Ferracioli, 2019FERRACIOLI, N. G. M. et al. Os bastidores psíquicos do suicídio: uma compreensão psicanalítica. Revista do NESME, v. 16, n. 1, p. 17-29, 2019.).
Dentre os principais fatores de risco relacionados ao comportamento suicida, podem-se destacar a presença de transtornos mentais, o abuso de álcool e outras drogas e a ausência de rede de apoio. Além disso, aspectos como história familiar de suicídio, história pessoal de tentativa de suicídio, menção repetida de morte, doença crônica limitante ou dolorosa e perdas importantes que impactam o bem-estar emocional também vulnerabilizam o sujeito em sofrimento psicológico (Santos, 2016SANTOS, W. S. dos et al. A influência de fatores de risco e proteção frente à ideação suicida. Redalyc, Lisboa, v. 17, n. 3, p. 515-526, mar. 2016.).
Neste sentido, outro estudo, que analisou a prevalência e fatores associados ao comportamento suicida em jovens do ensino médio, concluiu que os índices de ideação suicida estiveram associados a fatores familiares, tais como: histórico de violência, membros da família com transtorno mental ou que já tentou ou cometeu suicídio. E ainda, fatores individuais foram relacionados: vergonha da aparência física, rejeição de família e amigos devido a orientação sexual, sintomas de depressão e insatisfação com a própria vida (Leite, 2019LEITE, T. I. de A. Prevalência e fatores associados ao comportamento suicida em jovens do ensino médio na região do Seridó potiguar. 2019. 84 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Saúde e Sociedade, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, 2019.).
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 800 mil pessoas morrem por suicídio anualmente e, a cada adulto que se suicida, pelo menos outros 20 atentam contra a própria vida (WHO, 2017). De acordo com o Ministério da Saúde, entre 2010 e 2019, ocorreram no Brasil 112.230 mortes por suicídio, sendo considerado um aumento de 43% no número anual de mortes (Brasil, 2021). Esses indicadores reforçam a gravidade do problema e a importância da criação de políticas públicas que contribuam para a prevenção ao suicídio.
Para cuidar da saúde mental e, de fato, prevenir o suicídio, é necessário pensar estratégias individuais e coletivas, tratamento adequado, promoção de saúde, cuidado e campanhas de conscientização (Brasil, 2020). Ressalta-se a importância de falar sobre suicídio de forma responsável, o que se apresenta como fator de proteção e promoção de saúde da população, apesar do estigma e preconceito em relação ao tema. Dessa forma, a conduta profissional com uma intervenção direcionada e especializada pode prevenir que pessoas em situação de risco de suicídio venham a cometer o ato (Brasil, 2017).
Nesse contexto, é fundamental investir em estratégias de prevenção ao suicídio na Atenção Primária à Saúde (APS), como uma via possível para construção de intervenções que busquem promover saúde mental e qualidade de vida. Em um sistema de hierarquização da saúde, a APS deve ser capaz de identificar, avaliar, manejar e encaminhar os casos que envolvem situações de suicídio, uma vez que as equipes de saúde que atuam no âmbito da atenção primária possuem grande potencial para a construção de estratégias e ações, as quais favorecem a identificação e intervenção antecipada em situações de risco de suicídio (Silva, 2018SILVA, N. K. N. da et al. Ações do enfermeiro na atenção básica para prevenção do suicídio. Smad Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, v. 13, n. 2, p. 71-77, 24 ago. 2018. http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v13i2p71-77.
http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-697... ).
No entanto, de acordo com Ferreira (2018FERREIRA, M. L. Comportamento suicida e Atenção Primária à Saúde: uma revisão integrativa da literatura. Enferm. Foco, Santa Catarina, v. 4, n. 9, p. 50-54, jun. 2018.), os profissionais que atuam na APS demonstram despreparo para exercerem ações de prevenção ao suicídio, devido à falta de capacitação profissional, falta de tempo pela sobrecarga de trabalho, ausência de rede apoio e de programas, políticas e ações locais de prevenção. Desta forma, torna-se primordial estudar o fenômeno do suicídio, cuja relevância social se pauta no compromisso de contribuir para elaboração de ações e ferramentas que permitam o enfrentamento do problema e sua prevenção na atenção primária.
Diante dessa problemática, esta pesquisa buscou fomentar a reflexão sobre a atenção às pessoas com ideação e tentativa de suicídio no contexto da APS. Portanto, pretende-se fornecer informações e auxiliar os profissionais que atuam nesse nível de atenção, considerando os aspectos pesquisados neste estudo, a partir do objetivo de analisar estratégias de prevenção ao suicídio realizadas na atenção primária em um município do Rio Grande do Norte.
Material e Métodos
Este artigo é fruto de trabalho de conclusão de Residência Multiprofissional e se caracteriza por ser uma pesquisa qualitativa, do tipo descritiva e exploratória. Esse tipo de abordagem metodológica permitiu a utilização de ambiente por parte da pesquisadora não apenas para obtenção de informações, mas também para possibilitar uma análise de dados baseada no método indutivo ao longo da investigação. Dessa forma, os dados coletados apresentaram-se em: situações, acontecimentos, transcrições de entrevistas, evidenciando o ponto de vista dos participantes referente aos aspectos abordados pelo estudo (Santana; Lemos, 2018SANTANA, W. P.; LEMOS, G. C. Metodologia científica: a pesquisa qualitativa nas visões de Lüdke e André. Revista Eletrônica Científica Ensino Interdisciplinar. Mossoró, v. 4, n. 12, nov. 2018.).
Para subsidiar a pesquisa, os dados foram coletados por meio de observação direta não participante e de entrevista semiestruturada. A observação direta não participante ocorreu nos equipamentos que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no município investigado, em seus variados níveis de complexidade, tais como: Unidades Básicas de Saúde (UBS); Centro de Atenção Psicossocial (CAPS); Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU); e unidades hospitalares de atenção à urgência. Já as entrevistas semiestruturadas foram realizadas entre setembro e novembro de 2022, com profissionais de nível superior que compõem as equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF) e realizam consultas e encaminhamentos na atenção primária, sendo eles médicos e enfermeiros. O cenário para a seleção dos sujeitos da pesquisa foram as Unidades Básicas de Saúde (UBS) do município, dentre as quais foram elencadas aquelas situadas nos bairros que registraram os maiores números de caso de ideação e tentativa de suicídio no ano de 2021. Esses índices foram identificados através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN).
O arrolamento dos participantes da pesquisa ocorreu por amostragem intencional, obedecendo aos seguintes critérios de inclusão: estar em serviço há pelo menos seis meses; não estar em licença de trabalho; ser enfermeiro, atuante na APS; ou, ser médico, atuante na APS. Por outro lado, os critérios de exclusão foram: recusar-se a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ou a gravar a entrevista.
Além disso, a composição da amostra também contou com o método de saturação. A ferramenta consiste em suspender o processo de coleta de dados quando atinge certa repetição e redundância nas informações obtidas, não trazendo mais contribuições significativas de conteúdo, na avaliação da pesquisadora (Fontanella, 2008FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 17-27, 2008.).
As entrevistas apresentavam questionamentos sobre o fluxo de acolhimento e atendimento das pessoas com ideação e tentativa de suicídio na APS; as estratégias utilizadas para garantir a atenção e o cuidado diante desses casos; a existência de matriciamento e ações intersetoriais; a avaliação da atuação da APS em relação aos casos de suicídio; e, a percepção dos profissionais no que se refere às ações de prevenção ao comportamento suicida na APS. A fim de garantir segurança e privacidade aos sujeitos da pesquisa, as entrevistas foram realizadas individualmente em espaço reservado. O registro das respostas foi feito por meio de gravador de voz de equipamento telefônico próprio (celular), após o esclarecimento da pesquisa e consentimento do participante.
Os dados das entrevistas foram transcritos e analisados através do método da análise temática. Essa metodologia ofereceu a possibilidade de proporcionar uma descrição detalhada e diferenciada acerca de um tema específico ou conjunto de temas, dentro da análise dos dados. A análise temática envolve a busca baseada em um conjunto de dados, proveniente de entrevistas, grupos focais ou de uma série de textos, com o intuito de encontrar padrões repetidos de significado (Rosa; Mackedanz, 2021).
De modo a assegurar a confidencialidade dos participantes, as informações coletadas foram arquivadas em computador próprio por período mínimo de cinco anos, sob a responsabilidade da pesquisadora principal. Além disso, para garantir o anonimato dos sujeitos da pesquisa, seus depoimentos são citados através da letra “P” seguida de um numeral durante a divulgação dos resultados e discussões.
A pesquisa foi realizada após apreciação ética do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), sendo registrada com CAAE n° 60244422.0.0000.5568, atendendo às disposições da Resolução n. 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta a realização de pesquisas com seres humanos no Brasil nas áreas das ciências sociais e humanas.
Resultado e Discussão
Participaram do presente estudo 12 profissionais, sendo 7 mulheres e 5 homens. Todos com formação em nível superior, sendo: 6 médicos e 6 enfermeiros, com idade entre 26 e 73 anos. Com relação ao tempo de atuação no serviço, os participantes relataram o período entre 6 meses e 8 anos.
Anterior à análise dos dados da pesquisa, foi realizada uma leitura flutuante para a categorização das informações obtidas nas entrevistas semiestruturadas. Posteriormente, os discursos dos sujeitos foram selecionados por cores de acordo com a repetição e elucidação dos núcleos de significados, possibilitando uma descrição detalhada acerca dos conjuntos de temas identificados no estudo. Como resultado desse processo, foram selecionadas três categorias: 1- Atuação das equipes de saúde da família frente ao suicídio; 2- Trabalho multiprofissional e suicídio; e, 3- acolhimento e atendimento das pessoas com comportamento suicida.
Atuação das equipes de Saúde da Família frente ao suicídio
O estigma do suicídio é considerado um dos maiores problemas quando se trata de prevenção. A APS tem como diretrizes, dentre outros, a territorialização, a adscrição de cliente e coordenação do cuidado, o que permite maior proximidade e conhecimento do usuário e assim, maior potencial para realizar abordagens singulares e compreensão mais profunda sobre o problema. Competem às equipes de Saúde da Família a identificação dos casos; avaliação prévia de risco; manejo dos casos de baixo risco; encaminhamento para a rede de saúde mental, com a garantia de atendimento e contrarreferência; e, acompanhamento após encaminhamento (ABP, 2014).
Podemos perceber a conduta de encaminhamento para a especialidade médico-psiquiatra e psicólogo por parte dos profissionais atuantes na APS em relação aos casos de ideação e tentativa de suicídio, como descreve o discurso a seguir:
Eu posso dizer o que passa por aqui. Chega alguma pessoa com ideação suicida eu encaminho para dois profissionais, para o psiquiatra e para o psicólogo. Então, mesmo se for uma coisa muito gritante, a gente conversa com o paciente, medica e já encaminha medicado, porque eu não vou ficar responsável pela ideação suicida da pessoa. Se a pessoa se matar, se eu não souber conduzir o manejo direito [...]. Aí eu prefiro mandar pra quem tá mais habituado, psiquiatra e psicólogo. (P4)
Percebe-se, a partir desse depoimento, que o encaminhamento para serviço especializado é utilizado, na maioria das vezes, pelos profissionais da UBS como conduta imediata, sem que seja avaliada a situação clínica e vistas às possibilidades e estratégias para conduzir e manejar o caso na APS. Isso, entretanto, acaba gerando o encaminhamento de usuários pelos serviços da RAPS sem que seja garantida uma assistência efetiva, visto que a rede, por vezes, é engessada por rotinas hierarquizantes, superlotadas e sem capacidade operativa.
Estudo realizado em Recife, Pernambuco, observou que a regulação em saúde mental do município continua sendo centralizada no fluxo de marcação de consulta especializada, na qual a perspectiva que se sobrepõe é a da psiquiatria tradicional, em detrimento de uma perspectiva de rede que contemple, além da discussão sobre os fluxos e a oferta de consultas, o diálogo sistemático entre especialistas e generalistas e a coordenação do cuidado pela APS (Silva, 2021SILVA, A. P. et al. Os desafios da organização em rede na atenção psicossocial especializada: o caso do recife. Saúde em Debate, v. 45, n. 128, p. 66-80, mar. 2021. http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104202112805.
http://dx.doi.org/10.1590/0103-110420211... ).
Como evidenciado nos discursos dos participantes, existe uma lógica burocrática de encaminhamentos que costuma ser, muitas vezes, uma ferramenta de (des)responsabilização dos profissionais da atenção primária em relação aos usuários, sobretudo por não haver serviços especializados suficientes para atender à demanda do município. Por outro lado, é prevista pela Política Nacional de Atenção Básica a possibilidade de apoio matricial que consiste num arranjo organizacional em saúde, cuja proposta poderia contar com uma equipe que dispensasse apoio especializado à equipe da APS, proporcionando a construção de um projeto terapêutico singularizado e ampliado aos usuários (Quinderé, 2014QUINDERÉ, P. H. D.; JORGE, M. S. B.; FRANCO, T. B. Rede de Atenção Psicossocial: qual o lugar da saúde mental? Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 1, n. 24, p. 253-271, 13 mar. 2014.).
Outro aspecto enfatizado pelos sujeitos da pesquisa foi a prescrição de medicamentos como forma de tratamento para as pessoas com comportamento suicida, como demonstra o discurso a seguir:
É demanda livre. Geralmente, os agentes de saúde entram contato com as pessoas, conversa comigo e eu já peço pra marcar essa consulta direta comigo. Dependendo do que a pessoa relatar, eu já entro com a medicação e peço pra ela retornar com 30 dias, e daí eu fico fazendo um controle, um acompanhamento das pessoas, cada 30, 60 e, algumas vezes, eu peço ajuda do especialista, psicólogo ou psiquiatra, mas, ainda assim, eu mantenho o acompanhamento comigo. (P5)
De acordo com os depoimentos, podemos afirmar que a prescrição de medicamentos foi colocada como produção de cuidado permanente. Nesse sentido, observa-se que a atuação da APS permanece vinculada a um modelo de atenção à saúde marcado por uma lógica biomédica e manicomial, centrada na figura do médico e restrita à prescrição medicamentosa como forma de controlar sentimentos, emoções e comportamentos.
Segundo Pinto (2012PINTO, A. G. A. et al. Apoio matricial como dispositivo do cuidado em saúde mental na atenção primária: olhares múltiplos e dispositivos para resolubilidade. Ciência & Saúde Coletiva, v. 3, n. 17, p. 653-660, 2012.), é relevante no cotidiano da APS o número de situações que demostram o uso inadequado de medicação. Em casos de sintomas psíquicos, por vezes, o equilíbrio mental é buscado através do uso contínuo de medicamentos que requisitam uma administração controlada e supervisionada.
Nós não estamos no modelo, na prática ideal de combate ao suicídio, pelo fato de que esses pacientes ficam muito tempo com antipsicótico e não tem, não é atendida a demanda necessária. Então, os pacientes ficam com o antipsicótico ou o antidepressivo muito tempo, as vezes tomam a dose da medicação de forma errada e aí ele não tem acompanhamento periodicamente adequado. (P10)
Para dar conta desse fenômeno, evidencia-se a necessidade de repensar as práticas e o trabalho em saúde no âmbito da APS, promovendo ações inovadoras direcionadas à produção do cuidado integral, visando à autonomia do usuário e não apenas a eliminação dos sintomas, bem como potencializando a transformação de práticas hegemônicas em saúde e o desenvolvimento de outra conformação clínica (Molck, 2021MOLCK, B. V. et al. Psicotrópicos e Atenção Primária à Saúde: a subordinação da produção de cuidado à medicalização no contexto da saúde da família. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 25, p. 01-16, jan. 2021. http://dx.doi.org/10.1590/interface.200129.
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A APS propõe a continuidade do cuidado, de modo a assegurar um acompanhamento longitudinal da saúde dos usuários no território. Assim, os profissionais que atuam nesse nível de atenção possuem aspectos favoráveis, tais como o acolhimento, escuta qualificada, facilidade na construção de vínculo, identificação e avaliação dos casos, acompanhamento por meio de consultas e/ou visitas domiciliares.
Eu vou com muita frequência na casa da pessoa, fazer a visita dessa pessoa, ver como ela tá, se tá tomando a medicação, se estão cuidando da pessoa, se estão fazendo acompanhamento com especialista, se estão seguindo as orientações médicas, geralmente é assim. (P5)
Nesse sentido, os participantes da pesquisa pontuam características relacionadas à prática do cuidado na APS, no que diz respeito aos acompanhamentos dos casos de ideação e tentativa de suicídio. Constata-se que quando os profissionais julgam que os atendimentos e encaminhamentos não são o suficiente, é realizada a busca ativa desses usuários através de visitas domiciliares, como forma de proteção e prevenção de agravos.
Na minha percepção, eu acredito que se a gente tivesse uma busca ativa mais efetiva, garantisse que esses pacientes tão se tratando de forma adequada e tivessem um acompanhamento médico e multiprofissional de perto e tratasse de fato a depressão dele, seja farmacologicamente e medidas não farmacológicas, aumentasse o número de profissionais que pudessem atender essas áreas desses pacientes para não deixar eles jogados (...). Então, é um tipo de paciente que a gente precisa ficar mais de perto com ele, não iniciar remédio e deixar ele jogado. (P10)
Alguns atributos são estabelecidos na APS, a mencionar: primeiro contato, longitudinalidade, abrangência ou integralidade, coordenação, orientação para a comunidade, centralidade na família e competência cultural (Giovanella; Mendonça, 2012GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M. H. M. de. Atenção Primaria à Saúde. In: GIOVANELLA, L. et al. Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. p. 493-545.). Quando incorporados efetivamente, esses atributos contribuem consideravelmente para que as ações estejam orientadas aos problemas e necessidades de saúde dos usuários no território (Brasil, 2014; Giovanella; Mendonça, 2012).
O acompanhamento dos usuários com comportamento suicida na APS é realizado através de visitas domiciliares, busca ativa, consultas quinzenais, mensais ou a cada três meses, dependendo de cada caso. Entretanto, como mencionado nos discursos, os participantes relatam a necessidade de um acompanhamento mais efetivo, com equipe multiprofissional, por exemplo.
Outro aspecto relevante da pesquisa relatada pelos participantes, foi ausência de práticas de grupos e de campanhas de prevenção ao suicídio e de valorização da vida:
No momento eu acredito que não tem sido feito muita coisa, inclusive a gente acabou de sair do setembro amarelo e eu, esse ano, por incrível que pareça, eu não vi muita movimentação em todos os lugares, porque sempre falam muito. Não sei se foi a política que tirou o foco do setembro amarelo. (P7)
De acordo com os discursos dos sujeitos, a campanha nacional de saúde do Setembro Amarelo, que é caracterizada pela conscientização sobre a prevenção ao suicídio, enfrentou desafios diante de campanhas eleitorais que estavam acontecendo no referido mês, bem como diante das dificuldades vivenciadas durante a pandemia da Covid-19. A ausência de grupos, também mencionada pelos participantes, é algo marcante e que deveria existir com maior frequência, como estratégia para prevenção do suicídio no contexto da APS.
Os grupos se configuram como um importante espaço para socialização, convivência e aprendizagem. De acordo com Dias (2013DIAS, G. A. R.; LOPES, M. M. B. Educação e saúde no cotidiano de enfermeiras da atenção primária. Revista de Enfermagem da USM, v. 3, n. 3, p. 449-460, 27 dez. 2013. http://dx.doi.org/10.5902/217976927846.
http://dx.doi.org/10.5902/217976927846... ), as ações de educação em saúde podem ocorrer tanto no consultório e nos atendimentos individualizados, como no coletivo, em grupos e rodas de conversa. Essas práticas possibilitam uma assistência integral e um caráter transformador, pois tornam os usuários ativos no que se refere à saúde e autonomia.
Estimular rodas de conversa, rodas de prevenção e também seria interessante a gestão investir em propagandas de prevenção, tanto na televisão, como em rádio. Poderia tá colocando um psiquiatra para falar numa rádio ou mesmo na televisão, no canal do município e estimular as unidades de saúde, as rodas de conversa. Eu acho que isso já seria um grande avanço, evitaria muita coisa, mais de orientação mesmo. (P5)
Eu acho que salas de espera são sempre válidas. [...] Uma coisa que a gente tá percebendo e que as meninas estão reproduzindo bastante é a questão das rodas de conversa nas calçadas-amiga. Acho que é quando pessoal tem mais atenção no que tem a se falar. (P9)
Percebe-se que algumas estratégias e ações em saúde são mencionadas pelos participantes. Apesar de a educação em saúde ser considerada um importante instrumento facilitador para capacitação da comunidade, torna-se essencial agregar momentos individualizados para efetivar uma escuta qualificada às pessoas com ideação e tentativa de suicídio. Nesse mesmo sentido, destaca-se que trabalhadores e usuários devem estabelecer uma relação dialógica marcada por uma escuta terapêutica, respeito e valorização das experiências, para reconstrução coletiva de saberes e práticas (Cervera, 2011CERVERA, D. P. P.; PARREIRA, B. D. M.; GOULART, B. F. Educação em saúde: percepção dos enfermeiros da atenção básica em Uberaba (MG). Ciência & Saúde Coletiva, v. 1, n. 16, p. 1547-1554, 2011.).
As calçadas-amigas, mencionadas pelo participante da pesquisa, são uma importante estratégia que estimula a cidadania dos usuários na criação de políticas públicas que priorizam as necessidades do território. Isso se dá através das rodas de conversa nas calçadas dessas pessoas, que trazem discussões relevantes, educação em saúde e acolhimento das demandas nos encontros entre comunidade e equipe (Abilio, 2022ABILIO, I. de S.; CRUZ, P. J. S. C.; GOMES, A. C. O. “Calçada Amiga”: Caminhos, Dificuldades e Desafios de uma Experiência de Participação Social em uma Unidade de Saúde da Família na Perspectiva dos Profissionais de Saúde. Revista Brasileira de Ciências da Saúde, v. 26, n. 1, 2022. DOI: 10.22478/ufpb.2317-6032.2022v26n1.62256. Acesso em: 18 jan. 2023.
https://doi.org/10.22478/ufpb.2317-6032.... ).
É possível evidenciar a importância das práticas de educação em saúde como estratégias para prevenção ao suicídio na APS. Estas devem ser realizadas em todos os momentos e espaços pela equipe de Saúde da Família, considerando-se como uma atividade que favorece o fortalecimento de vínculo com a comunidade e a promoção de saúde. Nesse sentido, destaca-se a contribuição do trabalho multiprofissional como potencializador da prevenção ao suicídio no território, o que também é discutido pelos depoimentos dos sujeitos na próxima categoria.
Trabalho multiprofissional e suicídio
O trabalho multiprofissional, além de um aspecto organizacional, deve obter uma função de arranjo estruturado no que se refere ao processo de trabalho em equipe. Considera-se um importante suporte para o cuidado integral em saúde, auxiliando na abordagem aos usuários com ideação e tentativa de suicídio, por meio da soma dos diferentes olhares e competências envolvidas, colaborando com a qualidade da assistência (Machado, 2021MACHADO, M. de F. A. S. et al. Trabalho em equipes multiprofissionais na atenção primária no Ceará: porosidade entre avanços e desafios. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 45, n. 131, p. 987-997, dez. 2021. http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104202113104.
http://dx.doi.org/10.1590/0103-110420211... ).
Em 2008, por meio da Portaria n° 154, foram criados os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). A partir de 2017, com a Portaria n° 2.416, que aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para organização da Atenção Básica, eles passam a se chamar Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF-AB). Os NASF-AB compreendiam uma equipe multiprofissional composta por categorias profissionais da área da saúde, com o objetivo de oferecer suporte clínico, sanitário e pedagógico, atuando de maneira integrada e em parceria com as equipes de Saúde da Família (Brasil, 2017).
Entretanto, com o desmonte do NASF-AB, ocorrido em 2020 através do novo modelo de financiamento da atenção básica (Brasil, 2019; Mota, 2020), é marcante a ausência desses profissionais no apoio às ESF, como podemos perceber no discurso a seguir:
Então, eu acho que se tivesse um profissional da psicologia em cada unidade básica ajudaria muito. Eu acho que ajudaria muito a diminuir um pouco essa demanda da psicóloga do município em si e a gente teria uma forma de dar continuidade no tratamento desses pacientes de forma mais fidedigna. (P8)
De acordo com a visão do sujeito da pesquisa, não há demonstração de valorização do trabalho multiprofissional, mas a delegação deste cuidado a uma outra categoria profissional, nesse caso, a psicologia. Além disso, apesar da extinção do NASF-AB, o município em estudo conta com o suporte de Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica, que acaba dando suporte na cobertura de ações e serviços da APS.
Aqui a nossa unidade ela é bem completa, porque tem vários estudantes de todas as áreas, psicólogo, aí tem o farmacêutico, também técnico de enfermagem, enfermagem, é uma equipe multidisciplinar. (P6)
Nesse sentido, mostra-se a relevância do trabalho multiprofissional para o fortalecimento da APS em sua visão abrangente e integral. Isso promove a qualificação do cuidado prestado e aumento do acesso e da resolubilidade dos serviços, garantindo a integralidade e autonomia dos usuários no processo de saúde-doença.
No que diz respeito ao matriciamento, alguns sujeitos da pesquisa relataram a ausência dessa ferramenta de trabalho, principalmente, após o desmonte do NASF-AB.
Semana passada teve uma reunião com a menina do CAPS, ela apresentou o fluxo e falou que vai passar em cada unidade para falar sobre esse matriciamento. Antigamente, tinha a questão do NASF, que a gente fazia o matriciamento e passava os casos e tinha essa questão individualizada, mas agora, não. (P2)
Não, tem não, antes tinha o NASF, mas não, depois que o NASF saiu, ficou não, é só a gente mesmo e o especialista e os agentes de saúde, só pra ver como tá, mas é só a gente e o especialista [psiquiatra da policlínica] (P5).
Competia ao NASF-AB a participação no planejamento em conjunto com as equipes de referência apoiadas, contribuindo para a integralidade do cuidado e para a resolução de problemas e necessidades de saúde dos usuários no território (Brasil, 2017).
Embora possamos perceber a ausência do matriciamento através dos depoimentos de alguns participantes, outros sujeitos da pesquisa pontuaram a presença do matriciamento realizado com o CAPS.
Teve uma época que acontecia mais. Houve um período sem ter nada, eu acho que foi mais ou menos a pandemia, mas agora a gente tem discutido bem mais isso, inclusive a gente teve recentemente reunião com o CAPS e a gente fez esse matriciamento de alguns casos mais críticos de saúde mental. (P11)
Existe sim, o matriciamento é feito muitas vezes com o CAPS, alguns dos nossos pacientes também são usuários do CAPS e, quando é necessário, é feito o matriciamento sim, não só em casos de ideação suicida, mas dos nossos pacientes psiquiátricos no geral. Semana passada o pessoal do CAPS veio aqui pra discutir os casos de alguns pacientes que a gente tem aqui na área, inclusive duas dessas pacientes foram pacientes que já tiveram tentativa de suicídio [...]. É feito o matriciamento dessa forma. (P12)
A literatura aponta que no apoio matricial a integração acontece principalmente entre o CAPS e os profissionais que atuam na APS. Dessa forma, as equipes de matriciamento realizam práticas inovadoras com foco na atuação multidisciplinar, assim como ampliam a capacidade resolutiva diante dos casos clínicos de saúde mental (Pinto, 2012PINTO, A. G. A. et al. Apoio matricial como dispositivo do cuidado em saúde mental na atenção primária: olhares múltiplos e dispositivos para resolubilidade. Ciência & Saúde Coletiva, v. 3, n. 17, p. 653-660, 2012.).
Logo, o apoio matricial torna-se uma ferramenta de trabalho no âmbito da promoção à saúde, impactando diretamente na qualidade de vida dos usuários na APS. Além disso, o matriciamento promove o desenvolvimento de práticas que visam reduzir a fragmentação da atenção e organizar a rede de cuidado de forma que amplie a resolubilidade das ações de prevenção ao suicídio.
Acolhimento e atendimento das pessoas com comportamento suicida
A RAPS do município em questão é composta por diversos equipamentos, como UBS, CAPS, unidade hospitalar de atenção à urgência e SAMU. Esses serviços visam garantir a assistência dos usuários que necessitam de tratamento em saúde mental. A articulação dos equipamentos que fazem parte da rede é fundamental ao cuidado adequado dessas pessoas.
Os participantes da pesquisa pontuaram elementos relacionados ao diálogo da rede de saúde, ou seja, a articulação com outros serviços, como o hospital, o CAPS, a secretaria de Saúde e o setor de regulação, visando à continuidade do cuidado dos usuários com comportamento suicida.
Normalmente quando acontece de algum paciente com ideação suicida, eu faço logo o encaminhamento, em casos que ele já tentou ou tá com a ideação bem forte entro em contato com o CAPS, pra ver a possibilidade desse acolhimento lá. (P3)
Encaminhamentos a gente faz em casos de paciente que tiver realmente tentativa de suicídio, a gente acolhe essa demanda e encaminha para o hospital, porque o hospital daqui tem leitos de internação psiquiátrico e se não for um caso desse, dependendo da situação a gente também entra em contato com o CAPS. (P12)
Moreira (2017MOREIRA, M. I. B.; ONOCKO-CAMPOS, R. T. Ações de saúde mental na rede de atenção psicossocial pela perspectiva dos usuários. Saúde e Sociedade, v. 26, n. 2, p. 462-474, jun. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902017171154.
http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902017... ) sugere que a organização do trabalho em rede tem como objetivo fortalecer as ações desenvolvidas na APS, por meio da troca de saberes entre os profissionais e maior articulação da rede de serviços. Isto pode promover a ampliação do cuidado de acordo com as necessidades dos usuários.
Torna-se imprescindível dizer que a articulação dos serviços que compõem a RAPS é essencial para o atendimento e acompanhamento dos usuários em situação de risco de suicídio. Assim, esses equipamentos precisam estar integrados e em sincronização para que o fluxo de atendimento, os encaminhamentos e as estratégias de cuidado aconteçam de maneira adequada.
A intersetorialidade não foi citada por nenhum dos participantes da pesquisa, sendo ela uma importante ferramenta para o desenvolvimento de ações articuladas e integradas que produzem impactos significativos nas condições de vida das pessoas. Essas ações têm como objetivo o planejamento em conjunto de intervenções efetivas nos problemas que acometem a comunidade (Dias, 2014DIAS, M. S. de A. et al. Intersetorialidade e Estratégia Saúde da Família: tudo ou quase nada a ver? Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, n. 11, p. 4371-4382, nov. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320141911.11442014.
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320141... ).
No que se refere ao fluxo de acolhimento e atendimento das pessoas com ideação e tentativa de suicídio, os sujeitos da pesquisa revelam aspectos relacionados à alta demanda de saúde mental no município, como demonstra os relatos a seguir:
Porque a demanda que a gente teve de saúde mental nesses dois últimos anos subiu, eu acho que multiplicou por 4 o que a gente tinha já era grande. Então, eu acho que no município, pra mim, a atenção primária ela meio que está enxugando gelo, porque a gente atende a demanda, medica essas pessoas, a gente até acompanha essa pessoas, mas eu como profissional (...) não faço um atendimento de psicologia, quem faz isso é o profissional de psicologia. Então, isso é uma coisa que, pra mim, hoje o município é deficiente, é o acesso a psicoterapia para esses pacientes. Pra mim, é o que tá em falta hoje. (P12)
Nessa perspectiva, é marcante a presença de aspectos relacionados a procura e oferta de serviços para psicologia e psiquiatria. Destaca-se uma demanda significativa por consultas que não é absorvida pelo serviço especializado, no qual o encaminhamento acaba gerando apenas um aumento da fila de espera para os atendimentos psicológicos e psiquiátricos. Além disso, observa-se no depoimento a percepção de que diversos problemas demandam atendimento do psicólogo; todavia, não é este profissional que pode resolver, sozinho, todos os fatores sociais relacionados ao sofrimento e adoecimento mental. Por isso, não se trata de apenas encaminhar o indivíduo para psicólogos e psiquiatras; é preciso coordenar um cuidado no território que favoreça a promoção da saúde e prevenção de agravos.
De acordo com Silva (2021SILVA, A. P. et al. Os desafios da organização em rede na atenção psicossocial especializada: o caso do recife. Saúde em Debate, v. 45, n. 128, p. 66-80, mar. 2021. http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104202112805.
http://dx.doi.org/10.1590/0103-110420211... ), outra forma de enfretamento dessa demanda reprimida seria a realização do apoio matricial através de sua dimensão teórico-pedagógica, cujas ferramentas de educação permanente em saúde seriam primordiais na qualificação dos profissionais do ambulatório e os profissionais da UBS. Por conseguinte, os encaminhamentos para a rede de atenção seriam realizados com qualidade e eficiência, consolidando, assim, a saúde mental na APS.
Eu acho um pouco falha por conta da rede, algo completo né, porque é visto que a gente faz o encaminhamento, tanto com o psicólogo como com psiquiatra e tem uma demanda imensa. Eu mesma, sou sincera a lhe dizer, eu fico com o coração na mão quando uma mãe pede um encaminhamento para o psicólogo. A fila de espera é gigantesca, mas ao meu ver eu acho ainda um pouco, como é que eu posso dizer, fraca. (P2)
Eu não conheço nenhuma [estratégia], porque não funciona como uma rede, aqui na atenção primária a gente pega e encaminha para o psicólogo, vou dar um exemplo: criança e adolescente que precisa de psicólogo, na prefeitura, na secretaria tem mais de 350 crianças e adolescentes até 15 anos na fila de espera e entre 15 e 18 tem mais de mil. Uma coisa dessa a gente não pode dizer que funciona. Eu mando, chego lá não tem vaga, vai pra fila de espera. (P4)
As falas dos entrevistados sugerem a necessidade de fortalecer a rede de atenção, no sentido de discutir a respeito do fluxo dos atendimentos ambulatoriais e buscar a diminuição das filas de espera e sobrecarga dos serviços. Ademais, propõe o diálogo dos profissionais nesse processo, garantindo a assistência e cuidado adequado aos usuários no território.
A alta demanda de atendimento em psicologia colocada pelo participante da pesquisa levanta aspectos relacionados a desarticulação da rede e carência de profissionais. São necessários, nesse sentido, a revisão da oferta dos serviços ambulatoriais e o diálogo entre os serviços que compõem a rede de saúde, uma vez que é nesses espaços que acontecem o cuidado integral em saúde e a possibilidade de práticas participativas e grupais para superação dessas filas de espera.
Outro aspecto identificado na pesquisa refere-se ao despreparo dos profissionais diante dos casos de ideação e tentativa de suicídio e a ausência de capacitação para prevenção do suicídio na APS, confirmando a hipótese da pesquisa. Os relatos a seguir descrevem essa fragilidade:
A gente aprende as coisas mesmo depois, mas não tem capacitação e quando tem é uma vazia, que você não tem condição de colocar em prática. Normalmente os médicos não sabem lidar, eu ainda lido melhor porque sou neurologista, mas o clínico normalmente não sabe. (P4)
Porque como a gente não tem, assim (...), posso dizer treinamento, capacitação para lidar com esse tipo de coisa, a gente fica totalmente sem reação, só fica: meu deus, o que eu vou fazer? (P7)
Percebe-se que a demanda de saúde mental na APS é marcada pelo despreparo dos profissionais no que se refere a capacitação e protocolos de atendimento, alta demanda, ausência de intersetorialidade e de estratégias efetivas para prevenção do comportamento suicida no território.
Segundo Ribeiro (2021RIBEIRO, P. L. et al. Manejo na prevenção do comportamento suicida dos usuários da Atenção Primária à Saúde: revisão sistemática. Research, Society and Development, v. 10, n. 10, p. 1-14, 4 ago. 2021. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i10.18547.
http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i10.18... ), os profissionais que atuam na APS se mostram despreparados e incapazes para manejo dos casos de comportamento suicida. Isso se deve à falta de capacitação profissional, ausência de políticas públicas para prevenção ao suicídio, sobrecarga de trabalho e infraestruturas precárias.
Seria fazer uma capacitação com todo mundo, incluindo principalmente agentes de saúde, porque são eles que estão constantemente na porta do pessoal e são eles que sabem praticamente da vida de todo mundo. Teria que fazer uma capacitação com eles, com a gente também. (P5)
Capacitação de como a gente saber lidar, o que fazer, o que dizer, como acolher, que é muito falho, às vezes não é nem um paciente suicida, mas um paciente que tem a saúde mental mais abalada. Chega, senta aqui e começa a chorar e a gente não sabe o que fazer, fica desesperado com ele, só olha e diz “tente se acalmar, respire” e não sabe. Aí quando é relacionado ao suicídio é muito mais difícil da gente lidar e fica aquela sensação de impotência, né? Se acontecer, eu não fiz nada? Não tinha como fazer nada pra evitar? (P7)
Nesse sentido, enfatiza-se a necessidade de fortalecer ações de educação continuada e permanente em saúde, com o objetivo de qualificar o acolhimento e atendimento às pessoas com comportamento suicida. Além disso, deve-se criar estratégias de prevenção efetivas na atenção primária, levando em consideração a facilidade na construção de vínculo e o acompanhamento regular dos usuários no território.
Evidencia-se a urgência em garantir a qualificação dos profissionais frente às demandas de suicídio na atualidade, sendo necessários profissionais capacitados para lidarem no âmbito da prevenção, promoção e proteção à saúde.
Considerações finais
A presente pesquisa contribuiu no sentido de identificar e analisar as estratégias de prevenção ao suicídio realizadas no contexto da APS em um município potiguar, levando em consideração as potencialidades e fragilidades no atendimento às pessoas com ideação e tentativa de suicídio, como também, a percepção dos profissionais atuantes nesse nível de atenção à saúde.
Os resultados apontam, com base nas experiências dos participantes da pesquisa, a conduta imediata de encaminhamentos para a especialidade médico-psiquiatra e psicólogo nos casos de comportamento suicida. É marcante a medicalização como forma de produção de cuidado permanente frente a esses casos, favorecendo uma lógica biomédica. Apesar disso, quando os profissionais consideram que isso não é suficiente, realizam busca ativa através de visitas domiciliares, como forma de proteção e prevenção de agravos.
Ressalta-se que a demanda de saúde mental do município investigado é atravessada por questões relativas à alta demanda, à desarticulação da rede de atenção com ausência de intersetorialidade e ao despreparo dos profissionais de saúde. Estes, além de serem quantitativamente escassos, necessitam de capacitações para melhorias no processo de trabalho, visando potencializar os cuidados às pessoas com ideação e tentativa de suicídio. Desse modo, para garantir uma assistência integral a esses indivíduos, considera-se importante investir na educação permanente em saúde, a fim de favorecer o reconhecimento do papel de cada profissional na atenção psicossocial e a transformação de paradigmas do cuidado em saúde mental.
Por fim, torna-se primordial ampliar a rede de atenção do município, com maior capilaridade e articulação entre os serviços que compõem a rede, visto que é nesses espaços que acontece o processo de trabalho e cuidado integral à saúde. Efetivamente, as políticas devem contribuir com a qualificação dos profissionais de saúde e, por conseguinte, qualificar os cuidados das pessoas com comportamento suicida. Para isso, sugere-se a necessidade de estudos futuros que busquem potencializar as discussões acerca da atenção em saúde mental e construir estratégias que reúnam os serviços da RAPS, no intuito de garantir ações de promoção e prevenção ao suicídio.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
29 Nov 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
28 Dez 2023 - Revisado
06 Abr 2024 - Aceito
26 Abr 2024