Vacina contra zika: desenvolvimento, agenciamentos e controvérsias sociotécnicas

Lenir Nascimento da Silva Francine de Souza Dias Sobre os autores

Resumo

O ensaio teórico discute as controvérsias sobre o desenvolvimento da vacina contra a zika, evidenciando as negociações que envolvem as escolhas técnico-científicas e os efeitos da definição do “perfil do produto alvo da vacina” (TPP) para uso somente no cenário emergencial. São propostas três perspectivas de análise em diálogo com os Estudos Sociais da Ciência: os fluxos de estabelecimento de normativas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), as narrativas publicadas em revistas especializadas e de um grupo de entrevistados. Concluímos que os termos de definição do TPP ajudaram a constituir a política ontológica da OMS, implicando: exposição, responsabilização e culpabilização de mulheres pela prevenção da síndrome congênita da zika; instituição de certas estratégias de vacinação; invisibilização de outros cenários possíveis; maior espaço de aceitação de determinadas plataformas; ampliação das desigualdades globais. Tal política ontológica engendrou uma potente racionalidade emergencial que distinguiu a vacina da necessidade social da vacinação, empurrando a última para a invisibilidade.

Palavras-Chave:
Zika vírus; Síndrome congênita de zika; Vacinas; Vacinação; Estratégias de saúde globais

Introdução

Em julho de 2016, uma nova ameaça à saúde pública foi caracterizada como síndrome congênita do vírus Zika (SCVZ), colocada na cena global pela epidemia de microcefalia no Brasil e pela emergência em saúde pública de interesse internacional (ESPII). A possibilidade da sua irrupção transnacional e a ausência de tratamento impunham a busca por medidas de prevenção e vigilância. A elaboração de métodos diagnósticos sorológicos acurados, de dispositivos inovadores de controle do mosquito vetor e de vacinas seguras e eficientes foi priorizada, impulsionando interesses e recursos financeiros para pesquisa e desenvolvimento biotecnológicos.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) se mobilizou no ordenamento de considerações técnico-científicas acerca da regulação (WHO, 2016aWOLRD HEALTH ORGANIZATION. Meeting Report: WHO consultation on considerations for regulatory expectations of Zika virus vaccines for use during an emergency. Vaccine, v. 37, i. 50, p. 7443-7450, nov. 2016a. Disponível em:<https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264410X16309690>. Acesso em: 15 fev. 2022.) e do “perfil do produto alvo da vacina” (TPP) contra o vírus zika (ZIKV) (WHO, 2016bWORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Zika Virus (ZIKV) Vaccine Target Product Profile (TPP): Vaccine to protect against congenital Zika virus syndrome for use during an emergency, 2016b.). Ela organizou fóruns com pesquisadores reconhecidos no campo e fomentou a identificação de mercados para os produtos desenvolvidos. Mesmo reconhecendo pelo menos dois contextos de vacinação (emergencial e rotineiro/endêmico), a instituição focou o TPP para uso exclusivo naquela emergência e nas subsequentes (WHO, 2016bWORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Zika Virus (ZIKV) Vaccine Target Product Profile (TPP): Vaccine to protect against congenital Zika virus syndrome for use during an emergency, 2016b.).

Passados mais de cinco anos do fim da ESPII, os métodos diagnósticos sorológicos ainda deixam margens para dúvidas (Zhang ., 2021ZHANG. X. et al. Recent progresses and remaining challenges for the detection of Zika virus. Med Res Rev., v. 41, p. 2039-2108. 2021. Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/med.21786>. Acesso em: 15 fev. 2022.), o mosquito continua a ser o vilão dos espetáculos epidemiológicos das arboviroses e não existe horizonte de medicação viável, ou uma vacina disponível para quaisquer cenários apontados (Castanha; Marques, 2020CASTANHA, P. M. S.; MARQUES, E. T. A. A Glimmer of Hope: Recent Updates and Future Challenges in Zika Vaccine Development. Viruses, v. 12, p. 1-17. 2020. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7761420/pdf/viruses-12-01371.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2022.). Essa conjuntura de incertezas tem efeitos: dificulta a compreensão dos engajamentos relacionados ao controle da SCVZ; não expõe a diversidade de ações possíveis; e invisibiliza controvérsias que transbordam as fronteiras técnico-científicas.

Este artigo surgiu de inquietações inventariadas nas zonas de encontro entre fóruns formais e não formais de produção de saberes, em redes de pessoas afetadas pela SCVZ formadas por: cientistas, mães, familiares, profissionais e gestores. Por que a vacina contra a Covid-19 foi produzida e a da zika não? O fim da ESPII implicou diminuição de investimentos para pesquisa? Em que fase de desenvolvimento estão os estudos? Quais as perspectivas para o acontecimento de uma nova epidemia?

Baseadas nessas indagações e nas tensões que elas produzem, discutimos as controvérsias sobre o desenvolvimento da vacina contra a zika, evidenciando as negociações que envolvem as escolhas técnico-científicas. Questionamos os efeitos da definição do TPP para uso somente emergencial, limitando a análise ao acontecimento da zika. Pressupomos que o cenário de vacinação sancionado pela OMS implica modos de ordenação das relações institucionais, profissionais e sociais. Isto porque o desenvolvimento de vacinas e a vacinação fazem parte de projetos de sociedade e são agenciados na saúde pública – campo de práticas, saberes e políticas. Desse modo, reconhecemos a importância de performar o debate no domínio acadêmico, assim como na arena pública.

Engendrando controvérsias

Pressupomos que as controvérsias vinculadas ao desenvolvimento da vacina possibilitam examinar jogos de poder e esforços empreendidos para apagar constrangimentos, oposições e possibilidades de construção de lógicas diversas (Callon; Lascoumes; Barthe, 2001; Law, 2004LAW, J. After Method. Abingdon: Routledge, 2004.). Uma arena constituída por práticas e interesses, definidos no movimento das ações, das resistências e da produção do conhecimento. Interesses que compreendem as formas como a ciência sai do laboratório e produz agenciamentos para tornar caminhos viáveis. Dinâmicas que impõem pensar as consequências da aplicação dos resultados científicos.

Atentamo-nos para as instituições e práticas, considerando os contextos que as configuram, sem produzir respostas definitivas. Propomos três cenários de engendramento de estratégias, atores, interesses e estatutos: os fluxos de estabelecimento da regulação e do TPP; as narrativas publicadas em revistas especializadas; e as narrativas de um grupo de entrevistados.

A organização documental dos dois primeiros cenários (de normativas institucionais e artigos científicos) iniciou com uma busca bibliográfica e com a verificação da lista de regulamentações disponibilizadas na página virtual da OMS. A busca foi mediada por descritores como “Zika vírus", “Síndrome Congênita de Zika”, “Vacinas”, “Vacinação”. O movimento aconteceu nas plataformas da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e do PubMed, privilegiando estudos de revisões performados por especialistas no assunto, entre 2016 e 2021, sem a pretensão de alcançar o total de publicações.

As entrevistas foram realizadas no bojo de um projeto vinculado a uma pesquisa sobre a história do presente da zika. Entre setembro e outubro de 2021, entrevistamos, durante 50 minutos em média, mães e familiares, cientistas, profissionais da saúde e da educação, com foco na prevenção, no cuidado e na produção científica. Os debates ajudaram a performar as indagações deste estudo.

Analisamos as narrativas dos artigos, documentos e entrevistas em diálogo com as teorias e práticas dos Estudos Sociais da Ciência. Apresentamos evidências que amparam as discussões, embora elas não sejam o foco de sustentação da argumentação. Caracterizamos o estudo como um ensaio teórico acerca dos jogos de forças que envolvem as relações da produção técnico-científica, seus agenciamentos e implicações sociais (Castiel, 2021CASTIEL, L. D. Ensaios fora do tubo: a saúde e seus paradoxos. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2021.). Operamos de modo a provocar reflexões, suscitando tensões, possibilidades e barreiras para o desenvolvimento da vacina. Enfatizamos o que é perceptível nos discursos; aquilo que está ausente, mas ainda é manifesto; e o que está ausente e não é ou não pode ser proferido (Law, 2004LAW, J. After Method. Abingdon: Routledge, 2004.).

O projeto e a pesquisa seguiram as Resoluções CNS/MS nº 510, de 7 de abril de 2016, e CNS/MS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca.

Normativas e agenciamentos

A consulta da OMS a especialistas para a preparação do TPP e da regulação do desenvolvimento da vacina, em 2016, aconteceu em uma conjuntura de possível expansão territorial da zika, durante a ESPII. Certos aspectos acerca da ligação entre a SCVZ e o vírus já haviam sido evidenciados, porém, o desconhecimento sobre sua natureza e causas geravam controvérsias, contribuindo para uma diversidade de interpretações aceitáveis dos fatos. Os processos implicaram atores institucionais, por meio de performances de seus especialistas. A maioria das organizações que participaram dos movimentos iniciais eram provenientes dos Estados Unidos. Outros países foram representados: Brasil, Reino Unido, Alemanha, França, Japão, África do Sul, Áustria, México e Índia (WHO, 2016aWOLRD HEALTH ORGANIZATION. Meeting Report: WHO consultation on considerations for regulatory expectations of Zika virus vaccines for use during an emergency. Vaccine, v. 37, i. 50, p. 7443-7450, nov. 2016a. Disponível em:<https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264410X16309690>. Acesso em: 15 fev. 2022.; 2016b).

As incertezas tensionavam a recém iniciada “corrida” biotecnológica que, de fevereiro a junho de 2016, tinha 30 vacinas registradas em fase pré-clínica (WHO, 2016aWOLRD HEALTH ORGANIZATION. Meeting Report: WHO consultation on considerations for regulatory expectations of Zika virus vaccines for use during an emergency. Vaccine, v. 37, i. 50, p. 7443-7450, nov. 2016a. Disponível em:<https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264410X16309690>. Acesso em: 15 fev. 2022.). Por se tratar de uma emergência sanitária, era possível acionar o “Procedimento de Avaliação e Listagem de Uso de Emergência” para vacinas candidatas (EUAL). O dispositivo recomendava diretrizes de segurança, qualidade e eficácia, auxiliando a determinação da “aceitabilidade do uso de uma vacina específica em investigação no contexto de uma” ESPII (WHO, 2015WORLD HEALTH ORGANIZATION. Emergency Use Assessment and Listing Procedure (EUAL) for candidate vaccines for use in the context of a public health emergency, 2015. Disponível em: <https://silo.tips/download/emergency-use-assessment-and-listing-procedure-eual-for-candidate-vaccines-for-u>. Acesso em: 15 fev. 2022.
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, p. 1). Era dirigido aos fabricantes de vacinas, traçando recomendações para as autoridades reguladoras nacionais e para as agências de compras da Organização das Nações Unidas (Ibid.). Fator importante, pois as listas de profissionais convidados a participar da construção da regulação e do TPP (WHO, 2016aWOLRD HEALTH ORGANIZATION. Meeting Report: WHO consultation on considerations for regulatory expectations of Zika virus vaccines for use during an emergency. Vaccine, v. 37, i. 50, p. 7443-7450, nov. 2016a. Disponível em:<https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264410X16309690>. Acesso em: 15 fev. 2022.; 2016b) transpareciam o envolvimento direto de países e empresas reconhecidos por sua capacidade de produção biotecnológica - atores que também tinham interesse particular na mitigação daquela e de outras crises.

O relatório da consulta da OMS sobre a regulação dos produtos candidatos foi publicado em 2016 e explicitava que o conteúdo não representava “necessariamente as decisões ou a política declarada da Organização Mundial da Saúde” (WHO, 2016aWOLRD HEALTH ORGANIZATION. Meeting Report: WHO consultation on considerations for regulatory expectations of Zika virus vaccines for use during an emergency. Vaccine, v. 37, i. 50, p. 7443-7450, nov. 2016a. Disponível em:<https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264410X16309690>. Acesso em: 15 fev. 2022., p. 7). Porém, a lista de participantes mostrava que a própria OMS e o Fundo das Nações Unidas para a Infância foram a segunda maior representação daquela reunião (Ibid.). O TPP foi construído na mesma época e continha considerações de desenvolvimento de produto, associadas a características vacinais ideais e mínimas (WHO, 2016bWORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Zika Virus (ZIKV) Vaccine Target Product Profile (TPP): Vaccine to protect against congenital Zika virus syndrome for use during an emergency, 2016b.). O intervalo entre os atributos ideais e mínimos suscita um espaço de aceitação de candidatos nos processos de regulação nacionais.

A partir da definição do cenário emergencial, o primeiro agenciamento do TPP foi o padrão de população-alvo: mulheres em idade fértil, incluindo meninas adolescentes e pré-adolescentes com nove anos de idade ou mais, além de homens com o mesmo intervalo etário. Porém, o pragmatismo demandado por uma emergência sanitária, associado à lógica do custo-benefício, o restringia às mulheres entre 15 e 49 anos. A construção do padrão pressupunha que a vacinação feminina em massa poderia promover a mitigação da transmissão sexual da zika de homens infectados (WHO, 2016bWORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Zika Virus (ZIKV) Vaccine Target Product Profile (TPP): Vaccine to protect against congenital Zika virus syndrome for use during an emergency, 2016b.).

A restrição do público tinha implicações previsíveis. As normativas de segurança/reatogenicidade priorizavam plataformas virais não replicantes, como as vacinas inativadas, as baseadas em subunidades ou as que usam adjuvante de alúmen. Na perspectiva do risco-benefício, informações de segurança plausíveis constituíam critérios para anuência mínima emergencial de plataformas de vacinas virais vivas, vetorial de replicação de ciclo único ou com uso de adjuvantes diferentes do alúmen, aumentando o espaço de aceitação de certos produtos. Nesse sentido, foram declaradas favorecidas as tecnologias que já tivessem sido desenvolvidas para outras vacinas (Ibid.).

O TPP determinava que não houvesse contraindicação para grávidas ou lactantes e que dados de ausência de teratogenicidade precisavam ser produzidos antes da autorização de uso em surtos. Todavia, era aceito o uso excepcional nesse público, de acordo com o cenário emergencial – o benefício da vacinação suplantaria os riscos potenciais do produto (Ibid.). A narrativa da regulação evidenciava a necessidade de considerações éticas sobre o risco versus benefício da vacinação dessas mulheres, em circunstâncias de aceleração de análises de população-alvo, nos territórios com recursos escassos. Porém, vinculava o processo de aceitação emergencial aos estudos especiais pós-licenciamento, afirmando haver questões que talvez só pudessem ser avaliadas após autorização de uso do produto (WHO, 2016aWOLRD HEALTH ORGANIZATION. Meeting Report: WHO consultation on considerations for regulatory expectations of Zika virus vaccines for use during an emergency. Vaccine, v. 37, i. 50, p. 7443-7450, nov. 2016a. Disponível em:<https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264410X16309690>. Acesso em: 15 fev. 2022.).

O espaço de aceitação de muitos produtos diminuía com outros agenciamentos ideais. A estimativa de desfecho era prevenir a doença clínica vinculada ao ZIKV de qualquer gravidade (WHO, 2016bWORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Zika Virus (ZIKV) Vaccine Target Product Profile (TPP): Vaccine to protect against congenital Zika virus syndrome for use during an emergency, 2016b.). Os padrões de excelência para a eficácia previam a confirmação virológica da prevenção da doença, em pelo menos 80% da população testada (WHO, 2016bWORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Zika Virus (ZIKV) Vaccine Target Product Profile (TPP): Vaccine to protect against congenital Zika virus syndrome for use during an emergency, 2016b.). Cabe lembrar que eficácia é a capacidade de promoção de resultados de experimentos esperados, em condições controladas e com critérios predefinidos (Marinho; Façanha, 2001MARINHO, A.; FAÇANHA, L. O. Programas Sociais: efetividade, eficiência e eficácia como dimensões operacionais da avaliação. Rio de Janeiro: IPEA, 2001.). A mínima admissão de medidas de eficácia adicionais, como os marcadores sorológicos de proteção, dependia de estudos em modelos animais ou prospectivos. Porém, ainda não havia a possibilidade de padronização dessas outras medidas, pois permaneciam indefinidos: o vínculo entre os níveis de viremia e a patologia fetal; os mecanismos pelos quais a zika assintomática leva à SCVZ; os modelos animais mais adequados para a pesquisa; a acurácia dos métodos diagnósticos (WHO, 2016bWORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Zika Virus (ZIKV) Vaccine Target Product Profile (TPP): Vaccine to protect against congenital Zika virus syndrome for use during an emergency, 2016b.). Perduravam as incertezas acerca da avaliação da prevenção da doença clínica como marcador de resultado. Não obstante, a lógica da emergência constituída no EUAL reafirmasse sua priorização como meta dos programas de vacinação, em ocasiões de surtos (WHO, 2015WORLD HEALTH ORGANIZATION. Emergency Use Assessment and Listing Procedure (EUAL) for candidate vaccines for use in the context of a public health emergency, 2015. Disponível em: <https://silo.tips/download/emergency-use-assessment-and-listing-procedure-eual-for-candidate-vaccines-for-u>. Acesso em: 15 fev. 2022.
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).

O agenciamento que aumentava o espaço de aceitação de certos produtos com relação aos prazos de validade, restringia a definição de plataforma vacinal ideal. O TPP determinava prazo de validade mínimo de 6 meses, em estocagem a -20°C, e evidência de estabilidade por pelo menos seis horas, em temperaturas de 2-8°C. Naquela época, as plataformas de DNA e RNA eram armazenadas a -20°C e as vacinas que usam adjuvante de alúmen não suportam essa temperatura (WHO, 2016bWORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Zika Virus (ZIKV) Vaccine Target Product Profile (TPP): Vaccine to protect against congenital Zika virus syndrome for use during an emergency, 2016b.). O documento recomendava também que a vacina desenvolvida pudesse ser administrada em uma preparação que incluísse outros imunizantes já licenciados, importante medida em estratégias de vacinação de rotina, principalmente em cenários endêmicos. Porém, havia leniência com o uso de um produto monovalente durante uma emergência (WHO, 2016bWORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Zika Virus (ZIKV) Vaccine Target Product Profile (TPP): Vaccine to protect against congenital Zika virus syndrome for use during an emergency, 2016b.).

As consonâncias, dissonâncias e interesses das negociações que constituíram os processos de regulação e o TPP engendravam espaços de aceitação de produtos adequados ao uso em emergências. Um espaço que tende a aumentar com a expansão das fronteiras de admissão de novas características, e a diminuir, na medida em que fica reduzido ao ideal. Ele também pode variar, inversamente, com o rigor da regulação em cada país de submissão. Um espaço de aceitação maior torna o desenvolvimento de certas vacinas mais factível. O intervalo menor, além de reduzir esse universo de possibilidades, pode até inviabilizar sua aprovação (Lacey, 2014LACEY, H. Tecnociência comercialmente orientada ou investigação multiestratégica? Scientiæ Zudia, São Paulo, v. 12, n. 4, p. 669-95. 2014. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ss/a/8R896sNLCSvHjbmQsPDV6PD/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 20 mar. 2022.
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). Resta saber quais as implicações desses delineamentos para os movimentos de desenvolvimento de produtos vacinais.

Revisões de especialistas

A pesquisa clínica para desenvolvimento de bioprodutos é organizada em etapas, implicadas com a segurança e com a eficácia. Na etapa pré-clínica acontece a testagem em animais. Na fase I, os produtos são testados em poucos seres humanos e, se os resultados não forem extremamente prejudiciais, o estudo pode continuar. Os ensaios de fase II são controlados e randomizados, incluindo cerca de uma centena de pessoas. Neles, o produto é aplicado em um grupo e outro grupo recebe um placebo. Embora a preocupação com os efeitos nocivos continue, a atenção é voltada para os benefícios. A fase III inclui milhares de pessoas e acontece somente quando os resultados obtidos são promissores. Ela pode ser realizada em muitos países e durar vários anos. Em geral, para que as agências reguladoras aprovem uma candidata para uso clínico, deve haver diversos ensaios de fase III mostrando boa eficácia. Os estudos de fase IV acontecem após a aprovação formal das agências reguladoras (Stegenga, 2018STEGENGA, J. Care and Cure. Chicago: University of Chicago Press, 2018.).

No desenvolvimento tradicional de vacinas, um estudo leva aproximadamente três anos para fechar a fase I, cinco para completar a fase II e cerca de 10 anos até a aprovação pelas agências reguladoras (Ibid.). Durante a emergência sanitária da Covid-19, para acelerar o processo, as fases foram performadas em concomitância. Em torno de dois anos de pandemia, alguns estudos foram da fase III para a fase IV (PAHO, 2020PAN AMERICAN HEALTH ORGANIZATION. Update on COVID-19 Vaccines Development, 2020. Disponível em:<https://www.paho.org/en/documents/presentation-update-covid-19-vaccines-development>. Acesso em: 15 fev. 2022.
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).

Passaram-se mais de cinco anos do início da “corrida” biotecnológica da zika e nenhum estudo chegou à fase III (Castanha; Marques, 2020CASTANHA, P. M. S.; MARQUES, E. T. A. A Glimmer of Hope: Recent Updates and Future Challenges in Zika Vaccine Development. Viruses, v. 12, p. 1-17. 2020. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7761420/pdf/viruses-12-01371.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2022.), o que suscita dúvidas acerca do futuro das pesquisas. Para Callon, Lascoumes e Barthe (2001CALLON, M.; LASCOUMES, P.; BARTHE, Y. Agir dans un monde incertain: Essai sur la démocratie technique. Paris: Éditions Points, 2001.), os processos que envolvem a produção técnico-científica não engendram necessariamente certezas; pelo contrário, agenciam sentidos de não saber. Nessa perspectiva, a apresentação das narrativas dos artigos procura evidenciar problemas e desafios entremeados nesse caminho.

Poland . (2018POLAND, G. A. et al. Development of vaccines against Zika virus. Lancet Infect Dis., v. 18 p. e211-19, 2018. Disponível em: <https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S1473-3099%2818%2930063-X.>. Acesso em: 15 fev. 2022.
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) transpareceram a incerteza da ocorrência de outro surto de SCVZ. Eles afirmaram que o diversificado conjunto de hospedeiros animais, nos quais foram encontrados anticorpos contra o ZIKV, poderia contribuir para o aparecimento de cepas recombinantes e facilitaria a disseminação viral. A queda no número de casos da síndrome, iniciada em 2017, trouxe um contraponto para a inquietação dos autores e fez com que os esforços para o desenvolvimento de vacinas diminuíssem (Castanha; Marques, 2020CASTANHA, P. M. S.; MARQUES, E. T. A. A Glimmer of Hope: Recent Updates and Future Challenges in Zika Vaccine Development. Viruses, v. 12, p. 1-17. 2020. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7761420/pdf/viruses-12-01371.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2022.). Castanha e Marques; e Pielnaaa . (2020PIELNAAA, P. et al. Zika virus-spread, epidemiology, genome, transmission cycle, clinical manifestation, associated challenges, vaccine and antiviral drug development. Virology, v. 543, p. 34-42. 2020. Disponível em:<https://reader.elsevier.com/reader/sd/pii/S0042682220300210?token=B81866B1B1BE1A7FF7224C79EEC30C50564ED054EC2B38D2223335D8A228D2644B24A622B34252BF2D026EF81F191756&originRegion=us-east-1&originCreation=20220406154549.>. Acesso em: 15 fev. 2022.
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) retomaram a questão: novos casos da síndrome continuavam a acontecer; o ZIKV tinha se tornado endêmico em alguns países e poderia ressurgir em locais com transmissão anterior; e era esperada uma grande epidemia de zika nos próximos 10 a 15 anos.

A dúvida sobre novas epidemias da SCVZ coexiste com o desafio apontado por Castanha e Marques (2020CASTANHA, P. M. S.; MARQUES, E. T. A. A Glimmer of Hope: Recent Updates and Future Challenges in Zika Vaccine Development. Viruses, v. 12, p. 1-17. 2020. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7761420/pdf/viruses-12-01371.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2022.): (a) desenvolver produtos vacinais que estejam prontos para ativar ensaios de fase III e, simultaneamente, (b) promover a aceleração da produção industrial dessas vacinas, durante uma epidemia. A primeira parte toca na estimativa da eficácia da vacina. Britto . (2018BRITTO, C. et al. Rapid travel to a Zika vaccine: are we heading towards success or more questions? Expert Opinion on Biological Therapy, v. 18, n. 11, p. 1171-1179. 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.1080/14712598.2018.1526277.>. Acesso em: 28 jan. 2022.
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) explicaram que a aferição da eficácia seria difícil no cenário latino-americano, devido ao declínio da incidência da doença clínica, diante da ampla exposição da população ao ZIKV. Naquele contexto, o impacto da vacina seria igualmente de difícil determinação (Ibid.). A falta de especificidade das manifestações clínicas da doença e a escassez de modalidades diagnósticas próprias para o ZIKV tornariam o processo duvidoso. O cálculo exigiria a mensuração da taxa de incidência de desfechos primários e secundários: infecção pelo ZIKV clinicamente aparente ou confirmada por laboratório; e imunidade de rebanho ou complicações da doença, respectivamente. Ademais, embora a prevenção da SCVZ seja relevante para a saúde pública e tenha sido o desfecho ideal normatizado pelo TPP, Wilder-Smith . (2018WILDER-SMITH, A. et al. Zika vaccines and therapeutics: landscape analysis and challenges ahead. BMC Medicine, v. 16, n. 84, 2018. Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29871628/.>. Acesso em: 15 fev. 2022.) consideraram o parâmetro inviável, devido à: restrição ao público-alvo feminino, diversidade de manifestações clínicas da síndrome, demanda de grandes tamanhos de amostras e às questões éticas.

A segunda parte do desafio, a aceleração da produção de vacinas candidatas em contexto epidêmico, também se relaciona com os testes sorológicos. Zhang . (2021ZHANG. X. et al. Recent progresses and remaining challenges for the detection of Zika virus. Med Res Rev., v. 41, p. 2039-2108. 2021. Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/med.21786>. Acesso em: 15 fev. 2022.) evidenciaram que a especificidade e sensibilidade desses dispositivos é imprescindível para atender às demandas em áreas endêmicas, alertando para a dificuldade colocada pelas baixas cargas virais e pela reatividade cruzada da zika, principalmente com o vírus da dengue (DENV). Isto porque os exames sorológicos não são suficientemente específicos para garantir a diferenciação das doenças. Esses fatores fragilizam a detecção do ZIKV e revelam a incerteza sobre a segurança das vacinas em desenvolvimento (Ibid.).

Para alguns autores (Castanha; Marques, 2020CASTANHA, P. M. S.; MARQUES, E. T. A. A Glimmer of Hope: Recent Updates and Future Challenges in Zika Vaccine Development. Viruses, v. 12, p. 1-17. 2020. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7761420/pdf/viruses-12-01371.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2022.; Britto ., 2018BRITTO, C. et al. Rapid travel to a Zika vaccine: are we heading towards success or more questions? Expert Opinion on Biological Therapy, v. 18, n. 11, p. 1171-1179. 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.1080/14712598.2018.1526277.>. Acesso em: 28 jan. 2022.
https://doi.org/10.1080/14712598.2018.15...
; Pielnaaa ., 2020PIELNAAA, P. et al. Zika virus-spread, epidemiology, genome, transmission cycle, clinical manifestation, associated challenges, vaccine and antiviral drug development. Virology, v. 543, p. 34-42. 2020. Disponível em:<https://reader.elsevier.com/reader/sd/pii/S0042682220300210?token=B81866B1B1BE1A7FF7224C79EEC30C50564ED054EC2B38D2223335D8A228D2644B24A622B34252BF2D026EF81F191756&originRegion=us-east-1&originCreation=20220406154549.>. Acesso em: 15 fev. 2022.
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; Poland ., 2018POLAND, G. A. et al. Development of vaccines against Zika virus. Lancet Infect Dis., v. 18 p. e211-19, 2018. Disponível em: <https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S1473-3099%2818%2930063-X.>. Acesso em: 15 fev. 2022.
https://www.thelancet.com/action/showPdf...
), não havia convicção se a vacina contra Zika levaria à chamada “intensificação dependente de anticorpos” (ADE), decorrente da reatividade cruzada entre o ZIKV e o DENV, em áreas endêmicas. A ADE é um evento imunológico caracterizado pelo aumento dos efeitos nocivos da dengue, em indivíduos que não desenvolveram totalmente a proteção contra o vírus. A chance de acontecimento ocorreria no caso de nova infecção ou da vacinação (Castanha; Marques, 2020CASTANHA, P. M. S.; MARQUES, E. T. A. A Glimmer of Hope: Recent Updates and Future Challenges in Zika Vaccine Development. Viruses, v. 12, p. 1-17. 2020. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7761420/pdf/viruses-12-01371.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2022.). Tal incerteza engendra o desafio de saber como a imunidade induzida pelas vacinas candidatas pode afetar outras epidemias de flavivírus e vice-versa (Ibid.) – lembrando que os vírus da zika, dengue e da febre amarela pertencem ao gênero flavivírus. Novas questões para o desenvolvimento da vacina que demandam tempo e investimento para sua resolução.

Nesse ponto, Poland, Ovsyannikova e Kennedy (2019POLAND, G.; OVSYANNIKOVA, I. G.; KENNEDY, R. B. Zika Vaccine Development: Current Status. Mayo Clin Proc., n. 94, v. 12, p. 2572-2586. 2019. Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31806107/>. Acesso em: 15 fev. 2022.) reforçaram a necessidade de esclarecimento acerca dos mecanismos patológicos que causam alterações neurológicas, como a síndrome de Guillain-Barré e a SCVZ. Sendo resultado direto de infecção viral, haveria grandes implicações para os estudos, pois diminuiriam as possibilidades de eleição de certas plataformas (Wilder-Smith ., 2018WILDER-SMITH, A. et al. Zika vaccines and therapeutics: landscape analysis and challenges ahead. BMC Medicine, v. 16, n. 84, 2018. Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29871628/.>. Acesso em: 15 fev. 2022.). Principalmente porque o desenvolvimento de modelos animais necessitava de validação adicional para verificações de: infecção, doença, transmissão materno-fetal e infecção fetal pelo ZIKV (Ibid.).

De acordo com Castanha e Marques (2020CASTANHA, P. M. S.; MARQUES, E. T. A. A Glimmer of Hope: Recent Updates and Future Challenges in Zika Vaccine Development. Viruses, v. 12, p. 1-17. 2020. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7761420/pdf/viruses-12-01371.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2022.), nos estudos pré-clínicos e clínicos, foram desenvolvidas e testadas inúmeras plataformas, grande parte sem resultados divulgados. O Quadro 1 mostra as candidatas em testes clínicos, publicadas pelos autores. Em maio de 2022, as informações foram atualizadas, com dados disponíveis na plataforma virtual americana da National Library of Medicine (NIH). A maior parte desses estudos foi realizada em áreas não endêmicas dos Estados Unidos e Europa.

Quadro 1
Candidatas à vacina contra o zika em testes clínicos

Para Castanha e Marques (Ibid.), as plataformas vacinais estudadas apresentam vantagens e desvantagens (Quadro 2). Poland, Ovsyannikova e Kennedy (2019POLAND, G.; OVSYANNIKOVA, I. G.; KENNEDY, R. B. Zika Vaccine Development: Current Status. Mayo Clin Proc., n. 94, v. 12, p. 2572-2586. 2019. Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31806107/>. Acesso em: 15 fev. 2022.) listaram os predicados de uma vacina ideal: exigir dose única; poder ser administrada a qualquer pessoa; resultar em imunidade durável; prevenir resultados clinicamente significativos de infecção; ser segura e altamente eficaz; e não demandar uma cadeia de frio ou logística complexa para armazenar e administrar. Os diversos modos de transmissão da zika, e os distintos cenários de vacinação existentes, podem impor diferentes propostas de vacinas, para públicos-alvo específicos (Ibid.). Assim, as decisões sobre o desenvolvimento vacinal devem ser tomadas considerando sua utilização nas políticas de vacinação: os cenários de aplicação; possíveis públicos-alvo e faixas etárias prioritárias; e efeitos adversos a serem evitados (Ibid.) – o que revela a importância de investimentos em pesquisas vacinais que compreendam múltiplas estratégias de vacinação, sensíveis ao contexto (Lacey, 2014LACEY, H. Tecnociência comercialmente orientada ou investigação multiestratégica? Scientiæ Zudia, São Paulo, v. 12, n. 4, p. 669-95. 2014. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ss/a/8R896sNLCSvHjbmQsPDV6PD/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 20 mar. 2022.
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).

Quadro 2
Plataformas vacinais

Outros problemas técnico-sociais apresentam relevância quanto à dimensão ética. Poland . (2018POLAND, G. A. et al. Development of vaccines against Zika virus. Lancet Infect Dis., v. 18 p. e211-19, 2018. Disponível em: <https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S1473-3099%2818%2930063-X.>. Acesso em: 15 fev. 2022.
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) revelaram barreiras para priorização de mulheres grávidas e em idade fértil como público-alvo ideal: falta de consenso ético, lacunas de conhecimento acerca da patogênese da zika durante a gravidez, ausência de padronização de resultados, dificuldades de avaliação de segurança nas pesquisas. Poland, Ovsyannikova e Kennedy (2019POLAND, G.; OVSYANNIKOVA, I. G.; KENNEDY, R. B. Zika Vaccine Development: Current Status. Mayo Clin Proc., n. 94, v. 12, p. 2572-2586. 2019. Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31806107/>. Acesso em: 15 fev. 2022.) argumentaram sobre a dificuldade de inclusão de certas populações nos ensaios clínicos, como: gestantes, crianças e outras.

Barret (2018a) evidenciou que a durabilidade da imunidade induzida pelas candidatas à vacina ainda não havia sido respondida, afetando o número de doses necessárias para evitar possíveis desfechos. Um problema com implicações importantes, diante do desafio colocado por Poland, Ovsyannikova e Kennedy (2019POLAND, G.; OVSYANNIKOVA, I. G.; KENNEDY, R. B. Zika Vaccine Development: Current Status. Mayo Clin Proc., n. 94, v. 12, p. 2572-2586. 2019. Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31806107/>. Acesso em: 15 fev. 2022.): o fornecimento de vacinas para países pobres, dado o histórico de custo das plataformas mais novas, e as questões que envolvem a priorização de suprimento, em contextos de limitação. Nesta perspectiva, Castanha e Marques (2020CASTANHA, P. M. S.; MARQUES, E. T. A. A Glimmer of Hope: Recent Updates and Future Challenges in Zika Vaccine Development. Viruses, v. 12, p. 1-17. 2020. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7761420/pdf/viruses-12-01371.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2022.) levantaram o desafio da manutenção do financiamento público e privado para apoiar pesquisas de fase III, e da elaboração de modelos de negócio para atrair investimentos que possibilitem a manutenção dos estudos clínicos e uma produção sustentada de vacinas. Ambos tensionam a possibilidade de ocorrência de um novo surto de SCVZ e o tempo necessário para a resolução de problemas complexos de desenvolvimento.

A sugestão feita por Barrett (2018b)BARRET, A. D. T. Developing Zika vaccines: the lessons for disease X. Genome Medicine, v. 10, n. 47, p. 1-3. 2018b. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6019790/pdf/13073_2018_Article_561.pdf.>. Acesso em: 28 jan. 2022. quanto ao financiamento – diminuir os custos de fase III, mantendo preconcebidos os ensaios e locais de estudos, para que sejam retomados durante novos surtos – esbarra no cenário presente do desenvolvimento da vacina. Além disso, qual seria a implicação para os países e populações pobres, no caso do acontecimento de uma nova epidemia de SCVZ e da demanda de aceleração da produção industrial de vacinas?

Implicações atuais da epidemia de zika no Brasil

Realizamos as entrevistas com um grupo de pessoas envolvidas com a pesquisa e com a causa pública: 2 representantes de associações de mães e famílias; 2 profissionais da saúde pública e 1 da educação; 2 vacinologistas. Uma mistura de conhecimento técnico-científico com valores e saberes das experiências de vida. Afetos agenciados através de questionamentos, consensos e contrassensos.

O primeiro consenso é a priorização da proteção das futuras mães. Entre aqueles que trabalham na saúde pública, existe, igualmente, a preocupação com o impacto de surtos de SCVZ no sistema de saúde e na economia do país. Esses sentidos engendram um norteamento consonante de que o principal papel da vacina é a prevenção de novos casos da síndrome. O seu desenvolvimento, segundo uma vacinologista, traria o “benefício de deixar as grávidas tranquilas de que elas poderiam gestar, sem correr o risco de se infectar com zika e afetarem os seus filhos”.

Existe dissonância sobre o tempo necessário para o desenvolvimento da vacina. Fica evidente nos discursos das mães a urgência na elaboração: “a vacina já podia ter sido lançada há muito tempo, mas, infelizmente a gente [...] só ouve que tem estudo que tem projeto de vacinas sendo desenvolvidas, mas na população ainda não chegou”. Para os vacinologistas, o desenvolvimento e o processo produtivo constituem um desafio temporal, uma vez que esse ciclo é complexo e demorado. Porém, ambos os grupos concordam que o país não deveria esperar um novo surto para estar “preparado”.

Segundo os especialistas, trata-se de investimento financeiro e esforço político. No primeiro caso, fomento para a pesquisa e para complexos industriais produtores. A vontade política se traduziria na demanda da vacina pelo Programa Nacional de Imunização. Uma vez que fossem abordadas várias faixas etárias, a circulação do vírus diminuiria, afetando a incidência de SCVZ. Conforme uma dessas narrativas: “se você pensar em doenças graves [...], que você tem produções de vacinas estratégicas, eu acho que, no mínimo, zika seria uma vacina [...] considerada uma vacina estratégica”.

Tal cenário engendra desafios para o processo de pesquisa e para a instituição da vacinação. Segundo os vacinologistas, o primeiro é avaliar se o produto candidato é realmente eficaz. Para demonstrar que o vírus não está circulando em uma população vacinada, em comparação com uma não vacinada, é essencial diferenciar os casos de zika de outras doenças transmitidas pelo mosquito Aedes. A acurácia dos métodos diagnósticos sorológicos e o fato da maioria dos casos serem assintomáticos impõem dificuldades e podem prolongar o tempo dos estudos.

O próximo é chegar na fase III de uma doença sazonal. A questão é agravada pela demanda de voluntários para essa etapa, que aumenta os custos das pesquisas, principalmente com a diminuição da incidência da doença. Outro desafio é definir os marcadores sorológicos de proteção confiáveis, ou correlatos de proteção, para avaliação da eficácia. A questão envolve a quantidade de anticorpos necessários para gerar proteção e o tempo que permaneceriam no indivíduo vacinado. Dependendo da plataforma desenvolvida, a imunidade pode ser mais robusta e duradoura (Quadro 2). Segundo uma especialista, o público-alvo determinado pelo TPP traz para as pesquisas o problema de determinar o ciclo de vacinação de uma mulher em idade fértil, para mantê-la protegida contra a SCVZ. A entrevistada também argumenta que seria ideal para os processos de vacinação que houvesse o desenvolvimento de diversas plataformas.

As questões sobre a eficácia e a segurança engendram o quarto desafio: a definição de modelos animais para testes clínicos. Como o ZIKV somente adoece humanos, as aferições em outros seres vivos ficam prejudicadas. O próximo desafio é criar um padrão de comparação entre estudos, pois, distintas instituições e empresas desenvolveram modos específicos de avaliar seus resultados.

O sexto desafio é desenvolver uma vacina multivalente para dengue, zika e chikungunya – estratégica para a saúde pública, pois, resolveria, concomitante, importantes problemas de áreas endêmicas de doenças transmitidas por mosquitos. O último é manter as pesquisas no cenário de cancelamento de projetos, em razão do fim da emergência sanitária e de uma racionalidade focada no mercado. Nesse sentido, a diminuição do interesse pela doença, com repercussões para o cuidado e para a pesquisa, e a incerteza sobre sua permanência no país são intercessões narrativas do grupo.

Os entrevistados concordam que o controle da zika extrapola os limites dos dispositivos biotecnológicos. No discurso das representantes das associações, os desafios de efetivação dos direitos básicos fazem parte do processo, principalmente porque as crianças estão crescendo e demandando mais dos aparelhos de Estado. Elas relatam enfrentar barreiras de acesso ao transporte público, ao lazer, à rede de cuidados, de acessibilidade – questões que compreendem a proteção social e a inclusão de pessoas com deficiência na sociedade.

Uma preocupação comum é a incerteza de uma iminente epidemia, dada a falta de soluções para o problema da proliferação do Aedes. A importância fundamental das políticas de saneamento básico para a prevenção das doenças transmitidas pelo mosquito é um consenso. Um vacinologista evidenciou a permanência do problema no Brasil há mais de 30 anos e a sua falta de crença na existência de uma medida única e eficiente para eliminá-lo.

A convergência dos especialistas sobre desenvolvimento de vacinas e sobre a vacinação como projetos de sociedade colocou em destaque os institutos públicos. Segundo uma vacinologista, essas instituições apresentam um protagonismo fundamental, já que a zika pode ser considerada uma doença negligenciada, pois desperta pouco interesse atual em outras instituições para a produção da sua vacina.

Uma política ontológica

Os dados da atualização epidemiológica sobre a zika, publicados em fevereiro de 2022, agenciaram novamente as incertezas globais. Das 6 Regiões demarcadas, 5 apresentaram evidências de transmissão vetorial autóctone do ZIKV, em 89 países e territórios. As Américas continuaram a reportar a maioria dos casos novos, e a Índia havia enfrentado epidemias em 2019 e 2021 (WHO, 2022WORLDL HEALTH ORGANIZATION. Zika Epidemiology Update. fev. 2022. Disponível em: <https://www.who.int/publications/m/item/zika-epidemiology-update---february-2022.>. Acesso em: 24 mar. 2022.
https://www.who.int/publications/m/item/...
).

A sanção do cenário emergencial pela OMS envolveu negociações e exercícios técnico-científicos que implicaram no enquadramento de problemas, desenhos de caminhos e modelagem de vidas em ato. Tecituras que Mol (1999MOL, A. Ontological politics. A word and some questions. The Sociological Review, v. 47, n. 1, p. 74-89. 1999. Disponível em: <https://journals.sagepub.com/toc/sora/47/1_suppl.> Acesso em: 15 fev. 2022.) e Law (2004LAW, J. After Method. Abingdon: Routledge, 2004.) chamam de política ontológica. Práticas balizadas pelas evidências científicas, hábeis em evitar rejeições primárias de suas ideias e métodos, capazes, assim, de moldar existências (Mol, 1999MOL, A. Ontological politics. A word and some questions. The Sociological Review, v. 47, n. 1, p. 74-89. 1999. Disponível em: <https://journals.sagepub.com/toc/sora/47/1_suppl.> Acesso em: 15 fev. 2022.).

As normatizações resultantes do TPP e da regulação técnica concentraram esforços na mitigação da ocorrência da SCVZ. Contudo, finalidades e táticas distintas podem ser destacadas. A experiência da vacinação contra a rubéola, desde a introdução da vacina de vírus vivo atenuado, em 1969, ajuda a iluminar outras dimensões da questão. Hinman (2007HINMAN, A. R. Estratégia de vacinação contra a rubéola. Jornal de Pediatria, v. 83, n. 5, p. 389-390, 2007.), em análise dos casos americano e inglês, concluiu que a estratégia ideal para maximizar a prevenção da síndrome da rubéola congênita (SRC) seria priorizar inicialmente a vacinação de mulheres em idade reprodutiva e, em seguida, interromper a circulação da rubéola pela vacinação de crianças.

Em 2015, o Brasil recebeu o Certificado de Eliminação da Rubéola, território livre da SRC. Os controles aconteceram em razão da combinação sucessiva de estratégias de vacinação (em massa, campanhas e de rotina), com finalidades distintas e abrangência de diversos públicos-alvo: masculino/feminino, crianças/adolescentes e adultos (Fiocruz, 2015). Cenário diferente daquele desenhado para a zika, no qual a prevenção ideal da SCVZ ficaria logo a cargo da população feminina, entre 15 e 49 anos.

Considerando os desafios que permeiam os processos de pesquisa e de produção de uma vacina, a restrição do público-alvo para mulheres em idade reprodutiva apresenta uma frágil sustentação, além de implicar aspectos éticos que necessitam de maior discussão. A adoção exclusiva de estratégias descontextualizadoras e orientadas pelo mercado, ignoram: a heterogeneidade da demanda; a subinvestigação dos efeitos sobre a vida da população-alvo; a não produção de respostas de longo prazo para riscos socioeconômicos; a abrangência, neutralidade e imparcialidade duvidosas das pesquisas (Lacey, 2014LACEY, H. Tecnociência comercialmente orientada ou investigação multiestratégica? Scientiæ Zudia, São Paulo, v. 12, n. 4, p. 669-95. 2014. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ss/a/8R896sNLCSvHjbmQsPDV6PD/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 20 mar. 2022.
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).

As inconsistências são relativizadas frente ao direcionamento da vacina a um público restrito em número e gênero. Nesse jogo de poder, a responsabilização exclusiva das mulheres pela prevenção da SCVZ leva à hipervulnerabilização, o que ocorreu na primeira epidemia da síndrome no Brasil. A população afetada – composta majoritariamente por jovens, negras, nordestinas, vivendo em situação de falta de saneamento – foi recrutada para a campanha de “combate ao mosquito”, que enunciava a microcefalia como resultado da falta de autoproteção (Lopes; Reis-Castro, 2019LOPES, G.; REIS-CASTRO, L. A Vector in the (Re)Making: A History of Aedes aegypti as Mosquitoes that Transmit Diseases in Brazil. In: LYNTERIS, C. Framing Animals as Epidemic Villains. Manchester: Palgrave Macmillan, 2019.). Ao visibilizá-las, argumentamos que intersecções de raça e classe social são fundamentais para a análise das consequências da aplicação das produções de conhecimento. Nesse sentido, a responsabilização das mulheres parece encobrir um dano muito maior: a deficiência produzida no bojo do acontecimento da síndrome congênita e sua relação com a desproteção social. Isto nos convoca a refletir sobre o modo como racismo, capacitismo e cisheterossexismo são invisibilizados pelos empreendimentos científicos e tecnológicos, sendo reiterados por esses mesmos edifícios como lógicas e diretrizes para o ordenamento social.

Interrogamo-nos, ainda, sobre as implicações para populações e territórios vulnerabilizados da modelação da vida fomentada pela OMS nas grandes emergências. Sobretudo porque suas normatizações evidenciam a ameaça existencial da epidemia, ocultando a necessária ação política promotora de proteção social. Assim, além de se transformarem em alvos justificados de coletas de dados, esses atores enfrentam barreiras muito maiores de produção de direitos.

Outro dispositivo notável para a construção de estratégias de vacinação, que levou ao controle da rubéola e da SRC, foi a vigilância epidemiológica. A OMS (2022) evidenciou o desafio da vigilância da zika, mesmo em lugares com boa capacidade laboratorial, em razão da disponibilidade restrita de testes diagnósticos e do prejuízo da capacidade de detecção do ZIKV em diversos países, no cenário da pandemia de Covid-19 (Ibid.). Tais perspectivas deixam dúvidas sobre uma maior presença da zika no mundo, criando barreiras para a produção regular de políticas públicas de saúde, vigilância e medidas de prevenção, incluindo a manutenção de estudos de vacinas (Poland; Ovsyannikova; Kennedy, 2019).

Assim, argumentamos que o agenciamento do TPP reforça práticas de pesquisa que ignoram a heterogeneidade dos contextos de demanda, invisibilizando a necessidade de desenvolvimento de produtos adequados para vacinações em condições de endemias. Ademais, aumenta o espaço de aceitação de determinadas plataformas nos processos nacionais de regulação, aspecto de fundamental interesse das instituições de pesquisa biotecnológica, que inclusive fizeram parte dos grupos reunidos pela OMS (WHO, 2016aWOLRD HEALTH ORGANIZATION. Meeting Report: WHO consultation on considerations for regulatory expectations of Zika virus vaccines for use during an emergency. Vaccine, v. 37, i. 50, p. 7443-7450, nov. 2016a. Disponível em:<https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264410X16309690>. Acesso em: 15 fev. 2022.; 2016b). O pressuposto de manutenção de muitos dos estudos é a rentabilidade da vacina – o que a torna parte de um modelo de negócios profícuo. Delineamento constituído na perspectiva do valor de mercado e do progresso tecnológico, produtor de práticas de investigação que não implicadas com as dimensões dos acontecimentos da vida e com as incertezas provenientes das inovações tecnocientíficas (Lacey, 2014LACEY, H. Tecnociência comercialmente orientada ou investigação multiestratégica? Scientiæ Zudia, São Paulo, v. 12, n. 4, p. 669-95. 2014. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ss/a/8R896sNLCSvHjbmQsPDV6PD/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 20 mar. 2022.
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).

Assim, o TPP foi constituído para conter a probabilidade de ocorrência de danos potenciais vinculados à produção de uma nova vacina, não para agenciar dúvidas acerca do processo (WHO, 2016bWORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Zika Virus (ZIKV) Vaccine Target Product Profile (TPP): Vaccine to protect against congenital Zika virus syndrome for use during an emergency, 2016b.). Ressaltamos que apenas um ensaio clínico do Quadro 1 completou a fase II: uma vacina de DNA do ZIKV, desenvolvida pelo National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID) dos Estados Unidos, administrada por dispositivo inovador sem agulha. Embora haja dúvidas sobre a incorporação do material genético vacinal ao genoma humano, a plataforma apresenta dupla expectativa: rápida adaptação a agentes infecciosos novos e emergentes; pronto desenvolvimento e produção. Como possibilidade, o produto fica mais atrativo, mesmo que a vacina venha a demandar múltiplas doses e o dispositivo de aplicação, treinamento de pessoal.

Sanar a preocupação com danos potenciais objetiva aumentar o espaço de aceitação de produtos em certos mercados e está vinculada à possibilidade de mobilização do EUAL. Segundo o documento, no contexto de emergência, “a comunidade pode estar mais disposta a tolerar menos certeza sobre a eficácia e segurança dos produtos, dada a morbidade e/ou mortalidade da doença e a deficiência de tratamento e /ou opções de prevenção” (WHO, 2015WORLD HEALTH ORGANIZATION. Emergency Use Assessment and Listing Procedure (EUAL) for candidate vaccines for use in the context of a public health emergency, 2015. Disponível em: <https://silo.tips/download/emergency-use-assessment-and-listing-procedure-eual-for-candidate-vaccines-for-u>. Acesso em: 15 fev. 2022.
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). Essa racionalidade parece enfatizar que “a responsabilidade legal de recompensar o dano causado pelo uso de uma inovação geralmente será considerada satisfeita, desde que a inovação tenha sido introduzida de acordo com as decisões das comissões” (Lacey, 2014LACEY, H. Tecnociência comercialmente orientada ou investigação multiestratégica? Scientiæ Zudia, São Paulo, v. 12, n. 4, p. 669-95. 2014. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ss/a/8R896sNLCSvHjbmQsPDV6PD/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 20 mar. 2022.
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, p. 686). Engendramentos com implicações para as instituições científicas e seus profissionais: priorização de objetos e fomentos, modos de avaliar resultados e produções, valores defendidos por ambos. Consequências que produzem divergências entre interesses comerciais e científicos (Ibid.), especialmente em contextos de maior demanda, como nas emergências sanitárias.

Segundo Lacey (Ibid.), a procura pelas inovações tecnocientíficas ocorre pela expectativa de seus benefícios, por parte de certos grupos. Nessa ótica, a experiência da pandemia da Covid-19 exemplifica efeitos ainda maiores. Para Yamey (2021YAMEY, G. Rich countries should tithe their vaccines. Nature, v. 590, n. 529. 2021. Disponível em: <https://www.nature.com/articles/d41586-021-00470-9.> Acesso em: 15 fev. 2022.), até fevereiro de 2021, as nações ricas, que representavam 16% da população mundial, haviam comprado mais da metade das doses de vacina existentes no mercado. Prática reincidente, pois havia acontecido durante a gripe suína de 2009, e produtora de desigualdades globais. Isto ocorreu porque essas nações tinham capital para comprar os produtos diretamente com as empresas de vacinas, em detrimento do comprometimento com o consórcio de compra coletiva (COVAX), que garantia maior igualdade para os demais países pobres.

Considerações finais

À medida que a OMS definiu o TPP apenas para uso emergencial, determinou o universo social no qual ele deve operar, sua política ontológica e um projeto sociotécnico específico. Projeto que se distingue por focar a mitigação da ocorrência da SCVZ, implicando: exposição, responsabilização e culpabilização de mulheres pela prevenção; instituição de certas estratégias de vacinação; invisibilização de outros cenários possíveis; maior espaço de aceitação de determinadas plataformas; ampliação das desigualdades globais.

O enfrentamento das barreiras listadas para o desenvolvimento da vacina contra zika impõe uma reflexão sobre a política ontológica da organização, de modo que engendre uma melhor adequação à multiplicidade de cenários globais: diversificação de opções de controle; modos de distinção das populações menos vulnerabilizantes; adequação contextual de formas de lidar; revisão de modelos de políticas institucionais e de participação da sociedade.

A experiência da rubéola mostrou a possibilidade de distintas estratégias de vacinação, efetivadas com tecnologias clássicas, sem a idealização de cenários vacinais. Ademais, os esforços de controle foram empreendidos tanto para eliminação da doença, quanto da SCR. Por ser transmitida de diversas formas, principalmente por mosquito, a prevenção da Zika compreende mais do que vacinas. Porém, a maximização do controle da SCVZ inclui, necessariamente, o seu desenvolvimento e políticas de vacinação. Segundo Fernandes . (2021FERNANDES, J. et al. Vacinas. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2021. Edição do Kindle., p. 12), “não são vacinas que salvam vidas, mas sim a vacinação”. Nesse sentido, consideramos que a política ontológica estabelecida pela OMS engendrou uma potente racionalidade emergencial que distinguiu a vacina da necessidade social da vacinação, empurrando a última para a invisibilidade.

Referências

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  • BARRET, A. D. T. Developing Zika vaccines: the lessons for disease X. Genome Medicine, v. 10, n. 47, p. 1-3. 2018b. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6019790/pdf/13073_2018_Article_561.pdf.>. Acesso em: 28 jan. 2022.
  • BRITTO, C. et al. Rapid travel to a Zika vaccine: are we heading towards success or more questions? Expert Opinion on Biological Therapy, v. 18, n. 11, p. 1171-1179. 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.1080/14712598.2018.1526277>. Acesso em: 28 jan. 2022.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2022
  • Aceito
    31 Jul 2023
  • Revisado
    12 Maio 2023
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