RESUMO
Objetivo:
Analisar a associação entre a letalidade e o cuidado hospitalar recebido por crianças e adolescentes internados por COVID-19 e o produto interno bruto (PIB) per capita dos municípios brasileiros e a região de residência.
Métodos:
Os dados foram extraídos do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Analisaram-se como desfechos dicotômicos a letalidade hospitalar por COVID-19, a coleta de amostra biológica para diagnóstico de COVID-19, a realização de exames raio X e tomografia, o uso de suporte ventilatório e a internação em unidade de terapia intensiva. As covariáveis foram o PIB municipal per capita e a região brasileira de residência. Foi realizada regressão de Poisson para os desfechos registrados em 2020 e 2021 no Brasil e segundo o período compreendido em duas ondas de COVID-19 no país, ajustando-a por idade e sexo.
Resultados:
A letalidade hospitalar foi de 7,6%. Nos municípios dos menores decis de PIB per capita a letalidade foi quase quatro vezes maior entre crianças e duas vezes mais elevada entre adolescentes quando comparada àquela dos maiores decis. Adicionalmente, os residentes de municípios com menor PIB per capita realizaram menos coleta de amostra biológica para diagnóstico, exames de raio X e tomografias. Foram encontradas disparidades regionais associadas à letalidade, com piores indicadores nas regiões Norte e Nordeste. Os achados mantiveram-se consistentes durante as duas ondas de COVID-19.
Conclusão:
Em municípios com menor PIB per capita e das regiões Norte e Nordeste houve piores indicadores de letalidade e cuidado hospitalar.
Palavras-chave:
COVID-19; Criança; Letalidade; Hospitalização; Desigualdade em saúde
INTRODUÇÃO
A pandemia de COVID-19 causou severas disrupções nas vidas de bilhões de pessoas e nos serviços de saúde em todo o mundo. Estudos têm mostrado que tais impactos se deram com intensidade e duração diferentes de acordo com as condições socioeconômicas e ambientais das localidades e dos indivíduos11 Baqui P, Bica I, Marra V, Ercole A, van der Schaar M. Ethnic and regional variations in hospital mortality from COVID-19 in Brazil: a cross-sectional observational study. Lancet Glob Health 2020; 8: e1018-26. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30285-0
https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30... –44 Martins-Filho PR, Quintans-Júnior LJ, de Souza Araújo AA, Sposato KB, Souza Tavares CS, Gurgel RQ, et al. Socio-economic inequalities and COVID-19 incidence and mortality in Brazilian children: a nationwide register-based study. Public Health 2021; 190: 4-6. https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.11.005
https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.11.0... , com piores desfechos nos grupos mais desfavorecidos55 Bambra C, Riordan R, Ford J, Matthews F. The COVID-19 pandemic and health inequalities. J Epidemiol Community Health 2020; 74: 964-8. https://doi.org/10.1136/jech-2020-214401
https://doi.org/10.1136/jech-2020-214401... . A COVID-19 também é resultado da interação entre desigualdades sociais e econômicas e distribuição de carga de doenças preexistentes, sendo descrita como uma sindemia com potencial de agudizar ainda mais tais diferenças entre grupos55 Bambra C, Riordan R, Ford J, Matthews F. The COVID-19 pandemic and health inequalities. J Epidemiol Community Health 2020; 74: 964-8. https://doi.org/10.1136/jech-2020-214401
https://doi.org/10.1136/jech-2020-214401... .
A COVID-19 pode ocasionar quadros graves independentemente da idade da pessoa infectada. Comparativamente aos idosos e adultos, crianças e adolescentes apresentam em geral curso mais leve da doença e menor letalidade66 Götzinger F, Santiago-García B, Noguera-Julián A, Lanaspa M, Lancella L, Carducci FIC, et al. COVID-19 in children and adolescents in Europe: a multinational, multicentre cohort study. Lancet Child Adolesc Health 2020; 4: 653-61. https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30177-2
https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30... –1111 Parri N, Lenge M, Buonsenso D. Children with Covid-19 in Pediatric Emergency Departments in Italy. N Engl J Med 2020; 383: 187-90. https://doi.org/10.1056/NEJMc2007617
https://doi.org/10.1056/NEJMc2007617... , no entanto têm sido observadas manifestações agudas e crônicas graves e potencialmente fatais nesse grupo, como a síndrome inflamatória multissistêmica1212 Riphagen S, Gomez X, Gonzalez-Martinez C, Wilkinson N, Theocharis P. Hyperinflammatory shock in children during COVID-19 pandemic. Lancet 2020; 395: 1607-8. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31094-1
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31... ,1313 Dufort EM, Koumans EH, Chow EJ, Rosenthal EM, Muse A, Rowlands J, et al. Multisystem inflammatory syndrome in children in New York state. N Engl J Med 2020; 383: 347-58. https://doi.org/10.1056/NEJMoa2021756
https://doi.org/10.1056/NEJMoa2021756... . Além disso, foram registrados no país períodos com altas taxas de hospitalização, de maneira particular nos momentos de maior propagação das variantes Delta e Ômicron1414 Fernandes DM, Oliveira CR, Guerguis S, Eisenberg R, Choi J, Kim M, et al. Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 clinical syndromes and predictors of disease severity in hospitalized children and youth. J Pediatr 2021; 230: 23-31.e10. https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2020.11.016
https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2020.11.... –1616 Cloete J, Kruger A, Masha M, du Plessis NM, Mawela D, Tshukudu M, et al. Paediatric hospitalisations due to COVID-19 during the first SARS-CoV-2 omicron (B.1.1.529) variant wave in South Africa: a multicentre observational study. Lancet Child Adolesc Health 2022; 6: 294-302. https://doi.org/10.1016/S2352-4642(22)00027-X
https://doi.org/10.1016/S2352-4642(22)00... . Também nesse grupo etário mais jovem, revisão sistemática sugere que o impacto da COVID-19 se distribui de forma desigual entre os países, tanto na admissão nas unidades de terapia intensiva (UTI) quanto nos óbitos1010 Kitano T, Kitano M, Krueger C, Jamal H, Al Rawahi H, Lee-Krueger R, et al. The differential impact of pediatric COVID-19 between high-income countries and low- and middle-income countries: a systematic review of fatality and ICU admission in children worldwide. PLoS One 2021; 16: e0246326. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0246326
https://doi.org/10.1371/journal.pone.024... . Os resultados do estudo de Kitano et al.1010 Kitano T, Kitano M, Krueger C, Jamal H, Al Rawahi H, Lee-Krueger R, et al. The differential impact of pediatric COVID-19 between high-income countries and low- and middle-income countries: a systematic review of fatality and ICU admission in children worldwide. PLoS One 2021; 16: e0246326. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0246326
https://doi.org/10.1371/journal.pone.024... mostraram que mais de 90% das mortes registradas mundialmente ocorreram em países de média e baixa renda, enquanto a admissão em UTI correspondeu a menos de 30% nesses países.
O impacto da COVID-19 no público infantil foi bastante severo também no Brasil. Ela foi a segunda causa de óbitos na faixa etária de 5 a 11 anos de idade em 20201717 Instituto Butantan. Covid-19 já matou mais de 1.400 crianças de zero a 11 anos no Brasil e deixou outros milhares com sequelas [Internet]. 2022 [cited on Apr 22, 2022]. Available at: https://butantan.gov.br/noticias/covid-19-ja-matou-mais-de-1.400-criancas-de-zero-a-11-anos-no-brasil-e-deixou-outras-milhares-com-sequelas
https://butantan.gov.br/noticias/covid-1... , e até dezembro do mesmo ano o país teve a maior taxa de mortalidade na população até 19 anos, com 23,6 óbitos por um milhão de crianças1010 Kitano T, Kitano M, Krueger C, Jamal H, Al Rawahi H, Lee-Krueger R, et al. The differential impact of pediatric COVID-19 between high-income countries and low- and middle-income countries: a systematic review of fatality and ICU admission in children worldwide. PLoS One 2021; 16: e0246326. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0246326
https://doi.org/10.1371/journal.pone.024... . Nesse mesmo período os Estados Unidos apresentaram taxa de mortalidade 12 vezes menor1010 Kitano T, Kitano M, Krueger C, Jamal H, Al Rawahi H, Lee-Krueger R, et al. The differential impact of pediatric COVID-19 between high-income countries and low- and middle-income countries: a systematic review of fatality and ICU admission in children worldwide. PLoS One 2021; 16: e0246326. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0246326
https://doi.org/10.1371/journal.pone.024... . No Reino Unido, durante o primeiro ano da pandemia, a taxa de mortalidade foi de 1,4 óbito por um milhão de crianças1010 Kitano T, Kitano M, Krueger C, Jamal H, Al Rawahi H, Lee-Krueger R, et al. The differential impact of pediatric COVID-19 between high-income countries and low- and middle-income countries: a systematic review of fatality and ICU admission in children worldwide. PLoS One 2021; 16: e0246326. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0246326
https://doi.org/10.1371/journal.pone.024... , enquanto na Colômbia e no México se observaram taxas de 7,8 e 5,4, respectivamente1010 Kitano T, Kitano M, Krueger C, Jamal H, Al Rawahi H, Lee-Krueger R, et al. The differential impact of pediatric COVID-19 between high-income countries and low- and middle-income countries: a systematic review of fatality and ICU admission in children worldwide. PLoS One 2021; 16: e0246326. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0246326
https://doi.org/10.1371/journal.pone.024... .
A distribuição dos óbitos em crianças e adolescentes por COVID-19 segundo as condições socioeconômicas pessoais ou de residência ainda é pouco descrita44 Martins-Filho PR, Quintans-Júnior LJ, de Souza Araújo AA, Sposato KB, Souza Tavares CS, Gurgel RQ, et al. Socio-economic inequalities and COVID-19 incidence and mortality in Brazilian children: a nationwide register-based study. Public Health 2021; 190: 4-6. https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.11.005
https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.11.0... ,1010 Kitano T, Kitano M, Krueger C, Jamal H, Al Rawahi H, Lee-Krueger R, et al. The differential impact of pediatric COVID-19 between high-income countries and low- and middle-income countries: a systematic review of fatality and ICU admission in children worldwide. PLoS One 2021; 16: e0246326. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0246326
https://doi.org/10.1371/journal.pone.024... ,1818 Oliveira EA, Colosimo EA, Silva ACS, Mak RH, Martelli DB, Silva LR, et al. Clinical characteristics and risk factors for death among hospitalised children and adolescents with COVID-19 in Brazil: an analysis of a nationwide database. Lancet Child Adolesc Health 2021; 5: 559-68. https://doi.org/10.1016/S2352-4642(21)00134-6
https://doi.org/10.1016/S2352-4642(21)00... ,1919 Sousa BLA, Brentani A, Ribeiro CCC, Dolhnikoff M, Grisi SJFE, Ferrer APS, et al. Noncommunicable diseases, sociodemographic vulnerability, and the risk of mortality in hospitalized children and adolescents with COVID-19 in Brazil: a syndemic in play. medRxiv 2021.02.11.21251591. https://doi.org/10.1101/2021.02.11.21251591
https://doi.org/10.1101/2021.02.11.21251... . Os estudos mostraram que a letalidade por COVID-19 em pacientes pediátricos estava associada à raça e a populações que viviam em países de média e baixa renda. Em análises subnacionais, os óbitos têm sido observados com maior frequência nas regiões Norte e Nordeste do Brasil44 Martins-Filho PR, Quintans-Júnior LJ, de Souza Araújo AA, Sposato KB, Souza Tavares CS, Gurgel RQ, et al. Socio-economic inequalities and COVID-19 incidence and mortality in Brazilian children: a nationwide register-based study. Public Health 2021; 190: 4-6. https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.11.005
https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.11.0... ,2020 Martins-Filho PR, Araújo AAS, Quintans-Júnior LJ, Santos VS. COVID-19 fatality rates related to social inequality in Northeast Brazil: a neighbourhood-level analysis. J Travel Med 2020; 27: taaa128. https://doi.org/10.1093/jtm/taaa128
https://doi.org/10.1093/jtm/taaa128... –2222 Lima EEC, Gayawan E, Baptista EA, Queiroz BL. Spatial pattern of COVID-19 deaths and infections in small areas of Brazil. PLoS One 2021; 16: e0246808. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0246808
https://doi.org/10.1371/journal.pone.024... , porém as pesquisas concentraram-se no primeiro ano da pandemia e não analisaram a totalidade dos casos de COVID-19 registrados no país nos períodos posteriores. Ainda, não foram identificados estudos pediátricos que exploraram desigualdades nos cuidados e na letalidade hospitalar em municípios brasileiros nos anos de 2020 e 2021 e segundo ondas de COVID-19.
A severidade da pandemia tem origem nas desigualdades sociais, que também são exacerbadas por ela55 Bambra C, Riordan R, Ford J, Matthews F. The COVID-19 pandemic and health inequalities. J Epidemiol Community Health 2020; 74: 964-8. https://doi.org/10.1136/jech-2020-214401
https://doi.org/10.1136/jech-2020-214401... . O Brasil é um país com grandes disparidades socioeconômicas e regionais e apresentou resposta inadequada no enfrentamento à pandemia2323 Barberia LG, Gómez EJ. Political and institutional perils of Brazil's COVID-19 crisis. Lancet 2020; 396: 367-8. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31681-0
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31... ,2424 Ribeiro H, Lima VM, Waldman EA. In the COVID-19 pandemic in Brazil, do brown lives matter? Lancet Glob Health 2020; 8: e976-7. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30314-4
https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30... . Nesse contexto, conhecer como se deu a ocorrência de desfechos de casos graves de COVID-19 e de assistência em uma população vulnerável é essencial para contribuir na avaliação das ações tomadas e para servir de base para ações contínuas de enfrentamento à COVID-19 e a eventuais epidemias futuras.
O objetivo do estudo foi analisar a letalidade hospitalar, a proporção de pacientes que fizeram testes para diagnóstico da doença, a realização de exames de imagem, o uso de suporte ventilatório e a proporção de internações em UTI de crianças e adolescentes por COVID-19 segundo o produto interno bruto (PIB) per capita dos municípios de residência e as macrorregiões brasileiras.
MÉTODOS
Foram analisados os dados provenientes do Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O SIVEP-Gripe é o sistema oficial do Brasil para o registro dos casos e óbitos por síndrome respiratória aguda grave (SRAG). A notificação de casos é compulsória, mesmo daqueles provocados pelo SARS-CoV-2.
A população do estudo foram crianças (0 a 11 anos) e adolescentes (12 a 18 anos) hospitalizados por SRAG com classificação final de COVID-19 e cujos sintomas se iniciaram entre a semana epidemiológica 10 de 2020 e a semana 52 de 2021, conforme base de dados atualizada em 18 de janeiro de 2022. Foram excluídos do estudo 2.486 indivíduos cujas fichas de notificação não apresentavam a evolução do caso (cura/óbito) e outros 1.519 cuja variável foi preenchida como ignorado ou óbito por outras causas. Outros 5.025 indivíduos, cujas fichas de notificação apresentavam registros ignorados nas variáveis do estudo, também foram excluídos. Assim, analisaram-se os dados de 22.610 hospitalizações por COVID-19.
Os desfechos do estudo foram:
letalidade hospitalar por COVID-19;
coleta de amostra biológica para diagnóstico do agente etiológico;
realização de exame de raio X;
realização de exame de tomografia;
uso de suporte ventilatório (invasivo ou não invasivo);
internação em UTI.
Todos foram classificados de forma dicotômica e analisados segundo o município de residência dos casos. As variáveis independentes do estudo foram o PIB per capita municipal e a macrorregião geopolítica de residência. Os municípios brasileiros foram agrupados em decis de acordo com os seus respectivos valores de PIB per capita. Tais valores são referentes a 2018, foram calculados pelo IBGE para cada município em parceria com os órgãos estaduais de estatística, secretarias estaduais de governo e Superintendência da Zona Franca de Manaus e expressos em reais (Tabela Suplementar 3). A divisão do país em macrorregiões foi elaborada em 1970 e resultou nas seguintes denominações: Região Norte, Região Nordeste, Região Sudeste, Região Sul e Região Centro-Oeste.
Foram calculados os riscos relativos (RR) para cada desfecho durante todo o período do estudo e para cada uma das duas ondas de COVID-19. A primeira onda compreendeu o período das semanas epidemiológicas de 10 a 43 de 2020 e foi marcada por expressivo número de casos simultâneos em diferentes regiões do país. A segunda onda deu-se no transcorrer das semanas epidemiológicas 44 de 2020 e 21 de 2021 e foi associada à expansão de novas variantes, adicionando maior pressão a um sistema de saúde já sobrecarregado, conforme descrito por Bastos et al.2525 Bastos LSI, Ranzani OT, Souza TML, Hamacher S, Bozza FA. COVID-19 hospital admissions: Brazil's first and second waves compared. Lancet Respir Med 2021; 9: e82. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(21)00287-3
https://doi.org/10.1016/S2213-2600(21)00... . Para estimar os RR e os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), utilizou-se a regressão de Poisson, ajustando-se os valores por sexo e idade. Também foram expressos os valores dos desfechos em percentuais segundo as variáveis independentes. As análises foram realizadas no software estatístico R versão 4.0.2. Os dados são públicos e anonimizados, dispensando-se a aprovação do estudo por Comitê de Ética em Pesquisa.
RESULTADOS
Houve internação de crianças ou adolescentes por COVID-19 em 3.138 dos 5.570 municípios brasileiros entre 2020 e 2021. Foram incluídas no estudo 22.610 hospitalizações por SRAG com classificação final de COVID-19. A maior parte estava na faixa etária de 0–11 anos (72%). A letalidade hospitalar observada foi de 7,6%, 29,9% dos indivíduos foram internados em leitos de UTI e pouco mais da metade (52,8%) fez uso de suporte ventilatório. Constatou-se que a coleta de amostra biológica para diagnóstico foi realizada em 96,3% dos casos. Os exames de raio X e tomografia foram feitos em 35,7 e 17% dos casos, respectivamente (Tabela 1 e Tabela suplementar 1).
Descrição da amostra, proporção de coleta de amostra biológica, realização de raio X e tomografia, uso de suporte ventilatório, internações em unidade de terapia intensiva e letalidade de crianças internadas por COVID-19, segundo os decis do produto interno bruto per capita dos municípios e a macrorregião. Brasil, março de 2020 a dezembro de 2021.
A letalidade hospitalar por COVID-19 oscilou entre os decis de PIB per capita municipal, atingindo o valor de 15,5% entre as crianças residentes nos municípios mais pobres e chegando a 4,1% entre os habitantes de municípios mais ricos. Para os adolescentes, essa variação foi de 16,2 e 8,8%. Ao se analisar os demais desfechos, verificou-se que as proporções de pacientes com coleta de amostra biológica para diagnóstico, realização de exames de raio X, tomografias, uso de suporte ventilatório e internação em UTI foram menores entre os municípios de menor PIB per capita em ambas as faixas etárias. A Região Nordeste apresentou a maior letalidade, e, proporcionalmente, a Região Norte teve menos coleta de amostra biológica para diagnóstico, exames de tomografia, uso de suporte ventilatório e internação em UTI (Tabela 1 e Tabela Suplementar 1).
Residentes em municípios mais pobres apresentaram letalidade hospitalar entre crianças quase quatro vezes maior e entre adolescentes quase duas vezes mais elevada quando comparados àqueles residentes nos municípios mais ricos (Tabela 2 e Tabela Suplementar 2). Além disso, em municípios mais ricos houve maior proporção de pacientes com coleta de amostra biológica para diagnóstico do agente etiológico tanto em crianças quanto em adolescentes, e houve realização 16% maior (RR=1,16; IC95% 1,01–1,32) de exames de raio X em crianças. O mesmo fenômeno foi observado em relação à realização de tomografias, que foi duas vezes mais frequente entre crianças e adolescentes residentes nos municípios mais ricos. Não foram identificadas diferenças nos demais desfechos (Tabela 2 e Tabela Suplementar 2).
Risco relativo da coleta de amostra biológica, realização de raio X e tomografia, uso de suporte ventilatório, internações em unidade de terapia intensiva e letalidade entre crianças internadas por COVID-19, segundo os decis do produto interno bruto per capita dos municípios e a macrorregião. Brasil, março de 2020 a dezembro de 2021.
Também se apontaram diferenças na letalidade segundo as macrorregiões de residência. Em comparação com a Região Nordeste, a letalidade em crianças foi expressivamente menor em todas as demais regiões. Para os adolescentes, a letalidade foi menor na Região Centro-Oeste. No que tange aos demais desfechos, a Região Norte foi onde menos se realizou coleta de amostra biológica e se internou em leitos de UTI (Tabela 2 e Tabela Suplementar 2).
As direções das associações observadas nos dois anos analisados se expressaram da mesma forma ao se considerar isoladamente as duas ondas de COVID-19 caracterizadas no estudo, porém com alguma variação nas magnitudes das diferenças. Enquanto a letalidade em crianças na primeira onda foi quatro vezes maior em residentes em municípios de menor PIB per capita, na segunda onda o valor foi quase três vezes superior (Figura 1). Não foram encontradas diferenças estatisticamente significantes na letalidade de adolescentes na primeira onda, ainda que as medidas pontuais tenham sido menores nos municípios mais ricos. Já na segunda onda, a letalidade foi duas vezes superior em municípios de menor PIB per capita (Figura Suplementar 1).
Risco relativo ajustado por sexo e idade da coleta de amostra biológica, realização de raio X e tomografia, uso de suporte ventilatório, internação em unidade de terapia intensiva e letalidade em crianças na (A) primeira e na (B) segunda onda da pandemia de COVID-19, de acordo com os decis do produto interno bruto per capita dos municípios e a macrorregião. Brasil, março de 2020 a dezembro de 2021.
Para os demais desfechos em crianças, os residentes no decil de municípios mais ricos apresentaram maior probabilidade de coleta de amostra biológica para diagnóstico de COVID-19 tanto na primeira (RR=1,06; IC95% 1,01–1,11) quanto na segunda onda (RR=1,09; IC95% 1,03–1,14) (Figura 1). A realização de exames de raio X foi 37% mais frequente nesses municípios na primeira onda (RR=1,37; IC95% 1,09–1,72). Em relação à quantidade de tomografias feitas, não foram encontradas diferenças com significância estatística na primeira onda, entretanto na segunda onda o evento foi quatro vezes superior (RR=4,29; IC95% 1,8–10,19) em residentes em municípios mais ricos (Figura 1). Entre os adolescentes, nos municípios mais ricos a proporção de pacientes que realizaram tomografia foi duas vezes superior à observada nos mais pobres na primeira onda e três vezes na segunda (Figura suplementar 1).
Foram encontradas diferenças entre as macrorregiões nas duas ondas de COVID-19. Em comparação com a Região Nordeste, a menor letalidade em crianças na primeira onda foi observada na Região Sul (RR=0,30; IC95% 0,18–0,50), e na segunda onda, na Região Sudeste (RR=0,36; IC95% 0,29–0,44). As regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste realizaram mais coleta de amostra biológica e tomografias em ambas as ondas em crianças (Figura 1). Para os adolescentes, em comparação com a Região Nordeste, a menor letalidade foi encontrada na Região Centro-Oeste tanto na primeira (RR=0,57; IC95% 0,33–0,99) quanto na segunda onda (RR=0,40; IC95% 0,25–0,64) (Figura suplementar 1).
DISCUSSÃO
O presente estudo identificou desigualdades na letalidade hospitalar por COVID-19 e no cuidado hospitalar dos pacientes pediátricos e adolescentes com a doença segundo o PIB per capita dos municípios e a região de residência. Observou-se que os municípios com menor PIB per capita apresentaram maior letalidade hospitalar, menos coleta de amostra biológica para diagnóstico do agente infeccioso e menos exames de raio X e tomografias. Foram encontradas disparidades regionais associadas à letalidade nessa população específica, com piores indicadores nas regiões Norte e Nordeste. Em geral, os achados mantiveram-se consistentes nas duas ondas de COVID-19 analisadas.
A letalidade hospitalar constatada na amostra foi maior do que a relatada em outros estudos pediátricos anteriores1414 Fernandes DM, Oliveira CR, Guerguis S, Eisenberg R, Choi J, Kim M, et al. Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 clinical syndromes and predictors of disease severity in hospitalized children and youth. J Pediatr 2021; 230: 23-31.e10. https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2020.11.016
https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2020.11.... ,2626 Zachariah P, Johnson CL, Halabi KC, Ahn D, Sen AI, Fischer A, et al. Epidemiology, clinical features, and disease severity in patients with coronavirus disease 2019 (COVID-19) in a Children's Hospital in New York City, New York. JAMA Pediatr 2020; 174: e202430. https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2020.2430
https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2... ,2727 Swann OV, Holden KA, Turtle L, Pollock L, Fairfield CJ, Drake TM, et al. Clinical characteristics of children and young people admitted to hospital with covid-19 in United Kingdom: prospective multicentre observational cohort study. BMJ 2020; 370: m3249. https://doi.org/10.1136/bmj.m3249
https://doi.org/10.1136/bmj.m3249... . Entre os pacientes pediátricos hospitalizados com COVID-19, estudo no Reino Unido mostrou que seis (1%) dos 627 pacientes acompanhados morreram no hospital2727 Swann OV, Holden KA, Turtle L, Pollock L, Fairfield CJ, Drake TM, et al. Clinical characteristics of children and young people admitted to hospital with covid-19 in United Kingdom: prospective multicentre observational cohort study. BMJ 2020; 370: m3249. https://doi.org/10.1136/bmj.m3249
https://doi.org/10.1136/bmj.m3249... . Estudos realizados em hospitais nos Estados Unidos apresentaram taxa de letalidade em torno de 2%1414 Fernandes DM, Oliveira CR, Guerguis S, Eisenberg R, Choi J, Kim M, et al. Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 clinical syndromes and predictors of disease severity in hospitalized children and youth. J Pediatr 2021; 230: 23-31.e10. https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2020.11.016
https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2020.11.... ,2626 Zachariah P, Johnson CL, Halabi KC, Ahn D, Sen AI, Fischer A, et al. Epidemiology, clinical features, and disease severity in patients with coronavirus disease 2019 (COVID-19) in a Children's Hospital in New York City, New York. JAMA Pediatr 2020; 174: e202430. https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2020.2430
https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2... .
As diferenças nos resultados desfavoráveis entre este estudo e os de fora do país podem estar relacionadas à política de enfrentamento à pandemia e ao fato de o Brasil possuir desigualdades socioeconômicas importantes que podem afetar a qualidade e a disponibilidade dos serviços de saúde em determinadas regiões e para certos grupos, aumentando a probabilidade de piores desfechos clínicos2828 Barros FC, Hartwig FP, Barros AJD, Menezes AMB, Horta BL, Struchiner CJ, et al. COVID-19 and social distancing among children and adolescents in Brazil. Rev Saude Publica 2021; 55: 42. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2021055003832
https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2021... . A maior letalidade encontrada em municípios com menor PIB per capita corrobora achados anteriores, sendo a mortalidade em crianças quase quatro vezes maior em municípios mais desprivilegiados no México33 Gutierrez JP, Bertozzi SM. Non-communicable diseases and inequalities increase risk of death among COVID-19 patients in Mexico. PLoS One 2020; 10: e0240394. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0240394
https://doi.org/10.1371/journal.pone.024... e no Brasil2323 Barberia LG, Gómez EJ. Political and institutional perils of Brazil's COVID-19 crisis. Lancet 2020; 396: 367-8. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31681-0
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31... , assim como a letalidade mais elevada nas regiões Norte e Nordeste11 Baqui P, Bica I, Marra V, Ercole A, van der Schaar M. Ethnic and regional variations in hospital mortality from COVID-19 in Brazil: a cross-sectional observational study. Lancet Glob Health 2020; 8: e1018-26. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30285-0
https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30... ,44 Martins-Filho PR, Quintans-Júnior LJ, de Souza Araújo AA, Sposato KB, Souza Tavares CS, Gurgel RQ, et al. Socio-economic inequalities and COVID-19 incidence and mortality in Brazilian children: a nationwide register-based study. Public Health 2021; 190: 4-6. https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.11.005
https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.11.0... ,2323 Barberia LG, Gómez EJ. Political and institutional perils of Brazil's COVID-19 crisis. Lancet 2020; 396: 367-8. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31681-0
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31... ,2929 Castagnoli R, Votto M, Licari A, Brambilla I, Bruno R, Perlini S, et al. Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) infection in children and adolescents: a systematic review. JAMA Pediatr 2020; 174: 882-9. https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2020.1467
https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2... . Estudos conduzidos nos Estados Unidos mostraram que pacientes de bairros ou municípios com renda mais baixa eram mais propensos a óbito3030 Quan D, Wong LL, Shallal A, Madan R, Hamdan A, Ahdi H, et al. Impact of race and socioeconomic status on outcomes in patients hospitalized with COVID-19. J Gen Intern Med 2021; 36: 1302-9. https://doi.org/10.1007/s11606-020-06527-1
https://doi.org/10.1007/s11606-020-06527... ,3131 Ossimetha A, Ossimetha A, Kosar CM, Rahman M. Socioeconomic disparities in community mobility reduction and COVID-19 growth. Mayo Clin Proc 2021; 96: 78-85. https://doi.org/10.1016/j.mayocp.2020.10.019
https://doi.org/10.1016/j.mayocp.2020.10... , no entanto essa relação ainda é pouco estudada em crianças.
A literatura tem mostrado que desigualdades sociais e em saúde resultam em prognóstico desfavorável da COVID-19, seja em países de alta ou baixa renda, seja em populações adultas ou pediátricas3232 Mackey K, Ayers CK, Kondo KK, Saha S, Advani SM, Young S, et al. Racial and ethnic disparities in COVID-19-related infections, hospitalizations, and deaths: a systematic review. Ann Intern Med 2021; 174: 362-73. https://doi.org/10.7326/M20-6306
https://doi.org/10.7326/M20-6306... ,3333 Tai DBG, Shah A, Doubeni CA, Sia IG, Wieland ML. The disproportionate impact of covid-19 on racial and ethnic minorities in the United States. Clin Infect Dis 2021; 72: 703-6. https://doi.org/10.1093/cid/ciaa815
https://doi.org/10.1093/cid/ciaa815... . Esses dados reforçam a hipótese de que as pandemias afetam as populações de maneira desigual, visto que o acesso à saúde costuma ser menor em regiões mais desfavorecidas, com variações no diagnóstico e no acesso a leitos de UTI, mesmo em sistemas de saúde universal como é o do Brasil3434 Pereira RHM, Braga CKV, Servo LM, Serra B, Amaral P, Gouveia N, et al. Geographic access to COVID-19 healthcare in Brazil using a balanced float catchment area approach. Soc Sci Med 2021; 273: 113773. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2021.113773
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2021... . Publicações prévias mostraram que nas regiões Norte e Nordeste a oferta de serviços de saúde está mais concentrada nas capitais e em poucos polos regionais das áreas metropolitanas. Em contrapartida, nas regiões Sul e Sudeste a rede de serviços é mais bem distribuída pelo interior dos estados2323 Barberia LG, Gómez EJ. Political and institutional perils of Brazil's COVID-19 crisis. Lancet 2020; 396: 367-8. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31681-0
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31... ,3535 Albuquerque MV, Ribeiro LHL. Inequality, geographic situation, and meanings of action in the COVID-19 pandemic in Brazil. Cad Saude Publica 2021; 36: e00208720. https://doi.org/10.1590/0102-311X00208720
https://doi.org/10.1590/0102-311X0020872... . Populações e municípios mais pobres, que respectivamente já apresentam mais dificuldade de acesso e oferta de serviços de saúde em circunstâncias normais, são os mais vulneráveis em momentos de crise, devendo ser priorizados no planejamento de ações, fato que não ocorreu no Brasil durante a pandemia de COVID-193535 Albuquerque MV, Ribeiro LHL. Inequality, geographic situation, and meanings of action in the COVID-19 pandemic in Brazil. Cad Saude Publica 2021; 36: e00208720. https://doi.org/10.1590/0102-311X00208720
https://doi.org/10.1590/0102-311X0020872... .
As iniquidades em saúde podem influenciar os resultados da pandemia de COVID-19. Apesar da importância da testagem para o controle da infecção pelo SARS-CoV-2, as estratégias adotadas variaram entre os países e neles3636 Pilecco FB, Coelho CG, Fernandes QHRF, Silveira IH, Pescarini JM, Ortelan N, et al. O efeito da testagem laboratorial nos indicadores de acompanhamento da COVID-19: uma análise dos 50 países com maior número de casos. Epidemiol Serv Saúde 2021; 30: e2020722. https://doi.org/10.1590/S1679-49742021000200002
https://doi.org/10.1590/S1679-4974202100... . Alguns países adotaram estratégias mais amplas, testando suspeitos e sintomáticos. Outros testaram apenas os sintomáticos graves, aqueles que tiveram contato com um caso confirmado e os pertencentes a grupos de risco3636 Pilecco FB, Coelho CG, Fernandes QHRF, Silveira IH, Pescarini JM, Ortelan N, et al. O efeito da testagem laboratorial nos indicadores de acompanhamento da COVID-19: uma análise dos 50 países com maior número de casos. Epidemiol Serv Saúde 2021; 30: e2020722. https://doi.org/10.1590/S1679-49742021000200002
https://doi.org/10.1590/S1679-4974202100... . No Brasil não se implementou política ampla e estruturada de testagem. Nesse cenário, a coleta de amostra biológica para diagnóstico no presente estudo se mostrou menor em municípios mais pobres, o que pode indicar menor capacidade de testagem nesses locais, contribuindo para o descontrole da pandemia, com consequente colapso nos serviços de saúde e aumento da mortalidade pediátrica.
Estudos na Europa e nos Estados Unidos realizados na população em geral demonstraram que os recursos de teste foram desproporcionalmente distribuídos entre a população de acordo com o local de residência, mostrando-se mais acessíveis em regiões mais ricas3737 Dryden-Peterson S, Velásquez GE, Stopka TJ, Davey S, Lockman S, Ojikutu BO. Disparities in SARS-CoV-2 testing in Massachusetts during the COVID-19 pandemic. JAMA Netw Open 2021; 4: e2037067. https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.2020.37067
https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.... ,3838 Riou J, Panczak R, Althaus CL, Junker C, Perisa D, Schneider K, et al. Socioeconomic position and the COVID-19 care cascade from testing to mortality in Switzerland: a population-based analysis. Lancet Public Health 2021; 6: e683-91. https://doi.org/10.1016/S2468-2667(21)00160-2
https://doi.org/10.1016/S2468-2667(21)00... . Em outra publicação dos Estados Unidos3939 Rader B, Astley CM, Sy KTL, Sewalk K, Hswen Y, Brownstein JS, et al. Geographic access to United States SARS-CoV-2 testing sites highlights healthcare disparities and may bias transmission estimates. J Travel Med 2020; 27: taaa076. https://doi.org/10.1093/jtm/taaa076
https://doi.org/10.1093/jtm/taaa076... , observou-se distribuição desigual dos testes, evidenciando as disparidades estruturais preexistentes, uma vez que a implantação dos locais de testagem se deu na infraestrutura já construída, exacerbando disparidades geográficas de acesso. No Brasil, além da capacidade insuficiente de testes para a demanda, a resposta pública federal foi descoordenada4040 Silveira MF, Barros AJD, Horta BL, Pellanda LC, Victora GD, Dellagostin OA, et al. Population-based surveys of antibodies against SARS-CoV-2 in Southern Brazil. Nature Med 2020; 26: 1196-9. https://doi.org/10.1038/s41591-020-0992-3
https://doi.org/10.1038/s41591-020-0992-... ,4141 The Lancet. COVID-19 in Brazil: “So what?” Lancet 2020; 395: 1461. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31095-3
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31... , ampliando as disparidades regionais no atendimento à saúde. A falta de planejamento federal, em um contexto de grande desigualdade, resultou em competição entre estados e municípios para a aquisição de insumos3535 Albuquerque MV, Ribeiro LHL. Inequality, geographic situation, and meanings of action in the COVID-19 pandemic in Brazil. Cad Saude Publica 2021; 36: e00208720. https://doi.org/10.1590/0102-311X00208720
https://doi.org/10.1590/0102-311X0020872... . Nesse sentido, fica evidente que a capacidade de resposta de cada ente federado foi diferente por causa das condições desiguais de ação3535 Albuquerque MV, Ribeiro LHL. Inequality, geographic situation, and meanings of action in the COVID-19 pandemic in Brazil. Cad Saude Publica 2021; 36: e00208720. https://doi.org/10.1590/0102-311X00208720
https://doi.org/10.1590/0102-311X0020872... .
Outro achado importante foi a menor frequência na realização de exames de imagem em municípios mais pobres. Revisão sistemática que incluiu principalmente crianças italianas, americanas e chinesas demonstrou que 73,9% delas foram submetidas à tomografia computadorizada, e os recém-nascidos, em 64% dos casos4242 Liguoro I, Pilotto C, Bonanni M, Ferrari ME, Pusiol A, Nocerino A, et al. SARS-COV-2 infection in children and newborns: a systematic review. Eur J Pediatr 2020; 179: 1029-46. https://doi.org/10.1007/s00431-020-03684-7
https://doi.org/10.1007/s00431-020-03684... . Estudo americano observou que o raio X foi realizado em 72% das crianças internadas em um hospital na cidade de Nova York, NY, Estados Unidos2626 Zachariah P, Johnson CL, Halabi KC, Ahn D, Sen AI, Fischer A, et al. Epidemiology, clinical features, and disease severity in patients with coronavirus disease 2019 (COVID-19) in a Children's Hospital in New York City, New York. JAMA Pediatr 2020; 174: e202430. https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2020.2430
https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2... . Os exames de imagem podem ser indicados na ausência de testes de RT-PCR para diagnóstico ou usados na avaliação dos estágios e da gravidade da doença4343 Cai Q, Du SY, Gao S, Huang GL, Zhang Z, Li S, et al. A model based on CT radiomic features for predicting RT-PCR becoming negative in coronavirus disease 2019 (COVID-19) patients. BMC Med Imaging 2020; 20: 118. https://doi.org/10.1186/s12880-020-00521-z
https://doi.org/10.1186/s12880-020-00521... ,4444 Islam N, Ebrahimzadeh S, Salameh JP, Kazi S, Fabiano N, Treanor L, et al. Thoracic imaging tests for the diagnosis of COVID-19. Cochrane Database Syst Rev 2021; (3): CD013639. https://doi.org/10.1002/14651858.CD013639.pub4
https://doi.org/10.1002/14651858.CD01363... . Por não haver indicação de uso universal nos casos de COVID-19, as diferenças observadas podem se dar por protocolos clínicos distintos entre municípios ou, mais provavelmente, estar associadas a disparidades na estrutura física hospitalar e/ou na disponibilidade de profissionais especializados nesses locais.
É importante destacar que tomografias exigem uso de equipamentos altamente especializados que podem não estar disponíveis em municípios e regiões mais pobres do Brasil. Assim, o acesso a tal exame pode estar limitado a cidades maiores, evidenciando a incapacidade do sistema de saúde de fornecer o mais alto nível de atendimento aos pacientes graves3434 Pereira RHM, Braga CKV, Servo LM, Serra B, Amaral P, Gouveia N, et al. Geographic access to COVID-19 healthcare in Brazil using a balanced float catchment area approach. Soc Sci Med 2021; 273: 113773. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2021.113773
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2021... , situação que pode ter contribuído para os resultados encontrados neste estudo. Publicações prévias evidenciaram que, das 450 regiões de saúde instituídas pelo Sistema Único de Saúde, grande parte não possui os recursos necessários para responder a uma pandemia4545 Portela MC, Pereira CCA, Andrade CLT, Lima SML, Braga Neto FC, Soares FRG, et al. As regiões de saúde e a capacidade instalada de leitos de UTI e alguns equipamentos para o enfrentamento dos casos graves de COVID-19. Rio Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; (Nota Técnica, 2); 2020.,4646 Noronha K, Guedes G, Turra CM, Andrade MV, Botega L, Nogueira D, et al. Análise de demanda e oferta de leitos hospitalares gerais, UTI e equipamentos de ventilação assistida no Brasil em função da pandemia da COVID-19: impactos microrregionais ponderados pelos diferenciais de estrutura etária, perfil etário de infecção e risco etário de internação. Belo Horizonte: Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Univiversidade Federal de Minas Gerais (Nota Técnica); 2020.. Ainda assim, esses resultados devem ser analisados com cautela, uma vez que a tomografia computadorizada expõe os pacientes à radiação e os profissionais da saúde a maior risco de contaminação cruzada dentro do hospital4747 Huang EPC, Sung CW, Chen CH, Fan CY, Lai PC, Huang YT. Can computed tomography be a primary tool for COVID-19 detection? Evidence appraisal through meta-analysis. Crit Care 2020; 24: 193. https://doi.org/10.1186/s13054-020-02908-4
https://doi.org/10.1186/s13054-020-02908... ,4848 Cho YJ, Song KH, Lee Y, Yoon JH, Park JY, Jung J, et al. Lung ultrasound for early diagnosis and severity assessment of pneumonia in patients with coronavirus disease 2019. Korean J Intern Med 2020; 35: 771-81. https://doi.org/10.3904/kjim.2020.180
https://doi.org/10.3904/kjim.2020.180... . O American College of Radiology desaconselhou o uso desse exame como método diagnóstico primário4747 Huang EPC, Sung CW, Chen CH, Fan CY, Lai PC, Huang YT. Can computed tomography be a primary tool for COVID-19 detection? Evidence appraisal through meta-analysis. Crit Care 2020; 24: 193. https://doi.org/10.1186/s13054-020-02908-4
https://doi.org/10.1186/s13054-020-02908... . Dessa forma, a falta de diretrizes específicas para casos pediátricos na infecção pelo novo coronavírus pode contribuir para seu uso em menor ou maior escala.
Os resultados indicam que a COVID-19 no Brasil afetou a população pediátrica por meio de padrões de vulnerabilidade socioeconômica, ampliando as iniquidades preexistentes e produzindo resultados piores em regiões e municípios mais pobres. Esses resultados poderiam ter sido mitigados por meio de uma resposta governamental adaptada às necessidades locais. Entretanto, sem uma estratégia nacional coordenada, as respostas foram heterogêneas4949 Castro MC, Kim S, Barberia L, Ribeiro AF, Gurzenda S, Ribeiro KB, et al. Spatiotemporal pattern of COVID-19 spread in Brazil. Science 2021; 372: 821-6.https://doi.org/10.1126/science.abh1558
https://doi.org/10.1126/science.abh1558... . Como o sistema de saúde no Brasil é descentralizado, os governos locais puderam implementar intervenções próprias de saúde pública e adotar medidas para ampliar a capacidade hospitalar. Porém, sem articulação nacional e financiamento equânime, os municípios mais ricos apresentaram maior possibilidade de ação e contaram com melhores condições estruturais previamente à pandemia.
Nesse sentido, cabe destacar que os recursos e a atenção aos cuidados da COVID-19 foram direcionados aos estratos etários afetados em maior número pela doença, sem se observarem com maior escrutínio as necessidades de crianças e adolescentes. Faz-se importante lembrar que, para além da mortalidade por COVID-19, as repercussões da pandemia na saúde infantil podem levar as crianças a maior risco de morbimortalidade por doenças evitáveis em função da descontinuidade da vacinação e de outros cuidados rotineiros de saúde. Outra preocupação latente é a suspensão das atividades escolares, elevando a disparidade da qualidade entre ensino público e ensino privado, prejudicando aqueles que mais necessitam dela5050 Morais AC, Miranda JOF. Repercussões da pandemia na saúde das crianças brasileiras para além da Covid-19. Physis Revista Saúde Coletiva 2021; 31: e310102. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312021310102
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312021... .
O presente estudo teve como ponto forte a análise de número expressivo de casos, o que foi possível por causa do uso do SIVEP-Gripe, um banco de abrangência nacional com grande amplitude cujo preenchimento é compulsório para serviços de saúde públicos e privados, possibilitando a obtenção de dados epidemiológicos de COVID-19 em crianças e adolescentes hospitalizados. Ainda assim, o estudo apresenta limitações. A análise pode ter sido impactada por preenchimentos inadequados de dados e pela não inserção de casos no sistema. A subnotificação é um problema provável, principalmente em contextos socioeconômicos mais vulneráveis. Assim, mesmo limitando-se a estimar a letalidade intra-hospitalar, cabe destacar que a letalidade da COVID-19 em casos que requerem cuidado mais intensivo e que não conseguem acesso ao estabelecimento de saúde pode ser maior fora do hospital.
Por se tratar de um estudo em pacientes hospitalizados, a amostra tende a representar apenas indivíduos na extremidade mais grave do espectro da doença, e esse aspecto deve ser considerado na interpretação dos dados. Este estudo não investigou a presença de doenças preexistentes nem de outras covariáveis que distinguem os municípios entre si. Tampouco foi objetivo do estudo investigar fatores que medeiam a associação de características macrossociais com a letalidade da COVID-19 e com desfechos assistenciais relacionados à doença. Pesquisas adicionais que investiguem aspectos ligados a condições de moradia e trabalho, rede assistencial e carga prévia de doenças serão importantes para ampliar o entendimento sobre as associações aqui descritas.
No presente estudo, as vulnerabilidades socioeconômicas e regionais associaram-se à letalidade e aos cuidados de crianças e adolescentes hospitalizados com COVID-19 no Brasil. Encontrou-se risco maior de óbito entre residentes em municípios com menor PIB per capita e nas regiões Norte e Nordeste. Esses resultados são importantes para a formulação de políticas sociais que considerem as características da população no enfrentamento da COVID-19 para que se promova saúde com equidade.
- Fonte de financiamento: nenhuma.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Fev 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
08 Set 2022 - Revisado
11 Nov 2022 - Aceito
23 Nov 2022